Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Orçamento público para a saúde da população negra: uma tarefa por fazer https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/#respond Fri, 05 Nov 2021 08:00:16 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/0b6d7e87ff86e86f6dddbb12ef854e9f_1616619191805_2002334538-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=572 Clara Marinho Pereira e Julia Rodrigues

 

A maioria da população brasileira se declara negra: são 89,7 milhões de pardos e 19,2 milhões de pretos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o 3º trimestre de 2020. No entanto, em face das vulnerabilidades provocadas pelo racismo, os impactos da pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido desproporcionalmente maiores na saúde da população negra por, pelo menos, quatro motivos.

Primeiro, porque a população negra teve menores oportunidades de se isolar. Sem políticas públicas para conter a contaminação em comunidades e favelas, o vírus espalhou-se rapidamente entre os mais pobres. Cabe lembrar que 67% dos moradores das comunidades e favelas brasileiras são negros.

Segundo, porque a população negra é maioria nos segmentos econômicos considerados essenciais para a manutenção da vida coletiva, de natureza intensiva em mão-de-obra. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 mostram que, na limpeza urbana, 55,4% do total de vínculos eram compostos por negros; na segurança, 52,9%; e na construção civil, 50,2%, dentre tantos outros serviços. No  cotidiano, cada trabalhador(a) negro(a) se expõe ao contato com dezenas, até centenas de pessoas.

Terceiro, porque a população negra também é maioria na informalidade. Dados de 2019 do IBGE mostram que 47,4% dos trabalhadores negros do Brasil estão inseridos na informalidade, contra 34,5% da população branca.  Com a atividade econômica restringida ou afetada pela circulação do vírus, fragilizaram-se os circuitos de trabalho e de ganho diário, lançando rapidamente trabalhadores à pobreza, à miséria e à fome; uma situação que dificulta o isolamento e a capacidade das pessoas negras em ter uma resposta imunológica adequada quando contaminadas.

Quarto, quando contaminados, os negros demoram mais a ter acesso aos serviços de saúde. Muitas vezes impossibilitados de faltar ao trabalho, ou então sem dinheiro para pagar o transporte até o posto de saúde,  negros acabam por postergar a busca pela assistência médica. Quando o fazem, a situação já está agravada.

Não por acaso, negros morrem mais do que brancos. Conforme estudo realizado pelo Instituto Pólis, a taxa de mortalidade padronizada da doença para a população negra foi de 172 mortes para cada 100 mil habitantes entre março e julho de 2020 na cidade de São Paulo – município mais populoso do país. O número é 60% maior do que a taxa de mortalidade padronizada da população branca da cidade, que ficou em 115 mortes para cada 100 mil habitantes.

Em estudo mais recente, de setembro de 2021, e de caráter nacional, pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária mostram, a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, que homens negros morrem mais por Covid-19 do que homens brancos, independentemente da ocupação e mesmo quando estão no topo do mercado de trabalho. Já as mulheres negras morrem mais do que todos os outros grupos (mulheres branca, homens brancos e homens negros) na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação.

No entanto, a vacinação começou com pouca atenção a esses aspectos, partindo do centro para as periferias; dos grupos afluentes para os mais vulneráveis, o que mostra, mais uma vez, o uso seletivo das evidências para informar as políticas públicas. As “evidências”, muitas vezes, são mobilizadas para reforçar estruturas prévias de poder, e não questionar o melhor uso do recurso delas.

Com a Covid-19 ainda no horizonte, quais as chances de racionalizar o debate sobre o gasto em saúde daqui em diante? Aqui, propõe-se o exercício de olhar para trás, com o intuito de entender as possibilidades futuras.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, construída pela sociedade civil em parceria com o governo federal, estabelece um conjunto de diretrizes para que os serviços públicos de saúde acolham as especificidades da população negra na sua oferta, reconhecendo o racismo como uma determinante social das condições de saúde, ou seja, como o racismo impacta na ocorrência de problemas de saúde e amplifica seus fatores de risco.

A despeito dos imensos esforços colocados desde meados dos anos 1990 para a construção desse arcabouço de intervenção pública, o Estado brasileiro não tem sido diligente para dar visibilidade à sua atuação na garantia do bem-estar da população negra.

Um dos principais instrumentos para atuação do Estado é o orçamento público. É por meio dele que são comunicadas à sociedade as prioridades do governo e são alocados recursos para sua implementação.

O Plano Plurianual (PPA) para o ciclo 2016-2019 do governo federal possuía um programa específico para o enfrentamento das questões raciais: o Programa 2034 – Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, que tinha como uma das metas “Contribuir para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, incluindo a atualização do seu Plano Operativo” (Meta 4MC). Já no PPA para o ciclo 2020-2023, há um completo apagamento da questão racial, com nenhum programa, objetivo ou meta endereçados ao tema.

Do ponto de vista da Lei Orçamentária Anual (LOA), os recursos são, na maioria das vezes, alocados em ações genéricas, com o objetivo de facilitar o desembolso daqueles. No entanto, essa prática dificulta sobremaneira o controle social, pois impossibilita que sejam acompanhadas as despesas por recortes de gênero, raça, faixa etária e orientação sexual. No Ministério da Saúde, esse fenômeno (as ações genéricas) é recorrente, sendo difícil até mesmo obter a localização geográfica do gasto.

Até o ano de 2020, contudo, era possível enxergar uma (mínima) preocupação do Ministério com a promoção da equidade, devido à existência da ação orçamentária 20YM – Implementação de Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, cujo objetivo era a promoção do direito à saúde para segmentos populacionais expostos a iniquidades em saúde, como ciganos, LGBT, populações do campo, da floresta e das águas, população negra, população em situação de rua, população albina e gestores do SUS. No ano de 2016, essa ação chegou a contar com R$46,5 milhões de reais, em 2018 caiu para R$8,8 milhões e, em 2020, chegou a R$28 milhões.

No entanto, em sintonia com o apagamento das questões raciais no PPA 2020-23, a ação 20YM deixou de constar do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2021, encaminhado pelo Poder Executivo. Foi transformada em uma classificação gerencial (chamada Plano Orçamentário e que pode ser modificada a qualquer instante) da ação 21CE – Implementação de Políticas de Atenção Primária à Saúde. Em 2021, foram previstos R$28 milhões e, para 2022, o valor foi repetido, indicando que, em termos reais, os montantes diminuem a cada ano.

Contraditoriamente, portanto, justo quando a questão racial na saúde está exacerbada pelos dados, pelos achados de pesquisas e pelas tragédias, é quando ela mais se ausenta de identificação e controle social no orçamento, bem como de vínculos com o planejamento público de médio prazo.

Qualquer tentativa de assegurar o direito à saúde da maior parte da população brasileira que não observe a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra conjugada à consignação de recursos no orçamento estará condenada ao questionamento de sempre: será mesmo que o Estado brasileiro está comprometido com o atendimento igualitário no Sistema Único de Saúde (SUS)?

Hoje, infelizmente parece que a resposta é “Não”. Fazer mais do mesmo apenas trará mais mortes e iniquidades.

 

Clara Marinho Pereira é Mestre em Desenvolvimento Econômico e Fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente.

Júlia Rodrigues é Economista, Doutoranda em Ciência Política e Consultora de Orçamento.

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O cenário caótico x saúde mental = potência na resistência https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/#respond Wed, 20 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/img20200615104721797-768x463-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=554 Magna Barboza Damasceno

 

O primeiro seminário “Saúde da População Negra” (pessoas autodeclaradas pretas e pardas), realizado no Estado de São Paulo em 2004, apontou que as mulheres negras tiveram uma inadequação do atendimento durante seu pré-natal. Além disso, aproximadamente 60% dessas mulheres entraram numa espécie de peregrinação em busca do atendimento — o que evidencia a dificuldade de acesso. 

Segundo o “Atlas da Violência 2019 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, a cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras; 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras; e as mulheres negras morrem mais de formas mais violentas

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2020 o alarmante crescimento de 11,5%, em 10 anos, dos assassinatos das pessoas negras. O Rio de Janeiro é o quarto estado com maior número de negros no Brasil –mais de 9 milhões, segundo dados da secretaria de saúde do estado contabilizados em 2020.

Esses dados apontam que, de toda a população atendida, as pessoas negras estão entre as 61% acometidas por doenças respiratórias e 64% por causas externas e lesões.

 Ao nos depararmos com os dados do período perinatal, verificamos que 67% das complicações foram em mulheres negras. De todos os atendidos, 62% das pessoas negras possuíam doenças infecciosas e parasitárias; e outras  62 foram atendidas por transtornos mentais.

