Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Covid-19 terá onda de efeitos na saúde mental, diz professor de Harvard https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/covid-19-tera-onda-de-efeitos-na-saude-mental-diz-professor-de-harvard/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/covid-19-tera-onda-de-efeitos-na-saude-mental-diz-professor-de-harvard/#respond Tue, 01 Sep 2020 14:57:28 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/37509663536_2b3b6fd8b4_o-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=269

Dr. Shekhar Saxena

Pablo Peña Corrales e Miguel Lago

 

A Covid-19 ameaça a saúde mental de milhões de pessoas no mundo. O isolamento social, as mortes de amigos e familiares, a crise econômica e o desemprego aumentam o risco de depressão, ansiedade e outras doenças.

Antes da crise, 14% da carga global de doenças era atribuída a questões de saúde mental. Segundo especialistas, a tendência é que isso aumente com a pandemia.

 

 

A despeito de sua frequência e gravidade, as doenças mentais são ainda muito pouco visibilizadas. O senhor. poderia explicar quais fatores afetam a saúde mental?

 

A saúde mental pode ser influenciada por fatores genéticos e biológicos, mas também por fatores socioeconômicos e sociodemográficos. Para dar alguns exemplos de demografia; as doenças e o nível de saúde mental dependem do estágio vital. Na primeira infância há mais risco de autismo, na adolescência de depressão e ansiedade, e na velhice de demência.

Em todas as etapas do ciclo de vida os efeitos econômicos e sociais pesam. Tanto a pobreza absoluta como a relativa estão associadas a uma maior prevalência de transtornos mentais, especialmente ansiedade, depressão e abuso de substâncias.

A pobreza afeta direta e indiretamente a saúde mental, piorando a nutrição, o status e a educação e aumentando a violência. Além disso, as iniquidades predizem a extensão dos problemas mentais na comunidade.

 

Algo que parece bastante paradoxal é o quanto a saúde mental ruim prevalece também nas sociedades desenvolvidas. Por que você acha que isso acontece? 

 

Tenho dito com muita frequência que, quando se trata de saúde mental, todos os países são países em desenvolvimento. O sistema de saúde que muitos países de alta renda têm não é adequado para o tipo de assistência que as pessoas precisam. Especialmente no que diz respeito à parte de promoção e prevenção, que está quase totalmente ausente. Mesmo no tratamento há muitas dificuldades. Mesmo em países de alta renda, 60% das pessoas que sofrem de depressão não são identificadas e tratadas. E a porcentagem em muitos dos países de baixa e média renda essa taxa é de quase 90%.

 

Você está preocupado com o impacto que a crise da Covid-19 pode ter na saúde mental global?

 

Muito. Não só estamos enfrentando mais fatores socioeconômicos que deveriam dar origem a mais problemas de saúde mental: desemprego, diminuição de renda, maior isolamento e maior carga com cuidado de crianças e idosas, trabalho remoto. Também estamos enfrentando a diminuição do acesso aos cuidados de saúde mental porque você não pode ir ao hospital e não pode comprar drogas.

Depois da primeira onda viral, eu temo uma segunda onda na saúde mental. Este não será um efeito de curto prazo, mesmo que a Covid-19 se resolva amanhã e ninguém mais seja infectado, o impacto socioeconômico disso continuará pelo menos por muitos anos. Isto dará origem ao aumento das disparidades na sociedade, o que terá um impacto sobre a saúde mental.

 

Precisamos de um novo enfoque para a saúde mental?

Primeiro, precisamos reconhecer que a saúde mental é uma parte da saúde. Segundo, nós devemos lembrar que a definição de saúde é sobre bem-estar físico, mental e até mesmo social. A maioria dos países tem um Ministério da Saúde que na verdade é um ministério da doença. A maior parte do tempo e recursos são destinados a tratar doenças. Ora, ainda que a integralidade de uma população não esteja doente, é necessário cuidar da saúde de todos. Terceiro, a saúde mental tem que ser vista como uma dimensão contínua, em vez binária, e mutante no tempo. Todos estamos sujeitos a  ter problemas mentais em algum momento da vida e é possível intervir em distintas etapas, não apenas no pico do sintoma.

 

Há mais de uma década, você editou uma série de artigos no Lancet e declarou com o título que não havia “nenhuma saúde sem saúde mental”. Naquela época já havia um consenso sobre como melhorar a saúde mental. Mas porque tem se avançado tão lentamente?

 

Existem vários fatores. O primeiro é preconceito da sociedade e dos formuladores de políticas. Quando falamos com os formuladores de políticas, eles enfatizam a importância da saúde mental. Mas quando se trata de decidir sobre o orçamento e fazer planos, é uma das menores prioridades entre todas as questões.

A segunda razão é que carecemos de recursos humanos suficientes para proporcionar saúde mental. Na verdade, os desenvolvimentos recentes no Brasil, até onde eu sei, estão indo muito em direção ao desenvolvimento de habilidades profissionais, mas mesmo assim há uma escassez de profissionais de saúde que cuidam da saúde mental.

 

Finalmente, as alocações financeiras têm sido muito pobres. O mundo gasta muito pouco em saúde mental, em países de alta renda, a porcentagem está entre 4% e 5% do orçamento da saúde. Nos países de baixa e média renda, é cerca de 1-2% do orçamento.

 

Como podemos mudar essa cultura onde a saúde mental é algo que não se discute publicamente ou que preferimos esconder?

 

Antes da Covid-19, o mundo acreditava que havia algumas pessoas que tinham distúrbios mentais, e todas as outras estavam bem. Hoje, o estresse incomum que muitas pessoas estão enfrentando está diminuindo o estigma. Essa é a resposta rápida, mas a resposta mais longa é que precisamos reconhecer não apenas a parte da doença em uma pessoa, mas também a parte normal de uma pessoa, para que vejamos as pessoas com experiência vivida de doença mental como pessoas em primeiro lugar e a doença em segundo.

 

O estigma não se reduz com a publicação de um artigo de jornal, ele se reduz vivendo com pessoas que estão enfrentando problemas de saúde mental e falando sobre isso.

 

Há mais de quatro décadas, a declaração de Alma Ata, em 1978, pediu a integração da saúde mental na saúde primária. O que precisa mudar para que essa integração seja plenamente alcançada?

