Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Cuidados adequados e personalizados para o câncer de mama https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cancer_mama-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=558 Vilmar Marques de Oliveira

 

O preconceito e a desinformação ainda são obstáculos para as mulheres – e para toda a sociedade – em relação ao câncer de mama. O estigma em torno de uma doença que pode ser grave e afeta diretamente um dos maiores símbolos da feminilidade atrapalha de várias maneiras: desde o deixar para depois a realização de exames que deveriam ser periódicos até barreiras emocionais que, uma vez feito o diagnóstico, impedem que essa mulher seja protagonista no seu tratamento.

O agravante é que o câncer de mama é uma doença complexa. Existem diferentes perfis de tumor e momentos específicos, que envolvem diferentes decisões. Outra questão é o acesso às opções de tratamento e a própria adesão à conduta escolhida, considerando tratar-se de uma doença tempo-dependente e que não espera nada, nem ninguém, para progredir. Ela é mais rápida ou mais lenta a depender das características que se apresentam em cada caso.

Por isso é que se fala em jornada da paciente com câncer de mama. Uma mulher que é única e tem uma história só sua, mas que deve e pode buscar os cuidados mais adequados e personalizados para o seu perfil. É certo que, nesse caminho, desinformação e prejulgamento fragilizam. Mas diálogo, conhecimento, autocuidado e rede de apoio efetiva, seja de familiares, amigos, colegas de trabalho e mesmo da equipe de saúde, contribuem para a vida antes, durante e depois do câncer. Uma vida que pode ser plena.

Esse olhar coletivo sobre o câncer de mama como um tema de interesse de toda a sociedade é fundamental para a efetivação e o aprimoramento das políticas públicas relacionadas à linha de cuidado da patologia (rastreamento, diagnóstico e tratamento), bem como à navegação das pacientes no sistema de saúde. Embora tenhamos importantes leis aprovadas e um sistema público e universal, ainda há muito a avançar para salvar um número maior de mulheres.

O câncer de mama é o mais frequente entre as brasileiras, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), e ainda causa a morte de 20 mil mulheres todos os anos. A estimativa de novos casos para 2021 é de aproximadamente 66 mil. Embora seja rastreável desde o início a partir da mamografia de rastreamento, o diagnóstico precoce permanece ocorrendo bem menos vezes do que nos estágios avançados da doença.

A ciência vem fazendo a sua parte. O planejamento adequado logo após o diagnóstico, associado ao melhor tratamento para o perfil da paciente, permite gerenciar o câncer de mama com maior probabilidade de cura ou controle. Sendo ou não invasivo, as chances de cura são elevadas (aproximadamente 95%) quando a detecção ocorre em fase precoce. Cada vez mais a medicina entende as alterações genéticas nas células que originam e caracterizam os tipos de tumores, conhecimento este que possibilita tratamentos mais adequados e eficientes, que muitas vezes associam terapias antes e/ou após a cirurgia, a depender de cada caso.

Para ilustrar a relevância deste conhecimento, podemos citar as pacientes com um biomarcador específico, chamado HER2+. Mulheres cujos tumores apresentam esta mutação podem se beneficiar de terapias direcionadas a essa alteração em diferentes etapas da doença. Quando diagnosticado em estágio inicial, o tratamento correto, no momento mais adequado, pode, inclusive, resguardar pacientes com alto risco de recorrência da doença de evoluir para um estágio metastático, aproximando-as da cura.

Por exemplo, mulheres que precisam iniciar o tratamento antes da cirurgia, pelo fato de terem tumores maiores e/ou linfonodos comprometidos, com o intuito de aumentar suas chances de cura e possibilitar uma cirurgia conservadora, podem ainda apresentar células tumorais no momento da cirurgia, o que indica um risco maior de recorrência. Por isso, essas pacientes precisam de um tratamento de resgate após a cirurgia, para então reduzir as chances de progredir para cenários metastáticos. Todo esse planejamento terapêutico personalizado, feito pela equipe que acompanha a paciente, é essencial para garantir que cada pessoa receba o tratamento mais adequado de acordo com as características do seu tumor.

Não poderia finalizar este texto sem esclarecer, também, que qualquer mulher pode ter câncer de mama. A maioria dos tumores – 90% – não têm origem hereditária. São fatores de risco a alimentação de má qualidade, a ausência de atividade física regular, o excesso de peso, a exposição a hormônios (estrogênios), o tabagismo e o uso excessivo de bebidas alcoólicas, entre outros.

Contudo, não é possível precisar a causa da doença e, por isso, precisamos de uma nova mentalidade. Ao mesmo tempo em que é necessário adotar medidas preventivas que combatam esses fatores de risco – e quanto antes, melhor –, devemos evitar que essa mulher que apresenta o câncer de mama se sinta culpada.

Diante disso, são essenciais movimentos como o “Vem Falar de Vida”, que disseminam informações de qualidade sobre o tema, reverberam ações de múltiplos signatários unidos por esse propósito e fortalecem a mensagem de que o câncer de mama não precisa ser sinônimo de fracasso, de morte ou de mutilação. Existem meios para que cada vez mais histórias de mulheres sejam transformadas. Discutir o acesso a eles é responsabilidade de todos nós.

 

Dr. Vilmar Marques de Oliveira é Chefe de Clínica Adjunto do Hospital da Santa Casa, Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e atual presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.

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Quem está na porta de entrada dos serviços de saúde mental? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/#respond Wed, 18 Aug 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/GettyImages-1266600929-web-conferência-SUS-800-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Helyn Thami e Maria Fernanda Quartiero

 

Precisamos focar no treinamento, provisão e capacitação de trabalhadores da atenção primária e de outros níveis de atenção para oferecer cuidados na perspectiva da saúde integral

 

Imagine a seguinte situação: uma pessoa vai a um serviço público de saúde se queixando de dor no peito e é encaminhada ao cardiologista sem que sequer tenha sido questionada sobre seu estado de saúde mental. Não é difícil de imaginar, certo? 

Um dos desafios no campo da saúde mental no Brasil é integrar os cuidados em saúde psíquica à perspectiva da saúde integral. Sabemos que muitas manifestações físicas, como na situação imaginada, podem estar relacionadas à ansiedade, depressão e outros sintomas de sofrimento mental. Pode ser, por exemplo, diante da atual crise, fruto de angústia relacionada a processos de luto ou ao desemprego. Acolher e encaminhar usuários sem levar em conta a sua saúde mental, apesar de ser prática rotineira, é prejudicial à perspectiva de cuidados integrais, como preconizado no sistema de saúde brasileiro. 

A hipótese descrita acima é apenas um dos exemplos possíveis de práticas de cuidado que invisibilizam e negligenciam a saúde mental como parte indissociável da saúde como um todo. Somos um só: ou, como se diz popularmente, “corpo e mente estão sempre conectados”. Por isso, os serviços de atendimento devem incluir os aspectos físicos e mentais na avaliação e no tratamento, e desenvolver soluções adequadas para cada indivíduo. 

Para tal, há que se reformular os currículos de formação de todas as categorias profissionais da saúde para incluir abordagens humanizadas e que levem em conta questões estruturais que ajudam a produzir o adoecimento –emprego, renda, acesso a serviços básicos e outros. Essas abordagens precisam dialogar, fazer parte de uma estratégia geral de cuidado que o potencialize –nas ações preventivas e curativas. É importante que diagnósticos e soluções sejam elaborados a partir da análise interdisciplinar dos profissionais envolvidos, desde a assistência social até as especialidades biomédicas. Para isso, o processo de escuta qualificada também é imprescindível: os profissionais de saúde precisam ouvir para entender a trajetória dos usuários e absorver as especificidades de cada um. 

Outra reflexão importante é o quanto a rede de saúde e a formação profissional ainda privilegiam o atendimento a pessoas com condições psicossociais agravadas, negligenciando a promoção da saúde, a prevenção e o acolhimento das primeiras manifestações de sofrimento, que muitas vezes poderiam ser tratadas sem o uso de medicação e sem necessidade de cuidados especializados, por exemplo.

Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) entre 2012 e 2013, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. Mas quando falamos de saúde mental não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, especialidades comumente associadas à ela: precisamos exercitar um olhar mais ampliado para entender quem é o “Recurso Humano” da saúde mental. 

Por exemplo, uma revisão de literatura mostra que um grande desafio que se descortina para a consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil é a integração entre a atenção primária e a rede de atenção psicossocial. Isso significa que os recursos humanos para uma adequada provisão de cuidado em saúde mental não estão confinados a poucas categorias profissionais, mas dizem, sim, respeito a toda uma gama de pessoas que compõem o sistema de saúde. 

