Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O cenário caótico x saúde mental = potência na resistência https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/#respond Wed, 20 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/img20200615104721797-768x463-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=554 Magna Barboza Damasceno

 

O primeiro seminário “Saúde da População Negra” (pessoas autodeclaradas pretas e pardas), realizado no Estado de São Paulo em 2004, apontou que as mulheres negras tiveram uma inadequação do atendimento durante seu pré-natal. Além disso, aproximadamente 60% dessas mulheres entraram numa espécie de peregrinação em busca do atendimento — o que evidencia a dificuldade de acesso. 

Segundo o “Atlas da Violência 2019 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, a cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras; 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras; e as mulheres negras morrem mais de formas mais violentas

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2020 o alarmante crescimento de 11,5%, em 10 anos, dos assassinatos das pessoas negras. O Rio de Janeiro é o quarto estado com maior número de negros no Brasil –mais de 9 milhões, segundo dados da secretaria de saúde do estado contabilizados em 2020.

Esses dados apontam que, de toda a população atendida, as pessoas negras estão entre as 61% acometidas por doenças respiratórias e 64% por causas externas e lesões.

 Ao nos depararmos com os dados do período perinatal, verificamos que 67% das complicações foram em mulheres negras. De todos os atendidos, 62% das pessoas negras possuíam doenças infecciosas e parasitárias; e outras  62 foram atendidas por transtornos mentais.

Como estampou Fernanda Lopes no título do seu texto apresentado no seminário de 2004, “Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer….”. Para a população negra a desigualdade ao existir é um fato no Brasil, fato este que desde o primeiro seminário sobre a saúde da população negra vem sendo confirmado pelos dados apresentados ao longo dos anos pelo Instituto de Pesquisas e Estatística Aplicada (IPEA). Com o advento desses momentos pandêmicos peculiares, é de se perguntar como manter a saúde mental de uma população que parece historicamente destinada a experiências de nascer, viver, adoecer e morrer de maneira desigual e assustadoramente desumanizada?

Como manter a saúde mental da população negra num cenário como o atual, no qual nos deparamos com um processo de extermínio que nasce nos marcadores sociais que ocupamos, nas interseccionalidade que carregamos, na nossa essência e no nosso existir? Além do grande desafio para cessar o desaparecimento dos nossos corpos pretos e potentes, bem como de manter nossa subjetividade a prova de qualquer tentativa de aniquilamento. 

Esse esforço ainda parece ter importância apenas para uma parte da sociedade, daqueles que vão ao longo do caminho tentando estabelecer a resistência (leia-se aqui estratégias para a sobrevivência) que, numa toada paradoxal, ao mesmo tempo que resistem para o Existir, vão deixando pelo caminho o cuidado com os seus corpos concretos, feitos de carne e osso, veias e artérias, além de não perceber a instalação de algo bem mais perigoso, que é doença e o transtorno mental.

É comum mulheres negras serem naturalizadas como raivosas ou emocionalmente instáveis, sem direito a manifestação sentida e trazida pelo medo constante de não mais existir –e dos seus não mais existirem–, de não ter suas necessidades acolhidas por quem deveria cuidar como cuida de qualquer outro cidadão não-negro, de não ter seu reconhecimento enquanto pessoa legitimado.

Na nossa sociedade, uma mãe branca tem mais direitos e acolhimento ao denunciar a perda de um filho do que uma mãe negra que vê seu filho assassinado injustamente. Basta fazer uma breve pesquisa nos meios de comunicação e nos deparamos como a sociedade reage frente à dor de ambas as perdas.

Às mulheres e homens negros, de forma velada, não lhes é permitido o direito ao sentimento, muito menos a suas manifestações legítimas, mesmo diante de tantas opressões ao resistir para viver.

Faça uma pequena reflexão e revisite momentos em que você, pessoa negra, não pôde ter o direito à palavra, ao sentir, ao agir e até mesmo ao pensar, tendo que calcular meticulosamente quais os próximos passos para não ser taxado de brutal, raivoso, marginal e refém da manifestação da emoção devido ao afeto.

Permanentemente, o descaso perpetuado pelo Estado aos cuidados da saúde da população negra, com a dificuldade do acesso ou o acesso precário a políticas públicas, a descaracterização criada de suas emoções vivenciadas numa sociedade que deslegitima suas experiências e as taxa e nomeia de acordo com o que nos permite sentir ou não. Isso nos toma – pessoas negras –nosso modo de relacionar, de ver o mundo. E nas pequenas coisas vão sendo reafirmadas nas nossas interseccionalidades. Porém, esses efeitos psicossociais do racismo estrutural e sua interface violenta nos obriga a um estado mental permanente de alerta, o que impacta na interpretação por parte de terceiros sobre o nosso viver, e nos coloca em certa medida em um ciclo sem fim entre o gatilho mental gerado pela sobrevivência e a falta de percepção de si e do outro deste processo que gera adoecimento das relações, criando muitas vezes o famoso “cão raivoso”.

Contudo, no absurdo das contradições do nosso estado democrático de direito e no exercício da nossa cidadania integral, as pessoas negras não podem “se dar ao luxo” das doenças mentais, das crises existenciais, das dificuldades nos relacionamentos interpessoais causadas muitas vezes pelas violências produzidas pelo racismo estrutural e que geram desequilíbrios emocionais –nos quais nossa humanidade é constantemente testada.

Sem ter lançado sobre si um julgamento prévio sobre seu modo de adoecimento, as pessoas negras vão adoecendo assim como qualquer outra pessoa –sim e como adoecem!!

Se por um lado esse modo perverso e descompromissado com os afetos da população negra, gerado pela sociedade, reafirma o “grau de superioridade” das pessoas não-negras, dando a elas o “ticket” de quem será permitido sentir, pensar, agir, por outro lado produz na pessoa negra uma forma cruel de aniquilamento de sua subjetividade, pois a deslegitimação das suas emoções, das suas experiências e vivências vai se dando de forma sutil e naturalizada, que muitas vezes desemboca numa emoção pouco elaborada –como a raiva, por exemplo.

Essas questões já muito conhecidas e debatidas nos revelam um impacto devastador em nossa subjetividade. Alguns desses efeitos psicossociais vêm sendo discutidos a partir de categorias do viver –como gosto de referir–, a exemplo das discussões sobre a solidão de mulheres negras, a falta de perspectiva para o futuro, o direito à herança e ao envelhecimento da pessoa negra.

 Aos poucos, vamos nos deparando com reflexões necessárias para a manutenção da qualidade do nosso viver. E é justamente aí que encontramos o conceito ilógico das potencialidades que nascem justamente das injustiças geradas a partir dos marcadores sociais e suas interseccionalidades que nos interpõem.

Porque, ao mesmo tempo que as pessoas negras vão morrendo aos poucos, toda vez que as percepções em torno da sua origem, da sua classe social, da sua cor de pele, da sua orientação sexual chegam à frente de qualquer possibilidade de relacionar-se, elas também constroem e vão tecendo estratégias de resistência, denotando suas potencialidades e organizando o melhor viver. 

Se por um lado pessoas negras todos os dias enfrentam uma batalha por serem quem são, por outro exercitam a tarefa de continuar a ser, burlando toda a lógica posta e contrariando a velha máxima de que apenas recai sobre as pessoas negras a negatividade do existir.

Durante toda a história do povo negro há aqueles que não conseguiram resistir, mas há também aqueles que conseguiram utilizar-se de estratégias de resistência e sobrevivência desde os primórdios da escravidão. Trazendo isso para os tempos atuais, recentemente e durante a pandemia, acompanhamos essas potências de forma bem objetiva.

Verificamos que os estudos sobre a ancestralidade negra vão apontando essas formas de potências, considerando o que os antepassados construíram para que o presente fosse possível e, dessa forma, fortalecendo um futuro.

A pandemia é a prova disso! Apesar de terem sido as pessoas negras as mais atingidas pela Covid-19 em relação aos mortos, segundo o Relatório “Pesquisa Sem Parar”, da organização feminista Sempreviva, sobre o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, constatou-se que de modo geral aumentou o número de mulheres que passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém. Em relação às mulheres negras houve um aumento em 52%. Essa dimensão do cuidado nos remete a uma forma de atenção à saúde mental, já que estão atentas ao monitoramento das necessidades e da companhia umas das outras.

