Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Reforma da gestão pública https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/29/reforma-da-gestao-publica/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/29/reforma-da-gestao-publica/#respond Thu, 29 Oct 2020 11:07:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Plenário_do_Congresso_17368738481-2-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=305  

Ricardo de Oliveira

 

Uma das questões mais importantes da agenda política é a reforma da gestão pública.  Isso porque é preciso garantir que a população exerça os direitos estabelecidos na constituição e, essa garantia só é possível com uma gestão pública de qualidade, que assegure que os recursos disponíveis para a administração pública (financeiros, patrimoniais, materiais, poder e pessoal) sejam aplicados, da melhor maneira possível, no interesse da população.

A criação de direitos sem que a população possa exercê-los, na sua plenitude, tem um enorme potencial de desqualificar o Estado democrático de direito. Os nossos legisladores têm priorizado a criação de direitos sem a devida preocupação com a garantia do seu exercício. Essa prática prejudica, principalmente, a parte da população mais pobre e, portanto, mais dependente dos serviços públicos, agravando a desigualdade social, que já é absurdamente alta no nosso país.

A reforma da gestão pública tem que ser pensada em toda sua complexidade, nas dimensões técnica e política. Ao contrário da gestão privada, a gestão pública age em um ambiente com fortes interações com a disputa política na sociedade, seja por interesses clientelistas, corporativos, econômicos ou institucionais, além de conviver com uma legislação de controle muito restritiva ao desempenho gerencial.

O objetivo da administração pública é prestar serviços à população com transparência, eficiência, sustentabilidade e qualidade. A reforma da gestão pública precisa, inicialmente, fazer um diagnóstico dos problemas políticos e técnicos que restringem o alcance desse objetivo. Esse passo é fundamental para que sejam procuradas soluções adequadas aos reais problemas que afetam o desempenho gerencial da administração pública. O debate é sobre o conjunto das regras de gestão e controle do setor público e sua interação com o ambiente político e institucional. É preciso identificar, com clareza, as restrições provenientes desse ambiente no desempenho gerencial da administração pública, sob pena de propor soluções parciais, com alcance limitado, na melhoria da prestação de serviços públicos à população.

Por fim, a reforma tem que ser pensada como um processo que envolve muitos atores, públicos e privados, com interesse no desenvolvimento da gestão pública como forma de promover a igualdade de oportunidades. Essa é uma obra coletiva. Não há salvadores da pátria.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi secretário estadual de gestão e recursos humanos do ES, no período de 2005/2010 e secretário estadual de saúde do ES em 2015/2018. Autor dos livros gestão pública: Democracia e Eficiência- FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde- FGV/2020.

 

 

 

 

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O “remédio mais caro do mundo” e os dilemas para o SUS e o STF https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/26/o-remedio-mais-caro-do-mundo-e-os-dilemas-para-o-sus-e-o-stf/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/26/o-remedio-mais-caro-do-mundo-e-os-dilemas-para-o-sus-e-o-stf/#respond Wed, 26 Aug 2020 11:00:17 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Supremo_Tribunal_Federal_-_vista-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=256 Daniel Wei Liang Wang
Luís Correia
Adriano Massuda
Ana Carolina Morozowski

A ANVISA recentemente aprovou o registro do medicamento Zolgensma para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), doença rara que causa paralisia muscular progressiva. Embora mais estudos sejam necessários, inclusive para atestar seus efeitos a longo prazo, o registro foi concedido em caráter excepcional pela gravidade da doença, pela ausência de alternativa terapêutica e porque as pesquisas existentes apontam para maior sobrevida, redução da necessidade de auxílio de aparelhos para respirar e melhora no desenvolvimento motor dos pacientes com o medicamento.

O fato de um tratamento tão promissor estar disponível é uma excelente notícia que traz uma preocupação. Ainda não se sabe o preço do tratamento no Brasil, mas nos EUA ele custa US$2,1 milhões (R$12 milhões) por paciente. Isso torna impossível a sua aquisição por famílias e cria um dilema para o SUS.

Registro na ANVISA não significa a incorporação pelo SUS para distribuição gratuita. A concessão do registro é apenas a autorização para que o produto entre no mercado nacional. A incorporação passa por outro processo, que considera diversos fatores, incluindo custo. Nem sempre se quer falar em dinheiro quando se discute saúde, mas como o orçamento é limitado e há mais necessidades que recursos, eventual incorporação de um tratamento tão caro inevitavelmente retirará recursos de outras políticas de saúde.

Se, por ano, há 3 milhões de nascimento no Brasil, e 1 a cada 10.000 crianças nascem com AME, então 300 crianças por ano nascem com AME no Brasil. Considerando que metade delas terão AME do tipo 1, para o qual Zolgensma foi aprovado, e que esse é um tratamento ministrado em dose única, então o custo do seu fornecimento universal pelo SUS ao preço praticado nos EUA seria de R$1,8 bilhões por ano. Isso é 10% do gasto anual de União, Estados e Municípios com todos os quase mil tratamentos da relação de medicamentos do SUS, o dobro do gasto anual com drogas para DST/AIDS e três vezes o valor acordado pelo governo brasileiro para produzir 30,5 milhões de doses de vacina para Covid-19 atualmente em teste.

Zolgensma está longe de ser um caso isolado. O SUS já tem fornecido, via judicialização ou incorporação, tratamentos de altíssimo custo como o Soliris e o Spinraza. Muitos outros tratamentos com preços elevados logo entrarão no mercado. O FDA, órgão regulador americano correspondente à ANVISA, prevê que até 2025 aprovará de 10 a 20 terapias gênicas, como o Zolgensma, por ano.

Portanto, é preciso que como sociedade tenhamos uma discussão muito séria sobre o financiamento do SUS, quanto estamos dispostos a gastar com inovações em saúde e quais as consequências distributivas de nossas escolhas. Por isso, mais do que nunca, é necessário que se atente à economia da saúde para decidir quais tecnologias serão custeadas.

Existem alguns métodos para guiar essa discussão. Um deles é a análise de custo-efetividade, que avalia a relação entre o benefício trazido por um novo tratamento e o seu custo. Tratamentos cujos ganhos em saúde não justificam o seu preço muito elevado não são incorporados porque consomem recursos que poderiam ser empregados em intervenções que trazem grandes ganhos a baixo custo. Outro é a análise de impacto orçamentário, em que se estabelece um limite para o custo total que o sistema de saúde aceita gastar com um tratamento para evitar que a sua incorporação inviabilize outras políticas de saúde.

Análises de custo-efetividade e de impacto orçamentário já são previstas em lei e aplicadas pelo Ministério da Saúde, mas precisam ser melhor conhecidas e compreendidas pela sociedade. Assim, poderão ser aprimoradas, aplicadas com mais consistência e respaldadas pela opinião pública e tomadores de decisão, mesmo quando os resultados são frustrantes para pacientes.

A análise econômica pode levar à difícil decisão de não fornecer um tratamento. Contudo, a experiência internacional mostra que mais comumente ela é utilizada para dar a sistemas de saúde poder de barganha na negociação de preços e condições com a indústria farmacêutica, o que certamente será necessário no caso de tratamentos como o Zolgensma.

Porém, esse tipo de análise pode ser seriamente dificultado a depender do resultado de um julgamento que será concluído pelo STF ainda esta semana. Trata-se da decisão que fixará a Tese de Repercussão Geral do Tema 6, que definirá quando pacientes terão o direito de receber tratamentos não incorporados pelo SUS. Duas teses estão em disputa no STF.

Uma, defendida pelo Ministro Marco Aurélio, entende que pacientes terão o direito de receber um tratamento não incorporado sempre que conseguirem comprovar a sua necessidade perante um juiz. Ou seja, a necessidade individual que chegou ao Judiciário deve ser atendida independentemente do impacto sobre o sistema de saúde e outros usuários.

A outra, defendida pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Barroso, dá ao SUS o poder de definir quais tratamentos devem ser custeados pelo Estado. Portanto, não há a obrigação de se fornecer um tratamento que os órgãos técnicos do SUS decidiram não incorporar após uma análise de evidência científica, custo-efetividade e impacto orçamentário. Ao Judiciário fica a tarefa de garantir o fornecimento dos tratamentos já incorporados e de decidir excepcionalmente na ausência de uma decisão do próprio SUS.

