Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no município do Rio de Janeiro https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/#respond Wed, 13 Oct 2021 10:00:28 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/750_racismo-estrutural-populacao-negra-covid19-pandemia-coronavirus_20201117154514-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=547 Monique Miranda, Louise Mara S. Silva e Michele Gonçalves da Costa

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), publicada pela Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009, pelo Ministério da Saúde (MS), apresenta como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com o objetivo de promover a equidade em saúde. Os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população, segundo a Comissão Nacional de Determinantes Sociais em Saúde (CNDSS).

Políticas de equidade no Brasil, convenções e tratados internacionais demonstram que as desigualdades de raça e gênero determinam oportunidades de trabalho e renda, acesso a recursos institucionais, condições de moradia, vulnerabilidades e exposição à violência. Entretanto, o gênero e, em especial, a variável raça/cor, ainda são insuficientemente incorporados no desenho de políticas, programas e serviços das instituições públicas e privadas.

A PNSIPN endossa e correlaciona-se com outros marcos legais: a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886 de 20 de novembro de 2003), a Regulação do Sistema Único de Saúde-SUS (Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010), a Política Nacional de Promoção da Saúde (Portaria MS/GM nº 687, de 30 de março de 2006), a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas (Durban 2001), a Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela Assembleia Geral da ONU (Resolução 68/237, para o período entre 2015 e 2024). Por fim, destaca-se o artigo 196 da Constituição Federal de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e 207 econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,7% da população brasileira é composta por pessoas negras (somatório de autodeclarados pretos e pardos), correspondendo a 96,7 milhões de indivíduos. Na cidade do Rio de Janeiro os dados epidemiológicos apontam maior vulnerabilidade de cidadãos pretos e pardos aos agravos à saúde, embasando a necessidade de se priorizar a implantação de uma política específica de equidade racial da população negra em nossa cidade. Análises dos sistemas de informação em saúde demonstram maior mortalidade infantil da população negra em comparação com a branca; maior risco de morte entre os jovens da população negra em comparação com os jovens brancos; maior mortalidade materna das mulheres negras quando comparadas com as mulheres brancas.  Da mesma forma, a ocorrência de doenças tais como hipertensão, diabetes, tuberculose dentre outras também são prevalentes entre pretos e pardos, inclui-se ainda nesse  padrão os óbitos por Covid-19.

O marco fundamental para o combate às desigualdades étnico-raciais em saúde na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro foi a realização do “II Seminário de Promoção da Saúde: Equidade em Saúde da População Negra”, em dezembro de 2006. Este evento foi organizado pela então Assessoria de Promoção da Saúde em parceria com a ONG de mulheres negras, a Criola.  O seminário teve como intuito sensibilizar profissionais, gestores da saúde e definir estratégias para a implantação da PNSIPN na cidade. Estavam presentes aproximadamente 300 participantes: gestores e profissionais de saúde, ativistas do movimento negro e de mulheres negras, sociedade civil, lideranças comunitárias e representantes das religiões afro-brasileiras. Para o fomentar e articular o processo de implantação da política foram deliberadas as seguintes propostas no evento:

  • criação de um Comitê Técnico de Saúde da População Negra;
  • implantação do registro da variável raça/cor nos impressos oficiais da SMS;
  • diagnóstico epidemiológico da saúde da população negra;
  • formulação e estabelecimento de indicadores;
  • enfrentamento ao racismo institucional;
  • valorização das religiões de matriz africana;
  • institucionalização de recursos financeiros para a implantação da política;
  • fomento da participação do controle social e o fortalecimento de articulações intersetoriais.

No ano de 2007 foi criado o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, por meio da  Resolução SMS Nº 1298/2007, antes mesmo da promulgação da PNSIPN. O referido Comitê Técnico tem como atribuições:

I – sistematizar propostas que visem à promoção da equidade racial na atenção à saúde da população negra;

II – apresentar subsídios técnicos e políticos voltados à melhoria da atenção à saúde da população negra;

III – elaborar e implementar um plano de ação e monitoramento para intervenção pelas diversas instâncias e órgãos do Sistema Único de Saúde;

IV – fomentar e participar de iniciativas intersetoriais relacionadas com a saúde da população negra;

V – atuar na implantação, acompanhamento e avaliação das ações programáticas e políticas referentes à promoção da equidade em saúde da população negra na SMS/Rio, em consonância com as normativas do SUS.

O Comitê é composto por profissionais da gestão da SMS-Rio e de suas áreas técnicas, assim como  pelas representações da  sociedade civil, como universidades, ONGs , coletivos e outas instâncias,  em especial dos movimento negros e do movimento de mulheres.  Desta forma o CTSPN tem tido ao longo desses anos papel fundamental no impulso e acompanhamento da implantação da PNSIPN,  além de ser a instância de permeabilização do diálogo da SMS-Rio com a sociedade civil e na construção conjunta de ações para a redução das desigualdade étnico-raciais.

A mudança do panorama das graves iniquidades que atingem a população negra  requer o reconhecimento da sua situação de saúde. Para isso, é necessário que a variável raça/cor seja incluída em todos os sistemas de informação , formulários, cadastros, prontuários , impressos. Destacamos que um  dos objetivos específicos da PNSIPN é a inclusão do quesito cor em todos os instrumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos, conveniados ou contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Cabe destacar que o Rio de Janeiro instituiu desde 2008, pela Lei n.º 4.930/08 a inclusão obrigatória do quesito raça em todos formulários de informações em saúde do Município.

É fundamental  que as desigualdades étnico-raciais sejam monitoradas por dados, indicadores e informação em saúde  desagregados  por raça/cor. Embora na SMS-Rio o início da implantação da PNSIPN tenha completado pouco mais de uma década e exista atualmente um bom preenchimento da variável raça/cor , ainda é  incipiente  e descontínua sua utilização  na análise,  planejamento e  tomada de decisões nas  políticas e ações de saúde, assim como no investimento de recursos. Além disso, é necessário que os dados  por raça/cor sejam divulgados e disponibilizados de forma ampla, sistemática e transparente através dos canais de informação da prefeitura e junto  a sociedade civil e a população em geral.

As informações com os dados desagregados por cor ou raça são relevantes para atender ao princípio da equidade do SUS, ao reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde, oferecendo atendimento de acordo com as necessidades das populações, o que pode contribuir na redução do impacto dos determinantes sociais de saúde aos quais estão submetidas. São os dados desagregados por raça/cor que nos permitem confirmar o racismo como determinante social em saúde em um município como o Rio de Janeiro, onde segundo os dados do Instituto Pereira Passos (órgão responsável pela sistematização dos dados demográficos da cidade) a população em 2010 era composta por 51,3% brancos e 11,2% pretos; 36,7% pardos, configurando em 47,9% o quantitativo populacional negro.

