Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Cuidados adequados e personalizados para o câncer de mama https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cancer_mama-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=558 Vilmar Marques de Oliveira

 

O preconceito e a desinformação ainda são obstáculos para as mulheres – e para toda a sociedade – em relação ao câncer de mama. O estigma em torno de uma doença que pode ser grave e afeta diretamente um dos maiores símbolos da feminilidade atrapalha de várias maneiras: desde o deixar para depois a realização de exames que deveriam ser periódicos até barreiras emocionais que, uma vez feito o diagnóstico, impedem que essa mulher seja protagonista no seu tratamento.

O agravante é que o câncer de mama é uma doença complexa. Existem diferentes perfis de tumor e momentos específicos, que envolvem diferentes decisões. Outra questão é o acesso às opções de tratamento e a própria adesão à conduta escolhida, considerando tratar-se de uma doença tempo-dependente e que não espera nada, nem ninguém, para progredir. Ela é mais rápida ou mais lenta a depender das características que se apresentam em cada caso.

Por isso é que se fala em jornada da paciente com câncer de mama. Uma mulher que é única e tem uma história só sua, mas que deve e pode buscar os cuidados mais adequados e personalizados para o seu perfil. É certo que, nesse caminho, desinformação e prejulgamento fragilizam. Mas diálogo, conhecimento, autocuidado e rede de apoio efetiva, seja de familiares, amigos, colegas de trabalho e mesmo da equipe de saúde, contribuem para a vida antes, durante e depois do câncer. Uma vida que pode ser plena.

Esse olhar coletivo sobre o câncer de mama como um tema de interesse de toda a sociedade é fundamental para a efetivação e o aprimoramento das políticas públicas relacionadas à linha de cuidado da patologia (rastreamento, diagnóstico e tratamento), bem como à navegação das pacientes no sistema de saúde. Embora tenhamos importantes leis aprovadas e um sistema público e universal, ainda há muito a avançar para salvar um número maior de mulheres.

O câncer de mama é o mais frequente entre as brasileiras, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), e ainda causa a morte de 20 mil mulheres todos os anos. A estimativa de novos casos para 2021 é de aproximadamente 66 mil. Embora seja rastreável desde o início a partir da mamografia de rastreamento, o diagnóstico precoce permanece ocorrendo bem menos vezes do que nos estágios avançados da doença.

A ciência vem fazendo a sua parte. O planejamento adequado logo após o diagnóstico, associado ao melhor tratamento para o perfil da paciente, permite gerenciar o câncer de mama com maior probabilidade de cura ou controle. Sendo ou não invasivo, as chances de cura são elevadas (aproximadamente 95%) quando a detecção ocorre em fase precoce. Cada vez mais a medicina entende as alterações genéticas nas células que originam e caracterizam os tipos de tumores, conhecimento este que possibilita tratamentos mais adequados e eficientes, que muitas vezes associam terapias antes e/ou após a cirurgia, a depender de cada caso.

Para ilustrar a relevância deste conhecimento, podemos citar as pacientes com um biomarcador específico, chamado HER2+. Mulheres cujos tumores apresentam esta mutação podem se beneficiar de terapias direcionadas a essa alteração em diferentes etapas da doença. Quando diagnosticado em estágio inicial, o tratamento correto, no momento mais adequado, pode, inclusive, resguardar pacientes com alto risco de recorrência da doença de evoluir para um estágio metastático, aproximando-as da cura.

Por exemplo, mulheres que precisam iniciar o tratamento antes da cirurgia, pelo fato de terem tumores maiores e/ou linfonodos comprometidos, com o intuito de aumentar suas chances de cura e possibilitar uma cirurgia conservadora, podem ainda apresentar células tumorais no momento da cirurgia, o que indica um risco maior de recorrência. Por isso, essas pacientes precisam de um tratamento de resgate após a cirurgia, para então reduzir as chances de progredir para cenários metastáticos. Todo esse planejamento terapêutico personalizado, feito pela equipe que acompanha a paciente, é essencial para garantir que cada pessoa receba o tratamento mais adequado de acordo com as características do seu tumor.

Não poderia finalizar este texto sem esclarecer, também, que qualquer mulher pode ter câncer de mama. A maioria dos tumores – 90% – não têm origem hereditária. São fatores de risco a alimentação de má qualidade, a ausência de atividade física regular, o excesso de peso, a exposição a hormônios (estrogênios), o tabagismo e o uso excessivo de bebidas alcoólicas, entre outros.

Contudo, não é possível precisar a causa da doença e, por isso, precisamos de uma nova mentalidade. Ao mesmo tempo em que é necessário adotar medidas preventivas que combatam esses fatores de risco – e quanto antes, melhor –, devemos evitar que essa mulher que apresenta o câncer de mama se sinta culpada.

Diante disso, são essenciais movimentos como o “Vem Falar de Vida”, que disseminam informações de qualidade sobre o tema, reverberam ações de múltiplos signatários unidos por esse propósito e fortalecem a mensagem de que o câncer de mama não precisa ser sinônimo de fracasso, de morte ou de mutilação. Existem meios para que cada vez mais histórias de mulheres sejam transformadas. Discutir o acesso a eles é responsabilidade de todos nós.

 

Dr. Vilmar Marques de Oliveira é Chefe de Clínica Adjunto do Hospital da Santa Casa, Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e atual presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.

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O cenário caótico x saúde mental = potência na resistência https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/#respond Wed, 20 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/img20200615104721797-768x463-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=554 Magna Barboza Damasceno

 

O primeiro seminário “Saúde da População Negra” (pessoas autodeclaradas pretas e pardas), realizado no Estado de São Paulo em 2004, apontou que as mulheres negras tiveram uma inadequação do atendimento durante seu pré-natal. Além disso, aproximadamente 60% dessas mulheres entraram numa espécie de peregrinação em busca do atendimento — o que evidencia a dificuldade de acesso. 

Segundo o “Atlas da Violência 2019 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, a cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras; 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras; e as mulheres negras morrem mais de formas mais violentas

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2020 o alarmante crescimento de 11,5%, em 10 anos, dos assassinatos das pessoas negras. O Rio de Janeiro é o quarto estado com maior número de negros no Brasil –mais de 9 milhões, segundo dados da secretaria de saúde do estado contabilizados em 2020.

Esses dados apontam que, de toda a população atendida, as pessoas negras estão entre as 61% acometidas por doenças respiratórias e 64% por causas externas e lesões.