Se prevalecer a primeira tese, a judicialização tirará do SUS instrumentos importantes para evitar que a introdução de tecnologias de alto custo criem inequidades e ameacem a sua sustentabilidade. O resultado será um SUS que gasta cada vez mais para beneficiar um número cada vez menor de pessoas, provavelmente em prejuízo daqueles com menos voz e das políticas com pouca visibilidade mas não menos importantes (como atenção primária e preventiva). Isso manterá e agravará o cenário de um sistema de saúde no qual a oferta de tratamento de altíssimo custo convive com desabastecimentos, filas de espera, deterioramento de serviço e a dificuldade do sistema de se expandir e de reduzir desigualdades.

 

Daniel Wei Liang Wang é professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas – SP

Luís Correia é professor Adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Adriano Massuda é professor da Fundação Getúlio Vargas – SP. Foi Secretário de Saúde de Curitiba e Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde

Ana Carolina Morozowski é juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba, com competência especializada em saúde

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Como garantir o exercício do direito à saúde? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/como-garantir-o-exercicio-do-direito-a-saude/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/como-garantir-o-exercicio-do-direito-a-saude/#respond Tue, 28 Jul 2020 11:32:33 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/26684219238_41999927ba_k-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=241  

Ricardo de Oliveira

Fruto de uma grande mobilização política na sociedade, foi escrito na Constituição de 1988 que a Saúde é direito de todos e um dever do Estado.

Uma vez conquistado esse direito, a sociedade se depara com o desafio de garantir o acesso aos serviços públicos de saúde a toda população brasileira. Esse é um desafio sem paralelo no mundo, vez que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes e com dimensões continentais que tem um sistema público e universal (SUS).

E temos que vencê-lo nos limites do marco regulatório administrativo e de controle da administração pública, que impõem inúmeras dificuldades para uma gestão pública eficiente, capaz de transformar os recursos disponíveis em serviços de qualidade para a população.

O SUS enfrenta esse desafio desde sua criação em 1988 e, apesar das dificuldades, foi capaz de organizar uma enorme prestação de serviços em todo o país. A pandemia da COVID-19 está demonstrando a importância do sistema público de saúde na proteção da saúde da população.

Garantir o direito à saúde significa prover serviços públicos de saúde a toda população, ou seja, a qualquer hora, em qualquer dia ou lugar desse país, alguém precisa de atendimento público de saúde e o SUS tem que estar preparado para atender.

Manter em todo o país serviços de saúde significa, do ponto de vista técnico, ter pessoas qualificadas e no quantitativo adequado, equipamentos, prédios, insumos e capacidade gerencial distribuídas por todo o país, de forma que a população possa acessar os serviços segundo suas necessidades, inclusive a tempo de ser atendida sem prejudicar sua saúde.

O SUS se depara, também, com alguns desafios de gestão do ponto de vista político. A nossa cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas, na relação do Estado com a sociedade, provoca ineficiências; desperdício de recursos; favorece a corrupção; prejudica a qualidade da prestação de serviços de saúde à população; e induz à descontinuidade administrativa, sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e com a frequente troca de gestores, em todos os níveis de governo.

Outra prática prejudicial à prestação de serviços de saúde ocorre quando há mudança de governo. Os novos gestores, frequentemente, renegam o trabalho do gestor anterior, ao invés de aperfeiçoar e dar continuidade aos projetos que tiveram um bom resultado por interesse de construir uma ‘marca própria’ e/ou desqualificar o antecessor.

Um desafio relevante é a coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. O funcionamento do SUS depende da coordenação de diferentes níveis de governo, onde temos diferentes partidos representados, cada um com sua ideologia e interesses que orientam suas políticas públicas finalísticas e de organização. Acrescente-se ainda a atuação dos vários órgãos públicos como o Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Defensoria Pública e Conselhos Profissionais que, em cumprimento aos seus papéis institucionais, dispõem de poder para direcionar gastos e influenciar as políticas públicas de saúde e a sua execução.

Nesse quadro político complexo, como fazer com que o conjunto de interesses políticos e institucionais trabalhem no mesmo sentido, com foco nos interesses dos usuários do SUS?

E, ainda, como fazer para organizar a prestação de serviços públicos de saúde, de forma a garantir com qualidade, eficiência e transparência, o exercício do direito à saúde com os conceitos atuais de gestão e controle que orientam o nosso marco regulatório administrativo e de controle?

As soluções para esses questionamentos dependem, sobretudo, do grau de comprometimento dos tomadores de decisão com a defesa do sistema público e universal de saúde; da nossa capacidade de coordenar essa ação coletiva; da modernização do nosso marco regulatório administrativo e de controle; da concepção do papel do Estado na provisão dos serviços públicos; e da prevalência, ou não, de interesses clientelistas, patrimonialistas e corporativos sobre os interesses dos usuários do SUS.

Infelizmente, a grande mobilização política que sustentou a criação do direito à saúde não se manteve para apoiar a superação dos desafios políticos e técnicos da gestão. Hoje, os grupos que mais se mobilizam em defesa do SUS se dividem quanto aos desafios da gestão em função de visões diferentes de como organizar a prestação de serviços do Estado e do papel da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde, como, por exemplo, na polêmica sobre a utilização das organizações sociais (OSs) na gestão dos serviços de saúde.

Essas divergências e a desmobilização política teve como consequência a transferência, na prática, de responsabilidades do Congresso Nacional, em relação às condições de gestão e financiamento, para os poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais, os quais, como sabemos, não têm poderes e recursos para enfrentar sozinhos tamanho desafio, e, assim, comprometemos o pleno exercício desse direito.

Essa ‘transferência de responsabilidades’ pode ser politicamente conveniente. Contudo, não é viável e se insere em uma cultura política de ‘empurrar o problema’, e está na raiz das atuais dificuldades enfrentadas pela população no acesso aos serviços de saúde, além de explicar grande parte do desgaste da imagem do SUS.

A população não identifica o Congresso Nacional e o governo federal como tendo responsabilidades pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde no dia a dia. Sendo assim, tende a responsabilizar apenas os estados e municípios que são, na prática, os provedores majoritários desses serviços; tende, também, a achar que elas não se resolvem apenas por falta de interesse político dos gestores diretos dos serviços, mas infelizmente não é bem assim. Alguns dos principais problemas enfrentados pelos gestores, estaduais e municipais, para garantir o acesso aos serviços depende de decisões a nível nacional.

Isso fica evidente quando se debatem questões de financiamento à saúde no Congresso Nacional e no Executivo Federal, pois não se consegue mais um apoio suficiente no sentido de garantir financiamento adequado, ou regras de gestão e controle específicas que favoreçam a eficiência na utilização de recursos destinados ao SUS.

Outras questões de suma importância para a gestão do SUS, como a excessiva judicialização da saúde ou o fato do gasto privado ser maior que o gasto público, em um sistema público e universal, também não tem merecido a atenção devida por parte do Congresso Nacional e do Governo Federal. Aliás, o debate sobre essas questões não tem ganhado espaço nem em campanhas eleitorais presidenciais ou para o Congresso Nacional, o que é uma enorme contradição, visto ser a saúde um dos temas que mais preocupam a população brasileira, conforme as várias pesquisas de opinião.

A sociedade cobra, com razão, mais resultados do sistema público de saúde. Contudo, ainda não conseguiu perceber que algumas questões cruciais para melhorar o atendimento, como condições de financiamento e regras de gestão e controle adequadas para entregar tais resultados, dependem do Congresso Nacional. Por isso, é fundamental que elejamos candidatos comprometidos com o desenvolvimento do SUS e com práticas políticas republicanas.

O SUS é uma construção social, pressupõem a participação de todos, população, gestores, técnicos, parlamentares, juízes, procuradores, controladores, defensores públicos e conselhos profissionais. Infelizmente não há um culpado de plantão como gostaria o populismo político.

 

Ricardo de Oliveira, engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010, e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: democracia e eficiência – FGV/2012.