Uma multiplicidade de pesquisas e estudos no campo da saúde coletiva expõe através de indicadores de morbimortalidade a grave situação de iniquidade sofrida pela população negra e indígena. Pesquisas qualitativas demonstram que o racismo institucional dificulta o acesso de pessoas pretas, pardas e indígenas aos serviços de saúde, influencia na qualidade da atenção à saúde prestada pelos profissionais e também  agrava a violência institucional  como no atendimento ao parto das mulheres negras.

Reconhecer que as práticas racistas também estão dentro do modelo de atenção à saúde e buscar a transformação desse cenário deve ser um objetivo de todos que estejam envolvidos com o cuidado em saúde e com as instâncias de gestão.  Os indicadores em saúde espelham a realidade da discriminação e desigualdade racial, embasando  a necessidade de se intensificar e ampliar a implantação da PNSIPN. Infelizmente o  racismo institucional na estrutura e entre os agentes públicos  da Prefeitura-Rio pouco mudou, decorrendo então que graves iniquidades raciais em saúde persistem na cidade do Rio de Janeiro.

A PNSIPN (2009) e a  Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas (2002)  são marcos no reconhecimento de diferenças e especificidade étnico-raciais na população brasileira. Essas políticas , em especial a primeira, trazem para a área de atuação dos gestores e profissionais de saúde as questões  da identidade racial e das desigualdades étnico-raciais, demandando para a sua implantação  um intenso e contínuo trabalho de combate ao racismo institucional  e estrutural.

A ampliação do acesso ao SUS e a integralidade das ações de saúde, assim como a transformação das graves desigualdades étnico-raciais demandam que profissionais, gestores e sociedade civil reconheçam o racismo institucional, comprometendo-se para o desafio cotidiano da desconstrução da ideologia racista existente em  nossa sociedade.

 

Monique Miranda é enfermeira, mestre em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Louise Mara S. Silva é enfermeira e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Michele Gonçalves da Costa é sanitarista, especialista em saúde coletiva, mestranda em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

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Cuidados Paliativos em debate: como organizar os sistemas de saúde para a realidade global https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/cuidados-paliativos-em-debate-como-organizar-os-sistemas-de-saude-para-a-realidade-global/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/cuidados-paliativos-em-debate-como-organizar-os-sistemas-de-saude-para-a-realidade-global/#respond Wed, 06 Oct 2021 10:00:55 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/sus_crise-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=543 Alessandra Pereira da Silva e Mario Dal Poz

 

Os cuidados paliativos ganharam repercussão na mídia devido a informações equivocadas sobre forma e conteúdo dessa área de conhecimento. Tomamos isso como uma oportunidade para esclarecer a relevância do papel de profissionais paliativistas no contexto nacional e internacional e afastar eventuais tentativas de nomear  os cuidados paliativos como práticas reprováveis do ponto de vista ético e científico.

Para enfrentamento do desafio global de ofertar serviços de saúde a uma população longeva, com doenças crônicas e comorbidades, se faz primordial a discussão sobre os Cuidados Paliativos. Segundo estimativa da Aliança Mundial de Cuidados Paliativos, há 20 milhões de pessoas que precisam desse tipo de assistência no mundo anualmente. Os adultos acima dos 60 anos representam 69% e as crianças 6% das pessoas que precisam do tratamento para diversas doenças. A maior proporção de adultos que demandam esse tipo de tratamento está em países de baixa e média renda, como o Brasil. Em 2014 a Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que somente 10% dos que precisam dos cuidados paliativos no mundo recebem o tratamento. A dimensão das doenças crônicas na saúde global e sua relação com o aumento da demanda para cuidados paliativos levam à necessidade de divulgar conceitos corretos para profissionais de saúde e para a sociedade, bem como  organizar os sistemas de saúde para essa realidade.

Em 1990 a OMS definiu um conceito para cuidados paliativos, atualizado em 2002: “Cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos”. Pela abrangência da oferta assistencial prestada, os cuidados paliativos são importantes desde o diagnóstico, tanto para a equipe manejar as indicações de forma assertiva como para pacientes e familiares se sentirem acolhidos e partícipes do tratamento. Porém, devido a fatores técnicos e subjetivos, tais como a formação de profissionais da saúde voltada majoritariamente para a cura e os tabus familiares, sociais e religiosos que envolvem a finitude, há vários obstáculos para reconhecer e aceitar o tratamento em questão. Isso pode ser percebido em expressões consagradas como “fora de possibilidade terapêutica” (FPT), que ainda hoje é largamente utilizada, negligenciando o fato de a paliação constituir uma terapêutica, embora sem um horizonte de cura.

Observa-se que nos dias atuais ainda há um descompasso entre conceitos e expressões, que atrelam os cuidados paliativos necessariamente à morte e não a uma possibilidade de cuidar do ser humano com respeito a sua dignidade até a finitude e para além dela, com atenção ao luto das famílias. Um exemplo é a expressão “prolongamento da vida” que vai de encontro ao consenso atual sobre cuidados paliativos e pode ser confundida com a utilização excessiva e desnecessária de recursos tecnológicos disponíveis sem benefício direto ou indireto, denominada “futilidade terapêutica”.  

O Conselho Federal de Medicina (CFM) na Resolução 1805/2006 permite ao médico limitar ou suspender tratamentos que prolonguem a vida na fase terminal de doenças graves e incuráveis, com garantia de uma assistência integral no alívio do sofrimento. Os cuidados paliativos oncológicos foram inseridos como componente do cuidado integral na Portaria nº 874 de 2013. A partir desse marco no Brasil, os cuidados paliativos foram finalmente consagrados como uma modalidade de tratamento. O diferencial é que a utilização de recursos terapêuticos com foco exclusivo para a cura foi ampliada para a oferta de tratamento digno quando não há possibilidade de recuperação da doença, visando o alívio do sofrimento, com protagonismo do paciente nas decisões e inclusão da família na oferta de assistência pela equipe.

Dentre os princípios dos cuidados paliativos, a Resolução do MS nº 41 de 2018 repudia as futilidades diagnósticas e terapêuticas, com ênfase à afirmação da vida, à aceitação da morte como um processo natural e ao respeito à evolução natural da doença, sem acelerar nem retardar a morte. Dessa forma, os cuidados paliativos constituem um suporte para que o paciente viva com autonomia, e o mais ativamente possível de acordo com as limitações impostas. O papel dos cuidados paliativos na atenção integral foi evidenciado na 67ª Assembleia da OMS, realizada em 2014, com a recomendação para o desenvolvimento, fortalecimento e implementação de políticas públicas para apoiar os sistemas de saúde, em todos os níveis.

