Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A experiência do estado do Espírito Santo na gestão da saúde – 2015/ 2018 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/02/a-experiencia-do-estado-do-espirito-santo-na-gestao-da-saude-2015-2018/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/02/a-experiencia-do-estado-do-espirito-santo-na-gestao-da-saude-2015-2018/#respond Tue, 02 Mar 2021 10:30:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/gear-1015715_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=338 Ricardo de Oliveira

O objetivo desse artigo é registrar a experiência de quatro anos na implantação da política pública de saúde no Estado do Espírito Santo e, assim, contribuir para o debate sobre formas de melhorar o atendimento de saúde no nosso país. A principal conclusão é que o SUS funciona, embora precise de melhorias. O atual enfrentamento da pandemia do coronavírus pelo SUS provou a todos a enorme vantagem de um país possuir um sistema público e universal de saúde como o nosso.

O SUS enfrenta hoje desafios de financiamento, de reformulação de seu modelo de atenção à saúde e de reorganização da sua gestão. Apresento a seguir um resumo do nosso planejamento, das estratégias e dos projetos que desenvolvemos nesse período para enfrentar esses problemas.

A primeira providência foi realizar o planejamento da secretaria iniciando com um diagnóstico da situação assistencial, financeira e organizacional. Identificados os problemas principais, formulamos as estratégias e os projetos necessários para implantá-las. É importante ressaltar que, apesar da enorme crise financeira, foi definida prioridade para a saúde de forma que essa área teve o maior orçamento, entre todas as secretarias, nesse período de governo.

Considerando o diagnóstico da prestação de serviços de saúde, o planejamento definiu três objetivos estratégicos para melhorar a prestação desses serviços: acesso aos serviços, qualidade dos serviços e qualificação da gestão.

O objetivo era ampliar o acesso, qualificar o atendimento e a gestão, sendo a qualificação da gestão a garantia para que se mantenha uma permanente melhoria na prestação de serviços de saúde para a população e o fortalecimento do papel de liderança da Secretaria Estadual de Saúde (SESA) no SUS estadual.

Para alcançar esses objetivos, foram definidas sete estratégias finalísticas e de gestão:
1 – Ampliar a oferta por meio de novos serviços e do aumento da eficiência dos atuais: “mais leitos, mais consultas e exames”;

2 – Aprimorar a qualidade do atendimento assistencial com maior transparência na regulação do acesso;

3 – Melhorar o conforto dos cidadãos no acesso aos serviços de saúde: perto de casa, humanizado, redução do prazo para atendimento, e ambiente adequado;

4 – Melhorar a resolutividade da Atenção Primária à Saúde (APS) e da Atenção Ambulatorial Especializada (AAE);

5 – Integrar os 3 níveis de atenção à saúde: APS, AAE e Atenção Hospitalar;

6 – Aumentar o protagonismo do cidadão nos cuidados com a própria saúde;

7 – Fortalecer a capacidade de planejamento, gestão e controle da Secretaria estadual de saúde.

Para alcançar os objetivos e implementar as estratégias, foram definidos dois projetos estruturantes: a Rede Cuidar, para reorganizar a política assistencial do SUS, e a qualificação da gestão, para reorganizar a gestão da SESA.

 

A Rede Cuidar

O desafio da SESA no período de governo (2015/2018) foi o de superar um modelo de atenção centrado na assistência hospitalar e reverter a lógica fragmentada do sistema de saúde capixaba, reestruturando-o a partir do conceito de redes de atenção regionalizadas.

Essa perspectiva de funcionamento pressupõe uma definição clara sobre as funções essenciais de cada unidade assistencial, seja no âmbito da atenção primária, secundária ou terciária, dentro de um sistema de saúde que tenha como premissas básicas: a eficiência alocativa de recursos humanos, tecnológicos e financeiros; e o atendimento humanizado, resolutivo, de qualidade e em tempo oportuno.

A reorganização da política assistencial (atenção primária, ambulatorial especializada e hospitalar), foi feita considerando as redes de atenção à saúde, as regiões de saúde e a descentralização da gestão para essas regiões. O objetivo foi fazer com que o usuário fosse atendido na sua própria região de saúde, evitando longos deslocamentos pelas estradas para ter acesso aos serviços de saúde. E, também, que a região de saúde se organizasse para administrar, em conjunto com a SESA, a prestação de serviços de saúde na região, gerando economia de escala e escopo e ganhos de governabilidade política e de regulação.

Neste contexto, a SESA coordenou a implementação de uma mudança estrutural nos processos de trabalho que se iniciam desde o primeiro atendimento do paciente na unidade de saúde mais próxima da casa do cidadão até o serviço especializado, garantindo um fluxo mais adequado e a integralidade do cuidado. Isso possibilitou a redução dos encaminhamentos desnecessários à média complexidade com redução nas filas de espera, a priorização dos pacientes que realmente necessitam do atendimento especializado e maior eficiência alocativa de recursos.

Uma ação importante foi a regionalização dos serviços de saúde, pois permite ganhos de eficiência na prestação de serviços, ao propiciar um esforço conjunto dos municípios participantes da região e da SESA na organização da prestação dos serviços públicos de saúde.

Essa ação conjunta, entre Secretaria de Saúde Estadual e municípios, é a única maneira de melhorar a prestação dos serviços de saúde, a qual é dependente, também, da articulação e coordenação dos três níveis de governo, aí incluído o Ministério da Saúde.

A Rede Cuidar é a expressão concreta deste projeto de reorganização da atenção à saúde, consolidada pela Lei estadual n° 10.733 de 19 de setembro de 2017. Para a sua implantação foi realizado um conjunto de intervenções voltadas para a integração entre a APS (Atenção Primária à Saúde), a AAE (Atenção Ambulatorial Especializada) e a atenção hospitalar.

Destaca-se aqui a Planificação da Atenção à Saúde, para capacitar inicialmente a APS e a AAE, e a abertura das Unidades Cuidar. Estas unidades são ambulatórios especializados, com foco no atendimento a portadores de condições crônicas de saúde por equipes multiprofissionais, cujo acesso é definido por meio da estratificação de risco pela APS. Elas não atendem apenas aos portadores de condições crônicas, mas a outras necessidades regionais de atenção especializada.

A intervenção assistencial é conduzida a partir da elaboração de um Plano de Cuidados na Unidade Cuidar, a ser utilizado para gestão clínica dos usuários tanto na própria Unidade, quanto na APS. Cinco unidades foram construídas para atender o estado, e quatro delas iniciaram o atendimento até 2018. A ordenação do fluxo, na Rede de Atenção à Saúde, é realizada a partir da atenção primária, com estratificação de risco das gestantes, crianças, hipertensos e diabéticos.

A implantação da educação permanente dos profissionais, de forma integrada, entre a APS e AAE é uma inovação que tem como objetivo superar a fragmentação existente entre esses dois níveis de atenção à saúde. Implantamos o bloco de horas para dar o conforto de hora marcada para atendimento nas Unidades Básicas de Saúde e na Unidade Cuidar; incentivamos o autocuidado, prática fundamental para controlar as doenças crônicas; orientamos sobre alimentação e exercícios físicos; e humanizamos o atendimento. Foi desenvolvido um sistema de informação para suportar esse novo modelo de atendimento e a relação entre as unidades de saúde e o atendimento especializado nas unidades da Rede Cuidar.

 

Qualificação da gestão

A reorganização da gestão da SESA teve por objetivos: garantir a boa aplicação dos recursos do SUS, no interesse dos usuários; dar sustentabilidade ao processo de melhoria contínua da prestação de serviços de saúde, ao longo do tempo; garantir a legalidade dos atos de gestão; combater a ineficiência, o desperdício, o clientelismo, o corporativismo e o desvio de recursos públicos das suas finalidades.