A melhor prática para consolidar essa integração é por meio do matriciamento: os profissionais especializados devem estabelecer espaços de troca e trabalho compartilhado com as equipes da atenção primária, aumentando a resolutividade desta e garantindo o ganho de capacidades desse nível de atenção a médio e longo prazos. Essa prática, inovadora e desafiadora, pode ser considerada contra hegemônica e ainda incipiente nos programas de formação de profissionais de saúde.

Se é preciso entender as transversalidades do tema para criar soluções adequadas para os usuários, é necessário levar isso em conta também nos processos de formação de profissionais de outras áreas da saúde e, inclusive, de outros setores, como educação, cultura, segurança pública e sistema de justiça. Afinal, a saúde mental permeia toda a nossa vida. Família e comunidade também são peça chave para trabalhar essa perspectiva de escuta ampliada, engajar atores fundamentais no processo terapêutico e capilarizar ainda mais o cuidado com a saúde mental. Um bom exemplo de como oferecer atenção em saúde mental na comunidade é o Banco da Amizade no Zimbabwe.

Não podemos esquecer a supervisão e o acompanhamento desses profissionais. As práticas e cuidados em saúde mental não são estáticas, elas se renovam e se aperfeiçoam junto com  necessidades do público atendido. Por isso a capacitação em saúde mental não se esgota em nível de formação ou cursos pontuais. Ela precisa ser contínua e promover a perspectiva de empoderamento de cada pessoa – inclusive dentro do próprio mundo do trabalho. 

O cuidado não-multiprofissional na saúde mental –que não considera a interface entre as áreas de cuidado– impede o uso eficiente dos recursos públicos disponíveis no sistema de saúde. Por isso, o investimento em mais capacitação em saúde mental para uma gama mais vasta de profissionais pode ser uma solução custo-efetiva para avançar nesse campo, considerando a estrutura que o Brasil já tem. Por meio delas seria possível um olhar mais atento a sinais precoces e fatores de risco para o sofrimento mental.

Nesse ponto, um desafio adicional é a desigualdade de investimento e de provisão de profissionais entre as áreas da saúde, especialmente considerando as categorias mais especializadas. Dados do estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil mostram que o nível da assistência prestada regionalmente não tem como ser a mesma em um contexto em que o número de psicólogos por habitante do Pará (estado com menor oferta) é 4 vezes menor do que o mesmo parâmetro no Distrito Federal (estado com maior oferta) –isso considerando serviços do SUS e da saúde suplementar. Se a proporção de psicólogos fosse balanceada em todo o território nacional, o processo assistencial e matricial poderia ser mais efetivo. 

Além disso, há uma concentração muito grande nas capitais quando comparadas a outros municípios no país: 3 a cada 10 psicólogos estão nas capitais; já entre os psiquiatras essa proporção é de 4 a cada 10. A referência para psiquiatria no Brasil é de 5,8 psiquiatras a cada 100 mil habitantes e essa distribuição é bastante desigual no território, conforme se vê no quadro abaixo:

 Região

Psiquiatras

Psicólogos

Norte 1,09 18,44
Nordeste 2,59 25,02
Sudeste 5,81 41,61
Sul 6,13 48,88
Centro-Oeste 3,97 40,26

Assim, percebemos que existem desafios importantes a serem superados para efetivar uma atenção em saúde mental que seja concreta  e integrada. Primeiro, é preciso entender a saúde mental como parte da saúde geral, sem fragmentação. Segundo, é preciso entender que, para que coloquemos em prática as melhores ações de cuidado, a formação profissional precisa mudar. Terceiro, temos que potencializar os recursos já disponíveis e fortalecer o aprendizado contínuo, mesmo (e talvez principalmente) dentro dos próprios serviços. Não menos importante, é preciso combater as desigualdades de provisão de profissionais no território nacional.

Tudo isso se conecta para organizar o processo de cuidado de acordo com cada necessidade e aproveitar os recursos humanos do sistema para ampliar o acesso a um cuidado em saúde adequado, incluindo a saúde mental, sempre respeitando a lógica da integralidade, que é um princípio fundante do Sistema Único de Saúde (SUS). 

No caso da pessoa da nossa situação hipotética com dores no peito, tem-se uma demanda para psiquiatra, psicólogo, médico da família ou ambos? Como outras áreas, caso da assistência social ou da comunidade escolar, no caso de crianças e adolescentes, poderiam ajudar nesse processo? A distribuição e o compartilhamento dessa responsabilidade de forma estratégica  é fundamental para o sucesso dos cuidados em saúde mental. Considerando as desigualdades e a defasagem de recursos humanos e financeiros no SUS, a qualificação contínua, mudança de paradigma de formação e a consolidação do matriciamento podem ser um bom caminho para melhorar o sistema.

 

Helyn Thami é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

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Não é efeito pandemia: saúde mental já era um problema de saúde pública e a conta é de todos nós https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/#respond Wed, 14 Jul 2021 10:00:41 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terapia-de-casal-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O debate público sobre sofrimento psicológico pode ser recente, mas os dados alarmantes sobre o tema não são, e precisamos assumir a responsabilidade coletiva desse problema.

 

Não dá mais pra fugir do assunto: saúde mental entrou em pauta de forma irreversível e em caráter de urgência devido à crise desencadeada pela pandemia de Covid-19. As taxas de ansiedade, depressão, insônia, síndromes de esgotamento mental e outros sintomas de sofrimentos psíquicos aumentaram drasticamente e a saúde mental virou assunto cada vez mais comum em nossas conversas no trabalho, com a família e amigos, em instituições de ensino e na internet. 

É inegável que as medidas de isolamento social intensificaram o processo de adoecimento da população, mas é um equívoco tratar o colapso na saúde mental como um fenômeno recente.  Estamos arcando com as consequências de anos de desatenção nesse campo. O debate público sobre a saúde mental pode até ser atual, mas os dados alarmantes sobre sofrimentos psíquicos não são. Para enfrentar essa questão, agora emergencial, precisamos antes de tudo reconhecer que esse é um desafio antigo, que já afetava milhões de brasileiros havia muito tempo –e admiti-lo como um problema de saúde pública

Antes do novo coronavírus já vivíamos uma pandemia de violência e uma crise socioeconômica que afetava a saúde mental de todos os brasileiros. Ainda em 2019 o Brasil foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o país mais ansioso do mundo, com mais de 18 milhões de pessoas acometidas, o que representa mais do que toda a população da região norte. Também já éramos o quinto país mais depressivo, um salto de 34% em relação aos dados de 2013. Esses dados nos levam à compreensão de que saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é também resultado da complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida das pessoas. Por isso é fundamental trabalhar essa pauta em interface com outras agendas sociais, considerando as interseccionalidades do tema. 

Até hoje, as políticas públicas de promoção e prevenção em saúde mental foram tímidas e limitadas para enfrentar um problema dessa dimensão, e atravessado por questões estruturais e com muitas especificidades. O direito à alimentação saudável e adequada, à moradia, saneamento básico, trabalho, educação, transporte, lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais são fatores determinantes e condicionantes para a efetivação do direito à saúde. Por isso, não podemos optar por soluções isoladas, que não considerem as abordagens mais adequadas para cada pessoa.

 

Interseccionalidades e soluções individualizadas 

Como um problema de saúde pública, o cuidado com a saúde mental é uma tarefa coletiva, que precisa direcionar esforços do poder público, sociedade civil e ciência. Por esse motivo o debate não pode ficar restrito aos profissionais que atuam diretamente nos serviços de atendimento. É preciso fortalecer a perspectiva de saúde integral para que o sistema seja mais efetivo na oferta de tratamentos de saúde mental que sejam associados a outras especialidades da saúde integral e que considerem questões estruturais nos diagnósticos –analisar os adoecimentos físicos e mentais  em conjunto para, então, cuidar de forma integral. 

A dimensão do sofrimento é comum a todas as pessoas e não é mensurável em nível individual. Em uma sociedade extremamente desigual, os sofrimentos psíquicos podem até ser os mesmos (ansiedade, angústia, solidão), mas afetam cada indivíduo com base na introjeção da realidade material de cada um –por isso precisamos considerar questões estruturais. Nesse cenário, as minorias sociais são particularmente afetadas, como por exemplo as mulheres com alta sobrecarga doméstica —48% delas apresentam prevalência de transtornos mentais comuns. Em mulheres com baixa sobrecarga essa taxa cai para 22,5%, o que indica que aspectos referentes ao trabalho doméstico devem ser considerados e incorporados à avaliação da saúde mental das mulheres

Na prática, pessoas em situação de vulnerabilidade social são ainda mais suscetíveis ao adoecimento mental, pois têm muito mais restrições no acesso aos serviços de saúde — tanto os de prevenção como os de tratamento–, além da negação e da violação de outros direitos básicos. Nesse sentido, compreendemos que o sofrimento é uma condição da natureza humana. O sofrimento é “democrático”, mas o acesso aos cuidados desses sofrimentos não –é socialmente determinado.