Outro dado curioso é que, apesar do aumento da precariedade da vida, trazida pelo isolamento social e a perda do trabalho formal, houve um aumento de 52% de mulheres negras desempregadas. Essas mulheres que tiveram dificuldade sobre como pagar em dia suas contas e como fazer a manutenção da vida, buscaram outras formas de sobrevivência –e os números evidenciaram que 61% das mulheres que estão na economia solidária, por exemplo, são negras. 

Pesquisas indicam que durante a pandemia as pessoas negras reuniram suas forças para ajudarem sua comunidade, o que demonstra uma alta capacidade criativa, organizando novas soluções para o bem viver, mesmo em um cenário caótico, assustador e desumanizante.

Como podemos constatar, falar da saúde mental da população negra não é uma tarefa fácil, diante de uma realidade que traz dados massacrantes de qualquer subjetividade. Porém, falar de saúde mental também é falar de vida, seja ela nascida da dor de não poder ser e existir, seja ela nascida da potência que é viver as contradições das minorias oprimidas.

Outras formas de potência que já estão aí há muito tempo e devem ser reconhecidas, veneradas e divulgadas, são os trabalhos como os que realizam os coletivos como o Criola –uma organização composta por mulheres negras que há quase 30 anos vem pensando estratégias de defesa e promoção dos direitos das mulheres negras. O instituto AMMA Psique e Negritude, uma organização cuja atuação está pautada no enfrentamento do racismo, da discriminação, do preconceito –que produzem efeitos psicossociais negativos na saúde mental da população negra. Outro bom exemplo é o Fundo Baobá para Equidade Racial, que vem disponibilizando acesso a diversos ciclos de vida da população negra, para o fortalecimento de lideranças com a perspectiva de aumentar a equidade racial.

São organizações formais e informais que nascem de pessoas negras, para pessoas negras e com pessoas negras, a partir da dor do aniquilamento da subjetividade de pessoas negras.

Falar de saúde mental da população negra é também falar deste trampolim para a potencialidade, que gera possibilidade do bem viver.

Pense nisso. 

O que você tem feito para dar qualidade à saúde mental da população negra?

 

Magna Barboza Damasceno é Mestre em Psicologia Social pela PUC SP, especialista em Gestão pública pela FESPSSP, em Impactos da Violência na Saúde pela (ENSP/FIOCRUZ) e em Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde, pelo Instituto Sírio-Libanês, é coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP). Liderança acelerada pelo Fundo de Equidade Racial Baobá e Ganhadora do prêmio viva promovido na parceria entre o Instituto Avon e a Revista Marie Claire.

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América Latina precisa ser agressiva para transferir renda durante a pandemia: entrevista com Andrés Velasco https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/20/america-latina-precisa-ser-agressiva-para-transferir-renda-durante-a-pandemia-entrevista-com-andres-velasco/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/20/america-latina-precisa-ser-agressiva-para-transferir-renda-durante-a-pandemia-entrevista-com-andres-velasco/#respond Mon, 21 Sep 2020 02:15:27 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/WhatsApp-Image-2020-09-20-at-15.56.16-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=278 Pablo Peña Corrales
Miguel Lago
Fernando Falbel

A América Latina vive um momento extremamente delicado. A região é uma das mais afetadas pela pandemia da Covid-19, com mais de 320 mil mortes confirmadas, quase um terço do número total mundial. Previsões estimam que a economia encolha cerca de 10% neste ano.

Para entender esses múltiplos desafios de ordem sanitária, econômica, social e política na região, o blog Saúde em Público falou com Andrés Velasco, um dos mais influentes intelectuais latino-americanos.

Hoje reitor da escola de políticas públicas da prestigiosa London School of Economics, Velasco foi ministro da Fazenda do Chile (2006-2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet) e é pré-candidato à Presidência do país.

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Antes da pandemia do novo coronavírus, a saúde já era uma das grandes preocupações da América Latina. Dos protestos brasileiros em 2013 às manifestações chilenas em 2019, a saúde também tem sido uma demanda frequente. Por que os latino-americanos parecem tão insatisfeitos com seus sistemas de saúde? Sem dúvida, muitas pessoas estão insatisfeitas, e isso não é surpreendente por vários motivos.

Em primeiro lugar, muitos sistemas na região deixam muito a desejar.

Em segundo lugar, se há algo que sabemos sobre as tendências de médio prazo da economia e da sociedade, é que os tratamentos médicos estão se tornando mais caros.

Quando um país é muito pobre, as pessoas morrem de diarreia. Isso pode ser corrigido com gastos públicos limitados. Quando o país eleva seus padrões e as pessoas morrem de câncer, ataques cardíacos ou similares, é mais caro tratar, requer maior infraestrutura, maior nível de sofisticação, maior cobertura, e, nessa dimensão, todos os nossos sistemas ficam aquém.

Terceiro, a saúde é muito difícil de reformar. [O ex-presidente dos Estados Unidos Bill] Clinton, que falhou na tentativa, sabe muito bem disso; [Barack] Obama, que conseguiu fazê-lo —embora com dificuldades que ainda não foram completamente superadas, em parte porque não existe uma receita óbvia e compartilhada—, também o sabe.

Agora, não sejamos unanimemente pessimistas. Nos principais países da região, como Uruguai ou Chile, a expectativa de vida ao nascer é próxima à dos países desenvolvidos, embora gastando cerca de um terço ou um quarto per capita.

Portanto, há algo a partir do qual se pode construir, mas ainda há muito a ser feito. Nos países menos desenvolvidos, alguns da região andina, outros da América Central ou do Caribe, praticamente tudo está por fazer, tanto em termos de cobertura quanto de qualidade.

Especialistas como Ezekiel Emanuel, da Universidade da Pensilvânia, afirmam que muitas vezes exageramos o impacto dos tratamentos médicos sobre a saúde e argumentam que os resultados de saúde são explicados principalmente por fatores exógenos, como pobreza, alimentação ou desigualdade. O sr. acha que falta uma visão ampla da saúde na América Latina? Provavelmente, sim. Existe uma correlação evidente entre a pobreza e o impacto de certos choques, conforme evidenciado pela Covid. E isso não é um problema apenas na América Latina.

No Reino Unido, a taxa de mortalidade entre minorias étnicas é três vezes a taxa de mortalidade do resto da população. No entanto, esse não é um argumento para não melhorar os sistemas de saúde, mas sim para melhorá-los e também avançar em outras direções.

Mas, como governar é priorizar, e não há país que possa fazer tudo ao mesmo tempo, você tem que se perguntar onde estão as prioridades e onde estão os recursos. Desse ponto de vista, melhorar a saúde é provavelmente algo que pode ser alcançado em um prazo mais próximo do que abolir a pobreza ou acabar com a desigualdade.

Em alguns países, como México e Brasil, mais do que se esconderem atrás de especialistas, os líderes políticos parecem ignorá-los por completo. O que os líderes regionais, os cidadãos e a sociedade civil podem fazer para influenciar a resposta nacional? Espero que a sociedade, nas próximas eleições, leve em consideração o desempenho desastroso, catastrófico e patético de alguns desses líderes populistas que não acreditam na ciência.

Expressar um certo ceticismo sobre a sabedoria científica, que é o que acabei de fazer, parece-me inevitável. Mas ir ao extremo de sustentar, como disse o presidente do Brasil, que o vírus foi uma invenção da imprensa para prejudicá-lo, ou ao ponto de fazer como fez o presidente do México, que continua organizando atividades políticas nas quais aperta as mãos e abraça seus correligionários porque é muito macho e o vírus não atinge os machos, é um ato de irresponsabilidade brutal que seria tragicômico se não tivesse provavelmente custado milhares ou dezenas de milhares de mortes.

E o mecanismo que temos nas democracias para punir aqueles que se comportam de forma irresponsável é negar-lhes o voto da próxima vez.