Em comparação com o cenário internacional, os cuidados paliativos no Brasil são realizados com estrutura frágil, serviços numericamente insuficientes e sem a prática difusa de referência e contrarreferência desde a atenção primária, passando pelas emergências, hospitais especializados e assistência domiciliar. No âmbito da Rede de Atenção à Saúde (RAS), a proposta para organizar as diretrizes dos cuidados paliativos no SUS, no contexto de continuidade e integralidade da assistência, foi apresentada na Resolução nº 41 de 31 de outubro de 2018. Essa norma define pontos importantes do que essa modalidade de tratamento preconiza como:  multidisciplinaridade, prevenção e alívio do sofrimento, início da oferta dos cuidados paliativos a partir do diagnóstico e abordagem e sintomas de origem física, psicossocial e espiritual.

O objetivo é que os cuidados paliativos estejam integrados na RAS para melhorar a qualidade de vida dos pacientes e familiares, com assistência humanizada, abrangência de todas as linhas de cuidado e todos os níveis de atenção, baseada em evidências e com acesso equitativo. Dessa forma, há previsão de oferta de cuidados paliativos na atenção básica, na atenção domiciliar, em serviços ambulatoriais, urgências, emergências e atenção hospitalar com acompanhamento longitudinal, coordenação de cuidados e plano terapêutico ajustado à complexidade das necessidades e possibilidades do paciente e dos familiares.

 

Uma vez que a melhoria da qualidade de vida associada à longevidade deverá acarretar o aumento da incidência de doenças crônicas e constituirá um desafio para os sistemas de saúde, o dimensionamento do quadro de pessoal para o controle da doença ganha relevância. Por isso, a preocupação sobre suficiência ou insuficiência de profissionais para acolher e tratar pessoas com câncer deve estar na pauta do dia.

Os cuidados paliativos necessitam de uma equipe capacitada e dimensionada adequadamente para ofertar serviços de qualidade aos pacientes e familiares. Ao mesmo tempo, a concepção da paliação deve estar disseminada entre todos os profissionais, inclusive os que atuam nas linhas de tratamento com objetivo de cura. Uma diretriz política e de organização de serviços deve ser a atenção ao cuidado dos trabalhadores, com reconhecimento do impacto da rotina e da carga de trabalho em graus variados nas questões físicas, psicológicas e sociais dos profissionais de saúde. Equipes mal dimensionadas, distribuídas inadequadamente e com carga de trabalho elevada tendem a apresentar maior grau de sofrimento, adoecimento e absenteísmo, sobrecarregando as equipes e afetando a prestação de cuidado e os resultados de saúde.

Nas discussões sobre o acesso global aos cuidados paliativos há uma agenda de pesquisa que está avançando, com estudiosos que se dedicam a projetar a necessidade de cuidados paliativos até 2060, baseados no conceito e metodologia da Comissão de Acesso Global ao Cuidado Paliativo e Alívio da Dor. O foco do estudo é minimizar o sofrimento da população relacionado às doenças que acometem de forma mais expressiva idosos e pessoas com demência nos países de baixa renda.

 

Perspectivas

Acompanhando a tendência global, o sistema de saúde brasileiro precisará incluir, num futuro próximo, os cuidados paliativos como um tratamento que inicia com o diagnóstico de uma doença crônica e acompanha o paciente até a prestação de cuidados de fim de vida e suporte aos familiares no processo de luto. Para isso, é urgente consolidar e normatizar uma Política Nacional de Cuidados Paliativos, disseminar o tratamento como possível de ser iniciado em todos os níveis de atenção à saúde, promover ações educativas e conscientizar profissionais que lidam com quaisquer doenças crônico-degenerativas sobre a importância do tema. Além disso, a valorização dos profissionais que atuam na área pode ser traduzida pelo dimensionamento e pela distribuição adequada de equipes e pela melhoria das condições de trabalho tendo em vista a peculiaridade das atividades realizadas. Com o aprofundamento dos debates em instâncias científicas, a sociedade se beneficiará com profissionais preparados, cuidado tempestivo e um sistema de saúde capaz de ofertar atenção integral às doenças crônicas, considerando toda a complexidade envolvida.

 

Alessandra Pereira da Silva, enfermeira, Doutora em Saúde Coletiva (UERJ) e Analista de Ciência e Tecnologia do INCA.

Mario Dal Poz, Professor Titular no Instituto de Medicina Social.

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Saúde mental não é pauta “pop”: precisamos institucionalizar o debate para além da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/#respond Wed, 01 Sep 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-mental-pandemia-covid-19-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=515 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Todos já sabemos que as medidas de isolamento social impostas pela pandemia de Covid-19 agravaram o processo de adoecimento da população, mas também sabemos que o exponencial aumento de adoecimentos mentais em todo mundo não é um fenômeno recente. Estamos diante de um problema antigo e precisamos assumir as consequências de anos de descuido no campo: o debate público sobre saúde mental era um problema de saúde pública. 

Mas não estamos falando de um desafio exclusivo da área da saúde, para reduzir os danos provocados pela pandemia e atuar de forma preventiva em saúde mental temos que considerar os aspectos transversais do tema e outras agendas sociais, afinal, saúde mental permeia toda a nossa vida. Saúde, educação, sistema de justiça e segurança pública, assistência social, cultura e lazer  são setores igualmente responsáveis por criar soluções para esse desafio, assim como famílias e comunidades são indispensáveis em qualquer ação, de cuidado ou prevenção. 

O desafio no pós-pandemia é maior, mas agora também temos a oportunidade de aproveitar a atenção que a saúde mental recebeu nos últimos tempos e prolongar esse olhar a longo prazo. Não podemos deixar que a luz posta neste tema se apague, precisamos institucionalizar o debate sobre saúde mental no Brasil em todos os setores sociais, de forma sustentável e estrutural, e colocá-lo em pauta em todos os lugares. 

Em relação a saúde mental no “pós-pandemia”, ainda é cedo para diferenciar o que são reações “esperadas” frente ao estresse causado pela pandemia e o que pode ser considerado um transtorno, por isso devemos ter cautela ao já querer pular para diagnósticos precipitados. Mas já sabemos que devemos a chamada “quarta onda de COVID”, durante 3 e 4 anos, que resulta dos efeitos colaterais deste período de isolamento social, que incluem aumento de ansiedade e depressão, de transtornos obsessivos compulsivos e obesidade, e outras consequências à saúde em decorrência da pandemia. 

Fonte: Tseng, 2000.

Nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, aponta que é possível estimar o agravamento no cenário da saúde mental no Brasil, após a pandemia. Até 80% da população poderá desenvolver sofrimento psíquico, automutilação, conflito interpessoal e tentativa de suicídio. Cerca de um quarto da população (entre 15% e 25%) poderá se encontrar em maior risco, com sua estrutura psíquica mais fragilizada, e precisar de suporte imediato para evitar colapsos maiores e entre 1% e 4% da população diz respeito a pessoas que poderão precisar de atenção especializada. 