Por isso precisamos atuar não só no tratamento dos sintomas, mas também criar soluções individualizadas de cuidado com base na reflexão sobre as questões estruturais que intensificam o processo de sofrimento a alguns grupos sociais. E fazer isto promovendo o acesso aos meios de elaboração do sofrimento psíquico, aos serviços de saúde integral e a outras condições necessárias para a saúde mental de todas as pessoas. Individualizar, porém, não significa personalizar atendimentos caso a caso, mas sim propor alternativas adaptadas que considerem as diferenças individuais. As soluções de saúde mental têm que ser consistentes e segmentadas em seus públicos. 

 

Então de quem é a responsabilidade pela saúde mental? 

São muitos os desafios no campo da saúde mental e só poderemos superá-los em rede e articulando diferentes setores. Especialmente em idades precoces, os sofrimentos psíquicos têm consequências que podem se estender ao longo do ciclo vital, comprometendo também a vida adulta ativa e saudável e gerando fragilidades tanto para o indivíduo quanto para famílias e comunidades. 

Crianças e adolescentes não se informam sobre saúde mental, mas leem os cuidadores e espelham seu comportamento em outros espaços sociais, então quanto mais ansiosa nossa sociedade estiver, mais as futuras gerações estarão. Como será o desenvolvimento e o futuro de uma criança ou adolescente para os quais não abordamos preventivamente a saúde mental? Como iremos lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) profundamente agravada entre adolescentes devido à pandemia? 

Por isso é fundamental que gestores, educadores, orientadores e assistentes sociais, em interface com profissionais de saúde, tenham à disposição ferramentas e recursos para lidar com a saúde mental em ambientes escolares e também que recebam acompanhamento terapêutico para terem condições de exercer essas atividades de cuidado. As pessoas não passam a se cuidar só porque alguém está dizendo que é preciso, nem mesmo aquelas que trabalham cuidando dos outros – é um processo de médio e longo prazo em práticas de cuidado em saúde mental, um investimento que dá trabalho e tem que ser sistêmico. 

 

Saúde mental: esse desafio deve ser compartilhado em rede

A epidemia vai passar, mas deixará traumas e sintomas de estresse pós-traumático para gerações inteiras, que terão que aprender a arcar com a conta da saúde mental a longo prazo. Ao dar luz aos sofrimentos psíquicos e falar sobre isso em ambientes públicos e privados, vamos descobrindo estratégias individuais e coletivas para promoção e prevenção em saúde mental, com a criação de autonomia, de oportunidades que capacitem cada pessoa a fazer escolhas e que permitam a sua participação como protagonista do seu cuidado.

Podemos fazer desse desafio uma oportunidade de enfrentar um problema antigo e urgente, além de melhorar nossa capacidade de articulação e colaboração trabalhando de forma coordenada em prol da saúde mental. Precisamos nos articular em rede, envolver mais atores estratégicos e acionar outros serviços e setores para que o direito à saúde mental seja efetivado e essa discussão ultrapasse os muros dos órgãos de saúde. Para isso, precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de tratar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. 

A essa altura é fundamental destacar que, apesar de a responsabilidade ser compartilhada, não podemos criar barreiras de ação na tentativa de encaixar as estratégias nesse campo em “caixinhas”, de forma setorizada, ministerial ou mesmo temática. Precisamos coordenar nossos esforços e entender que olhar para a saúde mental das mulheres, por exemplo, não é responsabilidade exclusiva dos órgãos e projetos de saúde, nem apenas das relacionadas à saúde mental, tampouco unicamente de entidades de direitos das mulheres. Se ficarmos nessa perspectiva podemos deixar vácuos de atuação justamente nos públicos mais vulneráveis, atravessados por uma série de questões interseccionais, como educação, trabalho, moradia etc. 

No Instituto Cactus, organização com atuação focada em saúde mental, especialmente de mulheres e adolescentes, trabalhamos para contribuir com esse imenso desafio de reunir esforços e para traçar caminhos de atuação em saúde mental no Brasil. Em nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, publicado em maio em parceria com o Instituto Veredas, destacamos a necessidade de priorização de políticas públicas de saúde mental, que devem ser monitoradas por meio de iniciativas como análise da situação, avaliação de serviços com indicadores, formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental, além da integração de dados e prontuários em sistemas digitais de regulação e referenciamento e elaboração de estudos de implementação, com apoio e orientação para análise de cenários.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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Saúde mental: o que é, por que não falamos tanto sobre isso, e por que deveríamos falar mais? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/#respond Wed, 30 Jun 2021 10:00:29 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Colunas_PandemiaTerapia_060421_FatCameraGettyImages-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Uma infinidade de conceitos surge quando se fala em saúde mental. Eles nos remetem à presença ou à ausência de uma doença, ou então ao mais completo bem-estar. Podemos pensar, ainda, em saúde mental sob o ponto de vista do indivíduo, ou dando ênfase ao contexto coletivo, social e suas complexidades.

Essas definições às vezes se complementam, em outras se opõem, mas não refletem necessariamente a complexidade da saúde mental e sua profunda integração com outros temas sociais como educação, trabalho e sistemas de saúde. A saúde mental não é só inexistência de doença e também não deveria ser uma expressão para designar “vida perfeita”. Também não é apenas sinônimo de bem-estar, leveza e despreocupação, sob o risco de cairmos em uma situação de positividade tóxica, em que estaríamos rejeitando a tristeza e outras emoções entendidas como negativas. Saúde mental também não pode ser vista apenas sob a perspectiva do indivíduo e suas questões genéticas e biológicas, negligenciando os diversos componentes sociais, estruturais e de comunidade que a influenciam.

Saúde mental é parte fundamental da saúde do nosso organismo. Do nosso funcionamento biológico e psicológico. Do nosso corpo pessoal e também social. Nesse sentido, ela está relacionada à forma como cada pessoa lida com seu entorno, seus desafios cotidianos e as transformações da vida. É o resultado de uma complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva, a educação, as violências e o acesso ou falta de bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária.

 

Abordagens falhas e estigmas dificultam o debate sobre Saúde Mental

Muitas vezes por incompreensão do tema e falta de informação qualificada, a narrativa da saúde mental na nossa sociedade não faz jus à centralidade que ela efetivamente ocupa.

Atualmente, em média,  menos de 2% dos orçamentos públicos de saúde são alocados para a saúde mental globalmente, sendo que a situação é ainda pior em países de baixa e média renda, como o Brasil, em que se gasta menos de USD 2 per capita no tratamento e prevenção de transtornos mentais, comparado com um investimento de USD 50 per capita em países de alta renda.

Em termos de investimento social privado, apenas 4% do total de R$2,5 bilhões de investimento social privado no Brasil em 2019 foram destinados à saúde e esporte, bastante abaixo do que seria necessário para intervenções estruturais no campo.

Além da desinformação, barreiras culturais, financeiras e estruturais também são relevantes, como o estigma, a descrença no tratamento e o insuficiente treinamento das equipes de atenção básica para lidar com o assunto.

Outro fator de destaque é a falta de dados e indicadores atualizados sobre saúde mental –o último levantamento nacional abrangente do tema se deu em 2015, não tendo sido atualizado desde então, o que dificulta um entendimento robusto da situação. Estudos epidemiológicos são de fundamental importância para determinar um panorama assertivo da saúde mental, e para podermos compreender melhor os determinantes sociais da saúde mental, trabalhar abordagens preventivas, priorizar a alocação de recursos, e obter insumos importantes para o planejamento adequado das políticas públicas.

 

Por que é preciso falar mais sobre Saúde Mental?

Os impactos econômicos e sociais dos problemas de saúde mental estão associados a consequências negativas que afetam a sociedade como um todo, abrangendo a redução de mão de obra qualificada, o desemprego, a falta de moradia, a morte prematura, o impacto na educação, a oneração do sistema público de saúde, entre outros.

Recentemente, um levantamento colocou as doenças mentais –como os transtornos depressivos e os transtornos de ansiedade–  como a categoria com maior fardo global de doenças no que diz respeito aos anos vividos com incapacidade (YLD), representando 32,4% do total de anos. Já em termos de anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs), que consideram tanto os YLD quanto as mortes prematuras relacionadas à doença (YLL), as doenças mentais representam significativos 13% do total de anos, percentual equivalente às doenças cardiovasculares e circulatórias.