Como a economia da América Latina será afetada? Acho que a crise econômica vai se traduzir em um agravamento de muitas coisas na América Latina. Falemos em termos quantitativos. Em quase todos os países da América Latina, salvo raras exceções, o PIB vai se contrair em 10%, um pouco mais ou um pouco menos, neste ano.

Com isso, esta será a maior crise da América Latina: para alguns países, desde os anos 1980, e, para outros, provavelmente desde a Grande Depressão. É verdade que esperamos um crescimento positivo no próximo ano, mas não podemos esquecer que é um crescimento a partir de um ponto muito inferior.

Portanto, a questão é quanto tempo levará para as economias produzirem a mesma coisa que produziram, digamos, em dezembro do ano passado. E suspeito que esse tempo não será de um ano. Serão dois anos ou mais.

Ademais, essa crise chega em um momento de muitas mudanças tecnológicas. Isso favorece quem tem alto capital humano, porque pode usá-lo em todo o mundo, mas é muito ruim para quem não o tem e precisa ir trabalhar em um restaurante e lavar a louça.

Além disso, alguns empregadores perceberam com esta crise que há coisas que podem ser feitas remotamente ou mesmo que as máquinas podem fazer, e, portanto, não seria surpreendente se, juntamente com a contração cíclica do emprego, houvesse uma contração estrutural do emprego.

Sou economista e otimista e acho que, quando a economia destrói empregos, também cria empregos a longo prazo. O problema é que ambos não acontecem ao mesmo tempo. A destruição é rápida, a criação é lenta e, portanto, eu não ficaria surpreso se tivéssemos um período prolongado de dois, três, quatro anos com taxas de desemprego muito altas na região.

Por fim, essa recessão prolongada afetará muito as finanças públicas. A necessidade de outro ajuste fiscal se tornará, mais cedo ou mais tarde, aguda.

E, portanto, quando os governos têm menos dinheiro, enfim, gastam menos em muitas coisas, não seria estranho que víssemos menos dinheiro indo para a saúde.

Portanto, a combinação de todos esses fatores é catastrófica. E, desse ponto de vista, não me surpreenderia se tivéssemos alguns anos em que os indicadores de saúde na América Latina, que vêm melhorando, diminuíssem fortemente.

Quais medidas econômicas podem ajudar tanto a controlar a pandemia quanto reduzir seu impacto econômico? O economista peruano Roberto Chan sintetizou uma das chaves da pandemia com uma montagem: mostrou uma foto de um ano atrás de um dos principais mercados de Lima [capital do Peru], com a praça repleta de gente. Ele então mostrou uma foto do mesmo lugar no meio da quarentena de Lima. E o que se viu? Uma praça repleta de gente. É triste, mas não é surpreendente. Em muitos lugares de Lima não há geladeira, e mais da metade da força de trabalho é informal.

Em geral, nos países em desenvolvimento, a política econômica, a política de transferências é indissociável da política de saúde. Temos que ser muito agressivos e proativos nas políticas de transferências. Tanto por razões humanitárias, porque há pessoas que não têm o suficiente para alimentar os filhos, como também por questões de saúde, porque é a melhor forma de permitir que as pessoas fiquem em casa.

Agora, qual é a dificuldade? Obviamente, existem governos que não têm dinheiro. Há, pelo menos na América Latina, uma separação muito clara entre países com capacidade de endividamento que conseguiram emitir dívidas e receber fundos e o resto.

Peru e Chile conseguiram empréstimos sem maiores problemas. O Brasil conseguiu, mas alcançando níveis de endividamento que vêm se tornando muito perigosos. A Argentina fez isso emitindo pesos, o que em algum momento trará uma pressão inflacionária.

Há também uma dificuldade prática: quando os sistemas de seguridade social são muito primários, não há um cadastro adequado das famílias, muitas das quais não têm conta em banco. Embora o governo tenha o dinheiro, não é fácil garantir que os recursos cheguem às pessoas.

No Peru, eles tentaram levar dinheiro para as famílias, o governo tinha o dinheiro, mas a única maneira de as pessoas coletarem esses recursos era ficando em uma longa fila do lado de fora de um banco.

Ora, é difícil imaginar algo mais propício ao contágio do que milhares de cidadãos amontoados na porta de um banco tentando receber um cheque ou um pagamento em dinheiro.

Concluindo, duas lições: as emergências são mais um motivo para deixar um espaço fiscal em tempos normais e precisamos regularizar e bancarizar muito mais famílias na região.

O cenário que o senhor descreve é, para dizer o mínimo, desafiador. O que recomendaria aos reformadores e líderes políticos latino-americanos que desejam melhorar a saúde em seus países Primeiro uma recomendação conceitual, depois uma recomendação tática.

O conceito é que você não deve se apegar a sistemas puros. Acho que muitas vezes na América Latina o debate sobre saúde, assim como o debate sobre a previdência, não é muito produtivo porque se discutem abstrações de mercado puro ou somente Estado, que, a bem da verdade, não existem em muitos países ou, quando existem, não funcionam muito bem.

Portanto, seria aconselhável procurar modelos híbridos adaptados às circunstâncias de cada país.

E a recomendação tática é que a saúde é uma área que precisa de reformas mais ou menos extensas. Não apenas porque é bom ser ambicioso mas porque, se o pacote de reformas for muito pequeno e incluir muito pouco, sempre haverá perdedores evidentes.

Mas,0 quando se mudam várias coisas ao mesmo tempo, é possível que, se um grupo perder aqui, ganhará ali, e isso permite fazer compensações que facilitam a viabilidade política dessa reforma.

Andrés Velasco é formado em economia e filosofia na Universidade Yale e doutor em economia pela Universidade Columbia, é reitor da escola de políticas públicas da London School of Economics; foi ministro da Fazenda do Chile (março de 2006 a março de 2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet)
 
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Precisamos resgatar a ideia de que a ciência é apartidária, diz epidemiologista de Harvard https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/#respond Mon, 07 Sep 2020 02:15:23 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/61bc2a1ab4d4a5a3801cc2bc172f73a6e91a2df41ad82036651044a4baf58dcf_5f544398abc1d-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=273  

Pablo Peña Corrales

Miguel Lago

Fernando Falbel

Em fevereiro deste ano, quando a Covid-19 parecia uma preocupação distante, Marc Lipsitch alertou para o alto risco de uma pandemia. Como professor de epidemiologia na Universidade Harvard especializado em modelagem matemática de epidemias, ele logo encontrou padrões alarmantes de contágio e mortalidade. Desde então, Lipsitch é um dos cientistas mais consultados pela mídia norte-americana para entender a evolução da pandemia no mundo.

 

Em 2019, um índice global de segurança sanitária feito pela Universidade Johns Hopkins e pela revista The Economist classificou EUA e Reino Unido como os países mais bem preparados para uma epidemia. A China não estava no top 50, e a Nova Zelândia nem no top 30. O quadro evoluiu de forma bem diferente. Como a Covid-19 mudou nosso entendimento do que significa estar preparado?  

 

 

Marc Lipsitch: A pandemia mostrou que a liderança, em nível nacional e subnacional, pode pesar mais do que dispositivos sistêmicos. Não que baste ter boa liderança; um país desprovido de infraestrutura continuará despreparado. Mas, se há capacidade sistêmica, o nível de liderança —tanto em termos de respeitar a ciência e a saúde pública como de planejamento estratégico e coordenação— pode superar todo o resto.

Os EUA não tinham plano, e a resposta tem sido mais tática do que estratégica em nível nacional. Daqui em diante, creio que os índices de preparo deverão levar em conta não só o país, mas seu governo.

A Organização Mundial da Saúde tem sido criticada por sua resposta lenta à crise, como ter demorado para aconselhar o uso de máscaras em locais públicos. A OMS argumenta que só deveria mudar suas diretrizes diante de evidências esmagadoras. O sr. concorda? 

Não. Diante de epidemias de doenças infecciosas, em que a ação precoce importa muito, o critério deveria ser a existência de evidência sugestiva de um benefício e nenhuma grande desvantagem em fazer determinada coisa. A evidência pode favorecer a ação mesmo que não seja conclusiva.