A orientação é muito clara: todos os profissionais de saúde precisam ter um conhecimento básico de saúde mental. Um sistema ideal de saúde mental seria organizado com um primeiro nível de atenção, com cuidados informais e cuidados primários e em um segundo nível com cuidados especializados.

 

Este sistema seria muito útil para diminuir até mesmo o estigma, porque se você não tiver que ir a um psiquiatra, você se sentirá muito melhor. Infelizmente, a capacidade do sistema é muito pequena. Além disso, a maioria dos sistemas de saúde não tem uma métrica de avaliação para o tratamento de problemas de saúde mental.

 

Qual você acha que é o potencial da tecnologia, inovação, dados, para melhorar a saúde mental? Está limitada pelos riscos de privacidade?

 

A tecnologia tem estado pronta para a assistência à saúde mental por muito tempo, mas havia muitas barreiras para implementá-la. De repente a pandemia abriu a porta para isso. A tecnologia pode ajudar de várias maneiras. Uma delas é treinando pessoas e construindo suas habilidades. Também pode ajudar as pessoas que acessam a saúde mental remotamente.

 

Sobre privacidade, acredito que ela é importante para todos nós, não apenas na saúde mental. Você confia nos sites para colocar o número do seu cartão de crédito e em sites para fazer amigos. A saúde mental não é algo muito diferente de qualquer outra área sensível. A privacidade pode ser uma barreira para a tecnologia, mas às vezes também pode ser um facilitador.

Muitas pessoas, especialmente os jovens, têm uma grande relutância em começar a falar com a pessoa, mas na verdade eles estão muito felizes em falar com uma máquina.

 

Se você tivesse que dar uma recomendação a um político que lesse esta entrevista, por onde ele teria que começar?

 

Penso que o contexto importa, mas existem algumas recomendações gerais que são aplicáveis para o mundo inteiro. Minha mensagem para um tomador de decisão, seja ele um administrador ou um político, é que a saúde mental é importante demais para continuar sendo ignorada. Devemos investir mais nela. Não apenas para a saúde do povo, mas também para o desenvolvimento e prosperidade do país.

 

Minha mensagem para os prestadores de serviços de saúde – independentemente da função que exercem dentro do sistema – é que adotem uma abordagem integrada e não ignorem a saúde mental,. Minha mensagem para a população em geral é que a saúde mental é importante demais para que você a ignore ou evite procurar ajuda.

Shekhar Saxena foi editor de séries sobre o tema para a prestigiosa revista científica The Lancet em 2007, 2011 e 2018. Atualmente é professor na Universidade de Harvard. 
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A intersecção público-privada na utilização de serviços de saúde no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/01/07/a-interseccao-publico-privada-na-utilizacao-de-servicos-de-saude-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/01/07/a-interseccao-publico-privada-na-utilizacao-de-servicos-de-saude-no-brasil/#respond Tue, 07 Jan 2020 19:00:47 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/figura-1-Maíra-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=103  

Maíra Coube

Considerando a extensão da cobertura de planos de saúde privado no Brasil em conjunto com a existência de um sistema de saúde universal, espera-se que haja alguma intersecção de serviços e utilização público-privada na saúde. De um lado, estima-se que há uso de recursos complexos e caros na saúde pública por quem tem plano de saúde. Da mesma forma, é crescente a compra de serviços de saúde privados por quem não tem plano de saúde, não apenas de medicamentos, mas também de exames de diagnósticos, consultas médicas e outros tratamentos, possivelmente para mitigar a lista de espera do setor público. Mas o que os dados nos dizem?

 

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2013 contém uma grande quantidade de dados sobre a utilização de serviços de saúde nos últimos 12 meses. Ademais, os respondentes indicam se possuem planos de saúde ou não. Dessa forma, podemos extrair informações interessantes sobre o perfil e tipo de uso de diferentes grupos de usuários de saúde para investigar como se dá a intersecção público-privada de utilização de serviços de saúde. Particularmente de interesse, quem tem plano de saúde e utilizou o SUS ou quem não tem plano de saúde, mas utilizou serviços privados pagando-os diretamente, aqui nomeados como grupos de intersecção público-privado.

 

Os dados mostram uma distinção clara entre os grupos de usuários quanto à renda. A Figura 1 apresenta o perfil dos grupos de usuários de serviços de saúde por décimo de renda média domiciliar per capita entre aqueles que realizaram algum atendimento de saúde nos últimos 12 meses. Observamos que os usuários que não tem plano de saúde e utilizaram o SUS (Grupo I) apresentam renda mais baixa. No outro extremo, aqueles com plano de saúde e que utilizaram apenas o setor privado (Grupo II), apresentam renda média elevada. Já os grupos de usuários que navegam entre os sistemas público-privado (Grupos III e IV), seja utilizando os serviços do SUS mesmo tendo planos de saúde, ou utilizando o setor privado sem possuir planos de saúde, apresentam perfil de renda parecido.

 

Figura 1. Distribuição dos grupos de usuários de serviços de saúde por décimo de renda média domiciliar per capita (entre indivíduos que realizaram algum atendimento de saúde nos últimos 12 meses). Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.

 

Outro fato relevante é o volume de utilização pelos grupos de intersecção. O SUS destinou aproximadamente 10% dos atendimentos e internações para pessoas com planos de saúde, enquanto a busca pelo setor privado por aqueles sem plano representou aproximadamente 20% do volume de serviços privados. A Figura 2 mostra o volume total de utilização por esses dois grupos de usuários, Grupo III e IV. No caso do Grupo III, indivíduos que utilizaram o SUS mesmo possuindo planos de saúde realizaram 2,0 milhões de atendimentos de saúde no SUS, o que representou 10,9% dos atendimentos totais do SUS; e 940 mil internações hospitalares, ou 11,5% do total. 

 

Já o grupo IV, usuários sem plano de saúde que utilizaram o setor privado realizaram 2,6 milhões de atendimentos, o que representou 22,9% do total de atendimentos privados; e 854 mil internações hospitalares ou 21,8% do total de internações no setor privado.

 

Figura 2. Volume total de atendimentos de saúde e internações por grupo de usuários. Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.