Para alcançar esses objetivos, capacitamos lideranças, iniciamos a implantação da gestão por resultados (estabelecimento de indicadores e metas para áreas estratégicas, e monitoramento periódico através da central de resultados), aumentamos a transparência e aperfeiçoamos os controles, com a implantação de vários sistemas de informação (custos, controle dos indicadores hospitalares, prestação de contas dos prestadores contratualizados, regulação de consultas e exames, portal do SUS, sistema integrado de gestão administrativa-SIGA), e fortalecemos o controle social com a nova lei do conselho estadual de saúde, que democratizou o acesso das organizações da sociedade civil ao conselho e ampliou sua autonomia política.

Promovemos a modernização da gestão hospitalar através das organizações sociais – entidades sem fins lucrativos –, que assumem a gestão dos hospitais públicos após processo seletivo público e a assinatura de contrato de gestão com a secretaria, onde são estabelecidas metas de melhoria da eficiência e do atendimento aos usuários.

O Estado do Espírito Santo conta hoje com quatro hospitais geridos por organizações sociais. Organizamos, na secretaria, uma estrutura destinada ao controle dessas organizações, medida fundamental para o funcionamento adequado desse modelo de gestão hospitalar. Hoje, a relação contratual da secretaria com as organizações sociais é pautada por um adequado nível de transparência e controle.

O nosso objetivo com esse projeto foi construir uma burocracia de estado eficiente, profissionalizada, transparente, que respeite a legalidade, comprometida com os usuários do SUS, e subordinada ao poder político.

Os resultados alcançados mostraram que a política pública de saúde estava no rumo certo. O IBGE divulgou, em 2018, que o ES alcançou a menor taxa de mortalidade infantil do país e a segunda expectativa de vida ao nascer, sendo que para quem atingiu 60 anos ou mais, o ES alcançou o primeiro lugar. Todavia, ainda persistem desafios que precisam de tempo, continuidade das políticas públicas, e persistência nos objetivos para superá-los.

 

Ricardo de Oliveira, engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES em 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública – Democracia e Eficiência (FGV/2012), e Gestão Pública e Saúde (FGV/2020)

]]>
0
A obesidade infantil é uma responsabilidade que precisa ser compartilhada https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/#respond Fri, 23 Oct 2020 11:00:02 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/bicycle-427560_1920-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=298 Atualizado 23.out.2020 às 17:35

Roberta Costa Marques

Laís Fleury

Livia Cattaruzzi

Enquanto atravessamos a pandemia do coronavírus, uma outra epidemia, a de obesidade infantil, acomete cerca de 380 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. E o Brasil contribui significativamente para essa preocupante estatística: hoje, 1 em cada 3 crianças e adolescentes, com idade entre 5 e 19 anos, está com excesso de peso ou obesidade e, entre os adolescentes, a obesidade grave saltou de 17% para 28% na última década, segundo o Panorama da Obesidade em Crianças e Adolescentes. Projeções da OMS indicam que podemos ocupar o 5° lugar na lista de países com maiores índices de obesidade infantil em 2030.

O aumento desses índices coincide com mudanças significativas no estilo de vida das famílias brasileiras nos últimos anos, como a intensificação da urbanização, do sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios industrializados, os quais são promovidos para crianças desde a mais tenra idade, entre outros fatores. 

Além de prejuízos ainda na infância, como estigma e diabetes, crianças com excesso de peso ou obesidade têm cinco vezes mais chances de desenvolver doenças crônicas na vida adulta, resultando em uma pior qualidade de vida e maiores custos para o sistema de saúde.

Apesar dos altos e crescentes índices, a obesidade infantil ainda é pouco discutida no Brasil, o que provoca uma percepção equivocada a respeito da responsabilidade que o tema carrega. Considerando esse cenário, o Instituto Desiderata e o Instituto Alana lançaram a publicação Obesidade Infantil – uma responsabilidade compartilhada, com o objetivo de que a sociedade reconheça que não se trata de uma questão restrita aos âmbitos individual e familiar, mas, sim, de um problema de saúde pública, e compreenda alguns dos fatores ambientais que contribuem para o agravamento desse cenário.

O senso comum ainda trata  a obesidade infantil como uma questão individual, fechando os olhos para os múltiplos fatores que a influenciam, como condições socioeconômicas, culturais, ambientais e políticas. Como garantir uma existência mais saudável para as nossas crianças se vivemos em um ambiente que desfavorece um modo de vida mais ativo e as expõem a estratégias comerciais que promovem junk food e bebidas adoçadas? Tais fatores são determinantes para a adoção de hábitos pouco saudáveis, mas não costumam fazer parte dessa discussão. 

Situação mais grave durante a pandemia de coronavírus

Em tempos de pandemia, esses desafios são ainda maiores, com a limitação da circulação das pessoas e o excesso do uso de telas. Para a maior parte das famílias, em especial as que vivem em grandes centros urbanos, a insegurança nas ruas e a escassez de espaços ao ar livre que estimulem a circulação e a brincadeira dificultam ainda mais esse cenário.

O maior tempo em casa aumentou o uso de telas em todas as classes sociais, do celular à televisão, ampliando a exposição das crianças a mensagens publicitárias, cada vez mais veladas e sofisticadas, direcionadas a elas – ainda que a prática de publicidade infantil já seja considerada ilegal pela legislação brasileira – promovendo o consumo excessivo e habitual de produtos alimentícios ultraprocessados, de baixo valor nutricional e com altos índices de ingredientes artificiais que prolongam sua durabilidade.

Proporcionar atividade física ao ar livre e uma alimentação adequada e saudável não é tarefa fácil em uma realidade em que tantas famílias sequer têm acesso a  alimentos e espaços saudáveis. Para dar conta dessa questão de saúde pública, poder público, organizações sociais e setor privado precisam atuar juntos para disponibilizar informação clara e transparente, adotar medidas regulatórias eficazes que diminuam o consumo de alimentos ultraprocessados e bebidas adoçadas, assim como criar espaços seguros, acessíveis e livres de publicidade infantil para a circulação de crianças pelas cidades. Apenas por meio do engajamento de todos esses setores em conjunto, será possível  transformar o atual cenário para garantir a essas crianças uma vida e um futuro mais saudáveis.

 

Roberta Costa Marques é diretora executiva do Instituto Desiderata

Laís Fleury é coordenadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana

Livia Cattaruzzi é advogada do programa Criança e Consumo do Instituto Alana

]]>
0
Tempo de espera nas filas do SUS e as eleições: o que os gestores municipais eleitos precisam fazer? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/21/tempo-de-espera-nas-filas-do-sus-e-as-eleicoes-o-que-os-gestores-municipais-eleitos-precisam-fazer/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/21/tempo-de-espera-nas-filas-do-sus-e-as-eleicoes-o-que-os-gestores-municipais-eleitos-precisam-fazer/#respond Wed, 21 Oct 2020 11:00:45 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/vote-3569999_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=293 Helyn Thami, Maria Letícia Machado e Marcelo Cabral

 

As longas esperas por consultas, tratamentos e procedimentos são o principal fator de insatisfação com o sistema de saúde no Brasil, apontado por pesquisas de opinião. Essa questão, assim como outros desafios da gestão pública, constitui um problema complexo, que não aceita soluções milagrosas — as ditas ‘balas de prata’ —, mas necessita ganhar mais atenção dos gestores municipais. Para além das críticas da opinião pública, a falta de acesso a um serviço adequado em tempo oportuno tem consequências diretas em indicadores de saúde da população, como as hospitalizações e mortalidade evitáveis.

Desse modo, em meio a um processo eleitoral conturbado, em que a saúde ganhou um destaque sem igual na história brasileira, é preciso que candidatos e candidatas se apropriem desse desafio. Mais do que isso, devem se comprometer a endereçá-lo, não só porque é o certo a fazer, mas porque a expectativa dos eleitores em relação aos serviços públicos de saúde será cada vez mais alta daqui em diante.