Um exemplo é o lockdown preventivo. A evidência era muito forte de que ele poderia retardar a crise por vir. Embora o lado negativo não fosse pequeno, sua mitigação era possível, de modo que defendi medidas rápidas antes de sabermos todos os detalhes e dados. Uma abordagem mais analítica de decisão, em vez de uma abordagem apenas de evidência científica, é apropriada no caso.

Nos últimos meses, houve uma explosão de artigos científicos sobre a Covid-19 compartilhados em versões preprint, antes da revisão por pares, da verificação e revisão detalhada. O fato de as proteções do rigor científico estarem sendo dribladas preocupa?

Isso é uma bênção e uma maldição, embora mais positiva que negativa.

A revisão por pares é um dentre quatro níveis de controle de qualidade científica.

O primeiro é o treinamento dos cientistas para que eles saibam o que estão fazendo —e que vem sendo driblado, com pesquisadores trabalhando em campos com que estão pouco familiarizados.

O segundo é a autoedição científica: sua reputação está atrelada à credibilidade do seu trabalho, portanto evitar estar errado é um importante incentivo. No entanto, esse processo está sofrendo uma erosão pela pressa de publicar.

A revisão pelos pares, o terceiro nível, nem sempre está acontecendo e é também um processo imperfeito, mesmo quando funciona. A replicação é o quarto, e muitas vezes não há tempo para fazer isso.

Portanto, acho que a rapidez é um problema. Dado o enfraquecimento dos mecanismos de controle de qualidade, não me preocupam os preprints, até porque elas têm aspectos positivos, como acelerar as comunicações, o que é valioso.

Fora que a revisão por pares no Twitter está realmente acontecendo, já participei de ambos os lados. Acabei de colocar um preprint no MedRxiv que recebeu muitas críticas no Twitter, muitas das quais incorporamos na nova versão.

Acho que outros mecanismos estão funcionando. Não que substituam a revisão por pares, ou que sejam perfeitos, mas quem não aceita ser criticado deveria sair da ciência.

Algumas pessoas sugerem que devemos analisar o que foi chamado de totalidade das evidências, ou seja, incluir as desvantagens dos lockdowns sobre a economia, a saúde mental, a desigualdade etc. É possível incluir tantas dimensões na tomada de decisões do dia a dia?

Eu concordo com esse princípio, de que se os bloqueios fossem mais prejudiciais em termos de saúde mental e economia do que benéficos em termos do vírus isso seria uma consideração importante contra.

Na prática, contudo, é muito difícil comparar. Primeiro, cada efeito desses é difícil de estimar. Segundo, se o vírus está se espalhando, isso tem efeitos amplos: afeta a saúde mental e a economia, pois a reação das pessoas é tentar se isolar. Não é questão de separá-los, contá-los e pesá-los. Está tudo inter-relacionado, e a dimensão temporal é confusa.

Acho que é realmente difícil e não culpo nenhuma decisão política por ter dificuldade em equilibrá-los. Mas a decisão a curto prazo, a decisão imediata de bloquear, foi válida. Minha percepção no momento é que ainda temos um equilíbrio favorável em relação a medidas de controle extremas, pois elas podem reduzir o número de casos de maneira relativamente rápida.

Isso não significa que se deva lidar assim com todo surto viral. Se este fosse menos letal, a decisão poderia ser outra.

A solução parece ser a vacina. Temos mais de 160 candidatas, mais de 20 em teste, e os resultados iniciais parecem promissores. O que está por trás deste sucesso?  

Houve enorme investimento por governos e empresas, e minha intuição diz que a busca por vacinas contra o coronavírus da Mers e da Sars, que já estava em curso, deu impulso.

Ainda ficaria surpreso se uma vacina viável chegasse, plenamente, antes de 18 meses após o começo da pandemia [antes de junho de 2021].

As previsões atuais são que talvez daqui a uns meses tenhamos duas ou três candidatas com alguma comprovação. Seria surpreendente se elas fossem vacinas excelentes, pois esta é claramente uma infecção difícil, e geralmente as primeiras vacinas inventadas são imperfeitas.

Do ponto de vista da saúde pública, há uma forma ideal de distribuir a vacina? Seria por nível de vulnerabilidade ou é melhor imunizar totalmente toda uma região? Alguma estratégia parece mais eficaz? 

Depende das características da vacina. Há de se ver se ela oferece proteção contra infecção e transmissão ou apenas protege contra doenças. Ainda é cedo, mas meu palpite é que ela fará um pouco dos dois. Algumas pessoas interpretaram que os ensaios em símios da vacina de Oxford sugerem ser mais provável que ela proteja só contra doenças; eu acho que não necessariamente.

Se ela protege contra doenças e sintomas graves, será importante vacinar antes pessoas de alto risco; se ela protege contra a transmissão, pode valer a pena priorizar profissionais de saúde e outras pessoas.

A segunda dimensão é se ela funciona tão bem nas pessoas de alto risco como funciona nos jovens saudáveis. Se sim, há um argumento forte para priorizar as pessoas com maior risco de complicação, sobretudo se houver um número limitado de doses.

Se não funciona tão bem neles, então acaba sendo melhor uma estratégia em que se vacinam prioritariamente as classes de transmissão, em grande parte pessoas jovens, saudáveis, e depois se tenta proteger os idosos e as populações de risco indiretamente.

A resposta está na interseção dessas duas questões. Quando a primeira vacina for aprovada, não teremos certeza de nada disso, pois os ensaios não têm o poder de estudar os efeitos em todos os subgrupos.

Em países como os EUA e o Brasil, questões técnicas como usar máscara ou tomar hidroxicloroquina viraram questões partidárias. Seria possível isolar a resposta científica à Covid-19 da política? 

Isso exigirá esforços a longo prazo, e o terreno dessa politização foi preparado por grupos de esquerda e de direita, mas sobretudo de direita, que politizaram questões científicas como vacinas e mudança climática.

A visão de que a ciência é para todos e não tem partido precisa ser recuperada.

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Uma proposta de agenda para o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/31/uma-proposta-de-agenda-para-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/31/uma-proposta-de-agenda-para-o-sus/#respond Mon, 31 Aug 2020 23:16:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Samu_em_Ibotirama_2011-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=264  

Ricardo de Oliveira

A pandemia da Covid-19 jogou uma luz forte sobre a importância do SUS na proteção à saúde da população e da necessidade do seu aperfeiçoamento. O desafio é complexo, mas o setor saúde tem profissionais e organizações qualificadas capazes de ajudar o país a superá-lo, conforme observamos no enfrentamento da atual pandemia.

Para superar esse desafio é necessário estabelecer uma agenda que oriente os debates sobre como melhorar a prestação de serviços do SUS.

Essa agenda deve contemplar as várias dimensões que impactam a prestação dos serviços de saúde, conforme abaixo relacionado:

  1. REORGANIZAÇÃO DO MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE

Essa agenda se impõe, especialmente pela atual transição demográfica que indica um envelhecimento da população e consequente predomínio das doenças crônicas. O novo modelo deve superar a atual fragmentação do sistema de saúde, de modo a promover maior articulação e coordenação entre os vários níveis de atenção (primária, ambulatorial especializada e hospitalar) e, assim, organizar melhor o fluxo dos usuários dentro do sistema. É necessário, também, promover os conceitos de vida saudável (alimentação e exercício físico), do auto cuidado e implantar as Redes de Atenção à Saúde. É fundamental o fortalecimento da atenção primária como porta de entrada nas redes de assistência e coordenadora do processo de atendimento. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) desenvolve dois importantes projetos para reorganizar o modelo de atenção à saúde: a planificação da atenção primária e da ambulatorial especializada.

  1. FINANCIAMENTO

Os aportes financeiros ao SUS são baixos, se comparados aos exemplos internacionais. O Brasil se encontra muito aquém do nível de gasto público necessário para financiar um sistema público e universal de saúde. O país tem um gasto público que corresponde a 47% do gasto total em saúde (público e privado), enquanto nos outros países, com sistema universal, está em torno de 70%. O nosso gasto público em saúde corresponde a 3,8% do PIB enquanto no Reino Unido é de 7,9%. No entanto, quando consideramos o gasto total, em relação ao PIB, constatamos que os nossos gastos são semelhantes aos desses países. O Brasil gasta 8,9% do PIB e o Reino Unido, considerado o melhor sistema público do mundo 9,9%.