 

 

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Crise e comportamento: onde nossa comunicação está falhando? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/05/29/crise-e-comportamento-onde-nossa-comunicacao-esta-falhando/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/05/29/crise-e-comportamento-onde-nossa-comunicacao-esta-falhando/#respond Fri, 29 May 2020 23:00:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/3411971370_73c06f2bfd_o.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=193  

Helyn Thami

Arthur Aguillar

Gabriela Lotta

 

 

Não existe qualquer exagero em dizer que a crise imposta pelo novo coronavírus nos desafia em muitas frentes: políticas públicas, governança, senso de coletividade, resiliência, para mencionar apenas alguns que vêm imediatamente à cabeça. Contudo, um olhar mais cuidadoso nos mostra o imenso desafio que é transversal a todos os demais: a comunicação.

 

Uma nova infecção viral, para a qual não existe ainda tratamento eficaz e tampouco vacina, nos deixa como única alternativa a redução da transmissão. Esta, por sua vez, nos obriga a repensar o funcionamento da sociedade, as práticas cotidianas, a ordem e as normas sociais. A crise nos impõe, portanto, uma mudança profunda de comportamentos individuais. Mas esta tarefa não é nada trivial, considerando que mudanças dessa natureza exigem períodos longos de tempo, via de regra.

 

Logo, a comunicação se presta, nesse contexto, a duas grandes funções: garantir que todos tenham dimensão da gravidade da crise e, em face disso, que comportamentos se alterem de modo a manter a situação tão manejável quanto possível. Quando observamos a queda do índice de isolamento social na maior parte das capitais brasileiras, ou o uso incorreto de máscaras pela população, se escancaram os ruídos de comunicação, ou melhor, o mau planejamento das campanhas de comunicação – estamos falhando e temos que reverter esse jogo em tempo recorde se não quisermos contabilizar ainda mais mortes.

 

Para repensar a comunicação, é preciso lembrar: esse campo de conhecimento traz consigo sua ciência e sua teoria. Convencimento, influência e persuasão não podem se pautar naquilo que cada um de nós, individualmente, acha ser relevante. Tentar convencer aos outros somente com as armas que nos convenceriam é não só inútil, mas contraproducente. Vejam, por exemplo, a questão sobre uso de dados e estatísticas sobre o avanço da doença, grandemente veiculados na mídia e pelas redes oficiais. Mesmo nos indivíduos de maior grau de instrução e especialmente sensíveis a evidências numéricas e indicadores, a influência direta sobre o comportamento nunca é determinada de forma exclusivamente racional. Nossa mente responde muito mais às emoções do que aos números. Logo, dados, sozinhos, não produzem qualquer efeito.

 

Ademais, é preciso lembrar que o Brasil é país diverso e desigual, marcado por muitas clivagens – gênero, raça, classe. Imaginar que existe um único formato de comunicação que seja eficiente para todos os públicos é, portanto, equivocado. Uma pesquisa realizada no Reino Unido revelou, por exemplo, que a população jovem, sobretudo os homens jovens, respeitavam menos as diretivas governamentais sobre distanciamento e isolamento sociais e lavagem das mãos. Homens, em geral, também apresentaram maior dificuldade de lembrar dos conteúdos dos materiais informativos. Não se pode esquecer, ainda, dos cidadãos portadores de necessidades especiais ou aqueles que não leem ou compreendem bem conteúdo escrito. Customizar a comunicação é imperativo, uma vez que o comunicado não é o dito, mas o entendido.

 

Além disso, é preciso lembrar que a efetividade da comunicação depende, em grande medida, da sua estrutura. A redução da carga cognitiva necessária para introjetar uma mensagem é imprescindível para que ela ative o receptor. Sendo assim, a mensagem deve ser curta e direta, iniciando pela informação que se deseja fixar, usando amplamente imagens, infográficos e linguagem simples. “Crescimento exponencial”, “R0” e “curva de contágio” não parecem termos familiares para a esmagadora maioria da população brasileira. E, de fato, não o são.

 

Além disso, outra pesquisa também realizada no Reino Unido demonstrou que as campanhas de comunicação que evocam normas sociais são mais eficientes. Peças de conscientização individual do tipo “Seu vizinho está ficando em casa, e você?” pontuaram melhor na escala de efetividade quando comparadas a outras peças. Esse achado corrobora a influência do aprendizado social nas nossas escolhas pessoais, elemento que não pode ser negligenciado.

 

Existem, ainda, outros pontos de atenção na hora de comunicar. Por exemplo, é eficiente oferecer a noção de recompensa ou ganho imediato de uma ação para motivar o receptor: enfatizar que a saúde e segurança estarão resguardadas quando se adota o isolamento social é um caminho.

 

Outra sugestão é oferecer feedback positivo a quem está na direção correta: retomo aqui o velho experimento da lavagem das mãos nas unidades de terapia intensiva em um hospital americano. Enquanto as campanhas do tipo “funcionários, lavem as mãos!” fracassaram miseravelmente, a instalação de um placar que contabilizava, em tempo real, as vezes em que os profissionais lavavam as mãos ao entrar ou sair de um leito e exibia mensagens de incentivo e reconhecimento elevou o índice de adequação ao procedimento para mais de 90%. Isso denota não só a importância e o poder do feedback positivo, mas também da preservação do nosso senso de instrumentalidade (poder escolher) e autonomia. Campanhas de cunho autoritário e ordenatório são uma receita para o fracasso. Cabe motivar boas escolhas, não as ordenar ou condenar as ruins.

 

Também é interessante que a comunicação de risco não se concentre somente no indivíduo que recebe a mensagem, uma vez que já foi demonstrada nossa tendência a minimizar nosso próprio risco. Lembrar da proteção da família, amigos e vizinhos é importante. Por fim, cabe lembrar das informações positivas, pois a comunicação negativa agressiva frequentemente leva à negação e ao reforço ainda mais veemente de crenças prévias.

 

Tudo isso dá a dimensão do quão complexo é o ato de comunicar e motivar a mudança de comportamento de forma efetiva. Isso pode parecer, à primeira vista, um labirinto cuja saída consumiria muito tempo e muitos outros recursos (que não temos no momento). Mas não necessariamente. Hoje, as redes sociais e a internet permitem testar e iterar estratégias de comunicação com muita rapidez, com amostras substanciais da população a um custo baixo. É possível randomizar os testes, resultando em evidência de alta relevância para a tomada de decisão.

 

Como qualquer coisa que envolve a natureza humana, a comunicação precisa se refinar para dar conta da complexidade que encara. Não há respostas prontas. Testar as ideias e aprimorá-las até que se alcance o objetivo é uma opção interessante para fugir dos achismos pessoais. Também é central para acomodar melhor as necessidades e incorporar as limitações de todos e cada um no consumo da informação. Isso não prescinde do refinamento teórico e conceitual da comunicação enquanto campo de saber, muito pelo contrário. Apenas é uma forma de customizar esse saber para todos os públicos, ação absolutamente necessária para o efetivo enfrentamento da pandemia.

 

Helyn Thami e Arthur Aguillar são pesquisadores do IEPS

 

Gabriela Lotta é Professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas;  coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB – FGV/EAESP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)

 

 

 

 

 

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Sobre Saúde e os ensinamentos da memória https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/01/15/sobre-saude-e-os-ensinamentos-da-memoria/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/01/15/sobre-saude-e-os-ensinamentos-da-memoria/#respond Wed, 15 Jan 2020 11:00:29 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/together-2450084_640-300x192.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=115 Helyn Thami

 

Em 1905, no livro “A vida da razão”, o ensaísta, poeta e filósofo espanhol Jorge Agustín Nicolás Ruiz de Santayana y Borrás (sob o pseudônimo George Santayana) cunhou  uma frase que, de tão atual, mantém sua ressonância: “aqueles que não podem lembrar o seu passado estão condenados a repeti-lo”. Não sem razão: a máxima descreve, com precisão cirúrgica, os efeitos de uma alienação histórica, promovida por diversos regimes políticos de pouca vocação democrática ao redor do mundo. Parece-me, no entanto, que a citação é usada quase que exclusivamente para falar dos grandes erros da humanidade até aqui.

 

A sentença original, contudo, é mais abrangente do que seu recorte. O autor afirma que “o progresso, longe de consistir em mudança, depende da capacidade de retenção (…) e quando a experiência não é retida, como acontece entre os selvagens, a infância é perpétua”. Em suma, o progresso deriva da memória, independentemente de onde ela se ancore – erros ou acertos. Com base nisso, proponho ao caro leitor uma viagem no tempo para entender, sob uma perspectiva dialógica entre erros e acertos, a construção do conceito de saúde na contemporaneidade. Para isso, remontemos o ano de 1945.