Mas o que precisa fazer o gestor público para tratar, de modo eficiente, a questão dos altos tempos de espera? O primeiro passo é entender que existem duas abordagens temporais para a solução efetiva desse problema: uma mais emergencial, imediata, e outra de médio/longo prazo. No primeiro momento, é preciso reduzir o estoque de filas que já existe. Isso pode ser feito por meio de auditoria dessas filas (seguindo a ordem do final para o início), a fim de verificar se a necessidade ainda existe ou se as demandas podem ser resolvidas em um nível menor de complexidade. Ainda de modo emergencial, o município pode aumentar, de forma aguda, a oferta de alguns procedimentos, seja realizando mutirões e turnos estendidos, seja contratualizando esse serviço com o setor privado. Ou seja, ajustar a quantidade de demanda e de oferta na entrada dos serviços básicos.

Em seguida, é preciso pensar na longevidade e sustentabilidade da Regulação de Acesso, implementando medidas de mais longo prazo que reestruturem as formas de oferta. As primeiras a destacar seriam os mecanismos de teleconsultoria entre médicos especialistas e médicos atuantes nos serviços de primeiro contato e as ações de redução do absenteísmo. Este importa pois as faltas às consultas e exames são um fator determinante no desperdício de recursos já escassos, e aquele porque é capaz de sanar dúvidas sobre a conduta clínica a adotar, eliminando completamente a necessidade de encaminhar ou otimizando notavelmente o espaço da primeira consulta especializada.

Ademais, é preciso que se garanta a implementação de centrais ou complexos reguladores — que contem com pessoal treinado e espaço físico adequado —, de modo a efetivar um filtro de equidade no acesso aos serviços de saúde, e eliminando alocações clientelistas de recursos públicos. Aumentar a eficiência dos filtros de maneira a promover a equidade prescinde da elaboração e adoção de protocolos clínicos e guias de encaminhamento bem claros, e pautados pela melhor evidência disponível. Não menos importante, a implementação de Núcleos Internos de Regulação (os chamados NIRs) também deve ser priorizada, de modo a garantir coordenação e monitoramento efetivos da disponibilidade de leitos no município, sendo capaz de responder aos ajustes temporais.

Uma vez que se definam os processos de Regulação no município, é preciso implementar métricas e indicadores para ele, afinal a única forma de começar a melhorar um processo é medi-lo. Nestes processos, há dois grupos de indicadores possíveis: um que olha para dentro da própria Regulação, como é o caso do tempo de espera para cada especialidade/leito/procedimento e o outro que olha para o sistema como um todo, como os desvios de volume de encaminhamentos em cada serviço, evidenciando centros de custos que poderiam ser evitados. É muito importante que os administradores públicos tenham em mente que a Regulação não deve ser vista como apenas uma porta que forma filas, mas como uma ferramenta de gestão que interliga pontos de um sistema. Tomando esse último ponto como verdade, a Regulação pode fornecer informações que qualificam todo o sistema, e não somente seus próprios processos.

Conforme dito antes, não há resposta simples. Mas há, sim, caminhos possíveis, não só para a implementação dessas medidas, mas para a superação de possíveis desafios de ordem política ou administrativa que podem se revelar para os gestores (como, por exemplo, a resistência de grupos profissionais). Um sistema de Regulação efetivo garante não só a racionalidade e a equidade na aplicação de recursos públicos, mas ajuda as lideranças a entenderem onde realmente é necessário expandir capacidade. Precisamos abandonar a lógica de criação de serviços especializados que não respondem a qualquer racionalidade sistêmica. Se o sistema de saúde fosse um análogo ao sistema nervoso humano, a Regulação pode ser tida como seu cérebro e, tal qual um neurocirurgião enfrenta seus casos, os gestores públicos devem estar munidos de ferramentas, técnica e coragem para enfrentar esse desafio de forma adequada.

Essas ações de qualificação da Regulação municipal fazem parte da Agenda Saúde na Cidade, construída a partir de uma coalizão de organizações e que objetiva construir um consenso programático para a área da Saúde. A Agenda foi construída em diálogo com especialistas, profissionais da ponta, usuários e pesquisadores. A Saúde na Cidade é a Agenda para gestores que querem fazer acontecer, num contexto em que a Saúde está sob os holofotes. Uma agenda técnica que não é tecnocrática, com foco em implementação e que leva em conta as dificuldades vividas nos municípios. Para saber mais, acesse saudenacidade.org.

Helyn Thami e Maria Letícia Machado são pesquisadoras do IEPS

Marcelo Cabral é gerente-executivo do Programa Cidades do Instituto Arapyaú

]]>
0
Como tornar a Atenção Básica mais acessível e resolutiva https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/20/como-tornar-a-atencao-basica-mais-acessivel-e-resolutiva/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/20/como-tornar-a-atencao-basica-mais-acessivel-e-resolutiva/#respond Tue, 20 Oct 2020 13:29:13 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/patricia-prudente-MzeOiRKDL9E-unsplash_v2-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=290  

Arthur Aguillar

Adriano Massuda

Daniela Krausz

 

Este texto faz parte da série 10 Propostas para a saúde municipal. Para conhecer mais propostas, acesse saudenacidade.org

 

Especialistas em saúde pública afirmam que a Atenção Básica deve ser a principal porta de entrada do sistema de saúde e pode resolver até 80% dos problemas de saúde de uma comunidade. Fica a questão: como fazer com que a Atenção Básica (AB) responda adequadamente à maior parte dos desafios de saúde da população? A Agenda Saúde na Cidade traz estratégias que todos os candidatos e candidatas às prefeituras podem propor em suas cidades para fazer da Atenção Básica mais acessível e resolutiva no Sistema Único de Saúde (SUS). No Brasil, municípios são os principais responsáveis pela implementação da Atenção Básica,  de forma que o desenvolvimento de ações nesse nível é crucial para garantir uma amplo acesso da população ao sistema.

 

Um indicador que nos permite analisar a qualidade da Atenção Básica são as chamadas internações por causas sensíveis à AB. Estas correspondem à porcentagem de internações que ocorrem devido a problemas de saúde que poderiam ter sido resolvidos na Atenção Básica. São os casos de Diabetes que agudizam, ou a disseminação de doenças infecciosas para as quais as vacinas são conhecidas e estão disponíveis no SUS, por exemplo. Cada internação por causa sensível corresponde, em certa medida, a uma situação onde a Atenção Básica falhou. Nas regiões Norte e Nordeste do país, 4 em cada 10 internações ocorrem por causas sensíveis à Atenção Básica

 

O plano proposto na Agenda Saúde na Cidade é claro e passa por duas dimensões da Atenção Básica. Primeiro, é preciso tornar a Atenção Básica facilmente acessível para a população pela qual a unidade básica de saúde é responsável. Novas tecnologias recentemente regulamentadas no Brasil devem ser criativamente utilizadas, tanto para a marcação de consultas de forma não presencial quanto para a instituição de consultas remotas, via telessaúde, seja por telefone, vídeo ou aplicativos. Metas de quantidade e de qualidade dos atendimentos devem ser definidas e monitoradas, dando feedback para os profissionais de saúde e para a comunidade sobre os resultados alcançados.

 

Segundo, é preciso melhorar a qualidade da assistência dentro da Atenção Básica. Para tal, duas intervenções são especialmente importantes: a instituição de protocolos clínicos nas principais linhas de cuidado da Atenção Primária e a implementação do apoio técnico assistencial às equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF).

 

Instituir protocolos clínicos nas principais linhas de cuidado da Atenção Básica baseados na melhor evidência científica disponível, garante o estabelecimento de padrões de qualidade e a isonomia nos serviços oferecidos pela Atenção Básica nos diferentes territórios de um município. Ao serem usados enquanto ferramentas de trabalho por diferentes profissionais em uma mesma região, os protocolos apoiam na organização dos serviços e dão respaldo para condutas adequadas.