 Ao nos depararmos com os dados do período perinatal, verificamos que 67% das complicações foram em mulheres negras. De todos os atendidos, 62% das pessoas negras possuíam doenças infecciosas e parasitárias; e outras  62 foram atendidas por transtornos mentais.

Como estampou Fernanda Lopes no título do seu texto apresentado no seminário de 2004, “Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer….”. Para a população negra a desigualdade ao existir é um fato no Brasil, fato este que desde o primeiro seminário sobre a saúde da população negra vem sendo confirmado pelos dados apresentados ao longo dos anos pelo Instituto de Pesquisas e Estatística Aplicada (IPEA). Com o advento desses momentos pandêmicos peculiares, é de se perguntar como manter a saúde mental de uma população que parece historicamente destinada a experiências de nascer, viver, adoecer e morrer de maneira desigual e assustadoramente desumanizada?

Como manter a saúde mental da população negra num cenário como o atual, no qual nos deparamos com um processo de extermínio que nasce nos marcadores sociais que ocupamos, nas interseccionalidade que carregamos, na nossa essência e no nosso existir? Além do grande desafio para cessar o desaparecimento dos nossos corpos pretos e potentes, bem como de manter nossa subjetividade a prova de qualquer tentativa de aniquilamento. 

Esse esforço ainda parece ter importância apenas para uma parte da sociedade, daqueles que vão ao longo do caminho tentando estabelecer a resistência (leia-se aqui estratégias para a sobrevivência) que, numa toada paradoxal, ao mesmo tempo que resistem para o Existir, vão deixando pelo caminho o cuidado com os seus corpos concretos, feitos de carne e osso, veias e artérias, além de não perceber a instalação de algo bem mais perigoso, que é doença e o transtorno mental.

É comum mulheres negras serem naturalizadas como raivosas ou emocionalmente instáveis, sem direito a manifestação sentida e trazida pelo medo constante de não mais existir –e dos seus não mais existirem–, de não ter suas necessidades acolhidas por quem deveria cuidar como cuida de qualquer outro cidadão não-negro, de não ter seu reconhecimento enquanto pessoa legitimado.

Na nossa sociedade, uma mãe branca tem mais direitos e acolhimento ao denunciar a perda de um filho do que uma mãe negra que vê seu filho assassinado injustamente. Basta fazer uma breve pesquisa nos meios de comunicação e nos deparamos como a sociedade reage frente à dor de ambas as perdas.

Às mulheres e homens negros, de forma velada, não lhes é permitido o direito ao sentimento, muito menos a suas manifestações legítimas, mesmo diante de tantas opressões ao resistir para viver.

Faça uma pequena reflexão e revisite momentos em que você, pessoa negra, não pôde ter o direito à palavra, ao sentir, ao agir e até mesmo ao pensar, tendo que calcular meticulosamente quais os próximos passos para não ser taxado de brutal, raivoso, marginal e refém da manifestação da emoção devido ao afeto.

Permanentemente, o descaso perpetuado pelo Estado aos cuidados da saúde da população negra, com a dificuldade do acesso ou o acesso precário a políticas públicas, a descaracterização criada de suas emoções vivenciadas numa sociedade que deslegitima suas experiências e as taxa e nomeia de acordo com o que nos permite sentir ou não. Isso nos toma – pessoas negras –nosso modo de relacionar, de ver o mundo. E nas pequenas coisas vão sendo reafirmadas nas nossas interseccionalidades. Porém, esses efeitos psicossociais do racismo estrutural e sua interface violenta nos obriga a um estado mental permanente de alerta, o que impacta na interpretação por parte de terceiros sobre o nosso viver, e nos coloca em certa medida em um ciclo sem fim entre o gatilho mental gerado pela sobrevivência e a falta de percepção de si e do outro deste processo que gera adoecimento das relações, criando muitas vezes o famoso “cão raivoso”.

Contudo, no absurdo das contradições do nosso estado democrático de direito e no exercício da nossa cidadania integral, as pessoas negras não podem “se dar ao luxo” das doenças mentais, das crises existenciais, das dificuldades nos relacionamentos interpessoais causadas muitas vezes pelas violências produzidas pelo racismo estrutural e que geram desequilíbrios emocionais –nos quais nossa humanidade é constantemente testada.

Sem ter lançado sobre si um julgamento prévio sobre seu modo de adoecimento, as pessoas negras vão adoecendo assim como qualquer outra pessoa –sim e como adoecem!!

Se por um lado esse modo perverso e descompromissado com os afetos da população negra, gerado pela sociedade, reafirma o “grau de superioridade” das pessoas não-negras, dando a elas o “ticket” de quem será permitido sentir, pensar, agir, por outro lado produz na pessoa negra uma forma cruel de aniquilamento de sua subjetividade, pois a deslegitimação das suas emoções, das suas experiências e vivências vai se dando de forma sutil e naturalizada, que muitas vezes desemboca numa emoção pouco elaborada –como a raiva, por exemplo.

Essas questões já muito conhecidas e debatidas nos revelam um impacto devastador em nossa subjetividade. Alguns desses efeitos psicossociais vêm sendo discutidos a partir de categorias do viver –como gosto de referir–, a exemplo das discussões sobre a solidão de mulheres negras, a falta de perspectiva para o futuro, o direito à herança e ao envelhecimento da pessoa negra.

 Aos poucos, vamos nos deparando com reflexões necessárias para a manutenção da qualidade do nosso viver. E é justamente aí que encontramos o conceito ilógico das potencialidades que nascem justamente das injustiças geradas a partir dos marcadores sociais e suas interseccionalidades que nos interpõem.

Porque, ao mesmo tempo que as pessoas negras vão morrendo aos poucos, toda vez que as percepções em torno da sua origem, da sua classe social, da sua cor de pele, da sua orientação sexual chegam à frente de qualquer possibilidade de relacionar-se, elas também constroem e vão tecendo estratégias de resistência, denotando suas potencialidades e organizando o melhor viver. 

Se por um lado pessoas negras todos os dias enfrentam uma batalha por serem quem são, por outro exercitam a tarefa de continuar a ser, burlando toda a lógica posta e contrariando a velha máxima de que apenas recai sobre as pessoas negras a negatividade do existir.

Durante toda a história do povo negro há aqueles que não conseguiram resistir, mas há também aqueles que conseguiram utilizar-se de estratégias de resistência e sobrevivência desde os primórdios da escravidão. Trazendo isso para os tempos atuais, recentemente e durante a pandemia, acompanhamos essas potências de forma bem objetiva.