  1. REGIONALIZAÇÃO

Um dos problemas que impactam a gestão do SUS é a excessiva municipalização dos serviços de saúde, sem que exista escala que viabilize a prestação desses serviços. A consequência é a pulverização de recursos, contribuindo para a ineficiência do sistema e prejudicando a qualidade do atendimento aos usuários do SUS. É preciso, portanto, desenvolver uma lógica política baseada em uma visão regional de assistência à saúde que promova cooperação entre os vários níveis de governo por região.

  1. REVISÃO DO MODELO DE GESTÃO

A revisão do modelo de gestão do SUS é importante para que possamos transformar os recursos disponíveis em serviços eficientes e de qualidade à população. Para tanto, o setor público de saúde deveria ter regras de gestão específicas por tratar de questões relacionadas com a qualidade e a manutenção da vida.

Relaciono a seguir, as questões que considero relevantes que interferem no ambiente de gestão do SUS:

– O atual marco regulatório administrativo e de controle do setor público que prioriza os processos ao invés dos resultados no atendimento.

– A atuação dos Tribunais de Contas e Ministérios Públicos que dificultam a formação de equipes técnicas e gerenciais em função de um temor generalizado em assinar documentos ou decidir sobre processos em andamento.

– Os sistemas de informação devem ser aprimorados, inclusive para viabilizar a implantação do cartão SUS e o prontuário eletrônico.

– As dificuldades na coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. Além do sistema tripartite, temos o Judiciário, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, os Conselhos Profissionais, dentre outros.

– A cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas na relação do Estado com a sociedade que provoca ineficiências e favorece a corrupção. Essas práticas induzem à descontinuidade administrativa sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e a frequente troca de gestores.

  1. JUDICIALIZAÇÃO

O crescimento exponencial da judicialização da saúde é um fenômeno recente e tem sérias consequências na execução da política pública de saúde. Ela está criando outra porta de entrada no SUS, comprometendo a equidade no acesso aos serviços e mobilizando vultuosos recursos. Convém ressaltar que o acesso à justiça faz parte do Estado democrático de direito, porém, precisamos debater com urgência as razões do seu crescimento excessivo.

A justiça tem responsabilizado o gestor criando um clima que impacta fortemente o desempenho gerencial. Cada dia torna-se mais difícil selecionar profissionais para assumir cargos de chefia, uma vez que o risco de serem culpabilizados pessoalmente cresce com o aumento da judicialização. É necessário estabelecer, com urgência, um ambiente de segurança jurídica que afaste o risco dos profissionais serem responsabilizados pelas deficiências de atendimento na prestação de serviços de saúde por obrigações do Estado.

  1. COMPLEXO INDUSTRIAL, CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO DA SAÚDE

A pandemia do Covid-19 mostrou que o país possui uma boa infraestrutura de ciência e tecnologia e profissionais capacitados e, a necessidade de aumentar o investimento na área. Contudo, foi possível identificar deficiências que devem ser corrigidas. Precisamos, por exemplo, aumentar e qualificar nossa capacidade laboratorial e reduzir a dependência externa em relação a insumos de proteção individual dos profissionais (EPIs) e na produção de medicamentos. Essas demandas específicas e outras, podem alavancar o nosso parque industrial na internalização de tecnologias estratégicas para atender às necessidades da saúde. Uma das preocupações da política de saúde tem sido a relação com o setor produtivo para suprir as necessidades do país e deve ser fortalecida.

  1. PARCERIA COM O SETOR PRIVADO FILANTRÓPICO, ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE E EMPRESAS PRIVADAS

O SUS compra serviços e produtos de vários parceiros do setor privado, como as organizações filantrópicas, as organizações sociais de saúde e as empresas privadas, uma vez que não tem estrutura suficiente para prestação de todos os serviços, tampouco produz tudo que precisa. O funcionamento adequado dessas parcerias depende fundamentalmente da capacidade do poder público de selecionar bons fornecedores, fiscalizar a aplicação dos recursos e a qualidade do atendimento aos usuários.

Uma questão importante na política de saúde é estabelecer um diálogo com as operadoras de seguro saúde com objetivo de buscar acordo sobre sua área de atuação, financiamento e sua relação complementar com o SUS na prestação de serviços. A falta de uma visão consensuada tem gerado um conflito dentro do setor saúde que provoca ineficiências.

É preciso utilizar com eficiência todos os recursos disponíveis na área de saúde, público e privado, para atendimento à população, obedecendo os mandamentos constitucionais.

Por fim, é preciso construir uma unidade política com todos os atores envolvidos, tendo como objetivo defender os interesses dos usuários do SUS. É preciso reconhecer que o SUS é fruto de uma obra coletiva, que envolve toda a população e várias instituições, perpassa vários governos e, precisa de continuidade nas suas políticas, como forma de garantir o direito à saúde. Há uma frase muito utilizada pelo CONASS que sintetiza esse diagnóstico: “O SUS não é um problema sem solução, é uma solução com problemas”.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, consultor em gestão pública e palestrante. Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012. 

 

 

 

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Globalização almejada até a chegada do vírus é inatingível https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/globalizacao-almejada-ate-a-chegada-do-virus-e-inatingivel/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/globalizacao-almejada-ate-a-chegada-do-virus-e-inatingivel/#respond Mon, 24 Aug 2020 02:15:15 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/WhatsApp-Image-2020-08-23-at-16.38.05-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=248  