 

Por sua vez, o apoio técnico assistencial às equipes da ESF amplia a capacidade da Atenção Básica de resolução dos problemas de saúde da população. A ESF é a principal estratégia da Atenção Básica no Brasil e busca não só promover assistência em saúde, como também promover qualidade de vida e atuar sobre fatores de risco das populações por meio de estratégias intersetoriais. O trabalho das equipes pode ocorrer tanto de forma direta, pode meio dos NASF (Núcleos Ampliados de Saúde da Família), que congregam equipes multidisciplinares compostas de fisioterapeutas, nutricionistas e profissionais da educação física, dentre outros; como também por meio de apoio remoto através da telessaúde, possibilitando um rápido acesso a especialistas que não necessariamente atuam fisicamente no território; ou, ainda, através do apoio em rede, via articulação de serviços de assistência já disponíveis nas comunidades e territórios.

 

Com uma imensa sobrecarga nos serviços de urgência e emergência, filas para os serviços especializados e dificuldades de acesso, Curitiba-PR decidiu reorganizar a Atenção Básica para garantir que esta desse conta da maior parte dos problemas de saúde da população. Para tal, a secretaria instituiu o acesso avançado – que consiste no agendamento de consultas no dia ou em no máximo 48 horas –, ampliou a proporção da Atenção Primária que utilizava a estratégia de saúde da família e reorganizou as equipes dos núcleos de apoio do NASF. Para garantir aderência às mudanças, foram instituídas novas medidas de monitoramento e avaliação e foram promovidos seminários e workshops com os profissionais de saúde para discutir as novas instruções de funcionamento.

 

A experiência da cidade de Curitiba entre 2013 e 2016 nos mostra que se não existe resposta fácil para melhorar a qualidade da Atenção Básica. Mas uma gestão que alie suporte político de medidas importantes de saúde pública à competência técnica na área e aos recursos disponíveis no território pode fazer a diferença na capacidade da Atenção Básica dos municípios, que pode e deve ser resolutiva sobre as necessidades de saúde de cidadãs e cidadãos.

 

Arthur Aguillar é Pesquisador do IEPS

Adriano Massuda é Professor da FGV/EAESP

Daniela Krausz é Coordenadora de Desenvolvimento Institucional da Impulso Gov

 

]]>
0
Precisamos resgatar a ideia de que a ciência é apartidária, diz epidemiologista de Harvard https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/#respond Mon, 07 Sep 2020 02:15:23 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/61bc2a1ab4d4a5a3801cc2bc172f73a6e91a2df41ad82036651044a4baf58dcf_5f544398abc1d-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=273  

Pablo Peña Corrales

Miguel Lago

Fernando Falbel

Em fevereiro deste ano, quando a Covid-19 parecia uma preocupação distante, Marc Lipsitch alertou para o alto risco de uma pandemia. Como professor de epidemiologia na Universidade Harvard especializado em modelagem matemática de epidemias, ele logo encontrou padrões alarmantes de contágio e mortalidade. Desde então, Lipsitch é um dos cientistas mais consultados pela mídia norte-americana para entender a evolução da pandemia no mundo.

 

Em 2019, um índice global de segurança sanitária feito pela Universidade Johns Hopkins e pela revista The Economist classificou EUA e Reino Unido como os países mais bem preparados para uma epidemia. A China não estava no top 50, e a Nova Zelândia nem no top 30. O quadro evoluiu de forma bem diferente. Como a Covid-19 mudou nosso entendimento do que significa estar preparado?  

 

 

Marc Lipsitch: A pandemia mostrou que a liderança, em nível nacional e subnacional, pode pesar mais do que dispositivos sistêmicos. Não que baste ter boa liderança; um país desprovido de infraestrutura continuará despreparado. Mas, se há capacidade sistêmica, o nível de liderança —tanto em termos de respeitar a ciência e a saúde pública como de planejamento estratégico e coordenação— pode superar todo o resto.

Os EUA não tinham plano, e a resposta tem sido mais tática do que estratégica em nível nacional. Daqui em diante, creio que os índices de preparo deverão levar em conta não só o país, mas seu governo.

A Organização Mundial da Saúde tem sido criticada por sua resposta lenta à crise, como ter demorado para aconselhar o uso de máscaras em locais públicos. A OMS argumenta que só deveria mudar suas diretrizes diante de evidências esmagadoras. O sr. concorda? 

Não. Diante de epidemias de doenças infecciosas, em que a ação precoce importa muito, o critério deveria ser a existência de evidência sugestiva de um benefício e nenhuma grande desvantagem em fazer determinada coisa. A evidência pode favorecer a ação mesmo que não seja conclusiva.

Um exemplo é o lockdown preventivo. A evidência era muito forte de que ele poderia retardar a crise por vir. Embora o lado negativo não fosse pequeno, sua mitigação era possível, de modo que defendi medidas rápidas antes de sabermos todos os detalhes e dados. Uma abordagem mais analítica de decisão, em vez de uma abordagem apenas de evidência científica, é apropriada no caso.

Nos últimos meses, houve uma explosão de artigos científicos sobre a Covid-19 compartilhados em versões preprint, antes da revisão por pares, da verificação e revisão detalhada. O fato de as proteções do rigor científico estarem sendo dribladas preocupa?

Isso é uma bênção e uma maldição, embora mais positiva que negativa.

A revisão por pares é um dentre quatro níveis de controle de qualidade científica.

O primeiro é o treinamento dos cientistas para que eles saibam o que estão fazendo —e que vem sendo driblado, com pesquisadores trabalhando em campos com que estão pouco familiarizados.

O segundo é a autoedição científica: sua reputação está atrelada à credibilidade do seu trabalho, portanto evitar estar errado é um importante incentivo. No entanto, esse processo está sofrendo uma erosão pela pressa de publicar.

A revisão pelos pares, o terceiro nível, nem sempre está acontecendo e é também um processo imperfeito, mesmo quando funciona. A replicação é o quarto, e muitas vezes não há tempo para fazer isso.

Portanto, acho que a rapidez é um problema. Dado o enfraquecimento dos mecanismos de controle de qualidade, não me preocupam os preprints, até porque elas têm aspectos positivos, como acelerar as comunicações, o que é valioso.

Fora que a revisão por pares no Twitter está realmente acontecendo, já participei de ambos os lados. Acabei de colocar um preprint no MedRxiv que recebeu muitas críticas no Twitter, muitas das quais incorporamos na nova versão.

Acho que outros mecanismos estão funcionando. Não que substituam a revisão por pares, ou que sejam perfeitos, mas quem não aceita ser criticado deveria sair da ciência.

Algumas pessoas sugerem que devemos analisar o que foi chamado de totalidade das evidências, ou seja, incluir as desvantagens dos lockdowns sobre a economia, a saúde mental, a desigualdade etc. É possível incluir tantas dimensões na tomada de decisões do dia a dia?

Eu concordo com esse princípio, de que se os bloqueios fossem mais prejudiciais em termos de saúde mental e economia do que benéficos em termos do vírus isso seria uma consideração importante contra.

Na prática, contudo, é muito difícil comparar. Primeiro, cada efeito desses é difícil de estimar. Segundo, se o vírus está se espalhando, isso tem efeitos amplos: afeta a saúde mental e a economia, pois a reação das pessoas é tentar se isolar. Não é questão de separá-los, contá-los e pesá-los. Está tudo inter-relacionado, e a dimensão temporal é confusa.

Acho que é realmente difícil e não culpo nenhuma decisão política por ter dificuldade em equilibrá-los. Mas a decisão a curto prazo, a decisão imediata de bloquear, foi válida. Minha percepção no momento é que ainda temos um equilíbrio favorável em relação a medidas de controle extremas, pois elas podem reduzir o número de casos de maneira relativamente rápida.

Isso não significa que se deva lidar assim com todo surto viral. Se este fosse menos letal, a decisão poderia ser outra.

A solução parece ser a vacina. Temos mais de 160 candidatas, mais de 20 em teste, e os resultados iniciais parecem promissores. O que está por trás deste sucesso?  