Verificamos que os estudos sobre a ancestralidade negra vão apontando essas formas de potências, considerando o que os antepassados construíram para que o presente fosse possível e, dessa forma, fortalecendo um futuro.

A pandemia é a prova disso! Apesar de terem sido as pessoas negras as mais atingidas pela Covid-19 em relação aos mortos, segundo o Relatório “Pesquisa Sem Parar”, da organização feminista Sempreviva, sobre o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, constatou-se que de modo geral aumentou o número de mulheres que passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém. Em relação às mulheres negras houve um aumento em 52%. Essa dimensão do cuidado nos remete a uma forma de atenção à saúde mental, já que estão atentas ao monitoramento das necessidades e da companhia umas das outras.

Outro dado curioso é que, apesar do aumento da precariedade da vida, trazida pelo isolamento social e a perda do trabalho formal, houve um aumento de 52% de mulheres negras desempregadas. Essas mulheres que tiveram dificuldade sobre como pagar em dia suas contas e como fazer a manutenção da vida, buscaram outras formas de sobrevivência –e os números evidenciaram que 61% das mulheres que estão na economia solidária, por exemplo, são negras. 

Pesquisas indicam que durante a pandemia as pessoas negras reuniram suas forças para ajudarem sua comunidade, o que demonstra uma alta capacidade criativa, organizando novas soluções para o bem viver, mesmo em um cenário caótico, assustador e desumanizante.

Como podemos constatar, falar da saúde mental da população negra não é uma tarefa fácil, diante de uma realidade que traz dados massacrantes de qualquer subjetividade. Porém, falar de saúde mental também é falar de vida, seja ela nascida da dor de não poder ser e existir, seja ela nascida da potência que é viver as contradições das minorias oprimidas.

Outras formas de potência que já estão aí há muito tempo e devem ser reconhecidas, veneradas e divulgadas, são os trabalhos como os que realizam os coletivos como o Criola –uma organização composta por mulheres negras que há quase 30 anos vem pensando estratégias de defesa e promoção dos direitos das mulheres negras. O instituto AMMA Psique e Negritude, uma organização cuja atuação está pautada no enfrentamento do racismo, da discriminação, do preconceito –que produzem efeitos psicossociais negativos na saúde mental da população negra. Outro bom exemplo é o Fundo Baobá para Equidade Racial, que vem disponibilizando acesso a diversos ciclos de vida da população negra, para o fortalecimento de lideranças com a perspectiva de aumentar a equidade racial.

São organizações formais e informais que nascem de pessoas negras, para pessoas negras e com pessoas negras, a partir da dor do aniquilamento da subjetividade de pessoas negras.

Falar de saúde mental da população negra é também falar deste trampolim para a potencialidade, que gera possibilidade do bem viver.

Pense nisso. 

O que você tem feito para dar qualidade à saúde mental da população negra?

 

Magna Barboza Damasceno é Mestre em Psicologia Social pela PUC SP, especialista em Gestão pública pela FESPSSP, em Impactos da Violência na Saúde pela (ENSP/FIOCRUZ) e em Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde, pelo Instituto Sírio-Libanês, é coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP). Liderança acelerada pelo Fundo de Equidade Racial Baobá e Ganhadora do prêmio viva promovido na parceria entre o Instituto Avon e a Revista Marie Claire.

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Implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no município do Rio de Janeiro https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/#respond Wed, 13 Oct 2021 10:00:28 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/750_racismo-estrutural-populacao-negra-covid19-pandemia-coronavirus_20201117154514-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=547 Monique Miranda, Louise Mara S. Silva e Michele Gonçalves da Costa

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), publicada pela Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009, pelo Ministério da Saúde (MS), apresenta como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com o objetivo de promover a equidade em saúde. Os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população, segundo a Comissão Nacional de Determinantes Sociais em Saúde (CNDSS).

Políticas de equidade no Brasil, convenções e tratados internacionais demonstram que as desigualdades de raça e gênero determinam oportunidades de trabalho e renda, acesso a recursos institucionais, condições de moradia, vulnerabilidades e exposição à violência. Entretanto, o gênero e, em especial, a variável raça/cor, ainda são insuficientemente incorporados no desenho de políticas, programas e serviços das instituições públicas e privadas.

A PNSIPN endossa e correlaciona-se com outros marcos legais: a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886 de 20 de novembro de 2003), a Regulação do Sistema Único de Saúde-SUS (Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010), a Política Nacional de Promoção da Saúde (Portaria MS/GM nº 687, de 30 de março de 2006), a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas (Durban 2001), a Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela Assembleia Geral da ONU (Resolução 68/237, para o período entre 2015 e 2024). Por fim, destaca-se o artigo 196 da Constituição Federal de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e 207 econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,7% da população brasileira é composta por pessoas negras (somatório de autodeclarados pretos e pardos), correspondendo a 96,7 milhões de indivíduos. Na cidade do Rio de Janeiro os dados epidemiológicos apontam maior vulnerabilidade de cidadãos pretos e pardos aos agravos à saúde, embasando a necessidade de se priorizar a implantação de uma política específica de equidade racial da população negra em nossa cidade. Análises dos sistemas de informação em saúde demonstram maior mortalidade infantil da população negra em comparação com a branca; maior risco de morte entre os jovens da população negra em comparação com os jovens brancos; maior mortalidade materna das mulheres negras quando comparadas com as mulheres brancas.  Da mesma forma, a ocorrência de doenças tais como hipertensão, diabetes, tuberculose dentre outras também são prevalentes entre pretos e pardos, inclui-se ainda nesse  padrão os óbitos por Covid-19.

O marco fundamental para o combate às desigualdades étnico-raciais em saúde na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro foi a realização do “II Seminário de Promoção da Saúde: Equidade em Saúde da População Negra”, em dezembro de 2006. Este evento foi organizado pela então Assessoria de Promoção da Saúde em parceria com a ONG de mulheres negras, a Criola.  O seminário teve como intuito sensibilizar profissionais, gestores da saúde e definir estratégias para a implantação da PNSIPN na cidade. Estavam presentes aproximadamente 300 participantes: gestores e profissionais de saúde, ativistas do movimento negro e de mulheres negras, sociedade civil, lideranças comunitárias e representantes das religiões afro-brasileiras. Para o fomentar e articular o processo de implantação da política foram deliberadas as seguintes propostas no evento:

  • criação de um Comitê Técnico de Saúde da População Negra;
  • implantação do registro da variável raça/cor nos impressos oficiais da SMS;
  • diagnóstico epidemiológico da saúde da população negra;
  • formulação e estabelecimento de indicadores;
  • enfrentamento ao racismo institucional;
  • valorização das religiões de matriz africana;
  • institucionalização de recursos financeiros para a implantação da política;
  • fomento da participação do controle social e o fortalecimento de articulações intersetoriais.