 

A Inglaterra, após a vitória na Segunda Guerra, experimentava a colisão de sentimentos quase antagônicos: o orgulho e o otimismo nacional pela vitória e a repulsa e o incômodo pelas condições absolutamente miseráveis experienciadas pela esmagadora maioria da população. Para eles, o saldo dessa colisão foi um dos mais acertados questionamentos da história: se puderam trabalhar juntos para derrotar a ameaça nazista, por que não poderiam se unir em torno da melhoria da vida de sua própria gente? O resultado está aí: o mais antigo sistema universal de saúde do mundo, maior motivo de orgulho nacional para os britânicos, defendido por todos, independentemente da posição social. Reparem que, para pensar o avanço coletivo da sociedade inglesa, a saúde foi um fio condutor. Isso porque se considerou (justamente) a saúde como algo que viabiliza nossa existência e que nos permite desempenhar toda e qualquer função, desde o trabalho até funções sociais mais amplas e de fronteira menos nítida. Em resumo, a saúde ganha status de valor social, e, como tal, algo que toca a todos.

 

Corta a cena. Brasil, ano de 1988. A Carta Magna constitui importante marco civilizatório, colocando a saúde como direito de todos e dever do Estado. Seguiu-se a implementação do Sistema Único de Saúde, atualmente o maior sistema universal do mundo em termos de população coberta. Muitas semelhanças com o sistema inglês, como o leitor já deve ter notado. Entretanto, uma grande diferença: a sociedade brasileira, ao contrário da inglesa, não se mobiliza de modo uniforme em sua defesa.

 

A origem da questão está – vejam – na memória. A construção das políticas de saúde no Brasil, até a criação do SUS, seguiu uma trajetória peculiar, na qual, por muito tempo, parcelas expressivas da população estiveram completamente desassistidas. Os serviços eram exclusividade dos empregados formais, com grande desigualdade na prestação dos serviços, a depender da categoria profissional a que se pertencesse (bem como o prestígio da dita categoria). A saúde foi se sedimentando, em consequência, como um bem posicional e, portanto, de consumo. Em resumo: uma categoria especial de mercadoria. O maior ensinamento da memória aqui parece ser que segmentar algo inerentemente humano como a saúde em nichos de propriedade de alguns grupos faz perpetuar não só a alienação na defesa do tema como pauta de interesse público, mas também as desigualdades no acesso a esse direito entre grupos distintos.

 

O leitor pode argumentar que existe uma distância abissal entre o processo de redemocratização brasileiro e o fim de uma Guerra Mundial, afirmação com a qual eu tenho parcial acordo. Entretanto, ao invés de pautar a magnitude de cada evento histórico (que não são necessariamente comparáveis), deixo a sugestão de pensar esses eventos tão somente como rupturas. Seguindo essa ordem de raciocínio e aplicando-a ao momento presente, uma pergunta pungente se revela: o que estaríamos, nós, brasileiros, esperando para tornar diferente a visão que temos do que é a saúde? Analisemos a ruptura. O país se recupera lentamente de uma gravíssima crise econômica, vivencia ainda altas taxas de desemprego e vê saltar (para além de todos os limites do aceitável) os indicadores de desigualdade. Ademais, muitos cidadãos perderam o acesso ao sistema privado de saúde e há risco iminente do crescimento de despesas catastróficas para as famílias. Vive-se um momento de rupturas em série – políticas, sociais, econômicas. É um momento a se aproveitar para questionar o que a saúde significa para nós enquanto sociedade. Muito além do ter ou não ter (plano de saúde) e usar ou não usar (o SUS), é preciso coletivizar – efetivamente – a saúde: de modo intransitivo, sem objeto direto. Algo que é de, de fato, de todos e que corta nossas vidas em absolutamente todos os momentos (inclusive quando não precisamos de nenhum equipamento de saúde, seja público ou privado).

 

O conceito de saúde da OMS (1948) fala do completo bem-estar social, físico e mental. Logo, saúde é ferramenta que nos permite o enfrentamento da vida, em toda a sua dificuldade e complexidade. Esse conceito nos provoca e desafia a pensar a forma como as cidades se organizam, a forma como lidamos com nossos trabalhos, nossos corpos. E vai além: questiona a forma como consumimos e como nos relacionamos com os territórios em que vivemos. É, per se, uma proposição disruptiva e, como tal, depende de todos e cada um para vingar enquanto ideia, além de um sistema forte e justo que a materialize.

 

O desafio de repensar diversas esferas da vida em sociedade culmina em repensar, também, a forma como fazemos políticas públicas em saúde – e por que não dizer que nos faz reconsiderar a forma como se faz (e se deve fazer) política com “P” maiúsculo?

 

A falta de saúde é democrática em suas externalidades. As consequências são para todos e talvez a maior delas seja a inviabilização de nosso progresso enquanto sociedade, colocando em risco os marcos civilizatórios arduamente conquistados até aqui. Nunca foi tão crucial nos perguntarmos onde queremos chegar quando o assunto é saúde e não devemos esperar um estado de completa devastação para começar a pensar nisso – afinal, há muita memória e oportunidade de aprendizado na forma como conquistamos a saúde universal que temos hoje. O momento é agora. No papel, a saúde é de todos e para todos. Tomemos posse dela, então, como nos ensinam os erros e acertos crivados na memória.

Helyn Thami é mestre em Gestão e Políticas de Saúde pela Universidade de Birmingham, Inglaterra e pesquisadora do IEPS. 

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A intersecção público-privada na utilização de serviços de saúde no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/01/07/a-interseccao-publico-privada-na-utilizacao-de-servicos-de-saude-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/01/07/a-interseccao-publico-privada-na-utilizacao-de-servicos-de-saude-no-brasil/#respond Tue, 07 Jan 2020 19:00:47 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/figura-1-Maíra-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=103  

Maíra Coube

Considerando a extensão da cobertura de planos de saúde privado no Brasil em conjunto com a existência de um sistema de saúde universal, espera-se que haja alguma intersecção de serviços e utilização público-privada na saúde. De um lado, estima-se que há uso de recursos complexos e caros na saúde pública por quem tem plano de saúde. Da mesma forma, é crescente a compra de serviços de saúde privados por quem não tem plano de saúde, não apenas de medicamentos, mas também de exames de diagnósticos, consultas médicas e outros tratamentos, possivelmente para mitigar a lista de espera do setor público. Mas o que os dados nos dizem?

 

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2013 contém uma grande quantidade de dados sobre a utilização de serviços de saúde nos últimos 12 meses. Ademais, os respondentes indicam se possuem planos de saúde ou não. Dessa forma, podemos extrair informações interessantes sobre o perfil e tipo de uso de diferentes grupos de usuários de saúde para investigar como se dá a intersecção público-privada de utilização de serviços de saúde. Particularmente de interesse, quem tem plano de saúde e utilizou o SUS ou quem não tem plano de saúde, mas utilizou serviços privados pagando-os diretamente, aqui nomeados como grupos de intersecção público-privado.

 

Os dados mostram uma distinção clara entre os grupos de usuários quanto à renda. A Figura 1 apresenta o perfil dos grupos de usuários de serviços de saúde por décimo de renda média domiciliar per capita entre aqueles que realizaram algum atendimento de saúde nos últimos 12 meses. Observamos que os usuários que não tem plano de saúde e utilizaram o SUS (Grupo I) apresentam renda mais baixa. No outro extremo, aqueles com plano de saúde e que utilizaram apenas o setor privado (Grupo II), apresentam renda média elevada. Já os grupos de usuários que navegam entre os sistemas público-privado (Grupos III e IV), seja utilizando os serviços do SUS mesmo tendo planos de saúde, ou utilizando o setor privado sem possuir planos de saúde, apresentam perfil de renda parecido.

 

Figura 1. Distribuição dos grupos de usuários de serviços de saúde por décimo de renda média domiciliar per capita (entre indivíduos que realizaram algum atendimento de saúde nos últimos 12 meses). Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.