Para além dos desafios existentes na vida dos indivíduos relacionados à carga global de doença, existe um crescente reconhecimento de que a falta de atenção dada à saúde mental reflete diretamente em custos financeiros relevantes. Dados do Fórum Econômico Mundial estimam que de 2010 até 2030 haverá perdas econômicas globais de USD 16 trilhões atribuíveis aos transtornos mentais, neurológicos e por uso de substâncias, o que representa mais de 10 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2020.  Estimativas da pesquisadora Sara Evans-Lacko, da London School of Economics, mostram que no ambiente de trabalho o Brasil perde USD 78 bilhões com a queda de produtividade. Além disso, o “burnout” é uma das maiores causas de absenteísmo e representa de 20% a 50% das causas de “turnover” nas empresas. No que diz respeito à educação, pesquisas das “national academies” de ciências, engenharia e medicina dos Estados Unidos revelaram que a evasão escolar de estudantes com problemas de saúde mental chegava a 43% a 86%, enquanto que um dos primeiros estudos a investigar a relação entre saúde mental e evasão escolar, feito por pesquisadores do Canadá, revelou que estudantes com depressão têm duas vezes mais chance de deixar a escola comparado com seus pares sem quadros depressivos.

Concluímos que é  imprescindível refletir na narrativa da saúde mental a mesma centralidade que ela já ocupa na nossa sociedade, nos nossos lares, corporações e vidas pessoais. Precisamos falar abertamente sobre isso,  de forma clara e articulada, e redirecionar investimentos públicos e privados para essa causa. Nessa encruzilhada, a promoção e a proteção da saúde mental devem estar em primeiro plano, sendo indispensável a avaliação contínua das políticas implementadas, de modo a adaptar a oferta e o cuidado com a saúde mental às demandas do momento e do contexto.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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Recursos humanos e doenças crônicas no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/#respond Tue, 22 Jun 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/20200826185253802642o-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=426 Agatha Eleone e Helyn Thami

 

É em países de renda baixa ou média, caso do Brasil, que ocorrem 80% das mortes por doenças crônicas, segundo a Organização Panamericana de Saúde.  Nesses países, 30% das mortes ocorrem prematuramente –abaixo dos 60 anos de idade. As doenças crônicas são um grande fator de estresse para os sistemas de saúde e para o desenvolvimento econômico. A literatura é contundente ao mostrar, também, a importância das áreas de recursos humanos (RH) no desempenho do cuidado oferecido aos portadores de doenças crônicas.

Apesar da relevância do tema, o Brasil parece caminhar na contramão dos fatos. Recentemente, com o lançamento do Previne Brasil, o novo modelo de financiamento da APS (Atenção Primária em Saúde), o Nasf-AB (Núcleo Ampliado de Saúde da Família), e que complementava as equipes da Atenção Primária com profissionais de diversas categorias, teve seu financiamento suspenso. Assim, municípios e estados que quiserem manter o provimento dessas equipes multidisciplinares terão de custeá-las com recursos próprios, uma opção complexa em meio à crise vivida pelos entes subnacionais. 

Se existe espaço para se discutir os desafios de gestão e provisão dessas equipes multidisciplinares no contexto brasileiro, é um risco não termos direcionamento e coordenação nacionais para garantir que categorias profissionais diversas integrem permanentemente o sistema. O cuidado não-multiprofissional para as condições crônicas é um cuidado falho –e esse último impede o uso eficiente dos recursos disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde). 

Ademais, há um outro desafio: o manejo adequado das doenças crônicas no sistema público requer conhecimento sobre as diretrizes, princípios, protocolos e políticas setoriais do tema do próprio SUS, o que ainda é um gargalo no Brasil. Os modelos predominantes de disseminação de novos protocolos parecem não levar em conta a complexidade de se alterar comportamentos de profissionais de saúde de modo eficaz. O compartilhamento de novos guias clínicos por e-mail ou aplicativos de mensagens instantâneas, por exemplo, não é suficiente para garantir adesão aos procedimentos-padrão. 

Estudos mostram que os verdadeiros fatores que determinam a consolidação de diretrizes clínicas são experiência clínica pessoal e preferências pessoais (no nível individual) e participação no desenho do protocolo, treinamento e existência de mecanismos de controle (no nível organizacional). Considerando o exposto, é crucial que municípios desenvolvam metodologias mais ativas, bem como mecanismos de controle, para garantir a correta adesão aos protocolos preconizados. 

Em relação à dificuldade dos entes públicos em garantir implantação e permanência de profissionais (principalmente médicos) nos serviços, pode-se dizer que os principais motivos de desinteresse pelas áreas de Saúde da Família e Atenção Primária — que são de suma importância na prevenção a fatores de risco e doenças crônicas — têm sido relacionados frequentemente à baixa remuneração e às oportunidades de carreira e de formação oferecidas. Há uma intensa desmotivação e “desprestígio” vinculados a essa área de atuação, que resultam do modelo de atuação que enaltece o acompanhamento de doenças isoladas ao invés de sujeitos complexos. 

Tal modelo opera na lógica da chamada ‘queixa-conduta’, preconizando a execução de procedimentos, diagnósticos e prescrições, em detrimento do acolhimento e do cuidado para a promoção da saúde. Ainda, leva profissionais da saúde à percepção (equivocada) de que o perfil técnico científico de outras especialidades é maior ou superior que o da APS e retarda o aprimoramento dos currículos dos cursos nas áreas da saúde do brasil, que até hoje pouco estimulam o interesse e conhecimento nas áreas de saúde pública e saúde coletiva.

Outro gargalo para o bom cuidado aos portadores(as) de condições crônicas é a atuação integrada de uma rede variada de serviços de saúde. Para que essa rede opere em harmonia, existem fatores ligados aos Recursos Humanos que não podem ser ignorados. Um exemplo é o desenvolvimento de “lideranças de integração” — figuras que estudam liderança na perspectiva de unir e pactuar conjuntamente metas de resultados para um conjunto de serviços diferentes –, que recebe pouca ênfase no contexto brasileiro, mas que se provou relevante em sistemas de saúde mundo afora.

As condições crônicas permanecem sem resposta adequada pelo fato de os sistemas de saúde operarem de modo fragmentado e voltado para as condições agudas ou agudizadas de condições crônicas, isto é, para doenças já em estágio de agravamento ocasionados por ausência ou falha no cuidado preventivo. Atrelados a isso, existem problemas estruturais de interlocução da rede que contribuem ainda mais para essa fragmentação e que, se executada da forma adequada, favoreceria o trânsito do usuário dos serviços de saúde e garantiria a continuidade das ações e serviços. Na prática, um cidadão adequadamente referenciado ou que foi buscado ativamente por atores dos serviços estaria menos propenso a padecer por condições crônicas de saúde.

A disponibilidade de equipes de saúde que contem com profissionais de formação adequada para atuar na APS é um dos principais fatores para garantir o cumprimento das diretrizes do SUS. Dessa maneira, é preciso que o setor público se planeje para lidar com os desafios de um mundo onde a longevidade aumenta, juntamente com a prevalência desse tipo de condição, e isso passa por repensar diversos pontos da gestão de RH. É necessário, portanto, formular estratégias inovadoras para captação e capacitação, executando um plano robusto e sustentável de formação voltada para a APS, além de pensar em ações que possibilitem maior interesse pela área e a consequente implantação de profissionais em territórios vulnerabilizados, reduzindo as barreiras de acesso aos serviços de saúde.

 

Agatha Eleone e Helyn Thami são pesquisadoras de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

 

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Abolição inconclusa e a ausência de saúde da população negra no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/13/abolicao-inconclusa-e-a-ausencia-de-saude-da-populacao-negra-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/13/abolicao-inconclusa-e-a-ausencia-de-saude-da-populacao-negra-no-brasil/#respond Thu, 13 May 2021 10:00:15 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/merlin_182376720_df146130-b7ca-4cba-bb28-894b51053058-jumbo-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=385 Iara Rolnik, Jéssica Remédios, Thales Vieira e Maria Letícia Machado

 

Em mais um 13 de maio, lembramos a data da sanção da lei que, há 133 anos, determinou o fim da escravatura no Brasil. Ao contrário do que sugere o termo abolição, a data deve ser lembrada pelas desigualdades e violências a que segue submetida a população negra brasileira — 56% da população do país. A ideia de abolição inconclusa reflete um processo de construção de cidadania inacabado e que  continua operando a lógica da escravidão e seus efeitos perversos, visíveis na forma como negras e negros vêm sendo mantidos em condições de desumanidade até os dias atuais.

A desumanização é central para pensarmos sobre as condições de saúde da população negra. Somente ocupa um lugar de proteção social aquele que partilha de humanidade e somente é um sujeito de direito aquele que é digno de vida. Portanto, pensar em um sistema de proteção à vida que seja equitativo passa, necessariamente, pela restituição das representações simbólicas de humanidade para a população negra.