No ano de 2007 foi criado o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, por meio da  Resolução SMS Nº 1298/2007, antes mesmo da promulgação da PNSIPN. O referido Comitê Técnico tem como atribuições:

I – sistematizar propostas que visem à promoção da equidade racial na atenção à saúde da população negra;

II – apresentar subsídios técnicos e políticos voltados à melhoria da atenção à saúde da população negra;

III – elaborar e implementar um plano de ação e monitoramento para intervenção pelas diversas instâncias e órgãos do Sistema Único de Saúde;

IV – fomentar e participar de iniciativas intersetoriais relacionadas com a saúde da população negra;

V – atuar na implantação, acompanhamento e avaliação das ações programáticas e políticas referentes à promoção da equidade em saúde da população negra na SMS/Rio, em consonância com as normativas do SUS.

O Comitê é composto por profissionais da gestão da SMS-Rio e de suas áreas técnicas, assim como  pelas representações da  sociedade civil, como universidades, ONGs , coletivos e outas instâncias,  em especial dos movimento negros e do movimento de mulheres.  Desta forma o CTSPN tem tido ao longo desses anos papel fundamental no impulso e acompanhamento da implantação da PNSIPN,  além de ser a instância de permeabilização do diálogo da SMS-Rio com a sociedade civil e na construção conjunta de ações para a redução das desigualdade étnico-raciais.

A mudança do panorama das graves iniquidades que atingem a população negra  requer o reconhecimento da sua situação de saúde. Para isso, é necessário que a variável raça/cor seja incluída em todos os sistemas de informação , formulários, cadastros, prontuários , impressos. Destacamos que um  dos objetivos específicos da PNSIPN é a inclusão do quesito cor em todos os instrumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos, conveniados ou contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Cabe destacar que o Rio de Janeiro instituiu desde 2008, pela Lei n.º 4.930/08 a inclusão obrigatória do quesito raça em todos formulários de informações em saúde do Município.

É fundamental  que as desigualdades étnico-raciais sejam monitoradas por dados, indicadores e informação em saúde  desagregados  por raça/cor. Embora na SMS-Rio o início da implantação da PNSIPN tenha completado pouco mais de uma década e exista atualmente um bom preenchimento da variável raça/cor , ainda é  incipiente  e descontínua sua utilização  na análise,  planejamento e  tomada de decisões nas  políticas e ações de saúde, assim como no investimento de recursos. Além disso, é necessário que os dados  por raça/cor sejam divulgados e disponibilizados de forma ampla, sistemática e transparente através dos canais de informação da prefeitura e junto  a sociedade civil e a população em geral.

As informações com os dados desagregados por cor ou raça são relevantes para atender ao princípio da equidade do SUS, ao reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde, oferecendo atendimento de acordo com as necessidades das populações, o que pode contribuir na redução do impacto dos determinantes sociais de saúde aos quais estão submetidas. São os dados desagregados por raça/cor que nos permitem confirmar o racismo como determinante social em saúde em um município como o Rio de Janeiro, onde segundo os dados do Instituto Pereira Passos (órgão responsável pela sistematização dos dados demográficos da cidade) a população em 2010 era composta por 51,3% brancos e 11,2% pretos; 36,7% pardos, configurando em 47,9% o quantitativo populacional negro.

Uma multiplicidade de pesquisas e estudos no campo da saúde coletiva expõe através de indicadores de morbimortalidade a grave situação de iniquidade sofrida pela população negra e indígena. Pesquisas qualitativas demonstram que o racismo institucional dificulta o acesso de pessoas pretas, pardas e indígenas aos serviços de saúde, influencia na qualidade da atenção à saúde prestada pelos profissionais e também  agrava a violência institucional  como no atendimento ao parto das mulheres negras.

Reconhecer que as práticas racistas também estão dentro do modelo de atenção à saúde e buscar a transformação desse cenário deve ser um objetivo de todos que estejam envolvidos com o cuidado em saúde e com as instâncias de gestão.  Os indicadores em saúde espelham a realidade da discriminação e desigualdade racial, embasando  a necessidade de se intensificar e ampliar a implantação da PNSIPN. Infelizmente o  racismo institucional na estrutura e entre os agentes públicos  da Prefeitura-Rio pouco mudou, decorrendo então que graves iniquidades raciais em saúde persistem na cidade do Rio de Janeiro.

A PNSIPN (2009) e a  Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas (2002)  são marcos no reconhecimento de diferenças e especificidade étnico-raciais na população brasileira. Essas políticas , em especial a primeira, trazem para a área de atuação dos gestores e profissionais de saúde as questões  da identidade racial e das desigualdades étnico-raciais, demandando para a sua implantação  um intenso e contínuo trabalho de combate ao racismo institucional  e estrutural.

A ampliação do acesso ao SUS e a integralidade das ações de saúde, assim como a transformação das graves desigualdades étnico-raciais demandam que profissionais, gestores e sociedade civil reconheçam o racismo institucional, comprometendo-se para o desafio cotidiano da desconstrução da ideologia racista existente em  nossa sociedade.

 

Monique Miranda é enfermeira, mestre em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Louise Mara S. Silva é enfermeira e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Michele Gonçalves da Costa é sanitarista, especialista em saúde coletiva, mestranda em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

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O cenário das doenças crônicas no Brasil e as pressões orçamentárias sobre o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/#respond Wed, 25 Aug 2021 10:00:42 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-dinheiro-800x533-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=496 Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Um dos aprendizados de 2020 é que o enfrentamento à pandemia poderia ter tido maior sucesso se a estrutura da atenção primária tivesse sido melhor utilizada. Em um contexto de emergência sanitária, testemunhamos a despriorização das ações de vigilância comunitária e epidemiológica, cruciais no rastreamento e contenção do contágio pelo vírus. Muito se noticiou sobre a ausência de testes de Covid-19 e a insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para minimizar a contaminação de profissionais de saúde. No entanto, um assunto que recebeu menos holofotes, mas que exerce grande impacto sobre o sistema de saúde foram os efeitos da pandemia sobre o represamento de serviços, como o cuidado longitudinal de doentes crônicos.

As Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), classificação em que se encontram doenças cardiovasculares, cânceres, doenças respiratórias crônicas e diabetes, são tipos de disfunções que possuem fatores de risco comuns e evitáveis, como colesterol alto e hipertensão, e que necessitam de acompanhamento constante. Uma vez que se desenvolve uma  DCNT, a qualidade de vida também se torna condicionada a um processo de cuidado contínuo. 

Dentro da estrutura do sistema de saúde brasileiro, a Atenção Primária atua de forma estratégica para proporcionar o acompanhamento dos usuários crônicos. Está dentro das atribuições da Estratégia Saúde da Família, por meio do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a identificação de demandas de saúde, a circulação de informações e a orientação sobre cuidados. As visitas domiciliares dos ACS, em especial, permitem um cuidado à saúde mais humanizado, estabelecendo laços de confiança entre os profissionais de saúde e a população.

No entanto, com a chegada do coronavírus no Brasil, tornou-se mais difícil tanto detectar precocemente quanto acompanhar sistematicamente as condições crônicas de saúde na população e a função de “porta de entrada”dos usuários no Sistema Único de Saúde (SUS) exercida pela Atenção Básica foi prejudicada. No que se refere à rotina das unidades básicas de saúde, em algumas localidades, procedimentos foram descaracterizados, como o trabalho de rua dos ACS, e atendimentos precisaram ser paralisados para o redirecionamento da força de trabalho para ações de combate a Covid-19. Também a necessidade de adoção do isolamento social fez com que muitos usuários ficassem receosos de se deslocar até os estabelecimentos de saúde. 

Em números, o reflexo dessa quebra do vínculo entre os usuários e as unidades de saúde durante a pandemia se traduz na queda brusca da quantidade de consultas da atenção básica, reduzidas em quase 50% no ano de 2020. Dados de um estudo recente realizado pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e por pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV-Saúde) demonstram a interrupção de procedimentos preventivos e de detecção precoce. Em comparação com 2019, o estudo evidenciou uma queda generalizada em 2020 na produção ambulatorial, que inclui procedimentos diagnósticos (-21,7%), de rastreio (-32,9%) e consultas médicas (-32,1%). 

Somado à queda nos demais níveis de atenção, em serviços como os de cirurgias e transplantes, o número de procedimentos totais realizados caiu, no mesmo ano, 19,2%. Em termos econômicos, essa contração significou uma redução de transferências federais para o SUS de aproximadamente R$ 3,6 bilhões em 2020. Os resultados do estudo apontam para um cenário preocupante de aumento de demanda dos serviços de atenção à saúde no país e, na sua contramão, o agravamento da insustentabilidade financeira do sistema.
No segundo semestre de 2021, a pandemia continua demandando intensamente dos profissionais e serviços de saúde e a Covid-19 tem deixado sequelas nos casos mais graves dos acometidos pela doença, o que pode vir a exigir cuidados de médio a longo prazo. Não bastasse esse cenário desolador, tudo indica que a atual pressão orçamentária deve ainda ser acrescida da demanda reprimida de doentes crônicos.  

Em 2019, no Brasil pré-pandemia, as DCNTs foram responsáveis pela morte de 1.025.708 brasileiros em idade inferior a 70 anos, número equivalente a 77,86% do total de mortes no ano — percentual calculado a partir do total de mortos em 2019 em idade inferior a 70 anos informado pelo IBGE. No Brasil da Covid-19, presenciamos o agravamento da insegurança alimentar no país, com 9% da população brasileira enfrentando a fome e o aumento no consumo de tabaco e álcool, fenômenos que sabidamente contribuem para o desenvolvimento de doenças crônicas.

Para enfrentar esse horizonte nada animador seriam necessários investimentos e planejamento estatal robusto e baseado em evidências, que permitisse preparar o sistema de saúde para atender simultaneamente às vítimas da Covid-19 e aos novos e antigos doentes crônicos. Na contramão disso, o que vemos é uma espécie de apagão estatístico sobre a saúde da população durante a pandemia e a não publicação do relatório de 2020 da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), principal instrumento de acompanhamento de fatores de risco para DCNT. Para agravar a situação, até o momento corremos o risco da não realização da pesquisa em 2021

O fato é que a Atenção Básica brasileira, uma das grandes referências para o resto do mundo, vem sofrendo fragilizações sistemáticas e o cenário das doenças crônicas no país é um gigante debaixo de um tapete que não pode mais ser ignorado. A “conta” que ficará para a população só cresce e, caso o orçamento público federal para a saúde não seja reavaliado, a consequência direta será o aumento do número de mortes evitáveis no país. 

 

Maria Letícia Machado é pesquisadora de políticas públicas no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Rebeca Freitas é especialista em relações governamentais no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Saúde mental: indicadores e dados descomplicados são fundamentais para melhorar a efetividade dos serviços no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/#respond Wed, 21 Jul 2021 10:00:30 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/1d7dc5b1146b96618d440d3a8ddadd46_05-29-17_05-35-32-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=456 Maria Fernanda Quartiero, Luciana Barrancos, Daniela Krausz e Isabel Opice 

 

Uso de dados e indicadores na gestão de saúde potencializa a implementação de políticas públicas e a formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental

 

Como se mede a satisfação de usuários e o sucesso dos serviços de saúde mental? Para rever e ajustar estratégias de cuidado oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS), é necessário entender o que está funcionando, o que não está e porquê. Dados e indicadores são fundamentais para apoiar tomadas de decisão com base em evidências e avançar no seu uso na gestão pública é uma oportunidade para alavancar formas de avaliação e aprimoramento dos serviços de saúde mental no Brasil.  

Atualmente, não existe um conjunto de indicadores que seja aplicado de forma consensual e consistente, tendo como objetivo monitorar e medir a efetividade do sistema de saúde mental no nível no país. Sabemos que sete a cada 10 pessoas dependem exclusivamente do SUS, e também que saúde mental foi o sexto motivo mais frequente apontado como impedimento para a realização de atividades habituais –como mostrou o último levantamento sobre acesso e utilização dos serviços de saúde do IBGE em 2019.

Mas apesar de a saúde mental ser um tema cada vez mais presente na agenda do dia, por que razão os governos ainda têm pouco acesso a informações de qualidade e não usam indicadores para direcionar esforços e recursos em direção às necessidades da população?

São três os principais desafios identificados para o uso de indicadores no desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental no Brasil.