 

Outro fato relevante é o volume de utilização pelos grupos de intersecção. O SUS destinou aproximadamente 10% dos atendimentos e internações para pessoas com planos de saúde, enquanto a busca pelo setor privado por aqueles sem plano representou aproximadamente 20% do volume de serviços privados. A Figura 2 mostra o volume total de utilização por esses dois grupos de usuários, Grupo III e IV. No caso do Grupo III, indivíduos que utilizaram o SUS mesmo possuindo planos de saúde realizaram 2,0 milhões de atendimentos de saúde no SUS, o que representou 10,9% dos atendimentos totais do SUS; e 940 mil internações hospitalares, ou 11,5% do total. 

 

Já o grupo IV, usuários sem plano de saúde que utilizaram o setor privado realizaram 2,6 milhões de atendimentos, o que representou 22,9% do total de atendimentos privados; e 854 mil internações hospitalares ou 21,8% do total de internações no setor privado.

 

Figura 2. Volume total de atendimentos de saúde e internações por grupo de usuários. Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.

Por que quem possui planos de saúde utiliza os serviços do SUS? O que explica o Grupo III?

Os dados mostram que há uma intersecção considerável em termos de utilização de serviços entre os setores público e privado. Por um lado, pode refletir a extensão da cobertura dos planos de saúde, levando beneficiários a buscar o SUS em situações de não cobertura ou cobertura parcial do plano (ex. vacinação, consulta odontológica). Por outro lado, também pode significar uma percepção de melhor qualidade no setor público para determinados serviços. Vejamos o que os dados nos dizem.

 

O tipo de atendimento mais utilizado no SUS por beneficiários (Grupo III) foi de consulta médica (77% dos atendimentos). Já com relação às internações hospitalares, cirurgia e tratamento clínico foram os principais motivos para beneficiários internarem no SUS (29% e 42% das internações, respectivamente). Segundo dados de ressarcimento do SUS pela ANS de 2015, hormonioterapia e hemodiálise foram os atendimentos ambulatoriais mais frequentes identificados.

Figura 3. Tipo de utilização de serviço de saúde por quem utilizou o serviço público & possui plano de saúde (Grupo III). Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.(1) Cirurgia em ambulatório; Hemodiálise, quimio, rádio ou hemoterapia; internação hospitalar; injeção, curativo ou medição pressão; consultas ACS ou parteira; Gesso ou imobilização, marcação de consulta, acupuntura, homeopatia e fitoterapia, consulta farmácia e outros.

 

Por que quem não tem plano de saúde utiliza o setor privado? O que explica o Grupo IV?

 

Na situação em que o usuário não tem plano e utiliza o serviço privado, há uma preocupação sobre o impacto do nível de gastos com despesas catastróficas como proporção da renda familiar, que pode causar uma sobrecarga orçamentária, particularmente para famílias de baixa renda. Será que as filas de espera do setor público são muito elevadas para esses procedimentos e por serem de alta complexidade e urgentes, fazem com que o usuário procure o setor privado?

 

A busca pelo setor privado por quem não tem plano foi também principalmente para realizar consulta médica (59% dos atendimentos), seguido de consultas odontológicas (12%). Com relação às internações, cirurgias e tratamentos clínicos também foram os motivos mais utilizados (38% e 30% respectivamente), mas vale destacar a alta proporção de partos cesáreos procurados no setor privado por quem não tem plano de saúde.

 

Figura 4. Tipo de utilização de serviço de saúde por quem utilizou o serviço privado & não possui plano de saúde (Grupo IV). Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Elaboração própria da autora.

 

O que os dados apresentados nos mostram? Primeiramente, que as interações e impactos da intersecção público-privada na saúde são complexos. Os usuários que acessam os dois sistemas de saúde, público e privado, nesta análise nomeados Grupos III e IV, possuem distribuição de renda parecida e parecem buscar serviços no setor público e privado por motivos similares (principalmente consultas médicas, cirurgias e tratamentos clínicos), com maior predominância da busca de partos cesáreos no setor privado por quem não tem plano de saúde. Os volumes de intersecção também são representativos, aproximadamente 10% do volume de atendimentos/internações SUS e 20% do volume do setor privado. 

 

Certamente, há muitos outros aspectos a serem investigados sobre a intersecção público-privada na utilização de serviços de saúde. Nesse primeiro olhar sobre os dados, no entanto, já é possível observar características interessantes dessa intersecção. Futuras análises poderão investigar os determinantes desta intersecção, como por exemplo, relacionados à qualidade do SUS, disponibilidade de equipamentos, leitos, profissionais de saúde, entre outras. Além disso, a próxima PNS está em produção neste ano e mostrará como evoluíram essas interações.

Maíra Coube Salmen – Doutoranda em Administração Pública e Governo, FGV-EAESP.
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Saúde e desenvolvimento econômico: ineficiências que precisam ser tratadas para o crescimento econômico no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/12/11/saude-e-desenvolvimento-economico-ineficiencias-que-precisam-ser-tratadas-para-o-crescimento-economico-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/12/11/saude-e-desenvolvimento-economico-ineficiencias-que-precisam-ser-tratadas-para-o-crescimento-economico-no-brasil/#respond Wed, 11 Dec 2019 14:16:05 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=94 Leandro Fonseca da Silva

Paul Krugman, laureado com o Nobel de economia, já disse, em uma tradução livre, que “produtividade não é tudo, mas no longo prazo é quase tudo”. De fato, a superação da baixa produtividade da economia brasileira é um dos principais desafios para a retomada do crescimento econômico e social do País de maneira sustentável. Embora o setor de saúde tenha ganhos menores de produtividade, este artigo pretende destacar sua contribuição para a economia como um todo. Ademais, sem a pretensão de esgotar o tema, o artigo também destaca três dos principais fatores de ineficiência setoriais e como eles poderiam ser tratados, promovendo o setor como um dos motores da retomada do desenvolvimento do País.  

Na medida tradicional de produtividade do trabalho – produção per capita -, estudos apontam que o setor de saúde tem menor produtividade que os demais setores econômicos. Esse fenômeno seria explicado por uma teoria chamada “doença de custos de Baumol”, segundo a qual setores intensivos em mão-de-obra, cujo ganho de produtividade depende da maior experiência profissional dos trabalhadores, acabam tendo aumentos reais de salários, o que levaria a uma elevação dos custos em maior medida do que em outros setores e, portanto, a uma menor produtividade. Todavia, o que essa abordagem não consegue captar são os benefícios intrínsecos e mais gerais que o setor de saúde provê, na medida em que contribui sobremaneira para a produtividade dos demais setores econômicos, ao manter ativa e produtiva a força de trabalho. 

Seja mostrando o crescimento do PIB em países de baixa renda por conta da redução da mortalidade, seja apurando-se o efeito no aumento do PIB por conta de 1 ano a mais de expectativa de vida populacional, diversos estudos têm apontado para o impacto transversal positivo dos gastos em saúde nos demais setores e no crescimento econômico. Ou seja, em um olhar mais macro, saúde está associada à riqueza e, portanto, países que conseguem manter ou melhorar a condição de saúde de sua população, desenvolvem seu capital humano e a produtividade de sua economia

Sem a pretensão de ser exaustivo, existem três fatores que contribuem para uma dinâmica não-eficiente do setor de saúde no Brasil a serem abordados neste artigo. O primeiro fator é o baixo nível de financiamento público em saúde, associado à segmentação entre os setores público e privado. A Constituição Federal estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, mas não proibiu a atuação de agentes privados no setor – ao contrário, garantiu, em seu art. 199, a liberdade de atuação na saúde à iniciativa privada. Formou-se então um sistema misto de saúde, no qual toda população tem direito a utilizar o sistema público de saúde e 24,2% da população também é coberta por planos de saúde privados. Há, ainda, a possibilidade de gastos “out-of-pocket”, nos quais os indivíduos contratam diretamente serviços de assistência à saúde às suas expensas. Em relação aos gastos, mais de 50% do total despendido no País com saúde é feito por entes privados, sendo que 52,8% dos gastos privados realizados por meio de operadoras de planos de saúde. Esse padrão é diferente dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, nos quais a despesa pública com saúde, em média, é de 73,4%. Assim, os resultados em saúde no Brasil tendem a ser largamente influenciados pelo setor privado de saúde, em especial pela saúde suplementar.