Miguel Lago e
Pablo Peña Corrales
Há décadas, Dani Rodrik, professor de economia na Universidade Harvard, adverte sobre os perigos de uma globalização excessiva, que ameaçaria a democracia e a soberania nacional, e critica receitas clássicas de liberalização e desregulação para o desenvolvimento econômico.
Agora, o economista afirma que estamos “começando a perceber que o tipo de hiperglobalização que tentamos ter até a [chegada da] Covid-19 não é mais atingível”.
“Mas muitas dessas tendências nas cadeias de valor globais já estavam se estabelecendo há mais ou menos uma década.”
As ideias de Rodrik, consideradas por muito tempo heterodoxas, estão agora no centro do debate público. Uma delas, a teoria do trilema da economia global, diz que não se pode perseguir simultaneamente democracia, soberania nacional e globalização econômica.
Se a ideia é impulsionar a globalização, afirma o acadêmico, será necessário desistir do Estado-nação ou de políticas democráticas. Se o projeto for aprofundar a democracia, é preciso escolher entre integração econômica internacional e autodeterminação nacional. Por fim, se a soberania nacional for a prioridade, será necessário apostar na democracia ou na globalização.
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Durante a crise da Covid-19, a globalização parece ter diminuído drasticamente. Esse movimento é temporário ou duradouro? Muitos indicadores econômicos mostram uma forte queda, e não sabemos ainda quanto tempo vai demorar para se recuperar. Mas o quadro geral é que muitas dessas tendências no comércio e nas cadeias de valor globais já estavam se estabelecendo há mais ou menos uma década. Após a crise financeira global de 2008, o comércio mundial começou a desacelerar a expansão das cadeias de valor globais, e começamos a ver uma regionalização cada vez mais forte.
Se observarmos a proporção das exportações no PIB, a China viu uma queda em torno de 15 pontos percentuais, e a Índia caiu algo como cinco pontos percentuais. Portanto, há tendências seculares em curso que nos afastam do que eu chamaria de “hiperglobalização”.
Nessa nova globalização, e diante da Covid-19, como ficará a mobilidade da mão de obra e a migração global? Mais limitada? Penso que sim. Mas gostaria de salientar que os países estavam começando a limitar o fluxo internacional de pessoas. Nunca tivemos um regime internacional que regulasse e liberalizasse progressivamente a circulação de pessoas entre países, ao contrário do que ocorre com comércio de bens, serviços, capital e finanças.
Eu diria que, nos últimos 20 ou 30 anos, uma combinação de globalização crescente e tendências tecnológicas realmente afastaram as sociedades umas das outras. Tem havido muita insegurança, econômica, cultural, física e, agora, cada vez mais, de saúde.
O sr. disse que existem diferentes tipos de globalização. Vivemos três globalizações diferentes desde o final do século 19, e acho que poderíamos facilmente imaginar diferentes variantes no futuro. Diferentes globalizações se distinguem pelos mercados em que a globalização ocorre. Com o padrão ouro no final do século 19, por exemplo, a globalização era uma em que não se tinha apenas capital, mas também livre mobilidade de trabalhadores, algo que não existe depois da Segunda Guerra, quando ela focou mais bens industriais.
O tipo de globalização que tivemos desde a década de 1990 restringiu cada vez mais o que os governos eram capazes de fazer em suas economias domésticas. A tarefa agora é visualizar uma globalização que será muito mais consistente com o tipo de diversidade que temos no mundo.
Precisamos alcançar um equilíbrio entre os ditames de uma economia mundial aberta e as preferências de diferentes nações para conduzir seus modelos econômicos e sociais.
Como podemos identificar quais áreas precisam de regras globais e quais áreas deveriam ser reguladas por determinação nacionais? Há dois critérios que nos moveriam na direção da cooperação global. Um deles é se questionar se existem características de bens públicos. Se sim, haveria incentivos significativos para que os países ajam como passageiros clandestinos e gerem resultados muito negativos para o mundo como um todo se não houver regras globais ou disciplinas globais?
Duas áreas em que isto se aplica especialmente são, primeiro, a mudança climática, porque ela afeta a todos, mas nenhum país quer pagar o custo da descarbonização, e, segundo, a saúde pública, incluindo o desenvolvimento de vacinas e terapias. Curiosamente, a maioria das áreas econômicas em que temos realmente procurado criar regras globais não tem características de bem público global.
Os países têm interesse em estabelecer regulamentos financeiros adequados, políticas econômicas abertas e estabilidade macroeconômica. Portanto, os países relativamente bem governados tenderiam a perseguir políticas econômicas que também são boas para todos os outros.
Um segundo critério para a cooperação global é evitar políticas genuinamente mesquinhas. Elas são relativamente poucas: o abuso do poder de mercado, por exemplo, com países que produzem alguma mercadoria rara e podem aumentar os preços nos mercados mundiais, ou países que estabelecem paraísos fiscais para empresas fictícias. Se não tivermos bens públicos ou políticas mesquinhas, acho que o instinto deveria ser deixar os países escolherem o que querem fazer por conta própria.
Que tipo de coordenação global precisamos nas políticas de saúde? Todo regime global enfrenta uma espécie de compromisso entre os benefícios das regras comuns e os benefícios da diversidade, ou a experimentação de regras.
Na saúde, é muito importante ter uma cooperação global em redes de informação e conhecimento. No caso da Covid-19, houve atrasos significativos no compartilhamento de informações, e outros países pagaram caro por isso. Outra grande área da saúde em que haveria benefícios significativos de uma cooperação global seria o desenvolvimento de vacinas.
Uma vez que a vacina é desenvolvida, o custo para utilizá-la é muito pequeno. Se tivéssemos um sistema de saúde pública global realmente bom, a pesquisa para a vacina seria realizada por meio de uma organização de saúde global.
Há outras áreas em que precisamos ser mais cuidadosos. Se você centralizar as recomendações de resposta [a crises], pode acabar coordenando políticas erradas, e às vezes há benefício em deixar os países seguirem seus próprios caminhos para que possam descobrir o que funciona melhor.
Um exemplo concreto disso é que, no início, a OMS [Organização Mundial da Saúde] foi bastante contrária ao uso de máscaras, o que acabou se revelando, em grande parte, um erro. Em um mundo onde a OMS fosse levada muito mais a sério e, assim, muitos mais países seguiriam suas recomendações provavelmente teríamos ficado em uma situação pior.
O trilema que o sr. desenvolveu sugere que os países só podem escolher dois elementos entre globalização, soberania nacional e democracia. A soberania nacional está no caminho para dominar essa trindade? A razão pela qual isso está acontecendo é que principalmente os populistas autoritários de direita têm entendido efetivamente a lógica do trilema. Eles aproveitaram as tensões que o trilema destaca para ganhar impulso político e não estão interessados em fortalecer a democracia, porque seus instintos tendem a ser autoritários.
Penso que a única maneira de sairmos dessa situação é esperar que tenhamos forças políticas progressistas, uma espécie de populismo de esquerda que possa não só capturar o terreno em termos de soberania nacional, mas também fazê-lo de uma forma que não prejudique as normas democráticas. Voltando ao trilema, você pode ter no máximo dois [dos três pontos] e certamente pode ter dois. Nós estamos tendo apenas um, e isso não é bom.
A reivindicação por soberania nacional acrescentou mais tensões políticas em organizações internacionais. É algo que temos que tolerar ou existem maneiras de alcançar uma globalização mais tecnocrática? Não creio que possamos ou devemos ter uma globalização tecnocrática. A economia, a saúde ou o meio ambiente não são questões puramente técnicas; elas têm ramificações de distribuição muito significativas. Impossível imaginar qualquer tipo de regime político que seja ou deva ser isolado da política.
A maioria das instituições de representação de responsabilidade é em nível local e nacional e, nas instituições globais, a cadeia de delegação democrática é muito longa. Essa é outra razão pela qual teremos muito cuidado ao delegar demais a organizações internacionais, pois isso tende a fortalecer interesses particulares que têm os recursos e a capacidade de influenciar essas organizações.
Estamos começando a perceber que, de fato, o tipo de hiperglobalização que tentamos ter até a Covid-19 não é mais atingível. Acho que isto poderia ser o tipo de motor de uma globalização mais multifacetada, mais contextual, mais flexível. Certamente também existem cenários ruins, e receio não poder ignorá-los. Depende um pouco de que lado da cama me levanto.


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Bom para a saúde, bom para a economia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/26/236/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/26/236/#respond Sun, 26 Jul 2020 21:28:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/man-smoke-beer-wheat-preview-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=236  

Paula Johns

 

Estamos no meio de uma pandemia de saúde pública e iniciando as discussões sobre a reforma tributária, uma oportunidade para tratamos do tema saúde e economia com um olhar mais global sobre ambos os termos, onde a dicotomia não existe. A Organização Mundial da Saúde define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Portanto, cuidar e promover a saúde não pode ou deve significar um gasto e sim um investimento.

Existe uma certa ilusão sobre a ideia de mercado livre quando defendemos medidas regulatórias, emergindo um pressuposto de que a regulação da livre iniciativa seria um entrave ao crescimento da economia e ao desenvolvimento. Até mesmo nos países mais liberais do mundo não existe um mercado verdadeiramente livre. Tanto o mercado como a economia funcionam inseridos numa série de regras, que por sua vez foram criadas em contextos sociais regidos por relações de poder que refletem as assimetrias econômicas e iniquidades da sociedade. Na maioria dos casos, poder econômico se traduz em poder político e no fator determinante das regras de funcionamento do mercado e da sociedade.

A necessidade de se fazer uma reforma tributária no Brasil é um tema em que há uma concordância entre todos os matizes ideológicos e, portanto, é importante que seja amplamente debatido do ponto de vista da eficiência econômica e da redução das iniquidades tributárias existentes no Brasil. Alcançar mais financiamento para a saúde é também prioritário.

Como representantes de uma organização que atua no campo da saúde pública, ouvimos que determinadas atividades econômicas poderiam até não ser boas para saúde, mas boas para economia. Esse argumento foi repetido por décadas em relação ao tabaco. Na medida em que as evidências sobre os malefícios do cigarro se acumulavam, aumentava a quantidade de argumentos relativos ao número de empregos gerados e ao desastre econômico que aconteceria caso adotássemos medidas regulatórias de controle do tabagismo. Em especial a tributação majorada com objetivo de redução de consumo de cigarros.