O primeiro desafio refere-se à subjetividade do diagnóstico. Diferentemente de indicadores relativos a doenças como hipertensão e diabetes, muitas vezes binários e mais objetivos (há ou não há determinado quadro), o diagnóstico na saúde mental é mais subjetivo. Definir um distúrbio depende de observações e de um entendimento amplo e integral do usuário, razão pela qual se recomenda que os diagnósticos sejam feitos dentro de um espectro –desde casos mais leves a casos mais graves. A complexidade do diagnóstico no nível individual dificulta o entendimento mais amplo e a construção de indicadores no nível das redes de saúde.  

Como segundo elemento, destaca-se a  falta de uma visão completa do usuário e de sua trajetória dentro da  rede de atenção psicossocial. Para utilizar dados e indicadores, é crucial entender a trajetória de uma pessoa dentro do sistema, oferecendo informações sobre a continuidade de tratamentos iniciados dentro do equipamento e apontando caminhos para melhorias nas práticas de cuidado. Hoje, as principais informações registradas sobre cidadãos no sistemas de saúde –como quantidade de atendimentos realizados, por exemplo– não são suficientes para desenvolver indicadores que permitam o entendimento de onde esse fluxo não está funcionando. A multiplicidade de sistemas existentes também contribui para esse desafio, com a gestão pública se deparando com problemas na trajetória do usuário, mas não dispondo de métricas para entender o tamanho do problema ou o ponto exato onde o fluxo está disfuncional.

Por fim, há o obstáculo relativo ao  baixo uso de indicadores de sucesso e de resultado dos serviços de saúde mental. Não há, de forma consistente no Brasil, métricas de resultado e sucesso que ajudem gestores a entender deficiências dos serviços e a rever as estratégias para ajustar o que for necessário, com base em dados concretos. Por exemplo, o que leva uma pessoa a abandonar um tratamento em saúde mental? Qual é o impacto de um serviço na qualidade de vida das pessoas que passam por ele? Quais são os serviços capazes de potencializar a autonomia de pessoas com transtornos de saúde mental? No Canadá, mede-se a taxa de repetição de hospitalizações para pessoas com doença mental em um ano, já que uma taxa alta pode indicar uma deficiência do atendimento. 

Em função desses desafios, dada a importância da saúde mental para a qualidade de vida dos brasileiros, o Instituto Cactus e a ImpulsoGov estão desenvolvendo projeto piloto, em parceria com governos municipais, com o objetivo de consolidar indicadores de saúde mental que forneçam informações-chave ao gestor público, e que ajudem a melhorar a qualidade dos atendimentos e possam ser utilizados em outras cidades do Brasil. 

Para isso, envolver o ecossistema de saúde mental do Brasil no uso de indicadores é fundamental. Acreditamos que todo esse processo precisa ser feito de maneira integrada ao dia a dia da gestão e ao funcionamento dos equipamentos de saúde pública. Criar indicadores de saúde mental, gerando informação de qualidade e descomplicada, é um passo-chave que terá impacto positivo a cuidadores e usuários do sistema de saúde, permitindo que a alocação e uso do orçamento de recursos públicos sejam otimizados, e que os processos decisórios, a qualidade e a efetividade dos serviços públicos de saúde mental sejam aprimorados no Brasil, impactando milhões de brasileiros.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício.

Daniela Krausz é Gerente Sênior de Projetos na ImpulsoGov, uma organização brasileira de saúde pública que tem como objetivo impulsionar o uso de dados e tecnologia no setor público para assegurar o direito a uma vida saudável a todas as brasileiras e brasileiros, sem exceção.

Isabel Opice é Co-fundadora e Diretora de Operações da ImpulsoGov e Mestre em Desenvolvimento Internacional pela Universidade de Harvard, com experiência no Governo do Estado de São Paulo e no Instituto Ayrton Senna.

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Abolição inconclusa e a ausência de saúde da população negra no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/13/abolicao-inconclusa-e-a-ausencia-de-saude-da-populacao-negra-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/13/abolicao-inconclusa-e-a-ausencia-de-saude-da-populacao-negra-no-brasil/#respond Thu, 13 May 2021 10:00:15 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/merlin_182376720_df146130-b7ca-4cba-bb28-894b51053058-jumbo-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=385 Iara Rolnik, Jéssica Remédios, Thales Vieira e Maria Letícia Machado

 

Em mais um 13 de maio, lembramos a data da sanção da lei que, há 133 anos, determinou o fim da escravatura no Brasil. Ao contrário do que sugere o termo abolição, a data deve ser lembrada pelas desigualdades e violências a que segue submetida a população negra brasileira — 56% da população do país. A ideia de abolição inconclusa reflete um processo de construção de cidadania inacabado e que  continua operando a lógica da escravidão e seus efeitos perversos, visíveis na forma como negras e negros vêm sendo mantidos em condições de desumanidade até os dias atuais.

A desumanização é central para pensarmos sobre as condições de saúde da população negra. Somente ocupa um lugar de proteção social aquele que partilha de humanidade e somente é um sujeito de direito aquele que é digno de vida. Portanto, pensar em um sistema de proteção à vida que seja equitativo passa, necessariamente, pela restituição das representações simbólicas de humanidade para a população negra.

A falta de reconhecimento das pessoas negras como sujeitos de direitos informa como as políticas públicas foram e são construídas no Brasil. O movimento negro, além de denunciar, há décadas, um genocídio em curso — seja por vias diretas por meio da brutalidade policial, seja pela precarização contínua e sistemática das condições de vida — reconstrói e articula soluções.

Segundo dados de 2019 da Pesquisa Nacional de Saúde, 76% das pessoas que dependiam exclusivamente dos serviços da rede SUS para prevenção, tratamento e reabilitação eram negras. Com o aumento dos autodeclarados pretos e pardos nos últimos anos, tudo indica que ainda sejam a maioria dos usuários do SUS. Entretanto, a entrada da população negra na agenda de políticas públicas de saúde é recente e ocorreu a partir da atuação organizada do movimento negro.

Desde a década de 1980, mulheres negras debatem o campo da saúde, principalmente, sobre saúde sexual e reprodutiva. A pauta da saúde da população negra ganhou maior projeção em 1995 após a Marcha Nacional Zumbi dos Palmares, quando mais de 30 mil pessoas foram à Brasília em protesto contra o racismo. Após anos de muito trabalho e alguns marcos fundamentais, em 2006, integrando membros do movimento negro em seu interior, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Um de seus princípios básicos é a afirmação de que o enfrentamento às iniquidades raciais caminha em consonância com a universalização do direito à saúde.