A falta de reconhecimento das pessoas negras como sujeitos de direitos informa como as políticas públicas foram e são construídas no Brasil. O movimento negro, além de denunciar, há décadas, um genocídio em curso — seja por vias diretas por meio da brutalidade policial, seja pela precarização contínua e sistemática das condições de vida — reconstrói e articula soluções.

Segundo dados de 2019 da Pesquisa Nacional de Saúde, 76% das pessoas que dependiam exclusivamente dos serviços da rede SUS para prevenção, tratamento e reabilitação eram negras. Com o aumento dos autodeclarados pretos e pardos nos últimos anos, tudo indica que ainda sejam a maioria dos usuários do SUS. Entretanto, a entrada da população negra na agenda de políticas públicas de saúde é recente e ocorreu a partir da atuação organizada do movimento negro.

Desde a década de 1980, mulheres negras debatem o campo da saúde, principalmente, sobre saúde sexual e reprodutiva. A pauta da saúde da população negra ganhou maior projeção em 1995 após a Marcha Nacional Zumbi dos Palmares, quando mais de 30 mil pessoas foram à Brasília em protesto contra o racismo. Após anos de muito trabalho e alguns marcos fundamentais, em 2006, integrando membros do movimento negro em seu interior, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Um de seus princípios básicos é a afirmação de que o enfrentamento às iniquidades raciais caminha em consonância com a universalização do direito à saúde.

A despeito de passados quinze anos de sua aprovação, apenas 193 municípios brasileiros (3% do total) adotaram a  PNSIPN. O elemento comum e constitutivo desses entraves passa, essencialmente, pelo racismo estrutural que opera como elemento basilar fora e dentro da própria política. De acordo com Jurema Werneck, o racismo institucional impossibilita que os serviços sejam ofertados com equidade, existindo  desde a falta de acesso até a discriminação direta.

É importante salientar que, à luz dos determinantes sociais da saúde, os processos de saúde-doença de uma pessoa não podem ser entendidos apenas como decorrências naturais daquele corpo, mas são, antes de tudo, uma materialização das condições de vida a que aquela pessoa é submetida.

O relatório de 2018 sobre Desigualdades Sociais do IBGE destaca que 64,2% dos negros estavam desocupados, que 12,5% da população negra residia em domicílios sem coleta de lixo e que 42,8% não possuía esgotamento sanitário. Fazer saúde passa, portanto, por políticas de emprego, cotas nas universidades e cargos públicos, saneamento básico, educação infantil, direito à alimentação e moradia digna. Ter saúde quer dizer ter bem estar físico, mental e social e não somente ausência de doenças.

O princípio de operar nessa lógica estão definidos na PNSIPN e passam, necessariamente, por (i) qualificar os registros de saúde com raça/cor; (ii) ampliar  e intensificar a agenda de pesquisas em saúde da população negra; (iii) formar e qualificar continuadamente gestores, profissionais e usuários do SUS para criar um ambiente antirracista; (iv) instituir processos de monitoramento e avaliação consistentes e (v) promover a participação da sociedade civil.

Em 2017, passou a ser obrigatório o preenchimento do quesito raça/cor em todos os formulários do SUS com vistas a possibilitar o diagnóstico das desigualdades de saúde e as razões de adoecimento dos diversos grupos étnico-raciais. Seria algo a comemorar se os dados fossem atualizados e tivessem completude considerável. No entanto, ao analisar os 132 bancos de dados do DATASUS, apenas 58,3% têm a variável raça/cor. Em contrapartida, indicadores de enfrentamento ao racismo na área da saúde foram incluídos nas Pesquisas de Informações Básicas Municipais (MUNIC) e Estaduais (ESTADIC) do IBGE.

As diferentes formas e instâncias de controle social por parte da sociedade civil, por sua vez, têm um papel essencial na reorientação do SUS para efetivação dos seus princípios e superação das desigualdades raciais em saúde. Em tempos de pandemia, a experiência negra em território brasileiro é evidenciada no que há de mais cruel e no que há de mais potente. É justamente pela força e experiência acumulada de sobreviver em cenários hostis, que o movimento negro se mobiliza para minimizar esses impactos, seja através de ações assistenciais diretas, seja na reinvindicação pela implementação das políticas públicas.

Quinze anos depois da criação da PNSIPN, são os mesmos atores políticos que seguem na incansável luta. Urge a necessidade, sobretudo em tempos de crise na saúde, de criar ambientes em que organizações sociais, institutos e fundações construam pactos para garantir a visibilidade para o tema, gerar a efervescência do campo e pressionar os setores públicos para a efetivação desta agenda, fazendo com que o SUS cumpra a sua missão de universalidade.

 

Iara Rolnik, Diretora de programas do Instituto Ibirapitanga.

Jéssica Remédios, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Thales Vieira, Gestor de portfólio do programa Equidade racial do Instituto Ibirapitanga.

Maria Letícia Machado, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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O impacto da velocidade do trânsito no SUS: é possível desacelerar o uso de UTIs e evitar mais este desastre https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/o-impacto-da-velocidade-no-transito-no-sus-e-possivel-desacelerar-o-uso-de-utis-e-evitar-mais-este-desastre/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/o-impacto-da-velocidade-no-transito-no-sus-e-possivel-desacelerar-o-uso-de-utis-e-evitar-mais-este-desastre/#respond Mon, 12 Apr 2021 10:00:30 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/legislacao-001-1024x540-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=364 Pedro do Carmo Baumgratz de Paula e Dante Diego de Moraes Rosado e Souza*

 

Ao longo do último ano, e especialmente nas últimas semanas, nos acostumamos a acompanhar a porcentagem de ocupação das unidades de terapia intensiva (UTIs) em todo o Brasil. Ficamos assustados quando há 80% de ocupação, deixando pouco espaço para pacientes adicionais, já que os surtos de COVID-19 continuam em cidades e estados.  Vemos as limitações e o colapso de nossas estruturas de saúde quando muitas partes do país atingem 100% de ocupação dos leitos das UTIs.  

Mas e se você soubesse que rotineiramente, todos os anos, aproximadamente 60% dos leitos de UTI são ocupados por pessoas gravemente feridas no trânsito? Com o número de vítimas de trânsito de volta aos níveis pré-pandêmicos, mesmo ultrapassando as taxas anteriores em certos lugares, a necessidade de agir nunca foi tão clara e urgente: precisamos enfrentar nosso problema da violência no trânsito para reduzir as mortes e os ferimentos evitáveis e para aliviar a sobrecarga do nosso sistema de saúde. 

O Conselho Federal de Medicina vem alertando sobre este problema e seus custos há anos, muito antes da pandemia. O número estimado de mortes no trânsito por ano no mundo é de 1,35 milhões, sendo 40.000 mortes somente no Brasil, de acordo com a média dos últimos anos. Milhares de outros ficam feridos, necessitando de cuidados tanto a curto como a longo prazo. Com 19,7 mortes por 100 mil pessoas no trânsito, o Brasil possui um risco relativo maior do que a média global. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a velocidade como um fator de risco em particular que está quase sempre presente em colisões. A alta velocidade aumenta tanto a probabilidade quanto a gravidade de uma colisão. Ao reduzir, ou melhor, “readequar” a velocidade em 5%, podemos reduzir as fatalidades em até 30%.  

Os limites de velocidade das vias devem ser definidos em função dos tipos de usuários que utilizam o espaço. Por exemplo, são necessárias velocidades mais baixas em áreas próximas às escolas, onde as crianças e seus cuidadores provavelmente estarão andando. No momento em que um motorista excede o limite de velocidade, ele está colocando outros usuários das vias, e ele mesmo, em um alto risco de morte no caso de uma colisão. 

As altas velocidades são perigosas porque causam um efeito de estreitamento no campo visual do motorista, ou visão periférica, que prejudica a percepção da presença de pedestres, de outros usuários da via e mesmo obstáculos que nela se encontram. Isto resulta em reações retardadas em situações de emergência. As altas velocidades também exigem maiores distâncias para frear, limitando as alternativas para evitar uma tragédia. 

Para parar um veículo que circula a 60 km/h, por exemplo, são necessários mais de 35 metros, o que pode não ser suficiente para evitar que um pedestre seja atropelado. A 40 km/h, a distância necessária é de 20 metros, e a colisão poderia ser evitada, por exemplo. Por esses e outros motivos se diz que as mortes no trânsito são evitáveis. Elas decorrem de escolhas feitas pelos condutores de veículos, pelos demais usuários da via, pelo Poder Público e pela sociedade em geral. 

No ano passado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) reconheceu a terminologia “sinistros” como mais apropriada para uso em referência ao que anteriormente chamávamos de “acidentes” – um termo que permitia interpretações errôneas. Dizer “acidente” sugere que mortes e ferimentos no trânsito são eventos fortuitos e imprevisíveis – uma concepção errônea quando quase todas as mortes no trânsito são evitáveis. 