 

Efeitos a longo prazo 

Além dos efeitos colaterais de curto prazo, teremos também que lidar com a sociabilidade e a solidão no pós-pandemia. Mal começamos a perceber os impactos deste longo período de isolamento social na nossa capacidade de nos relacionar e existem muitas questões em aberto: de que maneira as mudanças de comportamento adotadas vão impactar nosso contato físico e trocas de afeto? Nossas rotinas e redes de apoio? Ou ainda, que tipo de soluções serão criadas a partir da perspectiva de que é possível fazer tudo de forma remota? Não precisamos mais nos encontrar presencialmente, tudo pode ser mediado por tecnologia? Como lidaremos com o pertencimento, fator tão relevante para a proteção da nossa saúde mental?

Especialmente com relação aos adolescentes, que propostas estamos criando para lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) já percebida antes da pandemia mais profundamente agrava com o isolamento social? Que tipo de lugar eles ocuparão no futuro da sociedade, em um contexto de precarização do acesso à sua educação e de redução das oportunidades de emprego? Dados do relatório Caminhos em Saúde Mental apontam o afastamento e a evasão de crianças e adolescentes, assim como o aumento do trabalho infantil e doméstico e as violências domésticas, como desafios agravados pela pandemia. 

Para além de “apagar incêndios”, pensando um pouco mais no futuro, precisamos, antes de tudo, afinar nossa compreensão coletiva sobre o que é saúde mental e como podemos incorporá-la ao nosso cotidiano de forma mais consistente. Independentemente da definição que se adote, é indispensável afirmar que a saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é o resultado da complexa interação entre esses aspectos individuais e as condições de vida das pessoas, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva e o acesso a bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária. 

Por isso não tem como melhorar os índices de educação, trabalho, alimentação, moradia, entre tantos outros,sem olhar de forma permanente para a saúde mental, o que nos leva de volta ao começo: precisamos urgentemente atuar na prevenção em saúde mental. Se não começarmos a prevenir os adoecimentos do futuro agora, chegaremos nele apagando incêndios tanto quanto hoje, sempre respondendo às demandas e não atuando de forma estrutural. 

E ainda teremos que continuar lidando com os velhos estigmas e preconceitos acerca do tema, que persistem em aparecer, mesmo com o crescimento do debate sobre saúde mental. Apenas citando alguns, a relutância em procurar ajuda ou tratamento, a falta de compreensão por parte da família, amigos e comunidade e, muitas vezes, a falta de preparo dos próprios cuidadores e profissionais “porta de entrada” da saúde para lidar com saúde mental são os questões que irão persistir no debate da saúde mental, mesmo no pós-pandemia. 

Devemos ressaltar que atuar em saúde mental não é um projeto individual com começo, meio e fim, é um projeto coletivo para vida toda. Precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de trabalhar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. A saúde mental de cada um de nós depende da articulação permanente entre os indivíduos, a comunidade e todos os setores sociais, trabalhando juntos para criar condições para uma vida digna e uma realidade social mais justa para todas as pessoas.  Como podemos fazer este debate tão central perdurar nos nossos lares, trabalhos e relações sociais?

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

 

 

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A vida em sociedade, governo e políticas públicas https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/a-vida-em-sociedade-governo-e-politicas-publicas/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/a-vida-em-sociedade-governo-e-politicas-publicas/#respond Wed, 14 Apr 2021 10:00:08 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/06103620_920542_GDO-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=371 Ricardo de Oliveira

 

Viver em coletividade depende cada vez mais da postura individual do cidadão e da capacidade e qualidade da ação coletiva da sociedade, através do Estado. Essa constatação nos coloca um desafio duplo: melhorar continuamente a qualidade dos governos, e envolver a população na formulação e implantação das políticas públicas.

Passamos de 1 bilhão de pessoas, em 1900, para cerca de 7 bilhões atualmente, tendo como consequência a ampliação do papel do Estado, o aumento da complexidade na organização dos governos e também da vida em sociedade. Já não faz mais sentido pensar que o Estado, sozinho, resolverá todos os problemas da coletividade. Além disso, passou da hora de reformarmos o Estado para que ele seja mais eficiente, eficaz, efetivo, e cumpra o papel que os tempos atuais demandam dele.

Vários problemas da sociedade como, por exemplo, os relativos à preservação do meio ambiente e da saúde, têm evidenciado a importância do envolvimento da população para a sua solução. Como fazer coleta de lixo seletiva, se cada cidadão não separar o seu lixo a partir da sua residência? Como manter a cidade limpa, se os cidadãos jogam lixo nas ruas? Será que a única solução é aumentar, cada vez mais, a estrutura dos governos que prestam esse tipo de serviço? A sociedade está disposta a assumir esse custo? Ou será que os governos também deveriam envolver a população por meio de uma campanha de educação, para conscientizá-la da importância da sua participação na manutenção de uma cidade limpa? Por outro lado, como manter os rios e lagoas livres de poluição se os governos forem incompetentes na prestação de serviços de saneamento? Esses são alguns questionamentos que mostram que hoje, mais do que nunca, viver em sociedade depende da articulação entre a participação cidadã e governos competentes.

No governo FHC, tivemos um bom exemplo de articulação entre ação do Estado e a participação dos cidadãos: o controle do uso da energia elétrica para evitar um apagão generalizado, algo que seria mais danoso para a sociedade. O governo estabeleceu meta para o consumo de cada residência e as famílias priorizaram de que forma consumir a sua cota de energia. Este episódio mostrou a importância da liderança do Estado e da mobilização da população em torno das políticas públicas.

Isso ocorre também na área da saúde. Como fazer ações de promoção à saúde que envolvam a incorporação de hábitos como alimentação saudável e a prática de exercícios físicos, sem estimular o protagonismo do cidadão nos cuidados com a própria saúde? A prevenção para um conjunto de doenças pressupõe um estilo de vida com práticas saudáveis. O papel do governo, nesse caso, é fornecer informações e atendimento adequado, de forma que o cidadão possa tomar a decisão mais condizente com sua saúde.

O combate à dengue é um caso clássico. Como eliminar o mosquito da dengue sem a participação da população, uma vez que 80% dos focos estão dentro das casas? Outro exemplo é a vacinação: como vacinar a população, se ela não estiver consciente da sua importância para prevenir doenças? Hoje em dia, a pandemia da COVID-19 escancarou a necessidade da participação de todos os cidadãos e da capacidade de liderança dos governos para superar esse grave problema de saúde pública.