Importante lembrar aqui que financiamento é diferente de provisão. Mecanismos de mercado podem prover serviços de maneira mais eficiente e de melhor qualidade do que os prestados gratuita e diretamente pelo setor público. Todavia, o volume de gasto público em saúde no Brasil (em torno de 4% do PIB) é muito baixo em comparação a outros países, o que leva a dificuldades estruturantes na provisão adequada dos serviços de assistência à saúde, seja diretamente, seja por meio de contratação de prestadores privados. Por outras palavras, a remuneração dos serviços prestados no âmbito do Sistema Único de Saúde (em equipamentos públicos ou privados) não se mostra suficiente, gerando oferta sub-ótima e filas, especialmente na atenção secundária e terciária. Nesse cenário, o espaço é ocupado pelo setor privado de saúde, tanto no financiamento (essencialmente, por meio dos planos de saúde) quanto na provisão dos serviços, porém de forma descoordenada. Importante notar que a coexistência dos setores público e privado se dá de forma segmentada, ou seja, sem integração. Por exemplo, se um paciente realizar consultas ou exames no setor privado, não conseguirá acessar a atenção secundária ou terciária do SUS sem passar novamente pela atenção primária, desta vez no setor público. 

Quando analisados os resultados em saúde, constata-se a baixa performance do atual sistema segmentado. Estudo do Banco Mundial (2017), baseado em análise envoltória de dados (DEA, na sigla em inglês) orientada a produtos e insumos, na qual se utilizou quatro indicadores (anos de vida padronizados por idade e ajustados por incapacidade, probabilidade de morte entre 30 e 70 anos de idade por doenças cardiovasculares, câncer, diabete ou problemas respiratórios crônicos, porcentagem de gastos de recursos próprios sobre as despesas totais com saúde como um indicador de proteção financeira e um indicador de equidade na saúde) constatou que o Brasil, com o mesmo volume de recursos, deveria ser capaz de melhorar em nove pontos percentuais seus resultados em saúde.  

O segundo fator de ineficiência do setor de saúde no Brasil é a prevalência de um modelo assistencial fragmentado, no qual uma condição clínica é tratada por meio de diferentes episódios de cuidado, muitas vezes, por diferentes prestadores, de forma não-coordenada. Embora o setor público tenha buscado organizar a “porta de entrada” no sistema por meio da atenção primária, especialmente através da Estratégia de Saúde da Família, a realidade dos hospitais públicos e das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) demonstra que essa organização pretendida não foi alcançada. Já no setor privado, os beneficiários de planos de saúde possuem maior facilidade de acesso à rede e aos especialistas, o que se reflete em pacientes “perdidos na rede”, buscando por conta própria o diagnóstico e o tratamento adequado para seus problemas de saúde. Ademais, a já tratada segmentação entre os setores público e privado torna a trajetória do paciente entre os dois setores redundante, com repetições de consultas e exames.

No setor privado, a forma de remuneração prevalente dos prestadores de serviços de assistência à saúde (o pagamento por procedimento) reforça a fragmentação do cuidado, haja vista que cada um recebe pelo procedimento que executou dentro do que deveria ser uma linha de cuidado, não havendo vinculação com o desfecho clínico. Ademais, a fragmentação do cuidado não se relaciona apenas à redução da capacidade resolutiva, mas também à alienação dos profissionais de saúde em relação ao seu trabalho e aos resultados. Segundo MALTA et al. (2004) “na medida em que cada especialista se encarrega de uma parte da intervenção, em tese, ninguém pode ser responsabilizado pelo resultado do tratamento como um todo”. E, se ninguém pode ser responsabilizado, não é possível relacionar a remuneração aos resultados em saúde. 

Para lidar com a fragmentação dos serviços, os sistemas de saúde nos demais países têm buscado rever a estrutura de incentivos em prol da centralidade no paciente. Para tanto, algumas das principais iniciativas visam identificar os resultados em saúde que importam aos pacientes. No caso da OCDE, por exemplo, o seu Comitê de Saúde vem patrocinando a iniciativa PaRIS (Patient-Reported Indicator Surveys) que, em linhas gerais, consiste em pesquisas para construção de indicadores de saúde relatados pelos pacientes. A iniciativa visa tornar os sistemas de saúde mais centrados nas pessoas, por meio da coleta sistemática de dados acerca do que mais importa aos pacientes em função das suas condições clínicas e dos tratamentos possíveis. As medidas tradicionais de resultado em saúde em termos de sobrevivência ou mortalidade permanecerão úteis, obviamente, mas como elas não capturam outros impactos igualmente importantes para as pessoas, é preciso que os sistemas de saúde reorganizem a oferta de serviços para atenderem a essas expectativas. Pessoas diagnosticadas com câncer, por exemplo, valorizam muito a sobrevivência, todavia, o sucesso terapêutico enseja outros aspectos como controle de dor e náusea, qualidade do sono, imagem do corpo, função sexual, autonomia para realizar atividades cotidianas e tempo ausente do trabalho ou de casa. Todos esses fatores contribuem para a qualidade de vida do paciente e são também valorizados por sua família e amigos. Daí a importância de se medir resultados em saúde relatados pelos pacientes para a promoção de sistemas de saúde centrados nas pessoas.

Essa iniciativa é reflexo de movimento cada vez mais consistente no setor de saúde: a busca por um sistema que entregue resultados em saúde que realmente importam a um custo suportável. Por outras palavras, é a busca pelo aumento da produtividade do setor de saúde. Interessante notar aqui a importância das empresas contratantes de planos ou seguros privados de assistência à saúde para seus funcionários. Sendo elas a principal fonte pagadora dos planos de saúde (2/3 dos beneficiários são ligados a planos coletivos.

Embora estejam associados a um benefício coletivo, programas de promoção à saúde e prevenção de doenças não são típicos no setor privado. De fato, como há uma rotatividade elevada dos contratos coletivos empresariais (cerca de 25% ao ano, segundo dados da ANS), muitas operadoras de planos de saúde não investem nessas ações. Todavia, um colaborador que hoje está na empresa A, amanhã poderá estar na empresa B. Portanto, quanto mais as empresas contratantes passarem a demandar não apenas a cobertura assistencial em caso de doença, mas também ações em prol da manutenção da saúde, melhor a perspectiva de uma mudança no modelo assistencial vigente e maior o benefício coletivo para a sociedade. 

Ao contrário do Japão, no Brasil, a atuação das empresas contratantes de planos de saúde é incipiente na conformação dos serviços de assistência à saúde. Ao se entenderem como cogestoras da saúde da sua população, as empresas podem e devem demandar a reorganização dos serviços em prol do desenvolvimento de centros de excelência que melhor atendam às condições clínicas mais prevalentes. Portanto, atentar para indicadores de resultados de saúde relatados pelos pacientes contribui, não apenas para formuladores de políticas públicas, mas também para os atores privados, no sentido de readequarem estratégias e suas organizações em prol de um sistema de saúde que entregue valor para a sociedade.

O terceiro fator de ineficiência, embora também seja visto em outros setores econômicos, é particularmente deletério no setor de saúde: a longa sobrevida dos ineficientes. A permanência dos ineficientes no setor de saúde decorre, entre outros fatores, de uma série de proteções legais e regulatórias, além de cultura prevalente de se evitar impactos de curto prazo em detrimento de melhora nos incentivos, na assistência à saúde e no ambiente de negócios no longo prazo (cultura prevalente também no Judiciário). Na legislação da saúde suplementar, por exemplo, a substituição de prestadores na rede de uma operadora é restrita e os contratos devem conter obrigatoriamente previsão de reajuste, o que, em grande medida, protege os ineficientes. 

No caso das operadoras de planos de saúde, a legislação setorial veda a aplicação da lei de falências e estabelece uma série de regimes especiais que podem ser instaurados pelo órgão regulador (a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS), como instâncias de recuperação ou de saída ordenada do mercado. Na prática, contudo, a saída ordenada de uma operadora que se encontra em dificuldades econômicas não é comum. A experiência ao longo do tempo demonstrou que, quando uma operadora entra em desequilíbrio econômico-financeiro, a solução desejável via mercado (i.e., aquisição da carteira ou do controle societário por outra operadora com melhor situação econômica) usualmente não ocorre. Torna-se situação comum que os melhores contratos vão migrando da operadora que está em dificuldades para uma ou mais operadoras que competem com ela e estão em melhores condições econômicas de prover os serviços de assistência à saúde. Isso decorre, essencialmente, do risco de sucessão tributária e trabalhista, que desincentiva solução desejável via mercado. 