As consequências de um sinistro causado por excesso de velocidade podem ser trágicas. Um estudo realizado pela Comissão Nacional de Segurança Viária do Chile compara o impacto de um veículo sobre o corpo de uma pessoa em velocidades diferentes com a queda livre de um edifício. No caso de uma colisão a 70 km/h, o dano causado ao corpo humano seria equivalente à queda do sétimo andar de um edifício, deixando poucas chances de sobrevivência. Se o veículo estiver viajando a 50 km/h, os danos à vítima seriam menos graves, mas ainda assim semelhantes a uma queda do quarto andar. 

É baseada nesta evidência que a OMS recomenda a velocidade máxima em vias urbanas para 50 km/h em avenidas e 40 ou 30 km/h em ruas locais e residenciais. E o que poderia ser mais importante do que preservar uma vida? Ao adotar métodos comprovados e baseados em dados para evitar sinistros de trânsito, podemos aliviar a carga que nossos sistemas de saúde enfrentam no tratamento de vítimas de sinistros, desenvolvendo estratégias que atuam em múltiplas frentes no gerenciamento da velocidade. Especialmente durante a pandemia da COVID-19, vemos o valor de cada leito hospitalar. 

Ainda que tenhamos muito a melhorar, o Brasil tem ótimos exemplos de iniciativas voltadas a tornar suas vias mais seguras. Na cidade de São Paulo, a política de gestão de velocidades foi objeto de intenso debate público, no entanto teve seu sucesso consolidado. Iniciada em 2011 e aprofundada em 2015, a readequação das velocidades nas vias de São Paulo culminou com a padronização da velocidade máxima de 50km/h em todas as vias arteriais da cidade, um importante avanço no tema. Essas velocidades reduzidas ajudaram a diminuir em 36% as mortes entre 2014 e 2019, passando de 1.249 mortes para 791.   

Em outro caso notável, Fortaleza vem implementando uma política progressiva para ajustar a velocidade em avenidas com altas taxas de morte e ferimentos. A primeira avenida a receber este novo tratamento de velocidade tinha o maior índice de atropelamentos de pedestres da cidade e em apenas um ano registrou uma redução de 63% neste tipo de ocorrência. Além da nova limitação de velocidade, baseada em dados, um trabalho articulado de fiscalização e comunicação facilitou a compreensão das comunidades vizinhas sobre a urgência da medida. A capital do Ceará reduziu a taxa de mortes em 51,7% nos últimos 10 anos e alcançou a meta da ONU para a “Década de Ação para a Segurança Viária (2011-2020)”. Entre 2015 e 2020, a cidade salvou cerca de 750 vidas. 

É verdade que abordar a velocidade sozinha não resolverá completamente nossa crise de sinistros de trânsito. Outros fatores de risco também levam a colisões e mortes, como beber e dirigir. Mas em tempos de pandemia, quando cada leito em uma UTI é crítico, é importante reconhecer esta questão como uma prioridade de saúde pública. Não há dúvida entre os especialistas e pesquisadores de que a gestão das velocidades é crucial e de que nossos profissionais de saúde seriam mais capazes de se concentrar no tratamento de pacientes da COVID-19 ou na identificação e tratamento de outras doenças se os sinistros de trânsito de fossem evitados.  

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*Pedro de Paula é Diretor-Executivo da Vital Strategies no Brasil. Pedro é advogado formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestre em Direito Econômico e Economia Política pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente é Doutorando. Também leciona na faculdade de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Foto de Perfil: https://vital.box.com/s/urujs1jw2jepd3fkj5tr75qup375vpve

Contato: pcbpaula@vitalstrategies.org

 

*Dante Rosado é Coordenador Executivo da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global. Engenheiro Civil e Mestre em Engenharia de Transporte pela Universidade Federal do Ceará, atua na área de segurança viária há 17 anos.

Foto de Perfil: https://vital.box.com/s/rgdc10aw5acsb68f4ciu1udda5cj2ssb

Contato: dante@bigrs.org

 

**A Vital Strategies é uma organização global de saúde que acredita que todas as pessoas devem ser protegidas por um forte sistema de saúde pública. Trabalhamos com governos e a sociedade civil em 73 países, incluindo o Brasil, para projetar e implementar estratégias baseadas em evidências que abordam seus problemas de saúde pública mais prementes. Nosso objetivo é ver os governos adotarem intervenções promissoras em escala o mais rápido possível. Para saber mais, visite vitalstrategies.org ou no Twitter siga @VitalStrat.

 

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Combatendo os efeitos colaterais da pandemia: como uma ideia do Chile pode ajudar a reduzir a obesidade infantil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/05/combatendo-os-efeitos-colaterais-da-pandemia-como-uma-ideia-do-chile-pode-ajudar-a-reduzir-a-obesidade-infantil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/05/combatendo-os-efeitos-colaterais-da-pandemia-como-uma-ideia-do-chile-pode-ajudar-a-reduzir-a-obesidade-infantil/#respond Mon, 05 Apr 2021 10:00:49 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/unnamed-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=348 Macarena Carranza, Carolina Morais Araujo e Arthur Aguillar

 

Se a obesidade infantil já era um dos maiores desafios de saúde pública antes da pandemia – em 2019, mais de 338 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar apresentavam sobrepeso, segundo a OMS -, as restrições sociais e a degradação econômica decorrentes da COVID-19 devem agravar o problema. 

Estudos recentes mostram que a suspensão das escolas tem levado à diminuição da atividade física e ao aumento do consumo de alimentos ultraprocessados entre crianças e adolescentes. Diante da pandemia, a Organização Mundial da Saúde aumentou a quantidade de exercícios físicos sugerida para um indivíduo manter-se saudável, de 150 para 300 minutos.

A obesidade infantil também tem crescido no Brasil nas últimas décadas. Segundo o SUS (Sistema Único de Saúde), 28,1% das crianças entre 5 e 9 anos acompanhadas pela Atenção Primária à Saúde em 2019 tinham excesso de peso. Dessas, 13,2% apresentavam obesidade. 

Como enfrentar este problema? No Brasil, há avanços importantes, como o Guia Alimentar para a População Brasileira, que se tornou referência mundial. No ano passado, o senador Jaques Wagner (PT-BA) também apresentou um projeto de lei que proíbe a venda de alimentos e bebidas ultraprocessados em escolas. 

Santiago, capital do Chile, tem testado o jogo como solução. Desde 2017, uma competição amigável entre escolas encoraja crianças e adolescentes a adotar atividades físicas e comer alimentos saudáveis.     

O Chile tem uma das maiores taxas de obesidade do planeta. Mais da metade das crianças em Santiago é obesa ou tem sobrepeso, e apenas 20% das crianças chilenas entre 9 e 11 anos são fisicamente ativas. Famílias de baixa renda, com menor acesso à alimentação saudável e a espaços adequados para a prática de atividades físicas, são as mais afetadas. 

Em 2018, a cidade lançou o projeto Juntos Santiago. Turmas de estudantes entre 10 e 12 anos participam de uma espécie de jogo de tabuleiro em uma plataforma online, em que visitam pontos turísticos e culturais da cidade e participam de competições para adotar hábitos mais saudáveis. Os desafios incluem jogos coletivos para estimular a atividade física, inclusão de alimentos saudáveis nas lancheiras e propostas de atividades em família nos finais de semana. 

As turmas somam pontos, passam de fase e, no final do ano, as escolas mais engajadas recebem prêmios, como mesas de pingue-pongue, paredes de escalada ou equipamentos esportivos. Com esta ideia, Santiago foi uma das cinco cidades latino-americanas ganhadoras em 2016 do prêmio Mayors Challenge, da Bloomberg Philanthropies, uma competição entre governos municipais para apoiar cidades a desenvolver ideias ambiciosas e replicáveis para enfrentar os desafios urbanos.

Participantes de Juntos Santiago em atividade do projeto em 2019 (Fonte: Bloomberg Philanthropies)

Até o início da pandemia, quase 7 mil estudantes de 49 escolas já haviam participado do projeto Juntos Santiago. “Eu emagreci, antes estava com sobrepeso. Agora estou muito envolvido com esportes e como muito mais salada”, diz o estudante Angel Barrientos, 11 anos. Sua mãe, Melvy Cardoso, notou a mudança dos hábitos de toda a família. “Como família, estamos mais unidos em torno da comida saudável e da atividade física. Ele pedala de bicicleta, eu vou atrás.” 

Os resultados positivos do projeto também foram comprovados em uma avaliação de impacto, realizada em 2018 com mais de 2.000 estudantes. Segundo o estudo, os participantes reduziram seu IMC (Índice de Massa Corporal) em 0.42 kg/M2, em média. A quantidade de alimentos saudáveis que os estudantes levaram à escola aumentou 24 pontos percentuais, e a atividade física cresceu 4%. Em média, o programa preveniu um ganho de peso de 860g por participante.