Esse novo imperativo de comportamento solidário não é só uma questão de compaixão pelo outro. A atitude individual promove uma melhor qualidade de vida para mim e para todos. Como explicou Alexis de Tocqueville em seu clássico “Democracia na América”, analisando a cultura americana que combinava um forte individualismo com participação comunitária, é o “interesse bem compreendido”; ou seja, os americanos compreendiam que, além de cuidar do interesse próprio, era preciso cuidar do interesse coletivo.

No entanto, o envolvimento da sociedade pressupõe um governo confiável, reconhecido pela população como um aliado na melhoria de suas condições de vida. Esse é um desafio que ainda não superamos, conforme podemos constatar pela baixa credibilidade das nossas instituições governamentais, repetidamente mostrada nas pesquisas de opinião. Segundo pesquisa do Latinobarômetro, entre 2008 e 2018, o percentual de latino-americanos que declararam ter pouca ou nenhuma confiança nos respectivos governos subiu de cerca de 55% para mais de 70%. A prestação de serviços públicos desempenha um papel importante na construção dessa credibilidade; diariamente milhões de pessoas procuram os órgãos governamentais, e a experiência do usuário quanto à qualidade do atendimento pode contribuir para melhorar ou piorar a confiança da população na administração pública. Essa é uma das razões pelas quais precisamos incorporar, definitivamente, a reforma da gestão pública na agenda política permanente do país.

Os tempos atuais têm demonstrado que muitos problemas enfrentados pela sociedade devem ser enfrentados coletivamente, envolvendo governos e participação civil. Aqui comentei apenas sobre saúde e meio ambiente.

Parece não haver outra saída para o avanço civilizatório senão o estímulo da solidariedade, da consciência cívica e a melhoria da qualidade dos governos.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública – Democracia e Eficiência, FGV/2012 e, Gestão Pública e Saúde, FGV 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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O impacto da velocidade do trânsito no SUS: é possível desacelerar o uso de UTIs e evitar mais este desastre https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/o-impacto-da-velocidade-no-transito-no-sus-e-possivel-desacelerar-o-uso-de-utis-e-evitar-mais-este-desastre/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/o-impacto-da-velocidade-no-transito-no-sus-e-possivel-desacelerar-o-uso-de-utis-e-evitar-mais-este-desastre/#respond Mon, 12 Apr 2021 10:00:30 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/legislacao-001-1024x540-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=364 Pedro do Carmo Baumgratz de Paula e Dante Diego de Moraes Rosado e Souza*

 

Ao longo do último ano, e especialmente nas últimas semanas, nos acostumamos a acompanhar a porcentagem de ocupação das unidades de terapia intensiva (UTIs) em todo o Brasil. Ficamos assustados quando há 80% de ocupação, deixando pouco espaço para pacientes adicionais, já que os surtos de COVID-19 continuam em cidades e estados.  Vemos as limitações e o colapso de nossas estruturas de saúde quando muitas partes do país atingem 100% de ocupação dos leitos das UTIs.  

Mas e se você soubesse que rotineiramente, todos os anos, aproximadamente 60% dos leitos de UTI são ocupados por pessoas gravemente feridas no trânsito? Com o número de vítimas de trânsito de volta aos níveis pré-pandêmicos, mesmo ultrapassando as taxas anteriores em certos lugares, a necessidade de agir nunca foi tão clara e urgente: precisamos enfrentar nosso problema da violência no trânsito para reduzir as mortes e os ferimentos evitáveis e para aliviar a sobrecarga do nosso sistema de saúde. 

O Conselho Federal de Medicina vem alertando sobre este problema e seus custos há anos, muito antes da pandemia. O número estimado de mortes no trânsito por ano no mundo é de 1,35 milhões, sendo 40.000 mortes somente no Brasil, de acordo com a média dos últimos anos. Milhares de outros ficam feridos, necessitando de cuidados tanto a curto como a longo prazo. Com 19,7 mortes por 100 mil pessoas no trânsito, o Brasil possui um risco relativo maior do que a média global. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a velocidade como um fator de risco em particular que está quase sempre presente em colisões. A alta velocidade aumenta tanto a probabilidade quanto a gravidade de uma colisão. Ao reduzir, ou melhor, “readequar” a velocidade em 5%, podemos reduzir as fatalidades em até 30%.  

Os limites de velocidade das vias devem ser definidos em função dos tipos de usuários que utilizam o espaço. Por exemplo, são necessárias velocidades mais baixas em áreas próximas às escolas, onde as crianças e seus cuidadores provavelmente estarão andando. No momento em que um motorista excede o limite de velocidade, ele está colocando outros usuários das vias, e ele mesmo, em um alto risco de morte no caso de uma colisão. 

As altas velocidades são perigosas porque causam um efeito de estreitamento no campo visual do motorista, ou visão periférica, que prejudica a percepção da presença de pedestres, de outros usuários da via e mesmo obstáculos que nela se encontram. Isto resulta em reações retardadas em situações de emergência. As altas velocidades também exigem maiores distâncias para frear, limitando as alternativas para evitar uma tragédia. 

Para parar um veículo que circula a 60 km/h, por exemplo, são necessários mais de 35 metros, o que pode não ser suficiente para evitar que um pedestre seja atropelado. A 40 km/h, a distância necessária é de 20 metros, e a colisão poderia ser evitada, por exemplo. Por esses e outros motivos se diz que as mortes no trânsito são evitáveis. Elas decorrem de escolhas feitas pelos condutores de veículos, pelos demais usuários da via, pelo Poder Público e pela sociedade em geral. 

No ano passado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) reconheceu a terminologia “sinistros” como mais apropriada para uso em referência ao que anteriormente chamávamos de “acidentes” – um termo que permitia interpretações errôneas. Dizer “acidente” sugere que mortes e ferimentos no trânsito são eventos fortuitos e imprevisíveis – uma concepção errônea quando quase todas as mortes no trânsito são evitáveis. 

As consequências de um sinistro causado por excesso de velocidade podem ser trágicas. Um estudo realizado pela Comissão Nacional de Segurança Viária do Chile compara o impacto de um veículo sobre o corpo de uma pessoa em velocidades diferentes com a queda livre de um edifício. No caso de uma colisão a 70 km/h, o dano causado ao corpo humano seria equivalente à queda do sétimo andar de um edifício, deixando poucas chances de sobrevivência. Se o veículo estiver viajando a 50 km/h, os danos à vítima seriam menos graves, mas ainda assim semelhantes a uma queda do quarto andar. 