A despeito de passados quinze anos de sua aprovação, apenas 193 municípios brasileiros (3% do total) adotaram a  PNSIPN. O elemento comum e constitutivo desses entraves passa, essencialmente, pelo racismo estrutural que opera como elemento basilar fora e dentro da própria política. De acordo com Jurema Werneck, o racismo institucional impossibilita que os serviços sejam ofertados com equidade, existindo  desde a falta de acesso até a discriminação direta.

É importante salientar que, à luz dos determinantes sociais da saúde, os processos de saúde-doença de uma pessoa não podem ser entendidos apenas como decorrências naturais daquele corpo, mas são, antes de tudo, uma materialização das condições de vida a que aquela pessoa é submetida.

O relatório de 2018 sobre Desigualdades Sociais do IBGE destaca que 64,2% dos negros estavam desocupados, que 12,5% da população negra residia em domicílios sem coleta de lixo e que 42,8% não possuía esgotamento sanitário. Fazer saúde passa, portanto, por políticas de emprego, cotas nas universidades e cargos públicos, saneamento básico, educação infantil, direito à alimentação e moradia digna. Ter saúde quer dizer ter bem estar físico, mental e social e não somente ausência de doenças.

O princípio de operar nessa lógica estão definidos na PNSIPN e passam, necessariamente, por (i) qualificar os registros de saúde com raça/cor; (ii) ampliar  e intensificar a agenda de pesquisas em saúde da população negra; (iii) formar e qualificar continuadamente gestores, profissionais e usuários do SUS para criar um ambiente antirracista; (iv) instituir processos de monitoramento e avaliação consistentes e (v) promover a participação da sociedade civil.

Em 2017, passou a ser obrigatório o preenchimento do quesito raça/cor em todos os formulários do SUS com vistas a possibilitar o diagnóstico das desigualdades de saúde e as razões de adoecimento dos diversos grupos étnico-raciais. Seria algo a comemorar se os dados fossem atualizados e tivessem completude considerável. No entanto, ao analisar os 132 bancos de dados do DATASUS, apenas 58,3% têm a variável raça/cor. Em contrapartida, indicadores de enfrentamento ao racismo na área da saúde foram incluídos nas Pesquisas de Informações Básicas Municipais (MUNIC) e Estaduais (ESTADIC) do IBGE.

As diferentes formas e instâncias de controle social por parte da sociedade civil, por sua vez, têm um papel essencial na reorientação do SUS para efetivação dos seus princípios e superação das desigualdades raciais em saúde. Em tempos de pandemia, a experiência negra em território brasileiro é evidenciada no que há de mais cruel e no que há de mais potente. É justamente pela força e experiência acumulada de sobreviver em cenários hostis, que o movimento negro se mobiliza para minimizar esses impactos, seja através de ações assistenciais diretas, seja na reinvindicação pela implementação das políticas públicas.

Quinze anos depois da criação da PNSIPN, são os mesmos atores políticos que seguem na incansável luta. Urge a necessidade, sobretudo em tempos de crise na saúde, de criar ambientes em que organizações sociais, institutos e fundações construam pactos para garantir a visibilidade para o tema, gerar a efervescência do campo e pressionar os setores públicos para a efetivação desta agenda, fazendo com que o SUS cumpra a sua missão de universalidade.

 

Iara Rolnik, Diretora de programas do Instituto Ibirapitanga.

Jéssica Remédios, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Thales Vieira, Gestor de portfólio do programa Equidade racial do Instituto Ibirapitanga.

Maria Letícia Machado, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Nada a comemorar: o Dia Mundial da Saúde e a necessidade de um lockdown https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/nada-a-comemorar-o-dia-mundial-da-saude-e-a-necessidade-de-um-lockdown/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/nada-a-comemorar-o-dia-mundial-da-saude-e-a-necessidade-de-um-lockdown/#respond Thu, 08 Apr 2021 17:35:37 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/corona-4959447_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=362 Arthur Aguillar, Helyn Thami e Rebeca Freitas

Na véspera da comemoração do Dia Mundial da Saúde (7 de abril), batemos a marca recorde de 4.211 mortos por Covid-19 em 24 horas. Os dados não mentem: estamos diante de uma aceleração da pandemia inédita no Brasil. Recentemente publicamos uma Nota Técnica mostrando que, em relação a 2020, tivemos uma aceleração da média móvel de óbitos da ordem de 84%. Diante dessa tragédia humanitária, não há dúvida: é necessária a implementação de um lockdown em todos os estados brasileiros. 

Precisamos de um lockdown pois estamos no momento mais crítico já vivenciado: não existe, na história brasileira, evento comparável em número de mortos. São mais de 340 mil pessoas que já perderam a vida pela Covid-19. A dimensão do período que atravessamos não é só sentida por todas as famílias que viveram na pele a dor da perda, mas se reflete nos números atualizados dia após dia: em apenas 1 mês (de 6 de março a 6 de abril), dobramos o recorde de óbitos diários, passando de 1.840 vidas interrompidas para mais de 4 mil. Além disso, a pior semana epidemiológica do ano de 2021 registrou uma média móvel que foi mais que o dobro daquela observada na pior semana epidemiológica de 2020. 

Com a disseminação de novas variantes e o risco de que novas ainda possam surgir diante do descontrole de transmissão, o Brasil se tornou uma bomba-relógio. O número de infectados no país corresponde a 10% do número de casos registrados no mundo(1). Atualmente, o Brasil registra o segundo maior número de óbitos por Covid no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, e superou o total de óbitos registrados na Ásia, o maior continente do mundo. O descontrole do número de óbitos se evidencia também nas projeções de cientistas para o mês de abril, que apontam para a possibilidade de atingirmos a marca de 5 mil óbitos por dia, caso não haja lockdown. Tudo isso se soma ao avanço das novas variantes e estudos da Fiocruz comprovam que estamos vivendo uma nova fase da pandemia, tendo as mortes por Covid-19 aumentado em 352,62% na faixa etária de 30 e 39 anos entre janeiro e março deste ano. 