Por que quem possui planos de saúde utiliza os serviços do SUS? O que explica o Grupo III?

Os dados mostram que há uma intersecção considerável em termos de utilização de serviços entre os setores público e privado. Por um lado, pode refletir a extensão da cobertura dos planos de saúde, levando beneficiários a buscar o SUS em situações de não cobertura ou cobertura parcial do plano (ex. vacinação, consulta odontológica). Por outro lado, também pode significar uma percepção de melhor qualidade no setor público para determinados serviços. Vejamos o que os dados nos dizem.

 

O tipo de atendimento mais utilizado no SUS por beneficiários (Grupo III) foi de consulta médica (77% dos atendimentos). Já com relação às internações hospitalares, cirurgia e tratamento clínico foram os principais motivos para beneficiários internarem no SUS (29% e 42% das internações, respectivamente). Segundo dados de ressarcimento do SUS pela ANS de 2015, hormonioterapia e hemodiálise foram os atendimentos ambulatoriais mais frequentes identificados.

Figura 3. Tipo de utilização de serviço de saúde por quem utilizou o serviço público & possui plano de saúde (Grupo III). Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.(1) Cirurgia em ambulatório; Hemodiálise, quimio, rádio ou hemoterapia; internação hospitalar; injeção, curativo ou medição pressão; consultas ACS ou parteira; Gesso ou imobilização, marcação de consulta, acupuntura, homeopatia e fitoterapia, consulta farmácia e outros.

 

Por que quem não tem plano de saúde utiliza o setor privado? O que explica o Grupo IV?

 

Na situação em que o usuário não tem plano e utiliza o serviço privado, há uma preocupação sobre o impacto do nível de gastos com despesas catastróficas como proporção da renda familiar, que pode causar uma sobrecarga orçamentária, particularmente para famílias de baixa renda. Será que as filas de espera do setor público são muito elevadas para esses procedimentos e por serem de alta complexidade e urgentes, fazem com que o usuário procure o setor privado?

 

A busca pelo setor privado por quem não tem plano foi também principalmente para realizar consulta médica (59% dos atendimentos), seguido de consultas odontológicas (12%). Com relação às internações, cirurgias e tratamentos clínicos também foram os motivos mais utilizados (38% e 30% respectivamente), mas vale destacar a alta proporção de partos cesáreos procurados no setor privado por quem não tem plano de saúde.

 

Figura 4. Tipo de utilização de serviço de saúde por quem utilizou o serviço privado & não possui plano de saúde (Grupo IV). Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.

 

O que os dados apresentados nos mostram? Primeiramente, que as interações e impactos da intersecção público-privada na saúde são complexos. Os usuários que acessam os dois sistemas de saúde, público e privado, nesta análise nomeados Grupos III e IV, possuem distribuição de renda parecida e parecem buscar serviços no setor público e privado por motivos similares (principalmente consultas médicas, cirurgias e tratamentos clínicos), com maior predominância da busca de partos cesáreos no setor privado por quem não tem plano de saúde. Os volumes de intersecção também são representativos, aproximadamente 10% do volume de atendimentos/internações SUS e 20% do volume do setor privado. 

 

Certamente, há muitos outros aspectos a serem investigados sobre a intersecção público-privada na utilização de serviços de saúde. Nesse primeiro olhar sobre os dados, no entanto, já é possível observar características interessantes dessa intersecção. Futuras análises poderão investigar os determinantes desta intersecção, como por exemplo, relacionados à qualidade do SUS, disponibilidade de equipamentos, leitos, profissionais de saúde, entre outras. Além disso, a próxima PNS está em produção neste ano e mostrará como evoluíram essas interações.

Maíra Coube Salmen – Doutoranda em Administração Pública e Governo, FGV-EAESP.
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Saúde e desenvolvimento econômico: ineficiências que precisam ser tratadas para o crescimento econômico no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/12/11/saude-e-desenvolvimento-economico-ineficiencias-que-precisam-ser-tratadas-para-o-crescimento-economico-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/12/11/saude-e-desenvolvimento-economico-ineficiencias-que-precisam-ser-tratadas-para-o-crescimento-economico-no-brasil/#respond Wed, 11 Dec 2019 14:16:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=94 Leandro Fonseca da Silva

Paul Krugman, laureado com o Nobel de economia, já disse, em uma tradução livre, que “produtividade não é tudo, mas no longo prazo é quase tudo”. De fato, a superação da baixa produtividade da economia brasileira é um dos principais desafios para a retomada do crescimento econômico e social do País de maneira sustentável. Embora o setor de saúde tenha ganhos menores de produtividade, este artigo pretende destacar sua contribuição para a economia como um todo. Ademais, sem a pretensão de esgotar o tema, o artigo também destaca três dos principais fatores de ineficiência setoriais e como eles poderiam ser tratados, promovendo o setor como um dos motores da retomada do desenvolvimento do País.  

Na medida tradicional de produtividade do trabalho – produção per capita -, estudos apontam que o setor de saúde tem menor produtividade que os demais setores econômicos. Esse fenômeno seria explicado por uma teoria chamada “doença de custos de Baumol”, segundo a qual setores intensivos em mão-de-obra, cujo ganho de produtividade depende da maior experiência profissional dos trabalhadores, acabam tendo aumentos reais de salários, o que levaria a uma elevação dos custos em maior medida do que em outros setores e, portanto, a uma menor produtividade. Todavia, o que essa abordagem não consegue captar são os benefícios intrínsecos e mais gerais que o setor de saúde provê, na medida em que contribui sobremaneira para a produtividade dos demais setores econômicos, ao manter ativa e produtiva a força de trabalho. 