Houve enorme investimento por governos e empresas, e minha intuição diz que a busca por vacinas contra o coronavírus da Mers e da Sars, que já estava em curso, deu impulso.

Ainda ficaria surpreso se uma vacina viável chegasse, plenamente, antes de 18 meses após o começo da pandemia [antes de junho de 2021].

As previsões atuais são que talvez daqui a uns meses tenhamos duas ou três candidatas com alguma comprovação. Seria surpreendente se elas fossem vacinas excelentes, pois esta é claramente uma infecção difícil, e geralmente as primeiras vacinas inventadas são imperfeitas.

Do ponto de vista da saúde pública, há uma forma ideal de distribuir a vacina? Seria por nível de vulnerabilidade ou é melhor imunizar totalmente toda uma região? Alguma estratégia parece mais eficaz? 

Depende das características da vacina. Há de se ver se ela oferece proteção contra infecção e transmissão ou apenas protege contra doenças. Ainda é cedo, mas meu palpite é que ela fará um pouco dos dois. Algumas pessoas interpretaram que os ensaios em símios da vacina de Oxford sugerem ser mais provável que ela proteja só contra doenças; eu acho que não necessariamente.

Se ela protege contra doenças e sintomas graves, será importante vacinar antes pessoas de alto risco; se ela protege contra a transmissão, pode valer a pena priorizar profissionais de saúde e outras pessoas.

A segunda dimensão é se ela funciona tão bem nas pessoas de alto risco como funciona nos jovens saudáveis. Se sim, há um argumento forte para priorizar as pessoas com maior risco de complicação, sobretudo se houver um número limitado de doses.

Se não funciona tão bem neles, então acaba sendo melhor uma estratégia em que se vacinam prioritariamente as classes de transmissão, em grande parte pessoas jovens, saudáveis, e depois se tenta proteger os idosos e as populações de risco indiretamente.

A resposta está na interseção dessas duas questões. Quando a primeira vacina for aprovada, não teremos certeza de nada disso, pois os ensaios não têm o poder de estudar os efeitos em todos os subgrupos.

Em países como os EUA e o Brasil, questões técnicas como usar máscara ou tomar hidroxicloroquina viraram questões partidárias. Seria possível isolar a resposta científica à Covid-19 da política? 

Isso exigirá esforços a longo prazo, e o terreno dessa politização foi preparado por grupos de esquerda e de direita, mas sobretudo de direita, que politizaram questões científicas como vacinas e mudança climática.

A visão de que a ciência é para todos e não tem partido precisa ser recuperada.

]]>
0
O “remédio mais caro do mundo” e os dilemas para o SUS e o STF https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/26/o-remedio-mais-caro-do-mundo-e-os-dilemas-para-o-sus-e-o-stf/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/26/o-remedio-mais-caro-do-mundo-e-os-dilemas-para-o-sus-e-o-stf/#respond Wed, 26 Aug 2020 11:00:17 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Supremo_Tribunal_Federal_-_vista-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=256 Daniel Wei Liang Wang
Luís Correia
Adriano Massuda
Ana Carolina Morozowski

A ANVISA recentemente aprovou o registro do medicamento Zolgensma para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), doença rara que causa paralisia muscular progressiva. Embora mais estudos sejam necessários, inclusive para atestar seus efeitos a longo prazo, o registro foi concedido em caráter excepcional pela gravidade da doença, pela ausência de alternativa terapêutica e porque as pesquisas existentes apontam para maior sobrevida, redução da necessidade de auxílio de aparelhos para respirar e melhora no desenvolvimento motor dos pacientes com o medicamento.

O fato de um tratamento tão promissor estar disponível é uma excelente notícia que traz uma preocupação. Ainda não se sabe o preço do tratamento no Brasil, mas nos EUA ele custa US$2,1 milhões (R$12 milhões) por paciente. Isso torna impossível a sua aquisição por famílias e cria um dilema para o SUS.

Registro na ANVISA não significa a incorporação pelo SUS para distribuição gratuita. A concessão do registro é apenas a autorização para que o produto entre no mercado nacional. A incorporação passa por outro processo, que considera diversos fatores, incluindo custo. Nem sempre se quer falar em dinheiro quando se discute saúde, mas como o orçamento é limitado e há mais necessidades que recursos, eventual incorporação de um tratamento tão caro inevitavelmente retirará recursos de outras políticas de saúde.

Se, por ano, há 3 milhões de nascimento no Brasil, e 1 a cada 10.000 crianças nascem com AME, então 300 crianças por ano nascem com AME no Brasil. Considerando que metade delas terão AME do tipo 1, para o qual Zolgensma foi aprovado, e que esse é um tratamento ministrado em dose única, então o custo do seu fornecimento universal pelo SUS ao preço praticado nos EUA seria de R$1,8 bilhões por ano. Isso é 10% do gasto anual de União, Estados e Municípios com todos os quase mil tratamentos da relação de medicamentos do SUS, o dobro do gasto anual com drogas para DST/AIDS e três vezes o valor acordado pelo governo brasileiro para produzir 30,5 milhões de doses de vacina para Covid-19 atualmente em teste.

Zolgensma está longe de ser um caso isolado. O SUS já tem fornecido, via judicialização ou incorporação, tratamentos de altíssimo custo como o Soliris e o Spinraza. Muitos outros tratamentos com preços elevados logo entrarão no mercado. O FDA, órgão regulador americano correspondente à ANVISA, prevê que até 2025 aprovará de 10 a 20 terapias gênicas, como o Zolgensma, por ano.

Portanto, é preciso que como sociedade tenhamos uma discussão muito séria sobre o financiamento do SUS, quanto estamos dispostos a gastar com inovações em saúde e quais as consequências distributivas de nossas escolhas. Por isso, mais do que nunca, é necessário que se atente à economia da saúde para decidir quais tecnologias serão custeadas.

Existem alguns métodos para guiar essa discussão. Um deles é a análise de custo-efetividade, que avalia a relação entre o benefício trazido por um novo tratamento e o seu custo. Tratamentos cujos ganhos em saúde não justificam o seu preço muito elevado não são incorporados porque consomem recursos que poderiam ser empregados em intervenções que trazem grandes ganhos a baixo custo. Outro é a análise de impacto orçamentário, em que se estabelece um limite para o custo total que o sistema de saúde aceita gastar com um tratamento para evitar que a sua incorporação inviabilize outras políticas de saúde.

Análises de custo-efetividade e de impacto orçamentário já são previstas em lei e aplicadas pelo Ministério da Saúde, mas precisam ser melhor conhecidas e compreendidas pela sociedade. Assim, poderão ser aprimoradas, aplicadas com mais consistência e respaldadas pela opinião pública e tomadores de decisão, mesmo quando os resultados são frustrantes para pacientes.

A análise econômica pode levar à difícil decisão de não fornecer um tratamento. Contudo, a experiência internacional mostra que mais comumente ela é utilizada para dar a sistemas de saúde poder de barganha na negociação de preços e condições com a indústria farmacêutica, o que certamente será necessário no caso de tratamentos como o Zolgensma.

Porém, esse tipo de análise pode ser seriamente dificultado a depender do resultado de um julgamento que será concluído pelo STF ainda esta semana. Trata-se da decisão que fixará a Tese de Repercussão Geral do Tema 6, que definirá quando pacientes terão o direito de receber tratamentos não incorporados pelo SUS. Duas teses estão em disputa no STF.

Uma, defendida pelo Ministro Marco Aurélio, entende que pacientes terão o direito de receber um tratamento não incorporado sempre que conseguirem comprovar a sua necessidade perante um juiz. Ou seja, a necessidade individual que chegou ao Judiciário deve ser atendida independentemente do impacto sobre o sistema de saúde e outros usuários.