É baseada nesta evidência que a OMS recomenda a velocidade máxima em vias urbanas para 50 km/h em avenidas e 40 ou 30 km/h em ruas locais e residenciais. E o que poderia ser mais importante do que preservar uma vida? Ao adotar métodos comprovados e baseados em dados para evitar sinistros de trânsito, podemos aliviar a carga que nossos sistemas de saúde enfrentam no tratamento de vítimas de sinistros, desenvolvendo estratégias que atuam em múltiplas frentes no gerenciamento da velocidade. Especialmente durante a pandemia da COVID-19, vemos o valor de cada leito hospitalar. 

Ainda que tenhamos muito a melhorar, o Brasil tem ótimos exemplos de iniciativas voltadas a tornar suas vias mais seguras. Na cidade de São Paulo, a política de gestão de velocidades foi objeto de intenso debate público, no entanto teve seu sucesso consolidado. Iniciada em 2011 e aprofundada em 2015, a readequação das velocidades nas vias de São Paulo culminou com a padronização da velocidade máxima de 50km/h em todas as vias arteriais da cidade, um importante avanço no tema. Essas velocidades reduzidas ajudaram a diminuir em 36% as mortes entre 2014 e 2019, passando de 1.249 mortes para 791.   

Em outro caso notável, Fortaleza vem implementando uma política progressiva para ajustar a velocidade em avenidas com altas taxas de morte e ferimentos. A primeira avenida a receber este novo tratamento de velocidade tinha o maior índice de atropelamentos de pedestres da cidade e em apenas um ano registrou uma redução de 63% neste tipo de ocorrência. Além da nova limitação de velocidade, baseada em dados, um trabalho articulado de fiscalização e comunicação facilitou a compreensão das comunidades vizinhas sobre a urgência da medida. A capital do Ceará reduziu a taxa de mortes em 51,7% nos últimos 10 anos e alcançou a meta da ONU para a “Década de Ação para a Segurança Viária (2011-2020)”. Entre 2015 e 2020, a cidade salvou cerca de 750 vidas. 

É verdade que abordar a velocidade sozinha não resolverá completamente nossa crise de sinistros de trânsito. Outros fatores de risco também levam a colisões e mortes, como beber e dirigir. Mas em tempos de pandemia, quando cada leito em uma UTI é crítico, é importante reconhecer esta questão como uma prioridade de saúde pública. Não há dúvida entre os especialistas e pesquisadores de que a gestão das velocidades é crucial e de que nossos profissionais de saúde seriam mais capazes de se concentrar no tratamento de pacientes da COVID-19 ou na identificação e tratamento de outras doenças se os sinistros de trânsito de fossem evitados.  

— 

*Pedro de Paula é Diretor-Executivo da Vital Strategies no Brasil. Pedro é advogado formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestre em Direito Econômico e Economia Política pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente é Doutorando. Também leciona na faculdade de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Foto de Perfil: https://vital.box.com/s/urujs1jw2jepd3fkj5tr75qup375vpve

Contato: pcbpaula@vitalstrategies.org

 

*Dante Rosado é Coordenador Executivo da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global. Engenheiro Civil e Mestre em Engenharia de Transporte pela Universidade Federal do Ceará, atua na área de segurança viária há 17 anos.

Foto de Perfil: https://vital.box.com/s/rgdc10aw5acsb68f4ciu1udda5cj2ssb

Contato: dante@bigrs.org

 

**A Vital Strategies é uma organização global de saúde que acredita que todas as pessoas devem ser protegidas por um forte sistema de saúde pública. Trabalhamos com governos e a sociedade civil em 73 países, incluindo o Brasil, para projetar e implementar estratégias baseadas em evidências que abordam seus problemas de saúde pública mais prementes. Nosso objetivo é ver os governos adotarem intervenções promissoras em escala o mais rápido possível. Para saber mais, visite vitalstrategies.org ou no Twitter siga @VitalStrat.

 

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Monitoramento de políticas públicas e ciclos de aprendizado: os desafios e possibilidades para os novos gestores eleitos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/monitoramento-de-politicas-publicas-e-ciclos-de-aprendizado-os-desafios-e-possibilidades-para-os-novos-gestores-eleitos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/monitoramento-de-politicas-publicas-e-ciclos-de-aprendizado-os-desafios-e-possibilidades-para-os-novos-gestores-eleitos/#respond Mon, 23 Nov 2020 11:00:35 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/technology-2082642_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=318 Helyn Thami, Arthur Aguillar e Maria Letícia Machado

 

Em anos recentes, o monitoramento de políticas públicas, sobretudo na Saúde, ganhou ênfase em termos de discurso e de práticas. A pandemia, por consequência, acabou por endossar ainda mais a necessidade de acompanhar sistematicamente os dados para subsidiar a tomada de decisão. Painéis de indicadores foram elaborados e publicizados, levantaram-se críticas sobre a subnotificação de casos. Falamos de dados e falamos da qualidade deles.

Essa ênfase na relevância de uma estratégia de monitoramento efetiva se configura como um potencial legado da crise do novo coronavírus. Será difícil enxergarmos a análise sistemática de dados da saúde da mesma maneira como o fazíamos anteriormente, e isso tende a ser positivo para a sustentabilidade e melhoria do sistema.

Contudo, destaca-se que colocar de pé uma estratégia de monitoramento em nível municipal é uma tarefa pouco óbvia. Primeiro, é preciso reconhecer que o monitoramento não se restringe (ou não deveria) ao mero exercício de leitura de dados. Os dados precisam informar a tomada de decisão, de modo que, caso contrário, perdem sua serventia. É preciso, também, ir além e garantir que o sistema aprenda e melhore com base na análise desses dados e no acompanhamento dos resultados das decisões tomadas. Ademais, não se pode perder de vista que o monitoramento também permite a responsabilização dos provedores de serviço, o que contribui para a qualificação do sistema, de igual modo.

Como é possível ao gestor municipal implementar, de modo efetivo, uma estratégia de monitoramento que torne o sistema mais transparente e possibilite a aprendizagem de todos que fazem parte dele? Em primeiro lugar, é necessário compreender que a efetividade da implementação dependerá, inicialmente, de etapas de qualificação das informações disponíveis. Sabemos dos enormes desafios de qualidade e fragmentação de dados no âmbito do SUS, sobretudo no que tange à integração de bases de dados e à identificação única dos usuários, para citar alguns. Sem esses componentes, se torna inviável o acompanhamento do itinerário do usuário no sistema de saúde, o que implica em informações frágeis para a tomada de decisão ou, ainda, em um tempo muito grande para tratar as informações antes de poder aplicá-las na prática.

Sendo assim, é imprescindível que os futuros secretários de saúde invistam na construção/implantação de um sistema de informação com identificador único por usuário e na delimitação de um conjunto mínimo de dados a ser acompanhado e monitorado rotineiramente, em um modelo de painel de indicadores. Esse painel deve ser parcimonioso e cada indicador deve responder a perguntas de gestão específicas — indicadores não são fins em si mesmos. Não menos importante, os dados devem ser inteligíveis para os diversos atores interessados. Um nível incompatível de complexidade da informação compromete o entendimento do problema e, de igual modo, a resposta a ele.