Como estampou Fernanda Lopes no título do seu texto apresentado no seminário de 2004, “Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer….”. Para a população negra a desigualdade ao existir é um fato no Brasil, fato este que desde o primeiro seminário sobre a saúde da população negra vem sendo confirmado pelos dados apresentados ao longo dos anos pelo Instituto de Pesquisas e Estatística Aplicada (IPEA). Com o advento desses momentos pandêmicos peculiares, é de se perguntar como manter a saúde mental de uma população que parece historicamente destinada a experiências de nascer, viver, adoecer e morrer de maneira desigual e assustadoramente desumanizada?

Como manter a saúde mental da população negra num cenário como o atual, no qual nos deparamos com um processo de extermínio que nasce nos marcadores sociais que ocupamos, nas interseccionalidade que carregamos, na nossa essência e no nosso existir? Além do grande desafio para cessar o desaparecimento dos nossos corpos pretos e potentes, bem como de manter nossa subjetividade a prova de qualquer tentativa de aniquilamento. 

Esse esforço ainda parece ter importância apenas para uma parte da sociedade, daqueles que vão ao longo do caminho tentando estabelecer a resistência (leia-se aqui estratégias para a sobrevivência) que, numa toada paradoxal, ao mesmo tempo que resistem para o Existir, vão deixando pelo caminho o cuidado com os seus corpos concretos, feitos de carne e osso, veias e artérias, além de não perceber a instalação de algo bem mais perigoso, que é doença e o transtorno mental.

É comum mulheres negras serem naturalizadas como raivosas ou emocionalmente instáveis, sem direito a manifestação sentida e trazida pelo medo constante de não mais existir –e dos seus não mais existirem–, de não ter suas necessidades acolhidas por quem deveria cuidar como cuida de qualquer outro cidadão não-negro, de não ter seu reconhecimento enquanto pessoa legitimado.

Na nossa sociedade, uma mãe branca tem mais direitos e acolhimento ao denunciar a perda de um filho do que uma mãe negra que vê seu filho assassinado injustamente. Basta fazer uma breve pesquisa nos meios de comunicação e nos deparamos como a sociedade reage frente à dor de ambas as perdas.

Às mulheres e homens negros, de forma velada, não lhes é permitido o direito ao sentimento, muito menos a suas manifestações legítimas, mesmo diante de tantas opressões ao resistir para viver.

Faça uma pequena reflexão e revisite momentos em que você, pessoa negra, não pôde ter o direito à palavra, ao sentir, ao agir e até mesmo ao pensar, tendo que calcular meticulosamente quais os próximos passos para não ser taxado de brutal, raivoso, marginal e refém da manifestação da emoção devido ao afeto.

Permanentemente, o descaso perpetuado pelo Estado aos cuidados da saúde da população negra, com a dificuldade do acesso ou o acesso precário a políticas públicas, a descaracterização criada de suas emoções vivenciadas numa sociedade que deslegitima suas experiências e as taxa e nomeia de acordo com o que nos permite sentir ou não. Isso nos toma – pessoas negras –nosso modo de relacionar, de ver o mundo. E nas pequenas coisas vão sendo reafirmadas nas nossas interseccionalidades. Porém, esses efeitos psicossociais do racismo estrutural e sua interface violenta nos obriga a um estado mental permanente de alerta, o que impacta na interpretação por parte de terceiros sobre o nosso viver, e nos coloca em certa medida em um ciclo sem fim entre o gatilho mental gerado pela sobrevivência e a falta de percepção de si e do outro deste processo que gera adoecimento das relações, criando muitas vezes o famoso “cão raivoso”.

Contudo, no absurdo das contradições do nosso estado democrático de direito e no exercício da nossa cidadania integral, as pessoas negras não podem “se dar ao luxo” das doenças mentais, das crises existenciais, das dificuldades nos relacionamentos interpessoais causadas muitas vezes pelas violências produzidas pelo racismo estrutural e que geram desequilíbrios emocionais –nos quais nossa humanidade é constantemente testada.

Sem ter lançado sobre si um julgamento prévio sobre seu modo de adoecimento, as pessoas negras vão adoecendo assim como qualquer outra pessoa –sim e como adoecem!!

Se por um lado esse modo perverso e descompromissado com os afetos da população negra, gerado pela sociedade, reafirma o “grau de superioridade” das pessoas não-negras, dando a elas o “ticket” de quem será permitido sentir, pensar, agir, por outro lado produz na pessoa negra uma forma cruel de aniquilamento de sua subjetividade, pois a deslegitimação das suas emoções, das suas experiências e vivências vai se dando de forma sutil e naturalizada, que muitas vezes desemboca numa emoção pouco elaborada –como a raiva, por exemplo.

Essas questões já muito conhecidas e debatidas nos revelam um impacto devastador em nossa subjetividade. Alguns desses efeitos psicossociais vêm sendo discutidos a partir de categorias do viver –como gosto de referir–, a exemplo das discussões sobre a solidão de mulheres negras, a falta de perspectiva para o futuro, o direito à herança e ao envelhecimento da pessoa negra.

 Aos poucos, vamos nos deparando com reflexões necessárias para a manutenção da qualidade do nosso viver. E é justamente aí que encontramos o conceito ilógico das potencialidades que nascem justamente das injustiças geradas a partir dos marcadores sociais e suas interseccionalidades que nos interpõem.

Porque, ao mesmo tempo que as pessoas negras vão morrendo aos poucos, toda vez que as percepções em torno da sua origem, da sua classe social, da sua cor de pele, da sua orientação sexual chegam à frente de qualquer possibilidade de relacionar-se, elas também constroem e vão tecendo estratégias de resistência, denotando suas potencialidades e organizando o melhor viver. 

Se por um lado pessoas negras todos os dias enfrentam uma batalha por serem quem são, por outro exercitam a tarefa de continuar a ser, burlando toda a lógica posta e contrariando a velha máxima de que apenas recai sobre as pessoas negras a negatividade do existir.

Durante toda a história do povo negro há aqueles que não conseguiram resistir, mas há também aqueles que conseguiram utilizar-se de estratégias de resistência e sobrevivência desde os primórdios da escravidão. Trazendo isso para os tempos atuais, recentemente e durante a pandemia, acompanhamos essas potências de forma bem objetiva.

Verificamos que os estudos sobre a ancestralidade negra vão apontando essas formas de potências, considerando o que os antepassados construíram para que o presente fosse possível e, dessa forma, fortalecendo um futuro.

A pandemia é a prova disso! Apesar de terem sido as pessoas negras as mais atingidas pela Covid-19 em relação aos mortos, segundo o Relatório “Pesquisa Sem Parar”, da organização feminista Sempreviva, sobre o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, constatou-se que de modo geral aumentou o número de mulheres que passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém. Em relação às mulheres negras houve um aumento em 52%. Essa dimensão do cuidado nos remete a uma forma de atenção à saúde mental, já que estão atentas ao monitoramento das necessidades e da companhia umas das outras.

Outro dado curioso é que, apesar do aumento da precariedade da vida, trazida pelo isolamento social e a perda do trabalho formal, houve um aumento de 52% de mulheres negras desempregadas. Essas mulheres que tiveram dificuldade sobre como pagar em dia suas contas e como fazer a manutenção da vida, buscaram outras formas de sobrevivência –e os números evidenciaram que 61% das mulheres que estão na economia solidária, por exemplo, são negras. 

Pesquisas indicam que durante a pandemia as pessoas negras reuniram suas forças para ajudarem sua comunidade, o que demonstra uma alta capacidade criativa, organizando novas soluções para o bem viver, mesmo em um cenário caótico, assustador e desumanizante.

Como podemos constatar, falar da saúde mental da população negra não é uma tarefa fácil, diante de uma realidade que traz dados massacrantes de qualquer subjetividade. Porém, falar de saúde mental também é falar de vida, seja ela nascida da dor de não poder ser e existir, seja ela nascida da potência que é viver as contradições das minorias oprimidas.

Outras formas de potência que já estão aí há muito tempo e devem ser reconhecidas, veneradas e divulgadas, são os trabalhos como os que realizam os coletivos como o Criola –uma organização composta por mulheres negras que há quase 30 anos vem pensando estratégias de defesa e promoção dos direitos das mulheres negras. O instituto AMMA Psique e Negritude, uma organização cuja atuação está pautada no enfrentamento do racismo, da discriminação, do preconceito –que produzem efeitos psicossociais negativos na saúde mental da população negra. Outro bom exemplo é o Fundo Baobá para Equidade Racial, que vem disponibilizando acesso a diversos ciclos de vida da população negra, para o fortalecimento de lideranças com a perspectiva de aumentar a equidade racial.

São organizações formais e informais que nascem de pessoas negras, para pessoas negras e com pessoas negras, a partir da dor do aniquilamento da subjetividade de pessoas negras.

Falar de saúde mental da população negra é também falar deste trampolim para a potencialidade, que gera possibilidade do bem viver.

Pense nisso. 

O que você tem feito para dar qualidade à saúde mental da população negra?