A outra, defendida pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Barroso, dá ao SUS o poder de definir quais tratamentos devem ser custeados pelo Estado. Portanto, não há a obrigação de se fornecer um tratamento que os órgãos técnicos do SUS decidiram não incorporar após uma análise de evidência científica, custo-efetividade e impacto orçamentário. Ao Judiciário fica a tarefa de garantir o fornecimento dos tratamentos já incorporados e de decidir excepcionalmente na ausência de uma decisão do próprio SUS.

Se prevalecer a primeira tese, a judicialização tirará do SUS instrumentos importantes para evitar que a introdução de tecnologias de alto custo criem inequidades e ameacem a sua sustentabilidade. O resultado será um SUS que gasta cada vez mais para beneficiar um número cada vez menor de pessoas, provavelmente em prejuízo daqueles com menos voz e das políticas com pouca visibilidade mas não menos importantes (como atenção primária e preventiva). Isso manterá e agravará o cenário de um sistema de saúde no qual a oferta de tratamento de altíssimo custo convive com desabastecimentos, filas de espera, deterioramento de serviço e a dificuldade do sistema de se expandir e de reduzir desigualdades.

 

Daniel Wei Liang Wang é professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas – SP

Luís Correia é professor Adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Adriano Massuda é professor da Fundação Getúlio Vargas – SP. Foi Secretário de Saúde de Curitiba e Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde

Ana Carolina Morozowski é juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba, com competência especializada em saúde

]]>
0
Como garantir o exercício do direito à saúde? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/como-garantir-o-exercicio-do-direito-a-saude/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/como-garantir-o-exercicio-do-direito-a-saude/#respond Tue, 28 Jul 2020 11:32:33 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/26684219238_41999927ba_k-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=241  

Ricardo de Oliveira

Fruto de uma grande mobilização política na sociedade, foi escrito na Constituição de 1988 que a Saúde é direito de todos e um dever do Estado.

Uma vez conquistado esse direito, a sociedade se depara com o desafio de garantir o acesso aos serviços públicos de saúde a toda população brasileira. Esse é um desafio sem paralelo no mundo, vez que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes e com dimensões continentais que tem um sistema público e universal (SUS).

E temos que vencê-lo nos limites do marco regulatório administrativo e de controle da administração pública, que impõem inúmeras dificuldades para uma gestão pública eficiente, capaz de transformar os recursos disponíveis em serviços de qualidade para a população.

O SUS enfrenta esse desafio desde sua criação em 1988 e, apesar das dificuldades, foi capaz de organizar uma enorme prestação de serviços em todo o país. A pandemia da COVID-19 está demonstrando a importância do sistema público de saúde na proteção da saúde da população.

Garantir o direito à saúde significa prover serviços públicos de saúde a toda população, ou seja, a qualquer hora, em qualquer dia ou lugar desse país, alguém precisa de atendimento público de saúde e o SUS tem que estar preparado para atender.

Manter em todo o país serviços de saúde significa, do ponto de vista técnico, ter pessoas qualificadas e no quantitativo adequado, equipamentos, prédios, insumos e capacidade gerencial distribuídas por todo o país, de forma que a população possa acessar os serviços segundo suas necessidades, inclusive a tempo de ser atendida sem prejudicar sua saúde.

O SUS se depara, também, com alguns desafios de gestão do ponto de vista político. A nossa cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas, na relação do Estado com a sociedade, provoca ineficiências; desperdício de recursos; favorece a corrupção; prejudica a qualidade da prestação de serviços de saúde à população; e induz à descontinuidade administrativa, sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e com a frequente troca de gestores, em todos os níveis de governo.

Outra prática prejudicial à prestação de serviços de saúde ocorre quando há mudança de governo. Os novos gestores, frequentemente, renegam o trabalho do gestor anterior, ao invés de aperfeiçoar e dar continuidade aos projetos que tiveram um bom resultado por interesse de construir uma ‘marca própria’ e/ou desqualificar o antecessor.

Um desafio relevante é a coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. O funcionamento do SUS depende da coordenação de diferentes níveis de governo, onde temos diferentes partidos representados, cada um com sua ideologia e interesses que orientam suas políticas públicas finalísticas e de organização. Acrescente-se ainda a atuação dos vários órgãos públicos como o Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Defensoria Pública e Conselhos Profissionais que, em cumprimento aos seus papéis institucionais, dispõem de poder para direcionar gastos e influenciar as políticas públicas de saúde e a sua execução.

Nesse quadro político complexo, como fazer com que o conjunto de interesses políticos e institucionais trabalhem no mesmo sentido, com foco nos interesses dos usuários do SUS?

E, ainda, como fazer para organizar a prestação de serviços públicos de saúde, de forma a garantir com qualidade, eficiência e transparência, o exercício do direito à saúde com os conceitos atuais de gestão e controle que orientam o nosso marco regulatório administrativo e de controle?

As soluções para esses questionamentos dependem, sobretudo, do grau de comprometimento dos tomadores de decisão com a defesa do sistema público e universal de saúde; da nossa capacidade de coordenar essa ação coletiva; da modernização do nosso marco regulatório administrativo e de controle; da concepção do papel do Estado na provisão dos serviços públicos; e da prevalência, ou não, de interesses clientelistas, patrimonialistas e corporativos sobre os interesses dos usuários do SUS.

Infelizmente, a grande mobilização política que sustentou a criação do direito à saúde não se manteve para apoiar a superação dos desafios políticos e técnicos da gestão. Hoje, os grupos que mais se mobilizam em defesa do SUS se dividem quanto aos desafios da gestão em função de visões diferentes de como organizar a prestação de serviços do Estado e do papel da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde, como, por exemplo, na polêmica sobre a utilização das organizações sociais (OSs) na gestão dos serviços de saúde.

Essas divergências e a desmobilização política teve como consequência a transferência, na prática, de responsabilidades do Congresso Nacional, em relação às condições de gestão e financiamento, para os poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais, os quais, como sabemos, não têm poderes e recursos para enfrentar sozinhos tamanho desafio, e, assim, comprometemos o pleno exercício desse direito.

Essa ‘transferência de responsabilidades’ pode ser politicamente conveniente. Contudo, não é viável e se insere em uma cultura política de ‘empurrar o problema’, e está na raiz das atuais dificuldades enfrentadas pela população no acesso aos serviços de saúde, além de explicar grande parte do desgaste da imagem do SUS.

A população não identifica o Congresso Nacional e o governo federal como tendo responsabilidades pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde no dia a dia. Sendo assim, tende a responsabilizar apenas os estados e municípios que são, na prática, os provedores majoritários desses serviços; tende, também, a achar que elas não se resolvem apenas por falta de interesse político dos gestores diretos dos serviços, mas infelizmente não é bem assim. Alguns dos principais problemas enfrentados pelos gestores, estaduais e municipais, para garantir o acesso aos serviços depende de decisões a nível nacional.

Isso fica evidente quando se debatem questões de financiamento à saúde no Congresso Nacional e no Executivo Federal, pois não se consegue mais um apoio suficiente no sentido de garantir financiamento adequado, ou regras de gestão e controle específicas que favoreçam a eficiência na utilização de recursos destinados ao SUS.

Outras questões de suma importância para a gestão do SUS, como a excessiva judicialização da saúde ou o fato do gasto privado ser maior que o gasto público, em um sistema público e universal, também não tem merecido a atenção devida por parte do Congresso Nacional e do Governo Federal. Aliás, o debate sobre essas questões não tem ganhado espaço nem em campanhas eleitorais presidenciais ou para o Congresso Nacional, o que é uma enorme contradição, visto ser a saúde um dos temas que mais preocupam a população brasileira, conforme as várias pesquisas de opinião.

A sociedade cobra, com razão, mais resultados do sistema público de saúde. Contudo, ainda não conseguiu perceber que algumas questões cruciais para melhorar o atendimento, como condições de financiamento e regras de gestão e controle adequadas para entregar tais resultados, dependem do Congresso Nacional. Por isso, é fundamental que elejamos candidatos comprometidos com o desenvolvimento do SUS e com práticas políticas republicanas.