A história se repete em relação ao álcool e à categoria de alimentos ultraprocessados. Onde existe o reconhecimento de que determinados produtos são nocivos à saúde, prospera a argumentação de que o caminho para alcançar a redução de consumo não é a tributação e que o melhor a fazer seria educar crianças e adultos sobre os malefícios e estes, num cenário de suposta plena informação, fariam as melhores escolhas. Lamentavelmente não é assim que funciona na vida real.

Hoje, é sabido e comprovado que as medidas regulatórias de controle do tabagismo vêm sendo responsáveis pela redução expressiva de consumo de cigarros onde são adotadas, sendo o Brasil um desses países. Dentre as quatro principais políticas, restrição de publicidade, ambientes livres de fumo, advertências nos rótulos e tributação, a mais efetiva para redução de consumo é tributação, de acordo com o Banco Mundial e outros estudos.

Levantamento de uma Força-Tarefa de especialistas internacionais sobre políticas fiscais de saúde, feito em 2018,  chegou à conclusão que estas têm um papel fundamental nos debates sobre desenvolvimento, saúde e arrecadação em nível nacional. Impostos altos sobre consumo de tabaco, álcool e bebidas adoçadas são ferramentas essenciais para que os países consigam atingir a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, garantir a saúde, acabar com a pobreza e promover empregos.  Conforme destacado na Agenda de Ação de Adis Abeba, a partir do caso do tabaco, impostos sobre esta categoria de produtos aumentam a arrecadação, que por sua vez pode ser investida na saúde.

Este relatório conclui que as mortes prematuras associadas ao consumo de tabaco, álcool e bebidas adoçadas, que chegam à cifra de 10 milhões anuais, poderiam ser prevenidas. De acordo com o documento, se todos os países aumentarem seus impostos para elevar os preços de tabaco, álcool e bebidas açucaradas em 50%, mais de 50 milhões de mortes prematuras podem ser evitadas em todo o mundo nos próximos 50 anos, arrecadando mais de US$ 20 trilhões em receitas adicionais.

A resistência dos governos para elevar tributos que podem salvar vidas, como indica o título do relatório, vem impacto na saúde, levantam dúvidas sobre a eficácia da medida, superestimam os dados de emprego, comércio ilícito e que afetarão desproporcionalmente os pobres. No entanto, as evidências demonstram que esses argumentos não justificam a inação, além de serem falsos ou exagerados. dos fabricantes e de seus aliados que se beneficiam economicamente da venda desses produtos. Como é mais difícil refutar os argumentos relativos aoMuito pelo contrário, elevar impostos de produtos que geram enormes danos e custos à saúde e ao planeta e perda de produtividade é uma forma de minimizar o custo das externalidades que hoje não compõem o preço final destes produtos.

Nesse sentido, as recomendações do relatório clamam aos países e à comunidade internacional para agir e adotar essa ferramenta subutilizada para reduzir o que devemos consumir menos para melhorar a nossa saúde e para aumentar a arrecadação, rumo a um mundo mais saudável e sustentável para todos.

Portanto, é mais do que oportuno trazer esse tema para os debates em torno da reforma tributária no Brasil.

 

Paula Johns é diretora geral da ACT Promoção da Saúde

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Informação e transparência como ferramenta de prevenção e controle da Covid-19 e outras doenças https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/20/informacao-e-transparencia-como-ferramenta-de-prevencao-e-controle-da-covid-19-e-outras-doencas/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/20/informacao-e-transparencia-como-ferramenta-de-prevencao-e-controle-da-covid-19-e-outras-doencas/#respond Sat, 20 Jun 2020 23:00:09 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/system-web-digitization-technology-digital-communication.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=208  

 

Roberta Costa Marques

 

Desde o início da pandemia, a ausência de uma diretriz nacional de enfrentamento à Covid-19 é agravada pelo reduzido número de testes, gerando deficiência de registros que impossibilitam desde a organização planejada do Sistema Único de Saúde até a retomada gradual das atividades econômicas e sociais em segurança. Não bastassem os parcos avanços na testagem, fomos mais uma vez pegos de surpresa pelo Ministério da Saúde, que deixou de divulgar os casos e mortes acumulados, comunicando uma nova metodologia de cálculo e causando indignação da sociedade civil e de autoridades em meio ao caos sanitário. Sem informações transparentes, não é possível saber ao certo quantas pessoas morreram, quantas estão infectadas, em que direção e com que velocidade a doença se propaga – informações epidemiológicas imprescindíveis para governos realizarem ações de vigilância e controle de doenças e prevenir futuras ocorrências.

 

Diante desse cenário, rapidamente, algumas organizações se uniram para cobrir esta lacuna, como foi o caso do consórcio inédito criado por veículos de comunicação e também o portal do Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), que reúne informações estaduais atualizadas diariamente, além de outras importantes iniciativas. No entanto, ainda que essas iniciativas cumpram papel fundamental na garantia do direito à informação, o país continua sem uma fonte oficial única de dados consolidados para direcionar ações de enfrentamento ao novo vírus e gerar confiança e adesão da população a essas políticas.

 

Infelizmente, a dificuldade para acessar dados com a pandemia do coronavírus, embora por razões diferentes, não é algo novo no campo da saúde pública. A epidemiologia é uma ciência pouco valorizada e utilizada para o planejamento e a tomada de decisão dos gestores públicos, quando diversas outras doenças se beneficiariam da vigilância epidemiológica rigorosa e permanente, como é o caso das doenças pediátricas.

 

O Brasil tem vivenciado mudança do perfil epidemiológico das doenças que acometem crianças e adolescentes, com queda acentuada da mortalidade por doenças transmissíveis e aumento das doenças crônicas não transmissíveis. Isso ocorreu quando doenças infecciosas associadas à pobreza foram controladas com vacinas e acesso à saúde básica, fazendo com que, por exemplo, o câncer tenha se tornado a primeira causa de morte por doença na faixa etária de 1 a 19 anos. Uma mudança dessa natureza só foi perceptível graças à vigilância epidemiológica, que subsidia o planejamento e a organização da rede de atenção por parte dos gestores públicos, direcionando a assistência para o controle do câncer infantil como, por exemplo, na promoção do diagnóstico precoce e do acesso rápido ao tratamento especializado de qualidade.

 

Outro exemplo é a obesidade infantil, uma epidemia mundial e silenciosa que acomete 1 a cada 3 crianças atendidas pelo SUS no Brasil e que é fator de risco para diversas doenças crônicas, além de causar uma série de complicações ainda na infância. Qualificar, ampliar e dar transparência ao Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), por onde é possível monitorar o peso, altura e consumo alimentar de crianças e adolescentes, é fundamental para o controle da obesidade infantil.

 

O Instituto Desiderata monitora a situação do câncer e da obesidade em crianças e adolescentes do Rio de Janeiro e publica panoramas anuais que reúnem essas informações, com o objetivo de chamar atenção para essas questões e contribuir para o seu enfrentamento. A partir desse trabalho, podemos dizer que os sistemas de registro avançaram nos últimos cinco anos, mas estão ainda muito aquém do esperado para o controle dessas doenças.

 

Os últimos Registros Hospitalares de Câncer completos disponíveis oficialmente são do ano de 2013, quando o atraso máximo recomendado pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) é de até dois anos. Além disso, algumas variáveis são preenchidas inadequadamente, como é o caso da informação sobre o estadiamento dos tumores, ausente em 40% dos casos registrados. Sem essas informações, não é possível saber a extensão da doença, seu nível de gravidade e quais as chances de cura, e, portanto, fazer seu controle. Em relação ao SISVAN, a cobertura de aferição do estado nutricional ainda é baixa, cerca de 15,7%, e o monitoramento de peso, altura e consumo alimentar de crianças e adolescentes não é uma rotina na atenção básica, diante da invisibilidade do problema e do foco no tratamento de doenças, em detrimento da prevenção. Apesar dos desafios e limitações ainda encontrados nessas bases de dados, esses são sistemas nacionais e oficiais que norteiam as pesquisas e as políticas públicas para prevenção e controle de doenças e é preciso que sejam cada vez mais aprimorados e utilizados.

 

No caso da Covid-19, infelizmente, o que tem sido produzido até aqui é uma chuva de mensagens contraditórias, pouca transparência dos poucos dados existentes e muitas barreiras para a produção de registros, gerando muita incerteza e impedindo um enfrentamento estratégico à pandemia.