Com a pandemia e o fechamento das escolas, o projeto migrou para a internet. Em 2020, a Universidade San Sebastián, parceira de Juntos Santiago, desenvolveu a plataforma “Juntos Santiago Em Casa”, aberta à comunidade escolar, com vídeos, jogos e atividades para fomentar autocuidado, saúde mental, atividade física, higiene e alimentação saudável durante o confinamento. Quando as escolas reabrirem, o projeto será retomado de maneira híbrida, com atividades on-line e presenciais.

Plataforma “Juntos Santiago Em Casa”, desenvolvida durante a pandemia (Fonte: Universidade San Sebastián

A iniciativa de Santiago é um exemplo da mudança de olhar que todos os governos que vivem a transição epidemiológica para uma maior incidência de doenças crônicas precisam realizar: cuidar da saúde e não da doença, e prevenir antes de remediar. 

 

Macarena Carranza é diretora do projeto Juntos Santiago e professora da Faculdade de Ciências para o Cuidado da Saúde da Universidade San Sebastián, no Chile

Carolina Morais Araujo é consultora de gestão pública da Delivery Associates

Arthur Aguillar é coordenador de políticas públicas do IEPS

 

*Caso tenha interesse em saber mais sobre o projeto Juntos Santiago, acesse juntossantiago.cl ou encasa.juntosstgouss.cl/ e escreva para macarena.carranza@uss.cl  

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A experiência do estado do Espírito Santo na gestão da saúde – 2015/ 2018 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/02/a-experiencia-do-estado-do-espirito-santo-na-gestao-da-saude-2015-2018/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/02/a-experiencia-do-estado-do-espirito-santo-na-gestao-da-saude-2015-2018/#respond Tue, 02 Mar 2021 10:30:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/gear-1015715_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=338 Ricardo de Oliveira

O objetivo desse artigo é registrar a experiência de quatro anos na implantação da política pública de saúde no Estado do Espírito Santo e, assim, contribuir para o debate sobre formas de melhorar o atendimento de saúde no nosso país. A principal conclusão é que o SUS funciona, embora precise de melhorias. O atual enfrentamento da pandemia do coronavírus pelo SUS provou a todos a enorme vantagem de um país possuir um sistema público e universal de saúde como o nosso.

O SUS enfrenta hoje desafios de financiamento, de reformulação de seu modelo de atenção à saúde e de reorganização da sua gestão. Apresento a seguir um resumo do nosso planejamento, das estratégias e dos projetos que desenvolvemos nesse período para enfrentar esses problemas.

A primeira providência foi realizar o planejamento da secretaria iniciando com um diagnóstico da situação assistencial, financeira e organizacional. Identificados os problemas principais, formulamos as estratégias e os projetos necessários para implantá-las. É importante ressaltar que, apesar da enorme crise financeira, foi definida prioridade para a saúde de forma que essa área teve o maior orçamento, entre todas as secretarias, nesse período de governo.

Considerando o diagnóstico da prestação de serviços de saúde, o planejamento definiu três objetivos estratégicos para melhorar a prestação desses serviços: acesso aos serviços, qualidade dos serviços e qualificação da gestão.

O objetivo era ampliar o acesso, qualificar o atendimento e a gestão, sendo a qualificação da gestão a garantia para que se mantenha uma permanente melhoria na prestação de serviços de saúde para a população e o fortalecimento do papel de liderança da Secretaria Estadual de Saúde (SESA) no SUS estadual.

Para alcançar esses objetivos, foram definidas sete estratégias finalísticas e de gestão:
1 – Ampliar a oferta por meio de novos serviços e do aumento da eficiência dos atuais: “mais leitos, mais consultas e exames”;

2 – Aprimorar a qualidade do atendimento assistencial com maior transparência na regulação do acesso;

3 – Melhorar o conforto dos cidadãos no acesso aos serviços de saúde: perto de casa, humanizado, redução do prazo para atendimento, e ambiente adequado;

4 – Melhorar a resolutividade da Atenção Primária à Saúde (APS) e da Atenção Ambulatorial Especializada (AAE);

5 – Integrar os 3 níveis de atenção à saúde: APS, AAE e Atenção Hospitalar;

6 – Aumentar o protagonismo do cidadão nos cuidados com a própria saúde;

7 – Fortalecer a capacidade de planejamento, gestão e controle da Secretaria estadual de saúde.

Para alcançar os objetivos e implementar as estratégias, foram definidos dois projetos estruturantes: a Rede Cuidar, para reorganizar a política assistencial do SUS, e a qualificação da gestão, para reorganizar a gestão da SESA.

 

A Rede Cuidar

O desafio da SESA no período de governo (2015/2018) foi o de superar um modelo de atenção centrado na assistência hospitalar e reverter a lógica fragmentada do sistema de saúde capixaba, reestruturando-o a partir do conceito de redes de atenção regionalizadas.

Essa perspectiva de funcionamento pressupõe uma definição clara sobre as funções essenciais de cada unidade assistencial, seja no âmbito da atenção primária, secundária ou terciária, dentro de um sistema de saúde que tenha como premissas básicas: a eficiência alocativa de recursos humanos, tecnológicos e financeiros; e o atendimento humanizado, resolutivo, de qualidade e em tempo oportuno.

A reorganização da política assistencial (atenção primária, ambulatorial especializada e hospitalar), foi feita considerando as redes de atenção à saúde, as regiões de saúde e a descentralização da gestão para essas regiões. O objetivo foi fazer com que o usuário fosse atendido na sua própria região de saúde, evitando longos deslocamentos pelas estradas para ter acesso aos serviços de saúde. E, também, que a região de saúde se organizasse para administrar, em conjunto com a SESA, a prestação de serviços de saúde na região, gerando economia de escala e escopo e ganhos de governabilidade política e de regulação.

Neste contexto, a SESA coordenou a implementação de uma mudança estrutural nos processos de trabalho que se iniciam desde o primeiro atendimento do paciente na unidade de saúde mais próxima da casa do cidadão até o serviço especializado, garantindo um fluxo mais adequado e a integralidade do cuidado. Isso possibilitou a redução dos encaminhamentos desnecessários à média complexidade com redução nas filas de espera, a priorização dos pacientes que realmente necessitam do atendimento especializado e maior eficiência alocativa de recursos.

Uma ação importante foi a regionalização dos serviços de saúde, pois permite ganhos de eficiência na prestação de serviços, ao propiciar um esforço conjunto dos municípios participantes da região e da SESA na organização da prestação dos serviços públicos de saúde.

Essa ação conjunta, entre Secretaria de Saúde Estadual e municípios, é a única maneira de melhorar a prestação dos serviços de saúde, a qual é dependente, também, da articulação e coordenação dos três níveis de governo, aí incluído o Ministério da Saúde.

A Rede Cuidar é a expressão concreta deste projeto de reorganização da atenção à saúde, consolidada pela Lei estadual n° 10.733 de 19 de setembro de 2017. Para a sua implantação foi realizado um conjunto de intervenções voltadas para a integração entre a APS (Atenção Primária à Saúde), a AAE (Atenção Ambulatorial Especializada) e a atenção hospitalar.

Destaca-se aqui a Planificação da Atenção à Saúde, para capacitar inicialmente a APS e a AAE, e a abertura das Unidades Cuidar. Estas unidades são ambulatórios especializados, com foco no atendimento a portadores de condições crônicas de saúde por equipes multiprofissionais, cujo acesso é definido por meio da estratificação de risco pela APS. Elas não atendem apenas aos portadores de condições crônicas, mas a outras necessidades regionais de atenção especializada.

A intervenção assistencial é conduzida a partir da elaboração de um Plano de Cuidados na Unidade Cuidar, a ser utilizado para gestão clínica dos usuários tanto na própria Unidade, quanto na APS. Cinco unidades foram construídas para atender o estado, e quatro delas iniciaram o atendimento até 2018. A ordenação do fluxo, na Rede de Atenção à Saúde, é realizada a partir da atenção primária, com estratificação de risco das gestantes, crianças, hipertensos e diabéticos.

A implantação da educação permanente dos profissionais, de forma integrada, entre a APS e AAE é uma inovação que tem como objetivo superar a fragmentação existente entre esses dois níveis de atenção à saúde. Implantamos o bloco de horas para dar o conforto de hora marcada para atendimento nas Unidades Básicas de Saúde e na Unidade Cuidar; incentivamos o autocuidado, prática fundamental para controlar as doenças crônicas; orientamos sobre alimentação e exercícios físicos; e humanizamos o atendimento. Foi desenvolvido um sistema de informação para suportar esse novo modelo de atendimento e a relação entre as unidades de saúde e o atendimento especializado nas unidades da Rede Cuidar.