 

Magna Barboza Damasceno é Mestre em Psicologia Social pela PUC SP, especialista em Gestão pública pela FESPSSP, em Impactos da Violência na Saúde pela (ENSP/FIOCRUZ) e em Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde, pelo Instituto Sírio-Libanês, é coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP). Liderança acelerada pelo Fundo de Equidade Racial Baobá e Ganhadora do prêmio viva promovido na parceria entre o Instituto Avon e a Revista Marie Claire.

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Não é efeito pandemia: saúde mental já era um problema de saúde pública e a conta é de todos nós https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/#respond Wed, 14 Jul 2021 10:00:41 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terapia-de-casal-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O debate público sobre sofrimento psicológico pode ser recente, mas os dados alarmantes sobre o tema não são, e precisamos assumir a responsabilidade coletiva desse problema.

 

Não dá mais pra fugir do assunto: saúde mental entrou em pauta de forma irreversível e em caráter de urgência devido à crise desencadeada pela pandemia de Covid-19. As taxas de ansiedade, depressão, insônia, síndromes de esgotamento mental e outros sintomas de sofrimentos psíquicos aumentaram drasticamente e a saúde mental virou assunto cada vez mais comum em nossas conversas no trabalho, com a família e amigos, em instituições de ensino e na internet. 

É inegável que as medidas de isolamento social intensificaram o processo de adoecimento da população, mas é um equívoco tratar o colapso na saúde mental como um fenômeno recente.  Estamos arcando com as consequências de anos de desatenção nesse campo. O debate público sobre a saúde mental pode até ser atual, mas os dados alarmantes sobre sofrimentos psíquicos não são. Para enfrentar essa questão, agora emergencial, precisamos antes de tudo reconhecer que esse é um desafio antigo, que já afetava milhões de brasileiros havia muito tempo –e admiti-lo como um problema de saúde pública

Antes do novo coronavírus já vivíamos uma pandemia de violência e uma crise socioeconômica que afetava a saúde mental de todos os brasileiros. Ainda em 2019 o Brasil foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o país mais ansioso do mundo, com mais de 18 milhões de pessoas acometidas, o que representa mais do que toda a população da região norte. Também já éramos o quinto país mais depressivo, um salto de 34% em relação aos dados de 2013. Esses dados nos levam à compreensão de que saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é também resultado da complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida das pessoas. Por isso é fundamental trabalhar essa pauta em interface com outras agendas sociais, considerando as interseccionalidades do tema. 

Até hoje, as políticas públicas de promoção e prevenção em saúde mental foram tímidas e limitadas para enfrentar um problema dessa dimensão, e atravessado por questões estruturais e com muitas especificidades. O direito à alimentação saudável e adequada, à moradia, saneamento básico, trabalho, educação, transporte, lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais são fatores determinantes e condicionantes para a efetivação do direito à saúde. Por isso, não podemos optar por soluções isoladas, que não considerem as abordagens mais adequadas para cada pessoa.

 

Interseccionalidades e soluções individualizadas 

Como um problema de saúde pública, o cuidado com a saúde mental é uma tarefa coletiva, que precisa direcionar esforços do poder público, sociedade civil e ciência. Por esse motivo o debate não pode ficar restrito aos profissionais que atuam diretamente nos serviços de atendimento. É preciso fortalecer a perspectiva de saúde integral para que o sistema seja mais efetivo na oferta de tratamentos de saúde mental que sejam associados a outras especialidades da saúde integral e que considerem questões estruturais nos diagnósticos –analisar os adoecimentos físicos e mentais  em conjunto para, então, cuidar de forma integral. 

A dimensão do sofrimento é comum a todas as pessoas e não é mensurável em nível individual. Em uma sociedade extremamente desigual, os sofrimentos psíquicos podem até ser os mesmos (ansiedade, angústia, solidão), mas afetam cada indivíduo com base na introjeção da realidade material de cada um –por isso precisamos considerar questões estruturais. Nesse cenário, as minorias sociais são particularmente afetadas, como por exemplo as mulheres com alta sobrecarga doméstica —48% delas apresentam prevalência de transtornos mentais comuns. Em mulheres com baixa sobrecarga essa taxa cai para 22,5%, o que indica que aspectos referentes ao trabalho doméstico devem ser considerados e incorporados à avaliação da saúde mental das mulheres

Na prática, pessoas em situação de vulnerabilidade social são ainda mais suscetíveis ao adoecimento mental, pois têm muito mais restrições no acesso aos serviços de saúde — tanto os de prevenção como os de tratamento–, além da negação e da violação de outros direitos básicos. Nesse sentido, compreendemos que o sofrimento é uma condição da natureza humana. O sofrimento é “democrático”, mas o acesso aos cuidados desses sofrimentos não –é socialmente determinado.

Por isso precisamos atuar não só no tratamento dos sintomas, mas também criar soluções individualizadas de cuidado com base na reflexão sobre as questões estruturais que intensificam o processo de sofrimento a alguns grupos sociais. E fazer isto promovendo o acesso aos meios de elaboração do sofrimento psíquico, aos serviços de saúde integral e a outras condições necessárias para a saúde mental de todas as pessoas. Individualizar, porém, não significa personalizar atendimentos caso a caso, mas sim propor alternativas adaptadas que considerem as diferenças individuais. As soluções de saúde mental têm que ser consistentes e segmentadas em seus públicos. 

 

Então de quem é a responsabilidade pela saúde mental? 

São muitos os desafios no campo da saúde mental e só poderemos superá-los em rede e articulando diferentes setores. Especialmente em idades precoces, os sofrimentos psíquicos têm consequências que podem se estender ao longo do ciclo vital, comprometendo também a vida adulta ativa e saudável e gerando fragilidades tanto para o indivíduo quanto para famílias e comunidades. 

Crianças e adolescentes não se informam sobre saúde mental, mas leem os cuidadores e espelham seu comportamento em outros espaços sociais, então quanto mais ansiosa nossa sociedade estiver, mais as futuras gerações estarão. Como será o desenvolvimento e o futuro de uma criança ou adolescente para os quais não abordamos preventivamente a saúde mental? Como iremos lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) profundamente agravada entre adolescentes devido à pandemia? 

Por isso é fundamental que gestores, educadores, orientadores e assistentes sociais, em interface com profissionais de saúde, tenham à disposição ferramentas e recursos para lidar com a saúde mental em ambientes escolares e também que recebam acompanhamento terapêutico para terem condições de exercer essas atividades de cuidado. As pessoas não passam a se cuidar só porque alguém está dizendo que é preciso, nem mesmo aquelas que trabalham cuidando dos outros – é um processo de médio e longo prazo em práticas de cuidado em saúde mental, um investimento que dá trabalho e tem que ser sistêmico. 

 

Saúde mental: esse desafio deve ser compartilhado em rede

A epidemia vai passar, mas deixará traumas e sintomas de estresse pós-traumático para gerações inteiras, que terão que aprender a arcar com a conta da saúde mental a longo prazo. Ao dar luz aos sofrimentos psíquicos e falar sobre isso em ambientes públicos e privados, vamos descobrindo estratégias individuais e coletivas para promoção e prevenção em saúde mental, com a criação de autonomia, de oportunidades que capacitem cada pessoa a fazer escolhas e que permitam a sua participação como protagonista do seu cuidado.

Podemos fazer desse desafio uma oportunidade de enfrentar um problema antigo e urgente, além de melhorar nossa capacidade de articulação e colaboração trabalhando de forma coordenada em prol da saúde mental. Precisamos nos articular em rede, envolver mais atores estratégicos e acionar outros serviços e setores para que o direito à saúde mental seja efetivado e essa discussão ultrapasse os muros dos órgãos de saúde. Para isso, precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de tratar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. 

A essa altura é fundamental destacar que, apesar de a responsabilidade ser compartilhada, não podemos criar barreiras de ação na tentativa de encaixar as estratégias nesse campo em “caixinhas”, de forma setorizada, ministerial ou mesmo temática. Precisamos coordenar nossos esforços e entender que olhar para a saúde mental das mulheres, por exemplo, não é responsabilidade exclusiva dos órgãos e projetos de saúde, nem apenas das relacionadas à saúde mental, tampouco unicamente de entidades de direitos das mulheres. Se ficarmos nessa perspectiva podemos deixar vácuos de atuação justamente nos públicos mais vulneráveis, atravessados por uma série de questões interseccionais, como educação, trabalho, moradia etc. 