Em suma, o setor de saúde tem o potencial de contribuir muito mais para o desenvolvimento do Brasil e se tornar, portanto, um dos motores para a retomada do crescimento econômico. Embora muitos dos desafios setoriais sejam vistos em outros países, existem diferenças em termos de padrões epidemiológicos, disponibilidade de recursos e organização do sistema que caracterizam o sistema de saúde no Brasil. Este artigo abordou de forma não-exaustiva três dos principais fatores de ineficiência que comprometem o desempenho setorial. O primeiro fator, o baixo nível de gasto público em saúde, associado à segmentação entre os setores público e privado, tem gerado resultados em saúde insatisfatórios. O segundo fator é a prevalência de um modelo assistencial fragmentado, no qual uma condição clínica é tratada por meio de diferentes episódios de cuidado, muitas vezes, por diferentes prestadores e de forma não-coordenada. E o terceiro fator, embora também seja visto em outros setores econômicos, é particularmente deletério no setor de saúde: a longa sobrevida dos ineficientes. 

Em linhas gerais, no que tange à longa permanência dos ineficientes, há que se fazer advocacia da concorrência e um aprimoramento do arcabouço jurídico/regulatório de forma a viabilizar soluções de mercado que promovam uma saída ordenada dos ineficientes. No que diz respeito à fragmentação do modelo assistencial, propõe-se foco na geração de valor em saúde para os pacientes (ou seja, na relação entre os resultados em saúde e os custos para entrega de tais resultados) e maior engajamento das empresas contratantes de planos de saúde para provocar maior velocidade na mudança do modelo de cuidado em saúde praticado. Já com relação ao baixo nível de gastos públicos, além de rediscussão de prioridades orçamentárias, há que se avançar também em maior integração público-privada, otimizando-se os recursos existentes por meio da viabilização de vasos comunicantes na assistência prestada nas duas esferas, de forma a reduzir desperdícios e entregar serviços de saúde com mais qualidade no tempo adequado.

Leandro Fonseca da Silva é Diretor-Presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)

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O custo e o modelo da saúde que desejamos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/25/o-custo-e-o-modelo-da-saude-que-desejamos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/25/o-custo-e-o-modelo-da-saude-que-desejamos/#respond Mon, 25 Nov 2019 20:00:45 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/money-2724241_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=87 Rodrigo Lopes

 

As empresas da área da saúde vêm trabalhando nos últimos anos em mudanças para reduzir e dar maior previsibilidade aos seus custos. O modelo fee for service, utilizado atualmente, foi importante para incorporar e oferecer medicina de qualidade para um grande número de cidadãos. Mas há praticamente um consenso entre fontes pagadoras, prestadores de serviço e usuários de que uma revisão é essencial, para garantir a sustentabilidade e o crescimento de todo o setor.

 

A tecnologia é considerada um dos pilares essenciais para resolver esse desequilíbrio. Mas, em muitos casos, tem sido aplicada para gerar demandas que nem sempre apresentam relação custo-benefício equilibrada. Esse é um dos pontos que tem levado a um custo cada vez mais elevado, sem o ganho real e efetivo esperado pelo paciente.

 

Por outro lado, vivemos um momento único em que a tecnologia, quando bem aplicada, contribui para o desenvolvimento da medicina. Os avanços são relevantes, com melhores desfechos, períodos menores de internação ou predições que contribuem para agilizar diagnósticos e tratamentos, além de reduzir custos, por meio de inteligência cognitiva e gestão de dados. Esta é uma realidade que veio para ficar e tende a ampliar o seu uso de modo promissor, em benefício de instituições, profissionais e pacientes.

 

Cabe aos players do setor, portanto, decidir onde investir e qual tipo de desenvolvimento e tecnologia serão utilizados.

 

O mesmo acontece com o modelo de assistência, hoje centrado no hospital e na doença. E aqui temos visto que a inovação pode ir além da tecnologia, quando esses mesmos players buscam não apenas novos modelos de remuneração, mas iniciativas de promoção e prevenção da saúde que melhoram a qualidade de vida dos pacientes, a efetividade do cuidado e, consequentemente, a redução de custos.

 

Esse movimento também acontece no caso das empresas. É crescente o número de programas corporativos baseados no atendimento primário de funcionários e seus familiares. O acompanhamento integral do paciente, com equipe multidisciplinar, dentro dos moldes do médico de família, tem proporcionado melhor gestão do cuidado e redução da sinistralidade.

 

O paciente tem sido trazido à posição de protagonista. Isso vale tanto para a promoção quanto para a prevenção, com o objetivo de detectar antecipadamente doenças crônicas, como cardiopatias, diabetes e outras, além de quadros oncológicos, cujos tratamentos tornam-se mais eficazes quando identificados precocemente.

 

Esses conceitos impactam na expectativa do aumento de vida que observamos nas últimas décadas – e para o qual o modelo de saúde vigente deu grande contribuição. Mas, no momento em que o País se debruça sobre reformas importantes, como a da Previdência, para garantir o pagamento de benefícios às futuras gerações, precisamos também pensar no desafio que representa o atendimento em saúde para uma população que cresce e envelhece a cada ano.

 

O modo como viveremos e os custos que teremos com a saúde no futuro passam, necessariamente, pelo modelo de assistência que adotamos e pelo cuidado que recebemos ao longo de nossa vida. O protagonismo dessa mudança deve vir dos players e profissionais da área e também das empresas, que têm um papel relevante a desempenhar quando falamos da qualidade de vida e da saúde de cada funcionário e cidadão.

 

Rodrigo Lopes é CEO do Grupo Leforte

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SUS representa avanço civilizatório https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/11/sus-representa-avanco-civilizatorio/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/11/11/sus-representa-avanco-civilizatorio/#respond Mon, 11 Nov 2019 20:00:39 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/health-1294825_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=78 Carlos Ocké

 

Saúde é democracia, democracia é saúde. Esse é o legado do movimento da reforma sanitária brasileira. A defesa dos pressupostos constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS) em torno da universalidade, integralidade, equidade e participação social é indissociável do alargamento da democracia e da garantia das demandas populares.

 

Saúde é democracia

 

Mostra-se contraditório apoiar o SUS e a política de austeridade fiscal, em especial a eliminação do mínimo da saúde na união, estados e municípios, posto que a combinação do teto da despesa primária com o congelamento do piso no nível de 2017, introduzido pela Emenda Constitucional 95, já vem reduzindo em termos reais per capita o montante aplicado nas ações e serviços públicos de saúde do governo federal – agravando as condições epidemiológicas, ampliando a desigualdade de acesso e não corrigindo os vazios assistenciais.

 

É também contraditório defender o SUS e as supostas medidas racionalizadoras para sua gestão: ser eficiente não significa cortar recursos financeiros e organizacionais, como querem o Banco Mundial e o Ministério da Saúde. Pelo contrário, para melhorar, sem abrir mão da segurança, qualidade e eficácia da atenção à saúde, seriam necessários mais recursos.

 

Finalmente, é contraditório apoiar o SUS e a desregulação do mercado de planos, pois o Estado precisa ampliar sua capacidade regulatória, refreando a internacionalização e financeirização. Caso contrário, empregadores e trabalhadores continuarão sendo penalizados com o aumento de preços dos planos individuais e empresariais. Isso quando as famílias não são expulsas com a perda da “poupança” feita durante seu ciclo de vida, situação dramática para doentes crônicos e idosos. Esse quadro exige fortalecer a regulação, em oposição ao novo projeto de Lei de regulamentação (“pay-per-view”), que radicaliza a segmentação dos planos, razão pela qual é criticado por sanitaristas, consumidores e prestadores médico-hospitalares.

 

Setor privado ineficiente

 

A literatura aponta que esse mercado apresenta características econômicas específicas: demanda inelástica; oferta cria a própria procura; informações assimétricas e externalidades produzidas pelos bens públicos não favorecem o predomínio da lógica de mercado na alocação dos recursos.

 

Baumol destaca o fenômeno da “doença dos custos”, a tendência de custos e preços crescentes no setor, indicando que o trabalho se relaciona de forma diferente com a produção: no setor de bens, o trabalho estaria incorporado ao produto; nos serviços, o trabalho seria o produto sendo trocado, dificultando a substituição de fatores.