Seja mostrando o crescimento do PIB em países de baixa renda por conta da redução da mortalidade, seja apurando-se o efeito no aumento do PIB por conta de 1 ano a mais de expectativa de vida populacional, diversos estudos têm apontado para o impacto transversal positivo dos gastos em saúde nos demais setores e no crescimento econômico. Ou seja, em um olhar mais macro, saúde está associada à riqueza e, portanto, países que conseguem manter ou melhorar a condição de saúde de sua população, desenvolvem seu capital humano e a produtividade de sua economia

Sem a pretensão de ser exaustivo, existem três fatores que contribuem para uma dinâmica não-eficiente do setor de saúde no Brasil a serem abordados neste artigo. O primeiro fator é o baixo nível de financiamento público em saúde, associado à segmentação entre os setores público e privado. A Constituição Federal estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, mas não proibiu a atuação de agentes privados no setor – ao contrário, garantiu, em seu art. 199, a liberdade de atuação na saúde à iniciativa privada. Formou-se então um sistema misto de saúde, no qual toda população tem direito a utilizar o sistema público de saúde e 24,2% da população também é coberta por planos de saúde privados. Há, ainda, a possibilidade de gastos “out-of-pocket”, nos quais os indivíduos contratam diretamente serviços de assistência à saúde às suas expensas. Em relação aos gastos, mais de 50% do total despendido no País com saúde é feito por entes privados, sendo que 52,8% dos gastos privados realizados por meio de operadoras de planos de saúde. Esse padrão é diferente dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, nos quais a despesa pública com saúde, em média, é de 73,4%. Assim, os resultados em saúde no Brasil tendem a ser largamente influenciados pelo setor privado de saúde, em especial pela saúde suplementar.

Importante lembrar aqui que financiamento é diferente de provisão. Mecanismos de mercado podem prover serviços de maneira mais eficiente e de melhor qualidade do que os prestados gratuita e diretamente pelo setor público. Todavia, o volume de gasto público em saúde no Brasil (em torno de 4% do PIB) é muito baixo em comparação a outros países, o que leva a dificuldades estruturantes na provisão adequada dos serviços de assistência à saúde, seja diretamente, seja por meio de contratação de prestadores privados. Por outras palavras, a remuneração dos serviços prestados no âmbito do Sistema Único de Saúde (em equipamentos públicos ou privados) não se mostra suficiente, gerando oferta sub-ótima e filas, especialmente na atenção secundária e terciária. Nesse cenário, o espaço é ocupado pelo setor privado de saúde, tanto no financiamento (essencialmente, por meio dos planos de saúde) quanto na provisão dos serviços, porém de forma descoordenada. Importante notar que a coexistência dos setores público e privado se dá de forma segmentada, ou seja, sem integração. Por exemplo, se um paciente realizar consultas ou exames no setor privado, não conseguirá acessar a atenção secundária ou terciária do SUS sem passar novamente pela atenção primária, desta vez no setor público. 

Quando analisados os resultados em saúde, constata-se a baixa performance do atual sistema segmentado. Estudo do Banco Mundial (2017), baseado em análise envoltória de dados (DEA, na sigla em inglês) orientada a produtos e insumos, na qual se utilizou quatro indicadores (anos de vida padronizados por idade e ajustados por incapacidade, probabilidade de morte entre 30 e 70 anos de idade por doenças cardiovasculares, câncer, diabete ou problemas respiratórios crônicos, porcentagem de gastos de recursos próprios sobre as despesas totais com saúde como um indicador de proteção financeira e um indicador de equidade na saúde) constatou que o Brasil, com o mesmo volume de recursos, deveria ser capaz de melhorar em nove pontos percentuais seus resultados em saúde.  

O segundo fator de ineficiência do setor de saúde no Brasil é a prevalência de um modelo assistencial fragmentado, no qual uma condição clínica é tratada por meio de diferentes episódios de cuidado, muitas vezes, por diferentes prestadores, de forma não-coordenada. Embora o setor público tenha buscado organizar a “porta de entrada” no sistema por meio da atenção primária, especialmente através da Estratégia de Saúde da Família, a realidade dos hospitais públicos e das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) demonstra que essa organização pretendida não foi alcançada. Já no setor privado, os beneficiários de planos de saúde possuem maior facilidade de acesso à rede e aos especialistas, o que se reflete em pacientes “perdidos na rede”, buscando por conta própria o diagnóstico e o tratamento adequado para seus problemas de saúde. Ademais, a já tratada segmentação entre os setores público e privado torna a trajetória do paciente entre os dois setores redundante, com repetições de consultas e exames.

No setor privado, a forma de remuneração prevalente dos prestadores de serviços de assistência à saúde (o pagamento por procedimento) reforça a fragmentação do cuidado, haja vista que cada um recebe pelo procedimento que executou dentro do que deveria ser uma linha de cuidado, não havendo vinculação com o desfecho clínico. Ademais, a fragmentação do cuidado não se relaciona apenas à redução da capacidade resolutiva, mas também à alienação dos profissionais de saúde em relação ao seu trabalho e aos resultados. Segundo MALTA et al. (2004) “na medida em que cada especialista se encarrega de uma parte da intervenção, em tese, ninguém pode ser responsabilizado pelo resultado do tratamento como um todo”. E, se ninguém pode ser responsabilizado, não é possível relacionar a remuneração aos resultados em saúde. 

Para lidar com a fragmentação dos serviços, os sistemas de saúde nos demais países têm buscado rever a estrutura de incentivos em prol da centralidade no paciente. Para tanto, algumas das principais iniciativas visam identificar os resultados em saúde que importam aos pacientes. No caso da OCDE, por exemplo, o seu Comitê de Saúde vem patrocinando a iniciativa PaRIS (Patient-Reported Indicator Surveys) que, em linhas gerais, consiste em pesquisas para construção de indicadores de saúde relatados pelos pacientes. A iniciativa visa tornar os sistemas de saúde mais centrados nas pessoas, por meio da coleta sistemática de dados acerca do que mais importa aos pacientes em função das suas condições clínicas e dos tratamentos possíveis. As medidas tradicionais de resultado em saúde em termos de sobrevivência ou mortalidade permanecerão úteis, obviamente, mas como elas não capturam outros impactos igualmente importantes para as pessoas, é preciso que os sistemas de saúde reorganizem a oferta de serviços para atenderem a essas expectativas. Pessoas diagnosticadas com câncer, por exemplo, valorizam muito a sobrevivência, todavia, o sucesso terapêutico enseja outros aspectos como controle de dor e náusea, qualidade do sono, imagem do corpo, função sexual, autonomia para realizar atividades cotidianas e tempo ausente do trabalho ou de casa. Todos esses fatores contribuem para a qualidade de vida do paciente e são também valorizados por sua família e amigos. Daí a importância de se medir resultados em saúde relatados pelos pacientes para a promoção de sistemas de saúde centrados nas pessoas.