 

A implementação qualificada e disponibilização regular dos sistemas de informação em saúde demanda ações integradas, tais como capacitação de registradores, infraestrutura adequada, e, sobretudo a sensibilização dos diversos níveis de gestão para a importância da transparência e do registro como ferramentas de planejamento, prevenção e controle de doenças.

 

Informação transparente é base para o desenho e a implementação de políticas públicas. Que a experiência que estamos vivenciando com o novo coronavírus traga aprendizados concretos e mobilize a sociedade e gestores para a importância do uso de informações confiáveis para fortalecer o sistema público e melhorar a saúde das pessoas.

 

 

Roberta Costa Marques é Diretora Executiva do Instituto Desiderata e membro do Global Advocacy Consulting Group da União Internacional de Controle do Câncer.

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Saúde e economia: os dois lados da mesma moeda https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/saude-e-economia-os-dois-lados-da-mesma-moeda/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/saude-e-economia-os-dois-lados-da-mesma-moeda/#respond Thu, 28 May 2020 11:20:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/virus-4970581_1920.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=177 Paula Johns

 

A polarização extrema que transforma tanto assuntos sérios quanto os mais banais em disputas políticas não é exatamente uma novidade no Brasil. A chegada da Covid-19 ao país poderia resultar em um sentimento coletivo de união que nos faria, ao menos momentaneamente, deixar de lado opiniões e preferências em prol da luta contra o novo coronavírus.

 

Em vez disso, o que vemos em destaque é uma suposta disputa entre saúde e economia. Essas duas áreas são os pilares centrais da vida em sociedade, já que o estado de saúde, tanto física quanto mental, e o grupo socioeconômico são os parâmetros que definem a qualidade de vida e o bem-estar. A pandemia de Covid-19 vem afetando severamente ambos os sistemas e compromete de forma ainda maior os mais vulneráveis, que dependem do sistema público de saúde.

 

A resposta para tentar mitigar os impactos da epidemia passa, inevitavelmente, por políticas públicas de proteção social e promoção da saúde. As primeiras, que incluem a implementação da renda básica emergencial, já em andamento, podem ajudar as pessoas a terem mais condições de cumprir as medidas de isolamento. As políticas de promoção da saúde, por sua vez, precisam ser colocadas em prática para desafogar o sistema como um todo e garantir mais recursos. Esse tipo de política precisava estar em vigor há tempos e devem ser permanentes, para evitar riscos de futuras epidemias.

 

Em um mundo ideal, bastaria as pessoas se conscientizarem que precisam fazer escolhas saudáveis. Na prática, não é bem assim. Na alimentação, por exemplo, a sociedade é bombardeada o tempo todo com propaganda de produtos sem valor nutricional, como bebidas adoçadas e comidas ultraprocessadas. O custo final desses produtos é baixo, o que garante o acesso fácil a eles e aumenta o consumo. Com o consumo alto, há um aumento da obesidade e sobrepeso, o que leva a outras doenças como diabetes, cardiovasculares, alguns tipos de câncer, entre outras. São essas que sobrecarregam o sistema de saúde e integram a categoria de doenças crônicas não transmissíveis, junto com doenças respiratórias, e são responsáveis por mais de 72% das mortes no país, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Com uma epidemia de proporções ainda desconhecidas, vem o colapso como o que está sendo previsto.

 

Aqui, focamos  em duas dessas políticas: a tributação de produtos não saudáveis e o fim da Emenda Constitucional que estabeleceu o teto de gastos, ambas com o objetivo de diminuir a carga de doenças e assegurar mais recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Tributar produtos nocivos à saúde é uma das maneiras mais eficazes de desencorajar o consumo e incentivar escolhas de alternativas mais saudáveis, modelo que vem sendo seguido por diversos países.  O caso do tabaco é exemplar. Estudo feito pelo Instituto Nacional de Câncer e Fundação Oswaldo Cruz, em 2015, mostrou que a soma do custo de cuidados médicos e a perda de produtividade devido a doenças causadas pelo cigarro é de cerca de R$ 57 bilhões anuais, enquanto a indústria do tabaco paga apenas cerca de R$ 13 bilhões em impostos. O déficit resultante, de R$ 44 bilhões, cai na conta do SUS.  Medidas como políticas de preços e impostos, restrição da publicidade, ambientes livres de fumo, entre outras, foram fundamentais para reduzir em 40% a taxa de fumantes no país em 13 anos. Atualmente, a prevalência de fumo no país é de 9,3%, segundo pesquisa do Ministério da Saúde.

 

No sentido contrário, as bebidas açucaradas, que incluem os refrigerantes e sucos artificiais, representam um pouco do que precisa ser enfrentado. Elas não têm nenhum valor nutricional, têm as chamadas calorias vazias, e estão relacionadas com o sobrepeso e a obesidade. Ainda assim, existem políticas fiscais que incentivam sua produção, em vez de tributá-las. Há uma pressão do setor produtivo para que a alíquota de IPI sobre bebidas açucaradas seja aumentada, o que contribui para uma zona cinzenta do sistema tributário, já que neste caso, quanto maior a alíquota, maior o crédito fiscal das indústrias que compram xaropes concentrados da Zona Franca de Manaus.

 

Em 2018, a Receita Federal apurou que houve perda de R$ 2 bilhões de reais anuais somente por meio do sistema de créditos do IPI. Ainda segundo a Receita Federal, os incentivos anuais totais são de R$ 3,8 bilhões.

 

O resultado final  desta distorção é que o preço de produtos como refrigerantes fica baixo, fazendo com que seu consumo aumente, o que impacta a saúde pública como um todo. No Brasil, quase 57% da população está acima do peso, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, do IBGE, o que equivale a cerca de 82 milhões de pessoas com 18 anos ou mais, e a obesidade já atinge mais de 20% da população. Estimativas de estudo da Universidade de São Paulo indicam que os custos relacionados à obesidade no Brasil eram de US$ 5,8 bilhões em 2010, sendo que esse número pode chegar a US$ 10 bilhões em 2050, se algumas medidas não sejam tomadas de imediato. No caso da diabetes, os custos, em 2016, chegaram a US$2 bilhões, com potencial de atingir US$5 bilhões em 2030.

A Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um congelamento em novos investimentos por 20 anos em diversas áreas, incluindo a saúde, é outro fator que aumenta as dificuldades do SUS. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), “de acordo com estudo apresentado na Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS, o prejuízo ao SUS, de 2018 a 2020, já chega a R$ 22,48 bilhões se não tivesse ocorrido a redução do piso federal. Ao longo de duas décadas, os danos são estimados em R$ 400 bilhões a menos para os cofres públicos.”

 

Em tempos de normalidade, esses números já seriam aterradores. Dada a situação de catástrofe que estamos atravessando, não há adjetivos que os classifiquem. Portanto, mais importante que nunca é que os Poderes Executivo,  Legislativo e Judiciário tenham claro a importância das políticas públicas a serem adotadas para mitigar os danos que a população vêm sofrendo.

 

 

Paula Johns, diretora geral da ACT Promoção da Saúde, é socióloga e mestre em estudos de desenvolvimento internacional pela Universidade de Roskilde, Dinamarca. Atua no terceiro setor desde 1998, coordenando projetos voltados à promoção dos direitos humanos, equidade de gênero, preservação do meio ambiente e saúde pública. Ex-presidente do conselho diretor da Framework Convention Alliance (FCA) e empreendedora social Ashoka. Membro do Conselho do GAPA – Global Alcohol Policy Alliance e da NCD Alliance. Compõe ainda o Comitê gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.

A ACT Promoção da Saúde foi fundada em 2006 com o nome de Aliança de Controle do Tabagismo com a proposta de trabalhar por políticas públicas de controle do tabagismo, comprovadamente eficazes, seguindo as recomendações da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, primeiro tratado internacional de saúde pública, da Organização Mundial de Saúde.

O foco da ACT é promover ações de advocacy e políticas públicas voltadas para a criação de ambientes saudáveis que, por sua vez, promovem escolhas saudáveis.

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