No Instituto Cactus, organização com atuação focada em saúde mental, especialmente de mulheres e adolescentes, trabalhamos para contribuir com esse imenso desafio de reunir esforços e para traçar caminhos de atuação em saúde mental no Brasil. Em nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, publicado em maio em parceria com o Instituto Veredas, destacamos a necessidade de priorização de políticas públicas de saúde mental, que devem ser monitoradas por meio de iniciativas como análise da situação, avaliação de serviços com indicadores, formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental, além da integração de dados e prontuários em sistemas digitais de regulação e referenciamento e elaboração de estudos de implementação, com apoio e orientação para análise de cenários.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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Saúde mental: o que é, por que não falamos tanto sobre isso, e por que deveríamos falar mais? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/#respond Wed, 30 Jun 2021 10:00:29 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Colunas_PandemiaTerapia_060421_FatCameraGettyImages-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Uma infinidade de conceitos surge quando se fala em saúde mental. Eles nos remetem à presença ou à ausência de uma doença, ou então ao mais completo bem-estar. Podemos pensar, ainda, em saúde mental sob o ponto de vista do indivíduo, ou dando ênfase ao contexto coletivo, social e suas complexidades.

Essas definições às vezes se complementam, em outras se opõem, mas não refletem necessariamente a complexidade da saúde mental e sua profunda integração com outros temas sociais como educação, trabalho e sistemas de saúde. A saúde mental não é só inexistência de doença e também não deveria ser uma expressão para designar “vida perfeita”. Também não é apenas sinônimo de bem-estar, leveza e despreocupação, sob o risco de cairmos em uma situação de positividade tóxica, em que estaríamos rejeitando a tristeza e outras emoções entendidas como negativas. Saúde mental também não pode ser vista apenas sob a perspectiva do indivíduo e suas questões genéticas e biológicas, negligenciando os diversos componentes sociais, estruturais e de comunidade que a influenciam.

Saúde mental é parte fundamental da saúde do nosso organismo. Do nosso funcionamento biológico e psicológico. Do nosso corpo pessoal e também social. Nesse sentido, ela está relacionada à forma como cada pessoa lida com seu entorno, seus desafios cotidianos e as transformações da vida. É o resultado de uma complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva, a educação, as violências e o acesso ou falta de bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária.

 

Abordagens falhas e estigmas dificultam o debate sobre Saúde Mental

Muitas vezes por incompreensão do tema e falta de informação qualificada, a narrativa da saúde mental na nossa sociedade não faz jus à centralidade que ela efetivamente ocupa.

Atualmente, em média,  menos de 2% dos orçamentos públicos de saúde são alocados para a saúde mental globalmente, sendo que a situação é ainda pior em países de baixa e média renda, como o Brasil, em que se gasta menos de USD 2 per capita no tratamento e prevenção de transtornos mentais, comparado com um investimento de USD 50 per capita em países de alta renda.

Em termos de investimento social privado, apenas 4% do total de R$2,5 bilhões de investimento social privado no Brasil em 2019 foram destinados à saúde e esporte, bastante abaixo do que seria necessário para intervenções estruturais no campo.

Além da desinformação, barreiras culturais, financeiras e estruturais também são relevantes, como o estigma, a descrença no tratamento e o insuficiente treinamento das equipes de atenção básica para lidar com o assunto.

Outro fator de destaque é a falta de dados e indicadores atualizados sobre saúde mental –o último levantamento nacional abrangente do tema se deu em 2015, não tendo sido atualizado desde então, o que dificulta um entendimento robusto da situação. Estudos epidemiológicos são de fundamental importância para determinar um panorama assertivo da saúde mental, e para podermos compreender melhor os determinantes sociais da saúde mental, trabalhar abordagens preventivas, priorizar a alocação de recursos, e obter insumos importantes para o planejamento adequado das políticas públicas.

 

Por que é preciso falar mais sobre Saúde Mental?

Os impactos econômicos e sociais dos problemas de saúde mental estão associados a consequências negativas que afetam a sociedade como um todo, abrangendo a redução de mão de obra qualificada, o desemprego, a falta de moradia, a morte prematura, o impacto na educação, a oneração do sistema público de saúde, entre outros.

Recentemente, um levantamento colocou as doenças mentais –como os transtornos depressivos e os transtornos de ansiedade–  como a categoria com maior fardo global de doenças no que diz respeito aos anos vividos com incapacidade (YLD), representando 32,4% do total de anos. Já em termos de anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs), que consideram tanto os YLD quanto as mortes prematuras relacionadas à doença (YLL), as doenças mentais representam significativos 13% do total de anos, percentual equivalente às doenças cardiovasculares e circulatórias.

Para além dos desafios existentes na vida dos indivíduos relacionados à carga global de doença, existe um crescente reconhecimento de que a falta de atenção dada à saúde mental reflete diretamente em custos financeiros relevantes. Dados do Fórum Econômico Mundial estimam que de 2010 até 2030 haverá perdas econômicas globais de USD 16 trilhões atribuíveis aos transtornos mentais, neurológicos e por uso de substâncias, o que representa mais de 10 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2020.  Estimativas da pesquisadora Sara Evans-Lacko, da London School of Economics, mostram que no ambiente de trabalho o Brasil perde USD 78 bilhões com a queda de produtividade. Além disso, o “burnout” é uma das maiores causas de absenteísmo e representa de 20% a 50% das causas de “turnover” nas empresas. No que diz respeito à educação, pesquisas das “national academies” de ciências, engenharia e medicina dos Estados Unidos revelaram que a evasão escolar de estudantes com problemas de saúde mental chegava a 43% a 86%, enquanto que um dos primeiros estudos a investigar a relação entre saúde mental e evasão escolar, feito por pesquisadores do Canadá, revelou que estudantes com depressão têm duas vezes mais chance de deixar a escola comparado com seus pares sem quadros depressivos.

Concluímos que é  imprescindível refletir na narrativa da saúde mental a mesma centralidade que ela já ocupa na nossa sociedade, nos nossos lares, corporações e vidas pessoais. Precisamos falar abertamente sobre isso,  de forma clara e articulada, e redirecionar investimentos públicos e privados para essa causa. Nessa encruzilhada, a promoção e a proteção da saúde mental devem estar em primeiro plano, sendo indispensável a avaliação contínua das políticas implementadas, de modo a adaptar a oferta e o cuidado com a saúde mental às demandas do momento e do contexto.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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Vacinação, voz e a impossibilidade de saída na pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/vacinacao-voz-e-a-impossibilidade-de-saida-na-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/vacinacao-voz-e-a-impossibilidade-de-saida-na-pandemia/#respond Wed, 09 Jun 2021 10:00:52 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/img20201218103533331-768x512-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=409 Agatha Eleone e Arthur Aguillar

 

A lentidão do processo de vacinação e a recente segunda onda da Covid-19 no Brasil tem criado uma série de questões sociais. Empresários buscam adquirir vacinas para si, suas famílias e seus empregados. Para esses últimos, o objetivo é possibilitar a retomada econômica o quanto antes. Uma parte considerável da elite já está voando para Miami, agora que o governo norte-americano anunciou a vacinação de turistas. Não é para menos: em um mundo com uma prevalência desigual da doença, a vacina funciona como um novo seguro de saúde que nos permitirá dormir em paz, sabendo que nem nós, nem os nossos perecerão. Para além disso, será também um passaporte para a realização de muitos desejos reprimidos: viagens, festas, idas a restaurantes e a casas noturnas voltam a ser uma possibilidade, já muito ansiada após quase um ano e meio dentro de casa – para aqueles que tiveram o privilégio de poder se proteger da doença através do isolamento. 

A possibilidade de buscar uma via privada para adquirir vacinas e proteger-se da Covid-19 é o que o falecido economista Albert Hirschman, um tipo de patrono dos economistas que se arriscam na interdisciplinaridade, chamaria de “saída”. Ao analisar a dinâmica entre a qualidade entre trens e rodovias na Nigéria, Hirschman criou uma tipologia para entender a dinâmica de qualidade e eficácia de serviços públicos. 

Diante de um serviço público considerado ruim, como o caso dos trens na Nigéria dos anos 1970, um beneficiário deste serviço (por exemplo, um grande produtor de biscoitos, como o pai da protagonista do livro Hibisco Roxo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie) tem, usualmente, duas opções. Ele pode simplesmente deixar de usar o serviço de trens (saída) e começar a usar caminhões para escoar sua produção. Alternativamente, ele pode também reclamar do serviço (voz), exercendo a ação coletiva através de reclamações formais e informais, protestos e ativação da mídia, criticando a qualidade dos serviços. Hirschman nos mostra em seu livro Saída, Voz e Lealdade que ainda que um produtor de biscoitos possa deixar de usar o trem (sair) para usar as rodovias, ele não pode optar por sair de ambos os serviços, pois afinal, ainda precisa de um meio para escoar a sua produção. Nesse exemplo, os empresários locais possuem, portanto, a opção de saída do serviço. A teoria levantada por Hirschman propõe que, quanto maior a possibilidade de saída do sistema público, menos provável que as elites locais utilizem sua voz e conexões políticas para exigir a melhora de um serviço.