Essa iniciativa é reflexo de movimento cada vez mais consistente no setor de saúde: a busca por um sistema que entregue resultados em saúde que realmente importam a um custo suportável. Por outras palavras, é a busca pelo aumento da produtividade do setor de saúde. Interessante notar aqui a importância das empresas contratantes de planos ou seguros privados de assistência à saúde para seus funcionários. Sendo elas a principal fonte pagadora dos planos de saúde (2/3 dos beneficiários são ligados a planos coletivos.

Embora estejam associados a um benefício coletivo, programas de promoção à saúde e prevenção de doenças não são típicos no setor privado. De fato, como há uma rotatividade elevada dos contratos coletivos empresariais (cerca de 25% ao ano, segundo dados da ANS), muitas operadoras de planos de saúde não investem nessas ações. Todavia, um colaborador que hoje está na empresa A, amanhã poderá estar na empresa B. Portanto, quanto mais as empresas contratantes passarem a demandar não apenas a cobertura assistencial em caso de doença, mas também ações em prol da manutenção da saúde, melhor a perspectiva de uma mudança no modelo assistencial vigente e maior o benefício coletivo para a sociedade. 

Ao contrário do Japão, no Brasil, a atuação das empresas contratantes de planos de saúde é incipiente na conformação dos serviços de assistência à saúde. Ao se entenderem como cogestoras da saúde da sua população, as empresas podem e devem demandar a reorganização dos serviços em prol do desenvolvimento de centros de excelência que melhor atendam às condições clínicas mais prevalentes. Portanto, atentar para indicadores de resultados de saúde relatados pelos pacientes contribui, não apenas para formuladores de políticas públicas, mas também para os atores privados, no sentido de readequarem estratégias e suas organizações em prol de um sistema de saúde que entregue valor para a sociedade.

O terceiro fator de ineficiência, embora também seja visto em outros setores econômicos, é particularmente deletério no setor de saúde: a longa sobrevida dos ineficientes. A permanência dos ineficientes no setor de saúde decorre, entre outros fatores, de uma série de proteções legais e regulatórias, além de cultura prevalente de se evitar impactos de curto prazo em detrimento de melhora nos incentivos, na assistência à saúde e no ambiente de negócios no longo prazo (cultura prevalente também no Judiciário). Na legislação da saúde suplementar, por exemplo, a substituição de prestadores na rede de uma operadora é restrita e os contratos devem conter obrigatoriamente previsão de reajuste, o que, em grande medida, protege os ineficientes. 

No caso das operadoras de planos de saúde, a legislação setorial veda a aplicação da lei de falências e estabelece uma série de regimes especiais que podem ser instaurados pelo órgão regulador (a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS), como instâncias de recuperação ou de saída ordenada do mercado. Na prática, contudo, a saída ordenada de uma operadora que se encontra em dificuldades econômicas não é comum. A experiência ao longo do tempo demonstrou que, quando uma operadora entra em desequilíbrio econômico-financeiro, a solução desejável via mercado (i.e., aquisição da carteira ou do controle societário por outra operadora com melhor situação econômica) usualmente não ocorre. Torna-se situação comum que os melhores contratos vão migrando da operadora que está em dificuldades para uma ou mais operadoras que competem com ela e estão em melhores condições econômicas de prover os serviços de assistência à saúde. Isso decorre, essencialmente, do risco de sucessão tributária e trabalhista, que desincentiva solução desejável via mercado. 

Em suma, o setor de saúde tem o potencial de contribuir muito mais para o desenvolvimento do Brasil e se tornar, portanto, um dos motores para a retomada do crescimento econômico. Embora muitos dos desafios setoriais sejam vistos em outros países, existem diferenças em termos de padrões epidemiológicos, disponibilidade de recursos e organização do sistema que caracterizam o sistema de saúde no Brasil. Este artigo abordou de forma não-exaustiva três dos principais fatores de ineficiência que comprometem o desempenho setorial. O primeiro fator, o baixo nível de gasto público em saúde, associado à segmentação entre os setores público e privado, tem gerado resultados em saúde insatisfatórios. O segundo fator é a prevalência de um modelo assistencial fragmentado, no qual uma condição clínica é tratada por meio de diferentes episódios de cuidado, muitas vezes, por diferentes prestadores e de forma não-coordenada. E o terceiro fator, embora também seja visto em outros setores econômicos, é particularmente deletério no setor de saúde: a longa sobrevida dos ineficientes. 

Em linhas gerais, no que tange à longa permanência dos ineficientes, há que se fazer advocacia da concorrência e um aprimoramento do arcabouço jurídico/regulatório de forma a viabilizar soluções de mercado que promovam uma saída ordenada dos ineficientes. No que diz respeito à fragmentação do modelo assistencial, propõe-se foco na geração de valor em saúde para os pacientes (ou seja, na relação entre os resultados em saúde e os custos para entrega de tais resultados) e maior engajamento das empresas contratantes de planos de saúde para provocar maior velocidade na mudança do modelo de cuidado em saúde praticado. Já com relação ao baixo nível de gastos públicos, além de rediscussão de prioridades orçamentárias, há que se avançar também em maior integração público-privada, otimizando-se os recursos existentes por meio da viabilização de vasos comunicantes na assistência prestada nas duas esferas, de forma a reduzir desperdícios e entregar serviços de saúde com mais qualidade no tempo adequado.

Leandro Fonseca da Silva é Diretor-Presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)

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O custo e o modelo da saúde que desejamos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/25/o-custo-e-o-modelo-da-saude-que-desejamos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/25/o-custo-e-o-modelo-da-saude-que-desejamos/#respond Mon, 25 Nov 2019 20:00:45 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/money-2724241_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=87 Rodrigo Lopes

 

As empresas da área da saúde vêm trabalhando nos últimos anos em mudanças para reduzir e dar maior previsibilidade aos seus custos. O modelo fee for service, utilizado atualmente, foi importante para incorporar e oferecer medicina de qualidade para um grande número de cidadãos. Mas há praticamente um consenso entre fontes pagadoras, prestadores de serviço e usuários de que uma revisão é essencial, para garantir a sustentabilidade e o crescimento de todo o setor.