Em um segundo momento, é preciso pensar em um ciclo de análise e devolutiva sobre desempenho para as equipes da ponta. Ora, se são esses os times que carregam boa parte do ônus e responsabilidade da coleta de dados, é ético, justo e adequado que esses mesmos times possam encontrar sentido na qualificação de seu trabalho através de devolutivas com periodicidade definida. Isso pode ser feito, por exemplo, no modelo de seminários de gestão ou fóruns e oficinas. Destaca-se aqui a importância da frequência e periodicidade de análise dos dados: em situações emergenciais como a atual, é preciso que a gestão esteja preparada para processar e analisar dados em alta frequência.  O desenvolvimento dessas habilidades é imperioso para as equipes de gestão efetivamente comprometidas com a melhoria do sistema de saúde.

Por fim, é preciso que o município desenhe e implemente um plano de monitoramento para as condições de maior interesse sanitário, em consonância com o planejamento estratégico do mandato, sendo esse um desdobramento do diagnóstico da situação de saúde (e de necessidades em saúde) do município. Em um sistema com recursos finitos e coexistência de desafios, priorizar é uma atividade importante, inclusive quando da definição dos objetos a serem acompanhados.

A tarefa é complexa, mas os futuros gestores municipais podem se beneficiar de ferramentas tais como a Agenda Saúde na Cidade, que traz o passo a passo de implementação e os desafios políticos e administrativos envolvidos na execução de cada uma dessas medidas fundamentais. Tirar planos do papel é uma tarefa que exige uma visão técnica apurada, sem perder de vista o contexto do mundo real em que as políticas públicas acontecem.

Há um amplo consenso entre especialistas em gestão que as organizações, incluindo os sistemas de saúde, melhoram conforme avança a sua capacidade de aprender com seus erros e acertos. Ter informação de qualidade disponível e usá-las para engajar equipes na construção de soluções, com posterior acompanhamento de seus efeitos, é essencial para que moldemos o sistema de saúde que queremos. Esse é um sonho possível e, oportunamente, as novas gestões municipais se configuram como uma importante janela de oportunidade nesse sentido.

 

Helyn Thami, Arthur Aguillar e Maria Letícia Machado são pesquisadores do IEPS

 

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Reforma da gestão pública https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/29/reforma-da-gestao-publica/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/29/reforma-da-gestao-publica/#respond Thu, 29 Oct 2020 11:07:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Plenário_do_Congresso_17368738481-2-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=305  

Ricardo de Oliveira

 

Uma das questões mais importantes da agenda política é a reforma da gestão pública.  Isso porque é preciso garantir que a população exerça os direitos estabelecidos na constituição e, essa garantia só é possível com uma gestão pública de qualidade, que assegure que os recursos disponíveis para a administração pública (financeiros, patrimoniais, materiais, poder e pessoal) sejam aplicados, da melhor maneira possível, no interesse da população.

A criação de direitos sem que a população possa exercê-los, na sua plenitude, tem um enorme potencial de desqualificar o Estado democrático de direito. Os nossos legisladores têm priorizado a criação de direitos sem a devida preocupação com a garantia do seu exercício. Essa prática prejudica, principalmente, a parte da população mais pobre e, portanto, mais dependente dos serviços públicos, agravando a desigualdade social, que já é absurdamente alta no nosso país.

A reforma da gestão pública tem que ser pensada em toda sua complexidade, nas dimensões técnica e política. Ao contrário da gestão privada, a gestão pública age em um ambiente com fortes interações com a disputa política na sociedade, seja por interesses clientelistas, corporativos, econômicos ou institucionais, além de conviver com uma legislação de controle muito restritiva ao desempenho gerencial.

O objetivo da administração pública é prestar serviços à população com transparência, eficiência, sustentabilidade e qualidade. A reforma da gestão pública precisa, inicialmente, fazer um diagnóstico dos problemas políticos e técnicos que restringem o alcance desse objetivo. Esse passo é fundamental para que sejam procuradas soluções adequadas aos reais problemas que afetam o desempenho gerencial da administração pública. O debate é sobre o conjunto das regras de gestão e controle do setor público e sua interação com o ambiente político e institucional. É preciso identificar, com clareza, as restrições provenientes desse ambiente no desempenho gerencial da administração pública, sob pena de propor soluções parciais, com alcance limitado, na melhoria da prestação de serviços públicos à população.

Por fim, a reforma tem que ser pensada como um processo que envolve muitos atores, públicos e privados, com interesse no desenvolvimento da gestão pública como forma de promover a igualdade de oportunidades. Essa é uma obra coletiva. Não há salvadores da pátria.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi secretário estadual de gestão e recursos humanos do ES, no período de 2005/2010 e secretário estadual de saúde do ES em 2015/2018. Autor dos livros gestão pública: Democracia e Eficiência- FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde- FGV/2020.

 

 

 

 

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Precisamos resgatar a ideia de que a ciência é apartidária, diz epidemiologista de Harvard https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/#respond Mon, 07 Sep 2020 02:15:23 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/61bc2a1ab4d4a5a3801cc2bc172f73a6e91a2df41ad82036651044a4baf58dcf_5f544398abc1d-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=273  

Pablo Peña Corrales

Miguel Lago

Fernando Falbel

Em fevereiro deste ano, quando a Covid-19 parecia uma preocupação distante, Marc Lipsitch alertou para o alto risco de uma pandemia. Como professor de epidemiologia na Universidade Harvard especializado em modelagem matemática de epidemias, ele logo encontrou padrões alarmantes de contágio e mortalidade. Desde então, Lipsitch é um dos cientistas mais consultados pela mídia norte-americana para entender a evolução da pandemia no mundo.

 

Em 2019, um índice global de segurança sanitária feito pela Universidade Johns Hopkins e pela revista The Economist classificou EUA e Reino Unido como os países mais bem preparados para uma epidemia. A China não estava no top 50, e a Nova Zelândia nem no top 30. O quadro evoluiu de forma bem diferente. Como a Covid-19 mudou nosso entendimento do que significa estar preparado?  

 

 

Marc Lipsitch: A pandemia mostrou que a liderança, em nível nacional e subnacional, pode pesar mais do que dispositivos sistêmicos. Não que baste ter boa liderança; um país desprovido de infraestrutura continuará despreparado. Mas, se há capacidade sistêmica, o nível de liderança —tanto em termos de respeitar a ciência e a saúde pública como de planejamento estratégico e coordenação— pode superar todo o resto.