Hirschman, um cidadão do mundo que sempre esteve em contato com os maiores desafios do seu tempo, seja ajudando judeus a fugirem da Europa ocupada pelos nazistas, contribuindo como economista no Plano Marshall ou mesmo enquanto participante da primeira missão do Banco Mundial em um país em desenvolvimento, certamente se interessaria pela dinâmica entre voz e saída dos sistemas públicos de saúde em face da pandemia de Covid-19.

A primeira conclusão a que chegamos a partir do arcabouço de Saída, Voz e Lealdade é que o processo de contornar o SUS para se vacinar contra a Covid-19 encarna um desejo humano natural que só pode ser exercido pelas camadas mais ricas da população diante de um serviço público de qualidade insatisfatória: se possível, sair. O exercício deste desejo, no entanto, tem consequências sociais óbvias, já que os mais ricos são justamente o grupo social com a maior capacidade de ação coletiva e mobilização (voz). Quando aqueles capazes de cobrar a gestão pública (seja por doarem grandes somas às campanhas eleitorais, possuírem espaço na mídia ou qualquer outra forma de influência) deixam de fazê-lo em função da opção de saída, todos os beneficiários do serviço perdem.

A segunda conclusão é que no caso da pandemia da Covid-19 — e de maneira geral, na maioria dos desafios de saúde coletiva –, a saída, na verdade, é uma impossibilidade lógica. Isso acontece porque em um evento desse tipo, a saúde do indivíduo não depende apenas de suas ações individuais, mas possui uma relação de interdependência com as ações de todos os outros indivíduos que compõem uma sociedade: mesmo que um empresário consiga tomar a vacina, isso não altera de maneira significativa a transmissibilidade e a vulnerabilidade associada à Covid-19: grande parte da força de trabalho ainda estará impedida de realizar suas atividades; medidas restritivas de ordem coletiva ainda serão necessárias para frear a doença; e a vulnerabilidade social e insegurança alimentar que decorrem da paralisação econômica continuarão a demandar um papel ativo do estado no fortalecimento das redes de proteção social.

Se estamos convencidos que a saída é uma impossibilidade lógica, resta exercer a voz. Aqui, temos muito o que fazer: é possível propor parcerias eficazes entre entidades privadas e serviço público. No nível da opinião pública existe um longo caminho a ser percorrido na comunicação de risco com a população, na disseminação de informações confiáveis sobre a pandemia e no combate às fake news. No nível da gestão pública, nossos municípios precisam de ajuda com a aquisição de insumos, transporte e armazenamento de vacinas, assim como na vigilância epidemiológica, tarefa complexa que muitas cidades pequenas não têm escala para executar. E no nível macro, é necessário responsabilizar o governo federal por sua omissão e negligência tanto na tomada de medidas restritivas quanto no processo de compra e aquisição de vacinas.

Hirschman, um economista que gostava de palíndromos e outros jogos de palavras (chegando a partir deles a importantes hipóteses sobre a inter-relação de forças políticas e forças econômicas), possivelmente notaria a ironia intrínseca ao momento presente. A pandemia trouxe à tona o que há muito não víamos no contexto da saúde brasileira: “obrigou os produtores de biscoitos a usar o trem”. É possível voar para os EUA para vacinar a si e os mais chegados gastando 450 mil reais (o suficiente para comprar 45 mil doses de Coronavac), como fez recentemente um empresário. Mas não dá pra levar a empresa no bagageiro do avião. Para aqueles que não têm acesso à saída (hoje, o conjunto total de pessoas que vivem no Brasil), resta apenas a voz.

 

Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Arthur Aguillar, Coordenador de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Profissionais de Enfermagem: a força de trabalho que sustenta a saúde no país https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/#respond Fri, 28 May 2021 10:00:03 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/download-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=401 Lidiane Toledo, Helena Maria Scherlowski Leal David, Alice Mariz e Mario Dal Poz

 

A enfermagem corresponde a 70% da força de trabalho em saúde (FTS) no Brasil e é composta, em sua maioria, por profissionais técnicos e auxiliares (75%). Entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020, o Brasil contava com 1,3 enfermeiros e 3,3 técnicos e auxiliares de enfermagem por mil habitantes, respectivamente. A enfermagem é reconhecida mundialmente como pilar importante para que os estados-nação possam alcançar o acesso e a cobertura universal de saúde. Em 2020, a crise sanitária e humanitária da Covid-19, colocou em destaque a importância da enfermagem na resposta à pandemia. Enfermeiros, técnicos e auxiliares têm estado na linha de frente da resposta à crise, seja ocupando cargos de gestão, pesquisa, vigilância epidemiológica, seja na assistência aos casos de Covid-19 leves, moderados, graves e mais recentemente liderando as campanhas de vacinação.  A atuação na linha de frente da pandemia tem trazido consequências de morbimortalidade para os profissionais de enfermagem. Até o dia 21 de maio de 2021, foram informados mais de 55 mil casos confirmados de Covid-19 e mais de 700 mortes entre esses profissionais no Brasil.

Apesar de sua notória importância e da enfermagem ser a categoria da saúde mais afetada pela pandemia no Brasil, na prática, são poucas as iniciativas que se traduzem em mudanças e valorização efetiva da profissão. Por décadas, a categoria tem sofrido com condições de trabalho inadequadas, baixa remuneração, vínculos contratuais frágeis, múltiplos vínculos empregatícios, sobrecarga e alta rotatividade, o que por vezes culminam no êxodo da profissão.

O Relatório o Estado da Enfermagem no Mundo, publicado durante a pandemia da Covid-19, apontou que há lacunas significativas de dados primários e secundários sobre a demografia e o mercado de trabalho em enfermagem em todo o mundo, o que dificulta que sejam realizadas análises epidemiológicas que informem políticas públicas e decisões de investimento público/privado na área. No Brasil, esta realidade não é diferente. Quando a pandemia se iniciou no Brasil, a maioria das evidências científicas sobre a demografia e o mercado de trabalho da enfermagem estavam desatualizadas e/ou restritas a contextos locais (estados e/ou municípios).

Em relação a dados secundários, apesar de o Brasil contar com uma ampla gama de bases de registros administrativos sobre demografia, mercado de trabalho, previdência social, educação, referentes à população em geral, tais bases são poucos exploradas no que tange os profissionais de enfermagem, além de, muitas vezes, apresentarem preenchimento inconsistente e frequentemente estarem desatualizadas. Em relação a estudos com coleta de dados primários na área de enfermagem, ampla maioria destes tem sido descritivos, com amostras de conveniência, locais, sendo necessário a realização de estudos de base populacional que possam realizar estimativas representativas dos profissionais de enfermagem não somente a nível nacional mas também em outros estratos geográficos como estados, municípios rurais, faixa de fronteira etc.

Avaliar as dinâmicas do mercado de trabalho (estoque de profissionais ativos, as áreas de atuação, condições de trabalho, vínculo empregatício), formação (superior e técnica), especialização (latu e stricto sensu), remuneração e distribuição geográfica, são essenciais para o desenvolvimento, planejamento e gestão das políticas de saúde e da enfermagem. O aprimoramento das informações científicas acerca da demografia e mercado de trabalho da enfermagem é urgente para que possamos conhecer de forma mais abrangente esta classe trabalhadora, que é maioria no SUS e no setor privado, além de apoiar gestores públicos e privados na tomada de decisão baseada em evidências e fomentar as pautas que são caras aos trabalhadores da enfermagem.

Como resultado de dois seminários realizados em 2020 pelo República.org, Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi organizada uma agenda de prioridades de pesquisa sobre políticas e gestão na área de enfermagem no Brasil. No âmbito desta agenda, está em curso a organização de um amplo estudo sobre a Demografia e o Mercado de Trabalho da Enfermagem Brasileira, que tem por objetivo avaliar indicadores relacionados à questões sobre características sociodemográficas, formação e trabalho das profissões de enfermagem. A pesquisa pretende responder questionamentos como: Como tem sido os fluxos de mercado de trabalho? Quais são as características de emprego? Quais são as condições de trabalho? Qual é a densidade e o estoque ativo da força de trabalho da enfermagem no Brasil? Quais são as características no estoque inativo (proporção de desistências/cancelamento, aposentadoria, mortalidade)? A força de trabalho de enfermagem é adequada às necessidades dos sistemas de saúde do Brasil? A sua capacidade é aproveitada? Quantos enfermeiros ocupam cargos de gestão? Quantos estão em posição de liderança na mesa de negociação das estratégias em saúde?

A pesquisa pretende ser um espaço acadêmico coletivo e colaborativo, coordenado pela Faculdade de Enfermagem e o Instituto de Medicina Social da UERJ. O projeto conta com apoio da OMS, OPAS, e do Instituto República, e no momento está em fase de construção de parceria estratégica para sua execução com o COFEN e alguns Conselhos Regionais de Enfermagem (CORENs). Já manifestaram apoio ao projeto, a ABEn Nacional, e diversas Escolas e Faculdades de Enfermagem, além de Institutos de apoio à pesquisa. A ideia é desenvolver um estudo-piloto em três Estados da Região Sudeste – RJ, SP e MG, com a participação das Faculdades de Enfermagem da USP-SP e Ribeirão Preto e da UFMG, as quais vêm colaborando desde as discussões iniciais.