 

A tecnologia é considerada um dos pilares essenciais para resolver esse desequilíbrio. Mas, em muitos casos, tem sido aplicada para gerar demandas que nem sempre apresentam relação custo-benefício equilibrada. Esse é um dos pontos que tem levado a um custo cada vez mais elevado, sem o ganho real e efetivo esperado pelo paciente.

 

Por outro lado, vivemos um momento único em que a tecnologia, quando bem aplicada, contribui para o desenvolvimento da medicina. Os avanços são relevantes, com melhores desfechos, períodos menores de internação ou predições que contribuem para agilizar diagnósticos e tratamentos, além de reduzir custos, por meio de inteligência cognitiva e gestão de dados. Esta é uma realidade que veio para ficar e tende a ampliar o seu uso de modo promissor, em benefício de instituições, profissionais e pacientes.

 

Cabe aos players do setor, portanto, decidir onde investir e qual tipo de desenvolvimento e tecnologia serão utilizados.

 

O mesmo acontece com o modelo de assistência, hoje centrado no hospital e na doença. E aqui temos visto que a inovação pode ir além da tecnologia, quando esses mesmos players buscam não apenas novos modelos de remuneração, mas iniciativas de promoção e prevenção da saúde que melhoram a qualidade de vida dos pacientes, a efetividade do cuidado e, consequentemente, a redução de custos.

 

Esse movimento também acontece no caso das empresas. É crescente o número de programas corporativos baseados no atendimento primário de funcionários e seus familiares. O acompanhamento integral do paciente, com equipe multidisciplinar, dentro dos moldes do médico de família, tem proporcionado melhor gestão do cuidado e redução da sinistralidade.

 

O paciente tem sido trazido à posição de protagonista. Isso vale tanto para a promoção quanto para a prevenção, com o objetivo de detectar antecipadamente doenças crônicas, como cardiopatias, diabetes e outras, além de quadros oncológicos, cujos tratamentos tornam-se mais eficazes quando identificados precocemente.

 

Esses conceitos impactam na expectativa do aumento de vida que observamos nas últimas décadas – e para o qual o modelo de saúde vigente deu grande contribuição. Mas, no momento em que o País se debruça sobre reformas importantes, como a da Previdência, para garantir o pagamento de benefícios às futuras gerações, precisamos também pensar no desafio que representa o atendimento em saúde para uma população que cresce e envelhece a cada ano.

 

O modo como viveremos e os custos que teremos com a saúde no futuro passam, necessariamente, pelo modelo de assistência que adotamos e pelo cuidado que recebemos ao longo de nossa vida. O protagonismo dessa mudança deve vir dos players e profissionais da área e também das empresas, que têm um papel relevante a desempenhar quando falamos da qualidade de vida e da saúde de cada funcionário e cidadão.

 

Rodrigo Lopes é CEO do Grupo Leforte

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SUS representa avanço civilizatório https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/11/sus-representa-avanco-civilizatorio/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/11/sus-representa-avanco-civilizatorio/#respond Mon, 11 Nov 2019 20:00:39 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/health-1294825_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=78 Carlos Ocké

 

Saúde é democracia, democracia é saúde. Esse é o legado do movimento da reforma sanitária brasileira. A defesa dos pressupostos constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS) em torno da universalidade, integralidade, equidade e participação social é indissociável do alargamento da democracia e da garantia das demandas populares.

 

Saúde é democracia

 

Mostra-se contraditório apoiar o SUS e a política de austeridade fiscal, em especial a eliminação do mínimo da saúde na união, estados e municípios, posto que a combinação do teto da despesa primária com o congelamento do piso no nível de 2017, introduzido pela Emenda Constitucional 95, já vem reduzindo em termos reais per capita o montante aplicado nas ações e serviços públicos de saúde do governo federal – agravando as condições epidemiológicas, ampliando a desigualdade de acesso e não corrigindo os vazios assistenciais.

 

É também contraditório defender o SUS e as supostas medidas racionalizadoras para sua gestão: ser eficiente não significa cortar recursos financeiros e organizacionais, como querem o Banco Mundial e o Ministério da Saúde. Pelo contrário, para melhorar, sem abrir mão da segurança, qualidade e eficácia da atenção à saúde, seriam necessários mais recursos.

 

Finalmente, é contraditório apoiar o SUS e a desregulação do mercado de planos, pois o Estado precisa ampliar sua capacidade regulatória, refreando a internacionalização e financeirização. Caso contrário, empregadores e trabalhadores continuarão sendo penalizados com o aumento de preços dos planos individuais e empresariais. Isso quando as famílias não são expulsas com a perda da “poupança” feita durante seu ciclo de vida, situação dramática para doentes crônicos e idosos. Esse quadro exige fortalecer a regulação, em oposição ao novo projeto de Lei de regulamentação (“pay-per-view”), que radicaliza a segmentação dos planos, razão pela qual é criticado por sanitaristas, consumidores e prestadores médico-hospitalares.

 

Setor privado ineficiente

 

A literatura aponta que esse mercado apresenta características econômicas específicas: demanda inelástica; oferta cria a própria procura; informações assimétricas e externalidades produzidas pelos bens públicos não favorecem o predomínio da lógica de mercado na alocação dos recursos.

 

Baumol destaca o fenômeno da “doença dos custos”, a tendência de custos e preços crescentes no setor, indicando que o trabalho se relaciona de forma diferente com a produção: no setor de bens, o trabalho estaria incorporado ao produto; nos serviços, o trabalho seria o produto sendo trocado, dificultando a substituição de fatores.

 

Apesar do progresso técnico incorporado ao processo de trabalho e à organização dos serviços de saúde, as possibilidades de avanço da produtividade são restritas em relação às demais atividades econômicas, pois, ao se observar o tratamento individual como produto dos serviços, a expansão do conhecimento médico e a certificação da efetividade poderiam significar a dedicação de mais tempo de trabalho por unidade de produção.

 

A combinação desses fatores, longe de justificar o reajuste de preços, antes denuncia a ineficiência do mercado: para que os planos não se tornem inacessíveis, dado o subfinanciamento crônico do SUS, o Estado os subsidia por razões políticas de legitimidade, dada a cobertura do mercado formal de trabalho.