Os EUA não tinham plano, e a resposta tem sido mais tática do que estratégica em nível nacional. Daqui em diante, creio que os índices de preparo deverão levar em conta não só o país, mas seu governo.

A Organização Mundial da Saúde tem sido criticada por sua resposta lenta à crise, como ter demorado para aconselhar o uso de máscaras em locais públicos. A OMS argumenta que só deveria mudar suas diretrizes diante de evidências esmagadoras. O sr. concorda? 

Não. Diante de epidemias de doenças infecciosas, em que a ação precoce importa muito, o critério deveria ser a existência de evidência sugestiva de um benefício e nenhuma grande desvantagem em fazer determinada coisa. A evidência pode favorecer a ação mesmo que não seja conclusiva.

Um exemplo é o lockdown preventivo. A evidência era muito forte de que ele poderia retardar a crise por vir. Embora o lado negativo não fosse pequeno, sua mitigação era possível, de modo que defendi medidas rápidas antes de sabermos todos os detalhes e dados. Uma abordagem mais analítica de decisão, em vez de uma abordagem apenas de evidência científica, é apropriada no caso.

Nos últimos meses, houve uma explosão de artigos científicos sobre a Covid-19 compartilhados em versões preprint, antes da revisão por pares, da verificação e revisão detalhada. O fato de as proteções do rigor científico estarem sendo dribladas preocupa?

Isso é uma bênção e uma maldição, embora mais positiva que negativa.

A revisão por pares é um dentre quatro níveis de controle de qualidade científica.

O primeiro é o treinamento dos cientistas para que eles saibam o que estão fazendo —e que vem sendo driblado, com pesquisadores trabalhando em campos com que estão pouco familiarizados.

O segundo é a autoedição científica: sua reputação está atrelada à credibilidade do seu trabalho, portanto evitar estar errado é um importante incentivo. No entanto, esse processo está sofrendo uma erosão pela pressa de publicar.

A revisão pelos pares, o terceiro nível, nem sempre está acontecendo e é também um processo imperfeito, mesmo quando funciona. A replicação é o quarto, e muitas vezes não há tempo para fazer isso.

Portanto, acho que a rapidez é um problema. Dado o enfraquecimento dos mecanismos de controle de qualidade, não me preocupam os preprints, até porque elas têm aspectos positivos, como acelerar as comunicações, o que é valioso.

Fora que a revisão por pares no Twitter está realmente acontecendo, já participei de ambos os lados. Acabei de colocar um preprint no MedRxiv que recebeu muitas críticas no Twitter, muitas das quais incorporamos na nova versão.

Acho que outros mecanismos estão funcionando. Não que substituam a revisão por pares, ou que sejam perfeitos, mas quem não aceita ser criticado deveria sair da ciência.

Algumas pessoas sugerem que devemos analisar o que foi chamado de totalidade das evidências, ou seja, incluir as desvantagens dos lockdowns sobre a economia, a saúde mental, a desigualdade etc. É possível incluir tantas dimensões na tomada de decisões do dia a dia?

Eu concordo com esse princípio, de que se os bloqueios fossem mais prejudiciais em termos de saúde mental e economia do que benéficos em termos do vírus isso seria uma consideração importante contra.

Na prática, contudo, é muito difícil comparar. Primeiro, cada efeito desses é difícil de estimar. Segundo, se o vírus está se espalhando, isso tem efeitos amplos: afeta a saúde mental e a economia, pois a reação das pessoas é tentar se isolar. Não é questão de separá-los, contá-los e pesá-los. Está tudo inter-relacionado, e a dimensão temporal é confusa.

Acho que é realmente difícil e não culpo nenhuma decisão política por ter dificuldade em equilibrá-los. Mas a decisão a curto prazo, a decisão imediata de bloquear, foi válida. Minha percepção no momento é que ainda temos um equilíbrio favorável em relação a medidas de controle extremas, pois elas podem reduzir o número de casos de maneira relativamente rápida.

Isso não significa que se deva lidar assim com todo surto viral. Se este fosse menos letal, a decisão poderia ser outra.

A solução parece ser a vacina. Temos mais de 160 candidatas, mais de 20 em teste, e os resultados iniciais parecem promissores. O que está por trás deste sucesso?  

Houve enorme investimento por governos e empresas, e minha intuição diz que a busca por vacinas contra o coronavírus da Mers e da Sars, que já estava em curso, deu impulso.

Ainda ficaria surpreso se uma vacina viável chegasse, plenamente, antes de 18 meses após o começo da pandemia [antes de junho de 2021].

As previsões atuais são que talvez daqui a uns meses tenhamos duas ou três candidatas com alguma comprovação. Seria surpreendente se elas fossem vacinas excelentes, pois esta é claramente uma infecção difícil, e geralmente as primeiras vacinas inventadas são imperfeitas.

Do ponto de vista da saúde pública, há uma forma ideal de distribuir a vacina? Seria por nível de vulnerabilidade ou é melhor imunizar totalmente toda uma região? Alguma estratégia parece mais eficaz? 

Depende das características da vacina. Há de se ver se ela oferece proteção contra infecção e transmissão ou apenas protege contra doenças. Ainda é cedo, mas meu palpite é que ela fará um pouco dos dois. Algumas pessoas interpretaram que os ensaios em símios da vacina de Oxford sugerem ser mais provável que ela proteja só contra doenças; eu acho que não necessariamente.

Se ela protege contra doenças e sintomas graves, será importante vacinar antes pessoas de alto risco; se ela protege contra a transmissão, pode valer a pena priorizar profissionais de saúde e outras pessoas.

A segunda dimensão é se ela funciona tão bem nas pessoas de alto risco como funciona nos jovens saudáveis. Se sim, há um argumento forte para priorizar as pessoas com maior risco de complicação, sobretudo se houver um número limitado de doses.

Se não funciona tão bem neles, então acaba sendo melhor uma estratégia em que se vacinam prioritariamente as classes de transmissão, em grande parte pessoas jovens, saudáveis, e depois se tenta proteger os idosos e as populações de risco indiretamente.

A resposta está na interseção dessas duas questões. Quando a primeira vacina for aprovada, não teremos certeza de nada disso, pois os ensaios não têm o poder de estudar os efeitos em todos os subgrupos.

Em países como os EUA e o Brasil, questões técnicas como usar máscara ou tomar hidroxicloroquina viraram questões partidárias. Seria possível isolar a resposta científica à Covid-19 da política? 

Isso exigirá esforços a longo prazo, e o terreno dessa politização foi preparado por grupos de esquerda e de direita, mas sobretudo de direita, que politizaram questões científicas como vacinas e mudança climática.

A visão de que a ciência é para todos e não tem partido precisa ser recuperada.

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