 

Lidiane Toledo, Doutora em epidemiologia.

Helena Maria Scherlowski Leal David, Professora Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Alice Mariz, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Mario Dal Poz, Professor Titular do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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Engajar a todos: comunicação de risco como uma estratégia para reduzir os danos da Covid-19 antes, durante e após a vacinação https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/engajar-a-todos-comunicacao-de-risco-como-uma-estrategia-para-reduzir-os-danos-da-covid-19-antes-durante-e-apos-a-vacinacao/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/engajar-a-todos-comunicacao-de-risco-como-uma-estrategia-para-reduzir-os-danos-da-covid-19-antes-durante-e-apos-a-vacinacao/#respond Wed, 28 Apr 2021 10:00:15 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/panfleto-2-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=378 Pedro de Paula e Gilberto Perre

 

Enquanto enfrentamos os tristes recordes diários de mortes na pandemia de COVID-19 e o colapso do sistema de saúde nacional, a vacinação  – nossa luz no fim do túnel – anda a passos lentos. Apenas 6% de toda a população recebeu as duas doses da vacina até agora. Com a baixa oferta de vacinas no Brasil, a comunicação de risco, encorajando as medidas de saúde pública e sociais, é nossa melhor arma contra a COVID-19.

A gravidade do que vivemos muda rapidamente, novos estudos científicos sobre a COVID-19 surgem diariamente e enfrentamos com frequência a desinformação. Nesse contexto, é a “comunicação de risco” que deve ajudar o governo a responder a emergências e a ajudar as pessoas a entenderem a gravidade da ameaça e quais ações elas podem tomar para reduzir os riscos a elas e suas comunidades. A comunicação de risco também auxilia gestores públicos a compartilharem informações sobre a crise em seus diversos estágios. Esta abordagem foi ainda apoiada por uma recente pesquisa da rede de Pesquisa Solidária, que confirmou que as campanhas de comunicação e informação são fundamentais para conter a disseminação do COVID-19.

Para que a comunicação de risco seja bem-sucedida, os governos devem, antes de mais nada, ter empatia com sua população. Demonstrando compreensão dos medos, emoções e desafios que as pessoas estão vivendo. Durante tempos de incerteza como o que vivemos, os governos podem construir confiança. Assim, as pessoas podem fazer escolhas para tomar medidas e atitudes mais viáveis para proteger a si mesmas, suas famílias e comunidades.

Se um risco é comunicado com antecedência, de forma precisa, transparente, unificada e com uma relação clara de causa e consequência, as chances das pessoas adotarem as recomendações e confiarem na ciência podem aumentar significativamente. As informações compartilhadas com o público devem ser precisas e oportunas, e comunicadas de uma forma que seja facilmente acessada e compreendida dentro do contexto local.

Há alguns anos, órgãos internacionais de saúde reconhecem a importância da comunicação de riscos. Em 2005, a Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizou a necessidade da comunicação de riscos como parte das estratégias para ajudar a prevenir e responder a sérios riscos à saúde pública.

Em nossas experiências em saúde pública e nas parcerias desenvolvidas com a OMS e outros especialistas, temos visto o sucesso da comunicação de risco quando as pessoas são informadas de quais riscos à saúde estão sujeitas e quais medidas podem tomar para se proteger.

A campanha Cidades Contra Covid-19 é um bom exemplo de como engajar os governos e gestores. Nós, da Frente Nacional de Prefeitos e da Vital Strategies, unimos forças com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e também do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e desenvolvemos um conjunto de materiais para oferecer guias de aplicação prática de comunicação de risco e peças para diversas plataformas. Toda a comunicação foi baseada em recomendações científicas.

Uma população exposta ao risco é menos vulnerável se dispõe de informações e orientações sobre as reações mais adequadas. Enquanto a maioria da população aguarda a vacina, os planos de imunização precisam ser comunicados de forma rápida e clara, ao mesmo tempo em que deve ser reforçada a importância do uso de máscara, mantendo distanciamento físico das outras pessoas e evitando aglomerações e locais fechados.

Os governantes precisam estar preparados para enfrentar esta situação e integrar a comunicação da crise na estrutura de liderança da cidade ou estado. É evidente, dentro e fora do país, que o Brasil carece de coordenação nacional para responder à pandemia. Na ausência de um sistema nacional para informar as políticas, entidades e organizações têm se mobilizado para encontrar soluções para informar a população. Comunicar ao público diariamente  –  através de diferentes canais de comunicação – usando a imprensa como aliada e engajando líderes comunitários que possam apoiar esse esforço de comunicação, especialmente com populações marginalizadas e de alto risco, estão entre as estratégias que nos ajudarão a superar esta difícil crise que estamos passando.

O fim da pandemia é possível com vontade política, coordenação e comunicação clara, empática, transparente e baseada na ciência. Os líderes governamentais precisam fornecer orientação com antecedência e compartilhar dilemas, sem tranquilizar ou prometer demais. É uma questão de priorizar a vida: esta é a principal missão dos gestores públicos!

 

Pedro de Paula, Diretor Executivo da Vital Strategies no Brasil
Gilberto Perre, Secretário Executivo da Frente Nacional de Prefeitos

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O impacto da velocidade do trânsito no SUS: é possível desacelerar o uso de UTIs e evitar mais este desastre https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/o-impacto-da-velocidade-no-transito-no-sus-e-possivel-desacelerar-o-uso-de-utis-e-evitar-mais-este-desastre/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/12/o-impacto-da-velocidade-no-transito-no-sus-e-possivel-desacelerar-o-uso-de-utis-e-evitar-mais-este-desastre/#respond Mon, 12 Apr 2021 10:00:30 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/legislacao-001-1024x540-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=364 Pedro do Carmo Baumgratz de Paula e Dante Diego de Moraes Rosado e Souza*

 

Ao longo do último ano, e especialmente nas últimas semanas, nos acostumamos a acompanhar a porcentagem de ocupação das unidades de terapia intensiva (UTIs) em todo o Brasil. Ficamos assustados quando há 80% de ocupação, deixando pouco espaço para pacientes adicionais, já que os surtos de COVID-19 continuam em cidades e estados.  Vemos as limitações e o colapso de nossas estruturas de saúde quando muitas partes do país atingem 100% de ocupação dos leitos das UTIs.  

Mas e se você soubesse que rotineiramente, todos os anos, aproximadamente 60% dos leitos de UTI são ocupados por pessoas gravemente feridas no trânsito? Com o número de vítimas de trânsito de volta aos níveis pré-pandêmicos, mesmo ultrapassando as taxas anteriores em certos lugares, a necessidade de agir nunca foi tão clara e urgente: precisamos enfrentar nosso problema da violência no trânsito para reduzir as mortes e os ferimentos evitáveis e para aliviar a sobrecarga do nosso sistema de saúde. 

O Conselho Federal de Medicina vem alertando sobre este problema e seus custos há anos, muito antes da pandemia. O número estimado de mortes no trânsito por ano no mundo é de 1,35 milhões, sendo 40.000 mortes somente no Brasil, de acordo com a média dos últimos anos. Milhares de outros ficam feridos, necessitando de cuidados tanto a curto como a longo prazo. Com 19,7 mortes por 100 mil pessoas no trânsito, o Brasil possui um risco relativo maior do que a média global. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a velocidade como um fator de risco em particular que está quase sempre presente em colisões. A alta velocidade aumenta tanto a probabilidade quanto a gravidade de uma colisão. Ao reduzir, ou melhor, “readequar” a velocidade em 5%, podemos reduzir as fatalidades em até 30%.  

Os limites de velocidade das vias devem ser definidos em função dos tipos de usuários que utilizam o espaço. Por exemplo, são necessárias velocidades mais baixas em áreas próximas às escolas, onde as crianças e seus cuidadores provavelmente estarão andando. No momento em que um motorista excede o limite de velocidade, ele está colocando outros usuários das vias, e ele mesmo, em um alto risco de morte no caso de uma colisão. 

As altas velocidades são perigosas porque causam um efeito de estreitamento no campo visual do motorista, ou visão periférica, que prejudica a percepção da presença de pedestres, de outros usuários da via e mesmo obstáculos que nela se encontram. Isto resulta em reações retardadas em situações de emergência. As altas velocidades também exigem maiores distâncias para frear, limitando as alternativas para evitar uma tragédia. 