 

Qualificação da gestão

A reorganização da gestão da SESA teve por objetivos: garantir a boa aplicação dos recursos do SUS, no interesse dos usuários; dar sustentabilidade ao processo de melhoria contínua da prestação de serviços de saúde, ao longo do tempo; garantir a legalidade dos atos de gestão; combater a ineficiência, o desperdício, o clientelismo, o corporativismo e o desvio de recursos públicos das suas finalidades.

Para alcançar esses objetivos, capacitamos lideranças, iniciamos a implantação da gestão por resultados (estabelecimento de indicadores e metas para áreas estratégicas, e monitoramento periódico através da central de resultados), aumentamos a transparência e aperfeiçoamos os controles, com a implantação de vários sistemas de informação (custos, controle dos indicadores hospitalares, prestação de contas dos prestadores contratualizados, regulação de consultas e exames, portal do SUS, sistema integrado de gestão administrativa-SIGA), e fortalecemos o controle social com a nova lei do conselho estadual de saúde, que democratizou o acesso das organizações da sociedade civil ao conselho e ampliou sua autonomia política.

Promovemos a modernização da gestão hospitalar através das organizações sociais – entidades sem fins lucrativos –, que assumem a gestão dos hospitais públicos após processo seletivo público e a assinatura de contrato de gestão com a secretaria, onde são estabelecidas metas de melhoria da eficiência e do atendimento aos usuários.

O Estado do Espírito Santo conta hoje com quatro hospitais geridos por organizações sociais. Organizamos, na secretaria, uma estrutura destinada ao controle dessas organizações, medida fundamental para o funcionamento adequado desse modelo de gestão hospitalar. Hoje, a relação contratual da secretaria com as organizações sociais é pautada por um adequado nível de transparência e controle.

O nosso objetivo com esse projeto foi construir uma burocracia de estado eficiente, profissionalizada, transparente, que respeite a legalidade, comprometida com os usuários do SUS, e subordinada ao poder político.

Os resultados alcançados mostraram que a política pública de saúde estava no rumo certo. O IBGE divulgou, em 2018, que o ES alcançou a menor taxa de mortalidade infantil do país e a segunda expectativa de vida ao nascer, sendo que para quem atingiu 60 anos ou mais, o ES alcançou o primeiro lugar. Todavia, ainda persistem desafios que precisam de tempo, continuidade das políticas públicas, e persistência nos objetivos para superá-los.

 

Ricardo de Oliveira, engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES em 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública – Democracia e Eficiência (FGV/2012), e Gestão Pública e Saúde (FGV/2020)

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Do combate à convivência: respostas de municípios à pandemia de Covid-19 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/do-combate-a-convivencia-respostas-de-municipios-a-pandemia-de-covid-19/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/do-combate-a-convivencia-respostas-de-municipios-a-pandemia-de-covid-19/#respond Mon, 21 Dec 2020 13:29:09 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/corona-4959447_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=334 Arthur Aguillar, Gabriella Lotta, Helyn Thami e Matheus Nunes

 

Nos últimos meses, os países do Atlântico Norte estão vivendo uma segunda onda da pandemia de Covid-19: após uma queda drástica nos casos desde meados de maio, os governos de países como Espanha, Inglaterra e Itália tentam responder ao aumento de casos impondo um novo conjunto de medidas de isolamento social. Nestes países, a pandemia, da mesma forma que a vida no poema Dia da Criação, de Vinicius de Moraes, vem em ondas. No Brasil, contudo, a pandemia não vem em ondas, mas se apresenta em um sinistro platô de mortes, e, nas últimas semanas, vem ainda acelerando. Quais as implicações de tal fato para o enfrentamento da pandemia? Em especial, como as pequenas cidades de um país que nunca foi para principiantes,  caracterizado por sua descentralização administrativa, desigualdades regionais e pela capacidade de estado local heterogênea, lidam com um evento de tamanha gravidade como a pandemia da Covid-19?

Na nota técnica “Do combate à convivência: respostas de municípios à pandemia de Covid-19” , que lançamos hoje, fruto da parceria entre o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Núcleo de Estudos das Burocracias (NEB/FGV), tentamos responder a essa pergunta. Para tal, acompanhamos 31 pequenos municípios do Norte e Nordeste do Brasil ao longo de 3 meses, para compreender as respostas à pandemia. As análises mostram que encontramos uma dinâmica pautada por dois momentos: a crise e a convivência. Esses dois momentos são bastante distintos, e o Brasil, junto talvez aos Estados Unidos, possui essa chamada jabuticaba que é a convivência com uma pandemia. Mas, antes, falemos da crise.

O momento da crise é bastante parecido no Brasil e no resto do mundo, e corresponde ao período entre o primeiro óbito e o ponto onde a média móvel de óbito atingiu seu máximo em meados do ano. A análise das respostas municipais mostra que este período foi marcado por medidas draconianas de isolamento social e sobrecarga das redes de saúde, seja no âmbito da assistência direta, seja na capacidade de testar e diagnosticar a doença em tempo oportuno. Talvez devido à novidade e complexidade do desafio, é também um período caracterizado por diversos erros de gestão: municípios fecharam algumas das Unidades Básicas de Saúde e tiveram dificuldades em implementar estratégias epidemiológicas como barreiras sanitárias, testagem e políticas de rastreamento de contatos. Os desafios enfrentados pelos municípios nessa fase se parecem muito com o que foi visto no início da pandemia na Europa e, durante um período maior, no resto da América Latina.

Já o convívio é coisa nossa, de alguns países da América Latina e, em algum grau, dos Estado Unidos, que também observaram taxas altas de infecção ao longo de todo o ano. Se a Europa foi caracterizada por rápidos períodos de pico com uma redução drástica da quantidade de casos entre os picos, isso simplesmente não ocorreu no Brasil: desde que a pandemia começou, seguimos tendo altas taxas de contaminação e óbitos sem uma redução drasticamente diferente do pico. Daí o resultado: não tivemos outra opção senão conviver com a pandemia. E a ideia de convivência é o que marca as respostas encontradas nos municípios no segundo período analisado, correspondente a setembro e outubro. Convivência significou reabertura total ou parcial dos estabelecimentos; significou uma amenização dos conflitos entre os prefeitos e outros atores locais; significou reorganização de alguns serviços de saúde; e significou, acima de tudo, uma gestão mais baseada em aprendizados. Foi neste período, por exemplo, que as prefeituras reabriram as Unidades Básicas de Saúde e começaram a utilizar os profissionais de forma mais estratégica. Também foi neste período que a sobrecarga da rede assistencial e os déficits de insumos diminuíram significativamente.

Se por um lado a passagem de tempo favoreceu a reposição de insumos que escassearam durante os primeiros meses e semanas de pandemia, essa mesma passagem do tempo e dos acontecimentos – mortes, casos, colapsos do sistema de saúde – também mostrou um agir do estado que denota um  “novo normal” mesmo sem uma trajetória descendente na curva.

O convívio nos mostra uma dinâmica conhecida no Brasil: a convivência perene da Sociedade e do Estado com problemas absurdos, seja a violência urbana e as altas taxas de homicídio, sejam os bolsões onde a incidência de doenças infecciosas que a ciência conhece há muitas décadas, como sífilis, dengue e tuberculose, é rotineiramente elevada.

Os aprendizados – adquiridos em tempo recorde pelos gestores e gestoras – se configuram como potenciais legados para muito além da pandemia. Revisão e redimensionamento da força de trabalho, reativação de capacidade instalada ociosa, aumento rápido de capacidade instalada, mais intimidade com a coleta e análise de dados, implementação ágil de políticas relativamente novas (como a telemedicina), diversidade de atores considerados na tomada de decisão são apenas alguns deles. A resiliência dos gestores públicos foi posta à prova pela crise sanitária e o grau de maturidade da ação mostrou, em alguma medida,  a capacidade de reação destes.

Por outro lado, permanece o desafio de criar resiliência e estratégias de vigilância sistemáticas que permitam uma resposta rápida porém menos reativa às emergências de saúde pública. O SUS (e seus gestores e gestoras), cujo valor está mais claro do que nunca, somam, portanto, dois desafios: conviver com a pandemia até que proporção suficiente de brasileiros estejam vacinados e ampliar a resiliência do sistema para enfrentar outras problemáticas sanitárias – por vezes amenizadas pelo costume da convivência – com as quais lidaremos por ainda mais tempo.

Gabriella Lotta é Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB/FGV)

Arthur Aguillar e Helyn Thami são pesquisadores do IEPS 

Matheus Nunes é mestrando em Administração Pública pela Fundação Getútlio Vargas (FGV)

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