O SUS é uma construção social, pressupõem a participação de todos, população, gestores, técnicos, parlamentares, juízes, procuradores, controladores, defensores públicos e conselhos profissionais. Infelizmente não há um culpado de plantão como gostaria o populismo político.

 

Ricardo de Oliveira, engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010, e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: democracia e eficiência – FGV/2012.

 

 

]]>
0
Bom para a saúde, bom para a economia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/26/236/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/26/236/#respond Sun, 26 Jul 2020 21:28:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/man-smoke-beer-wheat-preview-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=236  

Paula Johns

 

Estamos no meio de uma pandemia de saúde pública e iniciando as discussões sobre a reforma tributária, uma oportunidade para tratamos do tema saúde e economia com um olhar mais global sobre ambos os termos, onde a dicotomia não existe. A Organização Mundial da Saúde define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Portanto, cuidar e promover a saúde não pode ou deve significar um gasto e sim um investimento.

Existe uma certa ilusão sobre a ideia de mercado livre quando defendemos medidas regulatórias, emergindo um pressuposto de que a regulação da livre iniciativa seria um entrave ao crescimento da economia e ao desenvolvimento. Até mesmo nos países mais liberais do mundo não existe um mercado verdadeiramente livre. Tanto o mercado como a economia funcionam inseridos numa série de regras, que por sua vez foram criadas em contextos sociais regidos por relações de poder que refletem as assimetrias econômicas e iniquidades da sociedade. Na maioria dos casos, poder econômico se traduz em poder político e no fator determinante das regras de funcionamento do mercado e da sociedade.

A necessidade de se fazer uma reforma tributária no Brasil é um tema em que há uma concordância entre todos os matizes ideológicos e, portanto, é importante que seja amplamente debatido do ponto de vista da eficiência econômica e da redução das iniquidades tributárias existentes no Brasil. Alcançar mais financiamento para a saúde é também prioritário.

Como representantes de uma organização que atua no campo da saúde pública, ouvimos que determinadas atividades econômicas poderiam até não ser boas para saúde, mas boas para economia. Esse argumento foi repetido por décadas em relação ao tabaco. Na medida em que as evidências sobre os malefícios do cigarro se acumulavam, aumentava a quantidade de argumentos relativos ao número de empregos gerados e ao desastre econômico que aconteceria caso adotássemos medidas regulatórias de controle do tabagismo. Em especial a tributação majorada com objetivo de redução de consumo de cigarros.

A história se repete em relação ao álcool e à categoria de alimentos ultraprocessados. Onde existe o reconhecimento de que determinados produtos são nocivos à saúde, prospera a argumentação de que o caminho para alcançar a redução de consumo não é a tributação e que o melhor a fazer seria educar crianças e adultos sobre os malefícios e estes, num cenário de suposta plena informação, fariam as melhores escolhas. Lamentavelmente não é assim que funciona na vida real.

Hoje, é sabido e comprovado que as medidas regulatórias de controle do tabagismo vêm sendo responsáveis pela redução expressiva de consumo de cigarros onde são adotadas, sendo o Brasil um desses países. Dentre as quatro principais políticas, restrição de publicidade, ambientes livres de fumo, advertências nos rótulos e tributação, a mais efetiva para redução de consumo é tributação, de acordo com o Banco Mundial e outros estudos.

Levantamento de uma Força-Tarefa de especialistas internacionais sobre políticas fiscais de saúde, feito em 2018,  chegou à conclusão que estas têm um papel fundamental nos debates sobre desenvolvimento, saúde e arrecadação em nível nacional. Impostos altos sobre consumo de tabaco, álcool e bebidas adoçadas são ferramentas essenciais para que os países consigam atingir a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, garantir a saúde, acabar com a pobreza e promover empregos.  Conforme destacado na Agenda de Ação de Adis Abeba, a partir do caso do tabaco, impostos sobre esta categoria de produtos aumentam a arrecadação, que por sua vez pode ser investida na saúde.

Este relatório conclui que as mortes prematuras associadas ao consumo de tabaco, álcool e bebidas adoçadas, que chegam à cifra de 10 milhões anuais, poderiam ser prevenidas. De acordo com o documento, se todos os países aumentarem seus impostos para elevar os preços de tabaco, álcool e bebidas açucaradas em 50%, mais de 50 milhões de mortes prematuras podem ser evitadas em todo o mundo nos próximos 50 anos, arrecadando mais de US$ 20 trilhões em receitas adicionais.

A resistência dos governos para elevar tributos que podem salvar vidas, como indica o título do relatório, vem impacto na saúde, levantam dúvidas sobre a eficácia da medida, superestimam os dados de emprego, comércio ilícito e que afetarão desproporcionalmente os pobres. No entanto, as evidências demonstram que esses argumentos não justificam a inação, além de serem falsos ou exagerados. dos fabricantes e de seus aliados que se beneficiam economicamente da venda desses produtos. Como é mais difícil refutar os argumentos relativos aoMuito pelo contrário, elevar impostos de produtos que geram enormes danos e custos à saúde e ao planeta e perda de produtividade é uma forma de minimizar o custo das externalidades que hoje não compõem o preço final destes produtos.

Nesse sentido, as recomendações do relatório clamam aos países e à comunidade internacional para agir e adotar essa ferramenta subutilizada para reduzir o que devemos consumir menos para melhorar a nossa saúde e para aumentar a arrecadação, rumo a um mundo mais saudável e sustentável para todos.

Portanto, é mais do que oportuno trazer esse tema para os debates em torno da reforma tributária no Brasil.

 

Paula Johns é diretora geral da ACT Promoção da Saúde

]]>
0
Covid-19 põe as cartas na mesa e exige revisão do sistema e investimentos em saúde https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/22/covid-19-poe-as-cartas-na-mesa-e-exige-revisao-do-sistema-e-investimentos-em-saude/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/22/covid-19-poe-as-cartas-na-mesa-e-exige-revisao-do-sistema-e-investimentos-em-saude/#respond Mon, 22 Jun 2020 11:07:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/mri-2815637_1920.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=205 Rodrigo Guerra

 

A pandemia da Covid-19 se tornou uma lupa sobre o modus operandi do sistema de Saúde brasileiro. A maneira como enfrentamos o vírus e suas consequências deixou evidentes gargalos e limitações antigas, mas também colocou luz sobre pontos fortes e oportunidades. E a principal delas diz respeito à transformação da Saúde. Se estamos, de fato, dispostos a realizá-la, devemos pensar desde já nos investimentos fundamentais para o pós-pandemia.

 

Aos que julgam essa reflexão precipitada, enfatizo que o momento de reação e adaptação já passou. Os últimos dois meses, ainda que bastante atribulados e preocupantes, foram mais que suficientes para reestruturar operações e colocar as unidades de Saúde em condições de atender os pacientes. E ainda que a calmaria não esteja em um horizonte próximo, não dá para deixar de lado a tarefa de pensar em como serão estruturadas as instituições de agora em diante.

 

A primeira abordagem é, ao mesmo tempo, filosófica e prática: o conceito de eficiência na Saúde vai mudar. Até pouco tempo atrás, eficiente era o hospital ou clínica que fazia mais com menos – o que pautava a administração era basicamente uma relação direta entre preços e custos. Agora entram outros elementos, muitos deles inéditos. O mais importante deles é a capacidade do setor em reagir prontamente a eventos inusitados. Epidemias e pandemias passam, definitivamente, a estar no radar de todas as empresas, de qualquer ramo, e na Saúde passam a ser prioridade.

 

Toda instituição de Saúde, seja ela privada ou pública, deverá traçar cenários de crise em seu planejamento, precisará entender o peso da capacidade de resposta imediata e oferecer segurança aos pacientes e às suas equipes de uma maneira muito mais profunda que antes. Constatamos, da forma mais dramática possível, quão alto é o custo do despreparo, seja em termos financeiros ou humanos, e não podemos deixar que isso se repita.