Para parar um veículo que circula a 60 km/h, por exemplo, são necessários mais de 35 metros, o que pode não ser suficiente para evitar que um pedestre seja atropelado. A 40 km/h, a distância necessária é de 20 metros, e a colisão poderia ser evitada, por exemplo. Por esses e outros motivos se diz que as mortes no trânsito são evitáveis. Elas decorrem de escolhas feitas pelos condutores de veículos, pelos demais usuários da via, pelo Poder Público e pela sociedade em geral. 

No ano passado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) reconheceu a terminologia “sinistros” como mais apropriada para uso em referência ao que anteriormente chamávamos de “acidentes” – um termo que permitia interpretações errôneas. Dizer “acidente” sugere que mortes e ferimentos no trânsito são eventos fortuitos e imprevisíveis – uma concepção errônea quando quase todas as mortes no trânsito são evitáveis. 

As consequências de um sinistro causado por excesso de velocidade podem ser trágicas. Um estudo realizado pela Comissão Nacional de Segurança Viária do Chile compara o impacto de um veículo sobre o corpo de uma pessoa em velocidades diferentes com a queda livre de um edifício. No caso de uma colisão a 70 km/h, o dano causado ao corpo humano seria equivalente à queda do sétimo andar de um edifício, deixando poucas chances de sobrevivência. Se o veículo estiver viajando a 50 km/h, os danos à vítima seriam menos graves, mas ainda assim semelhantes a uma queda do quarto andar. 

É baseada nesta evidência que a OMS recomenda a velocidade máxima em vias urbanas para 50 km/h em avenidas e 40 ou 30 km/h em ruas locais e residenciais. E o que poderia ser mais importante do que preservar uma vida? Ao adotar métodos comprovados e baseados em dados para evitar sinistros de trânsito, podemos aliviar a carga que nossos sistemas de saúde enfrentam no tratamento de vítimas de sinistros, desenvolvendo estratégias que atuam em múltiplas frentes no gerenciamento da velocidade. Especialmente durante a pandemia da COVID-19, vemos o valor de cada leito hospitalar. 

Ainda que tenhamos muito a melhorar, o Brasil tem ótimos exemplos de iniciativas voltadas a tornar suas vias mais seguras. Na cidade de São Paulo, a política de gestão de velocidades foi objeto de intenso debate público, no entanto teve seu sucesso consolidado. Iniciada em 2011 e aprofundada em 2015, a readequação das velocidades nas vias de São Paulo culminou com a padronização da velocidade máxima de 50km/h em todas as vias arteriais da cidade, um importante avanço no tema. Essas velocidades reduzidas ajudaram a diminuir em 36% as mortes entre 2014 e 2019, passando de 1.249 mortes para 791.   

Em outro caso notável, Fortaleza vem implementando uma política progressiva para ajustar a velocidade em avenidas com altas taxas de morte e ferimentos. A primeira avenida a receber este novo tratamento de velocidade tinha o maior índice de atropelamentos de pedestres da cidade e em apenas um ano registrou uma redução de 63% neste tipo de ocorrência. Além da nova limitação de velocidade, baseada em dados, um trabalho articulado de fiscalização e comunicação facilitou a compreensão das comunidades vizinhas sobre a urgência da medida. A capital do Ceará reduziu a taxa de mortes em 51,7% nos últimos 10 anos e alcançou a meta da ONU para a “Década de Ação para a Segurança Viária (2011-2020)”. Entre 2015 e 2020, a cidade salvou cerca de 750 vidas. 

É verdade que abordar a velocidade sozinha não resolverá completamente nossa crise de sinistros de trânsito. Outros fatores de risco também levam a colisões e mortes, como beber e dirigir. Mas em tempos de pandemia, quando cada leito em uma UTI é crítico, é importante reconhecer esta questão como uma prioridade de saúde pública. Não há dúvida entre os especialistas e pesquisadores de que a gestão das velocidades é crucial e de que nossos profissionais de saúde seriam mais capazes de se concentrar no tratamento de pacientes da COVID-19 ou na identificação e tratamento de outras doenças se os sinistros de trânsito de fossem evitados.  

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*Pedro de Paula é Diretor-Executivo da Vital Strategies no Brasil. Pedro é advogado formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestre em Direito Econômico e Economia Política pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente é Doutorando. Também leciona na faculdade de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Foto de Perfil: https://vital.box.com/s/urujs1jw2jepd3fkj5tr75qup375vpve

Contato: pcbpaula@vitalstrategies.org

 

*Dante Rosado é Coordenador Executivo da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global. Engenheiro Civil e Mestre em Engenharia de Transporte pela Universidade Federal do Ceará, atua na área de segurança viária há 17 anos.

Foto de Perfil: https://vital.box.com/s/rgdc10aw5acsb68f4ciu1udda5cj2ssb

Contato: dante@bigrs.org

 

**A Vital Strategies é uma organização global de saúde que acredita que todas as pessoas devem ser protegidas por um forte sistema de saúde pública. Trabalhamos com governos e a sociedade civil em 73 países, incluindo o Brasil, para projetar e implementar estratégias baseadas em evidências que abordam seus problemas de saúde pública mais prementes. Nosso objetivo é ver os governos adotarem intervenções promissoras em escala o mais rápido possível. Para saber mais, visite vitalstrategies.org ou no Twitter siga @VitalStrat.

 

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Nada a comemorar: o Dia Mundial da Saúde e a necessidade de um lockdown https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/nada-a-comemorar-o-dia-mundial-da-saude-e-a-necessidade-de-um-lockdown/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/nada-a-comemorar-o-dia-mundial-da-saude-e-a-necessidade-de-um-lockdown/#respond Thu, 08 Apr 2021 17:35:37 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/corona-4959447_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=362 Arthur Aguillar, Helyn Thami e Rebeca Freitas

Na véspera da comemoração do Dia Mundial da Saúde (7 de abril), batemos a marca recorde de 4.211 mortos por Covid-19 em 24 horas. Os dados não mentem: estamos diante de uma aceleração da pandemia inédita no Brasil. Recentemente publicamos uma Nota Técnica mostrando que, em relação a 2020, tivemos uma aceleração da média móvel de óbitos da ordem de 84%. Diante dessa tragédia humanitária, não há dúvida: é necessária a implementação de um lockdown em todos os estados brasileiros. 

Precisamos de um lockdown pois estamos no momento mais crítico já vivenciado: não existe, na história brasileira, evento comparável em número de mortos. São mais de 340 mil pessoas que já perderam a vida pela Covid-19. A dimensão do período que atravessamos não é só sentida por todas as famílias que viveram na pele a dor da perda, mas se reflete nos números atualizados dia após dia: em apenas 1 mês (de 6 de março a 6 de abril), dobramos o recorde de óbitos diários, passando de 1.840 vidas interrompidas para mais de 4 mil. Além disso, a pior semana epidemiológica do ano de 2021 registrou uma média móvel que foi mais que o dobro daquela observada na pior semana epidemiológica de 2020. 

Com a disseminação de novas variantes e o risco de que novas ainda possam surgir diante do descontrole de transmissão, o Brasil se tornou uma bomba-relógio. O número de infectados no país corresponde a 10% do número de casos registrados no mundo(1). Atualmente, o Brasil registra o segundo maior número de óbitos por Covid no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, e superou o total de óbitos registrados na Ásia, o maior continente do mundo. O descontrole do número de óbitos se evidencia também nas projeções de cientistas para o mês de abril, que apontam para a possibilidade de atingirmos a marca de 5 mil óbitos por dia, caso não haja lockdown. Tudo isso se soma ao avanço das novas variantes e estudos da Fiocruz comprovam que estamos vivendo uma nova fase da pandemia, tendo as mortes por Covid-19 aumentado em 352,62% na faixa etária de 30 e 39 anos entre janeiro e março deste ano. 

E não se trata somente das mortes. O nosso sistema de saúde se vê estrangulado. Somos um país em que 72% das regiões de saúde apresentam menos leitos de UTI do que o mínimo preconizado pelas normativas vigentes. Isso significa que 61% de toda a população que depende do SUS já convivia com a baixa oferta de cuidados intensivos antes da pandemia. Mesmo nas regiões que cumprem tais normativas, o cenário é de falta de leitos e insumos. Não há parâmetro técnico capaz de fazer jus ao contágio desenfreado que testemunhamos neste momento. No dia 4 de abril, 16 estados e o Distrito Federal apresentavam mais de 90% de ocupação de leitos de UTI. Enquanto isso, as filas de regulação crescem e famílias precisam implorar pela garantia do direito constitucional à saúde – muitas vezes sem sucesso. Só em março no estado de São Paulo, pelo menos 496 pessoas com Covid-19 ou com suspeita da doença morreram à espera de um leito de UTI.