 

É alarmante que, entre 2000 e 2018, o aumento de preços dos planos tenha se descolado da inflação: a taxa acumulada dos planos individuais e do IPCA foram, respectivamente, 382% e 208%. Essa trajetória não pode ser explicada fora da dimensão institucional: depois da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, sua captura e o descontrole de preços dos planos empresariais produziram um laissez-faire regulatório, favorecendo a alta dos preços.

 

Subsídios inequitativos

 

O Brasil é o único país com mais de 200 milhões de habitantes com sistema universal de saúde. Entretanto, interesses privados corroem o financiamento público, conduzindo a círculo vicioso caracterizado pela queda do investimento no SUS. Promulgado na Constituição de 88, o sistema teve sérias dificuldades para se consolidar nos últimos 30 anos, porém o mercado recebeu incentivos governamentais, que patrocinam o consumo de bens e serviços de saúde.

 

Alguns países oferecem incentivos aos contribuintes, mediante a redução de impostos, para o consumo de planos. Esse gasto tributário é imposto não recolhido, é gasto público indireto. O Brasil segue essa tendência, pois os gastos com planos de saúde, profissionais de saúde, clínicas e hospitais podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar – para pessoa física e jurídica –, reduzindo a arrecadação do governo federal. Tal renúncia acaba subtraindo recursos do SUS, os quais poderiam incrementar sua qualidade e cobertura.

 

Em 2017, os planos contaram com R$ 16,5 bi, que poderiam ter sido alocados na Estratégia de Saúde da Família e no Programa Mais Médicos, bem como na atenção secundária (exames, consultas especializadas e cirurgias eletivas). Esse subsídio correspondeu a mais de 5 vezes o que foi gasto com o Mais Médicos (R$ 3 bi) e a aproximadamente 85% do gasto com atenção básica do Ministério (R$ 19 bi).

 

A renúncia pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas, ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência. No Brasil, três questões surgem, entretanto, na atual conjuntura: (i) a renúncia seria canalizada para o SUS ou abateria o déficit primário?; (ii) quem mais se beneficia é a classe média, mas o fim do subsídio não poderia pressionar o SUS?; (iii) para combater as desigualdades não seria mais justo tributar agora os mais ricos para estimular a economia e recuperar o padrão de financiamento das políticas sociais?

 

Democracia é saúde

 

Pobreza, desigualdade e violência pressionam o SUS, que, por sua vez, se vê ameaçado pela crise econômica, ajuste fiscal e desregulação dos mercados. Nesse quadro, saídas tecnocráticas para resolver iniquidades setoriais podem, paradoxalmente, produzir mais irracionalidades.

 

Além desse nó górdio, a recente proposta de mudança no critério de rateio das transferências de recursos da atenção primária pode colocar o SUS em risco nos municípios. Com o retorno de doenças evitáveis e a proliferação das arboviroses, quais seriam as consequências sobre as condições de saúde da população com o fim do Piso de Atenção Básica (PAB) fixo? Segundo a Rede de Médicas e Médicos Populares, a Estratégia de Saúde da Família está sendo completamente descaracterizada nessa mudança, apesar da sua contribuição à redução das taxas de mortalidade infantil, das internações por condições sensíveis à atenção primária e dos gastos hospitalares.

 

Em suma, Sérgio Arouca proclamou que a democratização da saúde promovida pela Constituição de 88 representou verdadeiro avanço civilizatório. As forças políticas democráticas deste país não podem abrir mão desse valor, sob pena de inviabilizar a sustentabilidade econômica de um sistema de saúde universal e de qualidade para todos os brasileiros.

 

Carlos Ocké é economista, doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e pós-doutor pela Yale School of Management.

 

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Planos de saúde planejam “Mundo Novo” perverso para seus pacientes https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/10/23/planos-de-saude-planejam-mundo-novo-perverso-para-seus-pacientes/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/10/23/planos-de-saude-planejam-mundo-novo-perverso-para-seus-pacientes/#respond Wed, 23 Oct 2019 21:55:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/beach-15712_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=56 Teresa Liporace

Marilena Lazzarini

 

Em artigo publicado em julho pela Folha de S. Paulo, o jornalista Elio Gaspari revelou a existência de um anteprojeto à lei dos planos de saúde que era gestado pelas operadoras. O documento intitulado “Mundo Novo” consiste em aumentar os lucros das operadoras dos planos de saúde retirando direitos dos usuários, reduzindo a regulação e a fiscalização aplicável às empresas, reduzindo a carga tributária para o setor e dificultando o ressarcimento ao SUS (Sistema Único de Saúde). Em resumo, um ataque ao direito do consumidor e ao sistema de saúde brasileiro. 

Sob a justificativa da perda de clientela e dificuldades enfrentadas pelo setor nos últimos anos, o cerne da proposta é aumentar os seus ganhos financeiros, oferecendo planos mais baratos, com cobertura menor, visando a recuperar a parcela de consumidores que saiu desse mercado justamente pelas dificuldades econômicas, seja a falta de emprego ou o acúmulo de dívidas. 

Efetivamente, os dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) confirmam que houve uma queda de cerca de três milhões de usuários dos planos de saúde. Aliás, a absoluta maioria de segmentos empresariais foi e ainda está sendo afetada pela profunda crise econômica que assola este país nos últimos anos. Porém, as operadoras conseguiram compensar sua perda cobrando mais, via reajustamento de mensalidades, cobrindo as despesas assistenciais e mantendo seus lucros inalterados. 

Como se verifica nas informações da própria ANS, em 2017, a margem de lucro líquido das operadoras do segmento médico-hospitalar permaneceu estável. Em 2018, o resultado líquido, conforme apresentado pela publicação “Prisma Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar”, mostrou sensível crescimento. 

Segundo os dados anuais da Agência, as contraprestações efetivas das operadoras de planos de saúde somaram o montante de R$ 197,43 bilhões no ano de 2018, já as despesas assistenciais totalizaram R$ 161,46 bilhões. Na comparação com as informações de 2017, as receitas cresceram cerca de 9%, enquanto as despesas subiram em torno de 7%. 