 

Apesar do progresso técnico incorporado ao processo de trabalho e à organização dos serviços de saúde, as possibilidades de avanço da produtividade são restritas em relação às demais atividades econômicas, pois, ao se observar o tratamento individual como produto dos serviços, a expansão do conhecimento médico e a certificação da efetividade poderiam significar a dedicação de mais tempo de trabalho por unidade de produção.

 

A combinação desses fatores, longe de justificar o reajuste de preços, antes denuncia a ineficiência do mercado: para que os planos não se tornem inacessíveis, dado o subfinanciamento crônico do SUS, o Estado os subsidia por razões políticas de legitimidade, dada a cobertura do mercado formal de trabalho.

 

É alarmante que, entre 2000 e 2018, o aumento de preços dos planos tenha se descolado da inflação: a taxa acumulada dos planos individuais e do IPCA foram, respectivamente, 382% e 208%. Essa trajetória não pode ser explicada fora da dimensão institucional: depois da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, sua captura e o descontrole de preços dos planos empresariais produziram um laissez-faire regulatório, favorecendo a alta dos preços.

 

Subsídios inequitativos

 

O Brasil é o único país com mais de 200 milhões de habitantes com sistema universal de saúde. Entretanto, interesses privados corroem o financiamento público, conduzindo a círculo vicioso caracterizado pela queda do investimento no SUS. Promulgado na Constituição de 88, o sistema teve sérias dificuldades para se consolidar nos últimos 30 anos, porém o mercado recebeu incentivos governamentais, que patrocinam o consumo de bens e serviços de saúde.

 

Alguns países oferecem incentivos aos contribuintes, mediante a redução de impostos, para o consumo de planos. Esse gasto tributário é imposto não recolhido, é gasto público indireto. O Brasil segue essa tendência, pois os gastos com planos de saúde, profissionais de saúde, clínicas e hospitais podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar – para pessoa física e jurídica –, reduzindo a arrecadação do governo federal. Tal renúncia acaba subtraindo recursos do SUS, os quais poderiam incrementar sua qualidade e cobertura.

 

Em 2017, os planos contaram com R$ 16,5 bi, que poderiam ter sido alocados na Estratégia de Saúde da Família e no Programa Mais Médicos, bem como na atenção secundária (exames, consultas especializadas e cirurgias eletivas). Esse subsídio correspondeu a mais de 5 vezes o que foi gasto com o Mais Médicos (R$ 3 bi) e a aproximadamente 85% do gasto com atenção básica do Ministério (R$ 19 bi).

 

A renúncia pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas, ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência. No Brasil, três questões surgem, entretanto, na atual conjuntura: (i) a renúncia seria canalizada para o SUS ou abateria o déficit primário?; (ii) quem mais se beneficia é a classe média, mas o fim do subsídio não poderia pressionar o SUS?; (iii) para combater as desigualdades não seria mais justo tributar agora os mais ricos para estimular a economia e recuperar o padrão de financiamento das políticas sociais?

 

Democracia é saúde

 

Pobreza, desigualdade e violência pressionam o SUS, que, por sua vez, se vê ameaçado pela crise econômica, ajuste fiscal e desregulação dos mercados. Nesse quadro, saídas tecnocráticas para resolver iniquidades setoriais podem, paradoxalmente, produzir mais irracionalidades.

 

Além desse nó górdio, a recente proposta de mudança no critério de rateio das transferências de recursos da atenção primária pode colocar o SUS em risco nos municípios. Com o retorno de doenças evitáveis e a proliferação das arboviroses, quais seriam as consequências sobre as condições de saúde da população com o fim do Piso de Atenção Básica (PAB) fixo? Segundo a Rede de Médicas e Médicos Populares, a Estratégia de Saúde da Família está sendo completamente descaracterizada nessa mudança, apesar da sua contribuição à redução das taxas de mortalidade infantil, das internações por condições sensíveis à atenção primária e dos gastos hospitalares.

 

Em suma, Sérgio Arouca proclamou que a democratização da saúde promovida pela Constituição de 88 representou verdadeiro avanço civilizatório. As forças políticas democráticas deste país não podem abrir mão desse valor, sob pena de inviabilizar a sustentabilidade econômica de um sistema de saúde universal e de qualidade para todos os brasileiros.

 

Carlos Ocké é economista, doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e pós-doutor pela Yale School of Management.

 

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Planos de saúde planejam “Mundo Novo” perverso para seus pacientes https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/10/23/planos-de-saude-planejam-mundo-novo-perverso-para-seus-pacientes/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2019/10/23/planos-de-saude-planejam-mundo-novo-perverso-para-seus-pacientes/#respond Wed, 23 Oct 2019 21:55:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/beach-15712_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=56 Teresa Liporace

Marilena Lazzarini

 

Em artigo publicado em julho pela Folha de S. Paulo, o jornalista Elio Gaspari revelou a existência de um anteprojeto à lei dos planos de saúde que era gestado pelas operadoras. O documento intitulado “Mundo Novo” consiste em aumentar os lucros das operadoras dos planos de saúde retirando direitos dos usuários, reduzindo a regulação e a fiscalização aplicável às empresas, reduzindo a carga tributária para o setor e dificultando o ressarcimento ao SUS (Sistema Único de Saúde). Em resumo, um ataque ao direito do consumidor e ao sistema de saúde brasileiro. 

Sob a justificativa da perda de clientela e dificuldades enfrentadas pelo setor nos últimos anos, o cerne da proposta é aumentar os seus ganhos financeiros, oferecendo planos mais baratos, com cobertura menor, visando a recuperar a parcela de consumidores que saiu desse mercado justamente pelas dificuldades econômicas, seja a falta de emprego ou o acúmulo de dívidas. 

Efetivamente, os dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) confirmam que houve uma queda de cerca de três milhões de usuários dos planos de saúde. Aliás, a absoluta maioria de segmentos empresariais foi e ainda está sendo afetada pela profunda crise econômica que assola este país nos últimos anos. Porém, as operadoras conseguiram compensar sua perda cobrando mais, via reajustamento de mensalidades, cobrindo as despesas assistenciais e mantendo seus lucros inalterados. 

Como se verifica nas informações da própria ANS, em 2017, a margem de lucro líquido das operadoras do segmento médico-hospitalar permaneceu estável. Em 2018, o resultado líquido, conforme apresentado pela publicação “Prisma Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar”, mostrou sensível crescimento. 

Segundo os dados anuais da Agência, as contraprestações efetivas das operadoras de planos de saúde somaram o montante de R$ 197,43 bilhões no ano de 2018, já as despesas assistenciais totalizaram R$ 161,46 bilhões. Na comparação com as informações de 2017, as receitas cresceram cerca de 9%, enquanto as despesas subiram em torno de 7%. 

Ainda assim, mantendo ou aumentando os seus lucros, as operadoras querem ampliar suas vantagens. E quem deve sofrer as consequências é o consumidor. 

A proposta, que está sendo chamada “pay-per-view”, vai limitar os atendimentos a procedimentos e consultas mais simples, deixando de fora ou abrindo caminho para cobranças abusivas de tratamentos de doenças mais complexas, como câncer, doenças cardíacas, entre outras. Esses planos também afetarão a relação médico-paciente uma vez que, como planos muito segmentados, deve haver restrição a procedimentos, exames e até monitoramento profissional. É um “mundo novo” perverso e eivado de enganosidade.

Se pretende atrair esse segmento de cidadãos em dificuldade financeira com planos de cobertura reduzida e baixos valores de mensalidades, sem a menor preocupação com os impactos negativos para os indivíduos e famílias no momento do adoecimento, quando terão que recorrer ao SUS ou arcar com gastos catastróficos para custear doenças ou tratamentos não cobertos pelo plano adquirido.

Em vigor desde 1998, a lei dos planos de saúde fixa as garantias mínimas de atendimentos aos consumidores e não permite a segmentação de planos. Pela lei, há uma lista mínima de exames e terapias obrigatórias que deve ser ofertada. 

As normas do Código de Defesa do Consumidor se aplicam ao mercado de saúde suplementar, entendimento que já foi inclusive pacificado na Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa tem sido a única opção de milhares de consumidores lesados pelas operadoras, lamentavelmente. E a judicialização só aumentará se tal proposta se concretizar. É preciso manter os direitos conquistados. 

Teresa Liporace é Diretora Executiva do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC)

Marilena Lazzarini – Presidente do Conselho Diretor do IDEC

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