 

Uma segunda abordagem do planejamento pós-pandemia é a revisão da remuneração dos profissionais, que não se limita aos médicos, mas abrange todos os agentes da Saúde, em especial enfermeiros e técnicos de enfermagem. Que eles recebam aplausos e menções públicas é meritório e louvável, mas esses profissionais dependem de formas de reconhecimento mais palpáveis e de uma valorização à altura do risco e da fidelidade que vivenciam no cumprimento de suas funções.

 

Com essas abordagens em mente, podemos considerar três frentes de investimento fundamentais no pós-pandemia:

 

  • Estruturação e capacidade instalada;
  • Reorganização da cadeia de insumos, quebrando a superdependência das importações;
  • Conscientização do público, de forma aplicada, sobre a atenção integral à saúde.

 

Todos esses investimentos necessitam, claro, de recursos. Para garanti-los, o caminho mais imediato é combater o desperdício por meio de uma gestão mais racional. Já a longo prazo, devemos disseminar a atenção integral à saúde, o que constitui toda uma mudança cultural não só dos agentes do sistema, mas também da sociedade. Hoje ainda nos encontramos presos a uma “medicalização” excessiva, com usuários que entendem acesso à saúde de qualidade como disponibilidade de medicamentos -e organizações que se propõem a atender a esse anseio. Migrar para a mentalidade de que a qualidade existe quando não se adoece é um caminho sem volta não só para a sustentabilidade do setor no pós-pandemia, mas também para que a população brasileira tenha mais qualidade de vida.

 

Mas é preciso dizer que, enquanto insistirmos nesse modelo de remunerar por quantidade de atendimentos, e não por qualidade, favorecemos mais uma prática equivocada da medicina que um cuidado de referência.

 

Acredito que todos os players da Saúde estão agora mais sensíveis e propensos para enfrentamentos que eram há muito postergados. E é nosso papel, como gestores, estar à frente de todos os agentes, hospitais e operadoras de Saúde para promover uma mudança no modelo de remuneração baseado no resultado do atendimento em saúde.

 

Para isso, é crucial implementar indicativos de qualidade e eficiência que possibilitem tirar essa premissa do papel. A exemplo de parâmetros, o tempo em que o indivíduo passa em leito hospitalar e a taxa de reinternação são pontos para os quais podemos olhar como um indicativo de sucesso do trabalho desempenhado por aquele médico e serviço. É dever do gestor internalizar e aplicar esse raciocínio para que esse calor da mudança não “esfrie” no retorno a uma aparente normalidade -que de normal promete não ter nada.

 

Em relação às instituições governamentais, acredito que o mundo deve caminhar para uma nova perspectiva sobre o papel do Estado. Ele passará a desempenhar outras funções, estará mais presente, e os cidadãos irão exigir um outro nível de investimentos em Saúde, similar ao disponibilizado hoje na área de defesa, por exemplo. Os bilhões que o mundo gasta em armamentos carregam a lógica de que são usados para combater inimigos potenciais. Agora os inimigos são outros, invisíveis, e pedem outro tipo de combate, deixando claro que se queremos construir um mundo diferente no pós-pandemia, precisamos começar pela saúde -essa com caixa baixa mesmo, que vai muito além de um setor.

 

Rodrigo Guerra é Superintendente Executivo da Central Nacional Unimed.

 

]]>
0
Diplomacia da Saúde: Rumo à Cobertura Universal https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/12/diplomacia-da-saude-rumo-a-cobertura-universal/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/12/diplomacia-da-saude-rumo-a-cobertura-universal/#respond Fri, 12 Jun 2020 11:58:48 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/International_conference_on_Primary_Health_Care_-_Conferencia_Internacional_sobre_Atención_Primaria_de_Salud_-_Almaty_-1978.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=200 Marcelo Costa

Marise Nogueira

 

Nas últimas décadas, as implicações políticas, sociais e econômicas de temas sanitários têm exigido a participação cada vez maior de diplomatas em negociações sobre saúde internacional e de especialistas em saúde pública no universo diplomático, como tem ficado mais evidente no atual contexto de resposta global à pandemia de Covid-19.  A interação entre essas duas áreas de conhecimento propiciou a criação de um novo campo de atuação profissional e acadêmica -a diplomacia da saúde. Desde a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários à Saúde de Alma-Ata, em 1978, que consagrou o lema “Saúde para Todos”, uma das principais frentes da diplomacia da saúde é a Cobertura Universal de Saúde.

Atualmente metade da população mundial não dispõe de cobertura completa de serviços essenciais de saúde. Além disso, a cada ano, cerca de 100 milhões de pessoas no mundo são levadas à situação de extrema pobreza em função de gastos com saúde.  Tendo em conta essa desafiadora realidade, uma das metas estabelecidas na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU visa a “atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos”.

Com a adoção, em 2015, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em particular do ODS 3 (assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades), a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), principal foro político multilateral, reafirmou o elevado interesse da comunidade internacional pelos  temas de saúde. Vale recordar, nesse sentido, o papel do Brasil como um dos sete membros fundadores do grupo “Política Externa e Saúde Global” -iniciativa propulsora da agenda de saúde no âmbito da ONU, o que confere ao país reconhecida legitimidade nos debates da área.

Desde então, a AGNU, em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) – face mais visível da complexa rede de instituições e organismos que integram o campo da diplomacia da saúde –, vem intensificando sua atuação na área da saúde. Nesse sentido, foram realizadas, nos últimos anos, cinco reuniões de alto nível político (com a participação de chefes de estado e governo), que resultaram em compromissos comuns,  objeto de longa negociação entre os países, sobre assuntos como HIV/Aids; doenças não transmissíveis; resistência antimicrobiana; tuberculose; e, mais recentemente, em setembro de 2019, cobertura universal de saúde.

Na ocasião, os 193 estados-membros da ONU aprovaram a Declaração Política intitulada “Caminhando Juntos Para Construir um Mundo Mais Saudável”, considerada pelo secretário-geral da organização, António Guterres, o acordo mais abrangente já alcançado sobre saúde global.  Trata-se, de fato, do mais significativo chamado à ação feito por líderes mundiais sobre a necessidade de fortalecer as capacidades dos sistemas nacionais de saúde, o que, por sua vez, viria a constituir fundamental contribuição ao objetivo de se cumprir o lema da Agenda 2030 “de não deixar ninguém para trás”.

A Declaração estimula a cooperação entre governos, sociedade civil, academia e setor privado, tanto no plano nacional quanto global, com o objetivo de acelerar a implementação da cobertura universal de saúde nos próximos anos com foco em temas fundamentais para o avanço dessa agenda, como, entre outros, a democratização do acesso a medicamentos e vacinas; a expansão da atenção primária; a capacitação dos trabalhadores da área; o incremento do financiamento de políticas de saúde pública; e o reforço de ações de prevenção e controle de pandemias.

A atual pandemia de Covid-19 veio recordar que as doenças não respeitam fronteiras, podendo, como temos observado, acarretar graves danos para a saúde pública, o bem-estar da população e a economia de países dos mais variados níveis de renda e desenvolvimento. Nesse contexto, tornam-se ainda mais importantes ações que, por um lado, fortaleçam os sistemas nacionais de saúde – o SUS no caso brasileiro, e, por outro, que valorizem mecanismos diplomáticos regionais e multilaterais, a fim de intensificar a cooperação internacional com vistas à busca de soluções comuns. Em ambos os casos, a diplomacia da saúde tem papel decisivo a desempenhar.

Marcelo Costa, formado em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba, é diplomata de carreira. Foi assessor para temas de saúde global da 73a Presidente da Assembleia Geral da ONU. 

Marise Nogueira, formada em Medicina pela Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mestre em Radiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é diplomata de carreira.

(Este artigo foi escrito a título pessoal, não refletindo posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores)

]]>
0