Engana-se quem pensa se tratar de um colapso apenas do SUS. A saúde privada está igualmente estrangulada, vivenciando falta de insumos e de vagas e, em alguns casos, recorrendo ao sistema público para conseguir mais leitos, como ocorreu, por exemplo, em São Paulo, a maior cidade do país. O colapso é uma realidade dada ou iminente na saúde como um todo, sem distinção entre quem pode ou não pagar por um plano privado. Expandir a capacidade instalada de leitos é uma necessidade, mas não é uma solução que possa ser aplicada ad infinitum. É preciso realizar o lockdown para frear a circulação do vírus paralelamente ao esforço de vacinação, que por sua vez só deve mostrar efeitos mais expressivos no número de mortes no fim do primeiro semestre. 

O que seria um lockdown? Nossos governantes precisam implementar 5 medidas: o fechamento completo de estabelecimentos que não configuram serviço essencial; de vias e estradas a indivíduos que não sejam trabalhadores essenciais;  fechamento total ou parcial de aeroportos e rodoviárias e outros polos de transporte; banimento de eventos presenciais de qualquer espécie, incluindo religiosos; proibição do uso coletivo do espaço público a qualquer hora do dia.

Precisamos de um lockdown porque, em meio à magnitude do número de mortes, , é a coisa certa a fazer. Trata-se de uma política pública de eficácia comprovada: experiências internacionais e nacionais mostram que o lockdown funciona. Em Araraquara, após um mês de implementação da medida, viu-se uma redução de 39% no número de mortes e de 57,5% nos casos, além de 13 dias sem apresentar fila de espera para leitos de UTI. Em Paris, o Rt, número de reprodução da doença, reduziu de 3,18 para 0,68 após o lockdown (2), caso semelhante ao que ocorreu na Itália onde o Rt atingiu faixas entre 0,4 e 0,7 após 14 dias do decreto de fechamento completo de atividades não essenciais (3). Na China (Wuhan), o lockdown teve o efeito de curto prazo de aumentar o intervalo necessário para os casos dobrarem (de 2 para 4 dias) (4). Após 76 dias, a cidade chinesa se viu livre de novos surtos desde 8 de abril de 2020. Hoje, a cidade voltou à normalidade e não registra novos casos desde maio de 2020. 

Sabemos que essa recomendação é politicamente sensível e administrativamente complexa. Esperamos, no entanto, que nossos governantes tomem essa decisão com base no presente e no futuro – no nosso e no deles. A dinâmica política da pandemia não se restringe ao hoje. No longo prazo, todos aqueles que não fizeram o máximo possível para reverter a atual tragédia e o maior colapso sanitário e hospitalar da nossa história serão cobrados. Do lado da implementação, esperamos que nossa tradição na saúde pública prevaleça: que as ações de nossos governantes ecoem a coragem de líderes passados, que combateram a AIDS, a meningite, diversas síndromes gripais e outras doenças infecciosas que já assolaram nosso país.

 

Referências:

 1) Cálculo feito pelos autores com base nos dados do Ministério da Saúde e do Our World In Data.

2) Di Domenico, L., Pullano, G., Sabbatini, C.E., Boëlle, P.Y. and Colizza, V., 2020. Impact of lockdown on COVID-19 epidemic in Île-de-France and possible exit strategies. BMC medicine, 18(1), pp.1-13

3) Guzzetta, G., Riccardo, F., Marziano, V., Poletti, P., Trentini, F., Bella, A., Andrianou, X., Del Manso, M., Fabiani, M., Bellino, S. and Boros, S., 2020. The impact of a nation-wide lockdown on COVID-19 transmissibility in Italy. arXiv preprint arXiv:2004.12338

4) Lau, H., Khosrawipour, V., Kocbach, P., Mikolajczyk, A., Schubert, J., Bania, J. and Khosrawipour, T., 2020. The positive impact of lockdown in Wuhan on containing the COVID-19 outbreak in China. Journal of travel medicine, 27(3), p. 37.

Arthur Aguillar é coordenador de Políticas Públicas do IEPS 

Helyn Thami e Rebeca Freitas são pesquisadoras de Políticas Públicas do IEPS

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30 dias de lockdown rígido são necessários para salvarmos o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/30-dias-de-lockdown-rigido-sao-necessarios-para-salvarmos-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/30-dias-de-lockdown-rigido-sao-necessarios-para-salvarmos-o-sus/#respond Thu, 25 Mar 2021 10:00:47 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/covid-19-vaccine-flasks.1500x875.jpg-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=342 João Moraes Abreu, Marco Brancher, Carlos Lula e Marcia Castro

 

Não se trata mais apenas de evitar a Covid-19. Pela primeira vez em uma geração, os brasileiros já não sabem se, diante de um acidente – no trânsito, em casa, no trabalho -, hospitais, públicos e privados, conseguirão atendê-los.

Um lockdown de somente um mês, rígido e fiscalizado, nos termos sugeridos pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) em carta aberta em 1º de março, é fundamental para atravessarmos a pior fase da pandemia sem agravar o estado de calamidade em que estamos.

Por que 30 dias? É o tempo para que a vacinação em massa comece a fazer efeito significativo. Por três fatores:

  • Toda vacina impede o óbito. Após 450 milhões de pessoas vacinadas (1ª dose, de diferentes vacinas) contra a Covid-19 no mundo, não há notícia de um único óbito por Covid-19 entre elas
  • Mais de 70% dos óbitos registrados no Brasil até aqui foram de pessoas acima de 60 anos;
  • Devemos ter duas doses para imunizar todos os brasileiros acima de 60 anos até o início de maio, no cenário mais provável, detalhado abaixo.

E como a vacinação impacta em óbitos por dia? Estudo da ONG Impulso Gov combinou 12 bases de dados públicas com dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, por meio da Lei de Acesso à Informação, para projetar uma queda da atual média móvel de 2.300 óbitos por dia para menos de 1000 óbitos por dia, a partir de maio, graças à vacinação. A queda continuaria daí em diante.

Ainda são números inaceitáveis. Mas essa redução nos óbitos já aliviaria a pressão insustentável que o sistema de saúde vive hoje.

O estudo traçou três cenários de vacinação (pessimista, intermediário e otimista), e estamos hoje mais próximos do cenário intermediário, com produção nacional de 78 milhões de doses   suficiente para vacinarmos todas as pessoas acima de 60 anos   até o começo de maio. O estudo e a metodologia completa, disponível em CoronaCidades.org, sugere que o pior momento é o que vivemos agora e nas próximas semanas.

Então, se a vacinação deve melhorar a situação a partir de maio, por que precisamos de um lockdown de 30 dias? Não podemos só esperar?

Não. Primeiro, porque se o lockdown reduzir pela metade a atual média de óbitos, em um mês serão 45 mil vidas poupadas. Há outros três motivos menos óbvios:

  • Sem lockdown, faltarão leitos para… tudo. Se o número de internações por Covid-19 não cair imediatamente (e não somente em maio, com os efeitos da vacinação), o sistema de saúde – público e privado – pode ficar sem leitos de UTI no país todo, como já ocorre em 16 dos 27 estados; e
  • Quanto mais a curva sobe, mais difícil baixá-la. Já atingimos 3000 óbitos em um único dia. Se este número não cair já, não ficaremos abaixo de 1000 óbitos nem em maio, mesmo com a vacinação.
  • Novas variantes podem surgir. Se permanecermos muito tempo com elevadíssima circulação do vírus, a chance de novas mutações surgirem aumenta, sendo possível até que o efeito da imunização seja menos potente e pessoas vacinadas venham a óbito. Neste caso, as projeções acima serão invalidadas. Estaríamos de volta a uma situação sem perspectiva de melhora.

Há luz no fim do túnel e ela está próxima; mas se não formos rápidos, ela pode se apagar.

Não podemos esperar mais nenhum dia. Após indesculpável atraso, o novo auxílio emergencial nacional, enfim, está a caminho, o que nos permite reduzir, agora, a circulação de pessoas, com medidas rígidas e de curto prazo, em todos os estados com mais de 85% de ocupação dos leitos de UTI ou internações por Covid-19 em ascensão.

Mesmo com um rígido lockdown agora, em 30 dias não estará “tudo bem”. Máscaras e distanciamento social permanecem necessários. Mas não sofreremos mais com falta generalizada de leitos e insumos médicos. Não necessitaremos de novos lockdowns nacionais. O pior terá passado.

É verdade que não será fácil: economicamente, psicologicamente. Mas março de 2021 não é março de 2020: sabemos o que fazer, e temos vacinas. Será o último esforço desta magnitude que precisaremos fazer como nação.

Desde sua criação, há 30 anos, o SUS já salvou milhões de vidas. Agora, somos nós que precisamos fazer nossa parte para, nos próximos 30 dias, salvarmos o SUS.

 

*Por um erro de divulgação da assessoria dos autores do artigo, o texto acima também foi publicado na seção Tendências/Debates

 

João Moraes Abreu, Diretor Executivo da Impulso Gov, realizadora do CoronaCidades.org

Marco Brancher, Coordenador de Dados da Impulso Gov

Carlos Lula, Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde

Marcia Castro, Professora da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard

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