Ainda assim, mantendo ou aumentando os seus lucros, as operadoras querem ampliar suas vantagens. E quem deve sofrer as consequências é o consumidor. 

A proposta, que está sendo chamada “pay-per-view”, vai limitar os atendimentos a procedimentos e consultas mais simples, deixando de fora ou abrindo caminho para cobranças abusivas de tratamentos de doenças mais complexas, como câncer, doenças cardíacas, entre outras. Esses planos também afetarão a relação médico-paciente uma vez que, como planos muito segmentados, deve haver restrição a procedimentos, exames e até monitoramento profissional. É um “mundo novo” perverso e eivado de enganosidade.

Se pretende atrair esse segmento de cidadãos em dificuldade financeira com planos de cobertura reduzida e baixos valores de mensalidades, sem a menor preocupação com os impactos negativos para os indivíduos e famílias no momento do adoecimento, quando terão que recorrer ao SUS ou arcar com gastos catastróficos para custear doenças ou tratamentos não cobertos pelo plano adquirido.

Em vigor desde 1998, a lei dos planos de saúde fixa as garantias mínimas de atendimentos aos consumidores e não permite a segmentação de planos. Pela lei, há uma lista mínima de exames e terapias obrigatórias que deve ser ofertada. 

As normas do Código de Defesa do Consumidor se aplicam ao mercado de saúde suplementar, entendimento que já foi inclusive pacificado na Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa tem sido a única opção de milhares de consumidores lesados pelas operadoras, lamentavelmente. E a judicialização só aumentará se tal proposta se concretizar. É preciso manter os direitos conquistados. 

Teresa Liporace é Diretora Executiva do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC)

Marilena Lazzarini – Presidente do Conselho Diretor do IDEC

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O valor do sistema suplementar de saúde para o usuário https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/09/30/o-valor-do-sistema-suplementar-de-saude-para-o-usuario/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/09/30/o-valor-do-sistema-suplementar-de-saude-para-o-usuario/#respond Mon, 30 Sep 2019 20:35:17 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/ss30-300x215.png https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=28  

Mauricio Ceschin

 

A saúde suplementar é responsável anualmente por mais de um bilhão de consultas, exames, procedimentos, internações e outras ações de saúde, para seus mais de 47 milhões de usuários. Mesmo assim, o setor ainda sofre questionamentos, inclusive com uma judicialização excessiva. 

O cuidado com a saúde de seus usuários ainda é fragmentado, com predomínio de intervenções pontuais de enfermidades agudas e precisa se estruturar para fazer o acompanhamento do usuário em linhas de cuidado integrado e continuado, mais indicado quando há prevalência crescente de doenças crônicas em uma população que envelhece.  

Tem sido crescente a utilização de serviços de atenção primária como porta de entrada do atendimento. Para serem efetivos, precisam estar integrados às demais especialidades e estruturas de saúde. 

Há de se avançar nas ações de prevenção para os portadores de risco e de patologia, nas de promoção da saúde e na conscientização do usuário em relação à utilização correta dos recursos de saúde. Para tanto, deve-se investir mais em educação e comunicação para mudança de hábitos e comportamentos alinhados com uma vida saudável, além de se organizar as informações e o histórico de saúde em prontuários eletrônicos de propriedade de cada cidadão. 

Já quando os idosos precisam arcar com suas próprias mensalidades, com algumas exceções, continuam a ser expulsos do setor pelo aumento de preços e reajustes. Uma alternativa, segundo especialistas, é a que combina o sistema de capitalização com o de mutualismo, que é o modelo de financiamento utilizado atualmente, com rateio do custo por faixa etária. No sistema de capitalização, uma parte do que o indivíduo paga ao plano de saúde durante sua vida ativa é poupado e o recurso é utilizado para ajudar a custeá-lo, após sua aposentadoria. 

A boa notícia é que novos modelos de remuneração têm sido crescentemente adotados por operadoras de saúde, hospitais e serviços médicos, quer via pagamentos globais ou por pacotes, bandas ou, mais recentemente, atrelados ao desfecho clínico e à qualidade do resultado produzido para o paciente. O objetivo é diminuir a participação do modelo chamado fee for service (cobrança por procedimento), que ainda predomina e remunera serviços com base nos itens consumidos como materiais, medicamentos, exames e procedimentos médicos. Nesse caso, o consumo é estimulado, e ser custo-efetivo é contraproducente.

A má notícia é que a contenção do aumento de custos e da inflação médica, que é repassada a usuários e patrocinadores via reajustes dos planos, permanece ano após ano em patamares muito elevados.

Para alcançar melhores resultados, além de atuar nas frentes já citadas, é preciso implementar medidas estruturantes que estejam alinhadas com o propósito do setor, que é o de gerar mais saúde e valor para seus usuários, principalmente se considerarmos que os recursos são finitos e os custos, crescentes. 

Ter assegurado o acesso inicial ao atendimento em prazo oportuno, com o estabelecimento de prazos máximos para atendimento, foi o primeiro passo. Há de se ir além e assegurar que todas as etapas do processo de atenção à saúde, desde a prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, cuidados paliativos ou conclusão do tratamento se deem em prazo e qualidade adequados, com custo-efetividade, desfecho clínico compatível e, principalmente, com foco na satisfação e no bem-estar ou na melhor condição de saúde possível para o usuário.

Para que isto ocorra, é necessário rastrear e avaliar a jornada do paciente nas várias etapas do seu atendimento, com a definição de metas, prazos e indicadores que devem ser padronizados e divulgados de forma transparente. 

A avaliação comparativa de fácil compreensão, com a divulgação das melhores práticas como referências a serem seguidas, pode: orientar as escolhas de usuários e de seus patrocinadores; instituir uma competição saudável na busca pela qualidade, segurança e custo-efetividade; reduzir a variabilidade de práticas e desfechos clínicos; avaliar a efetiva contribuição de cada agente do setor; ajudar a identificar o que é preciso corrigir ou incentivar, onde investir e que resultado se pretende alcançar. 

Pode, por fim, ajudar a criar um ciclo virtuoso de busca pelo melhor valor para o usuário.

 

Mauricio Ceschin é médico e foi diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) entre 2009 e 2012. 

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