E não se trata somente das mortes. O nosso sistema de saúde se vê estrangulado. Somos um país em que 72% das regiões de saúde apresentam menos leitos de UTI do que o mínimo preconizado pelas normativas vigentes. Isso significa que 61% de toda a população que depende do SUS já convivia com a baixa oferta de cuidados intensivos antes da pandemia. Mesmo nas regiões que cumprem tais normativas, o cenário é de falta de leitos e insumos. Não há parâmetro técnico capaz de fazer jus ao contágio desenfreado que testemunhamos neste momento. No dia 4 de abril, 16 estados e o Distrito Federal apresentavam mais de 90% de ocupação de leitos de UTI. Enquanto isso, as filas de regulação crescem e famílias precisam implorar pela garantia do direito constitucional à saúde – muitas vezes sem sucesso. Só em março no estado de São Paulo, pelo menos 496 pessoas com Covid-19 ou com suspeita da doença morreram à espera de um leito de UTI.

Engana-se quem pensa se tratar de um colapso apenas do SUS. A saúde privada está igualmente estrangulada, vivenciando falta de insumos e de vagas e, em alguns casos, recorrendo ao sistema público para conseguir mais leitos, como ocorreu, por exemplo, em São Paulo, a maior cidade do país. O colapso é uma realidade dada ou iminente na saúde como um todo, sem distinção entre quem pode ou não pagar por um plano privado. Expandir a capacidade instalada de leitos é uma necessidade, mas não é uma solução que possa ser aplicada ad infinitum. É preciso realizar o lockdown para frear a circulação do vírus paralelamente ao esforço de vacinação, que por sua vez só deve mostrar efeitos mais expressivos no número de mortes no fim do primeiro semestre. 

O que seria um lockdown? Nossos governantes precisam implementar 5 medidas: o fechamento completo de estabelecimentos que não configuram serviço essencial; de vias e estradas a indivíduos que não sejam trabalhadores essenciais;  fechamento total ou parcial de aeroportos e rodoviárias e outros polos de transporte; banimento de eventos presenciais de qualquer espécie, incluindo religiosos; proibição do uso coletivo do espaço público a qualquer hora do dia.

Precisamos de um lockdown porque, em meio à magnitude do número de mortes, , é a coisa certa a fazer. Trata-se de uma política pública de eficácia comprovada: experiências internacionais e nacionais mostram que o lockdown funciona. Em Araraquara, após um mês de implementação da medida, viu-se uma redução de 39% no número de mortes e de 57,5% nos casos, além de 13 dias sem apresentar fila de espera para leitos de UTI. Em Paris, o Rt, número de reprodução da doença, reduziu de 3,18 para 0,68 após o lockdown (2), caso semelhante ao que ocorreu na Itália onde o Rt atingiu faixas entre 0,4 e 0,7 após 14 dias do decreto de fechamento completo de atividades não essenciais (3). Na China (Wuhan), o lockdown teve o efeito de curto prazo de aumentar o intervalo necessário para os casos dobrarem (de 2 para 4 dias) (4). Após 76 dias, a cidade chinesa se viu livre de novos surtos desde 8 de abril de 2020. Hoje, a cidade voltou à normalidade e não registra novos casos desde maio de 2020. 

Sabemos que essa recomendação é politicamente sensível e administrativamente complexa. Esperamos, no entanto, que nossos governantes tomem essa decisão com base no presente e no futuro – no nosso e no deles. A dinâmica política da pandemia não se restringe ao hoje. No longo prazo, todos aqueles que não fizeram o máximo possível para reverter a atual tragédia e o maior colapso sanitário e hospitalar da nossa história serão cobrados. Do lado da implementação, esperamos que nossa tradição na saúde pública prevaleça: que as ações de nossos governantes ecoem a coragem de líderes passados, que combateram a AIDS, a meningite, diversas síndromes gripais e outras doenças infecciosas que já assolaram nosso país.

 

Referências:

 1) Cálculo feito pelos autores com base nos dados do Ministério da Saúde e do Our World In Data.

2) Di Domenico, L., Pullano, G., Sabbatini, C.E., Boëlle, P.Y. and Colizza, V., 2020. Impact of lockdown on COVID-19 epidemic in Île-de-France and possible exit strategies. BMC medicine, 18(1), pp.1-13

3) Guzzetta, G., Riccardo, F., Marziano, V., Poletti, P., Trentini, F., Bella, A., Andrianou, X., Del Manso, M., Fabiani, M., Bellino, S. and Boros, S., 2020. The impact of a nation-wide lockdown on COVID-19 transmissibility in Italy. arXiv preprint arXiv:2004.12338

4) Lau, H., Khosrawipour, V., Kocbach, P., Mikolajczyk, A., Schubert, J., Bania, J. and Khosrawipour, T., 2020. The positive impact of lockdown in Wuhan on containing the COVID-19 outbreak in China. Journal of travel medicine, 27(3), p. 37.

Arthur Aguillar é coordenador de Políticas Públicas do IEPS 

Helyn Thami e Rebeca Freitas são pesquisadoras de Políticas Públicas do IEPS

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30 dias de lockdown rígido são necessários para salvarmos o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/30-dias-de-lockdown-rigido-sao-necessarios-para-salvarmos-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/30-dias-de-lockdown-rigido-sao-necessarios-para-salvarmos-o-sus/#respond Thu, 25 Mar 2021 10:00:47 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/covid-19-vaccine-flasks.1500x875.jpg-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=342 João Moraes Abreu, Marco Brancher, Carlos Lula e Marcia Castro

 

Não se trata mais apenas de evitar a Covid-19. Pela primeira vez em uma geração, os brasileiros já não sabem se, diante de um acidente – no trânsito, em casa, no trabalho -, hospitais, públicos e privados, conseguirão atendê-los.

Um lockdown de somente um mês, rígido e fiscalizado, nos termos sugeridos pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) em carta aberta em 1º de março, é fundamental para atravessarmos a pior fase da pandemia sem agravar o estado de calamidade em que estamos.

Por que 30 dias? É o tempo para que a vacinação em massa comece a fazer efeito significativo. Por três fatores:

  • Toda vacina impede o óbito. Após 450 milhões de pessoas vacinadas (1ª dose, de diferentes vacinas) contra a Covid-19 no mundo, não há notícia de um único óbito por Covid-19 entre elas
  • Mais de 70% dos óbitos registrados no Brasil até aqui foram de pessoas acima de 60 anos;
  • Devemos ter duas doses para imunizar todos os brasileiros acima de 60 anos até o início de maio, no cenário mais provável, detalhado abaixo.

E como a vacinação impacta em óbitos por dia? Estudo da ONG Impulso Gov combinou 12 bases de dados públicas com dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, por meio da Lei de Acesso à Informação, para projetar uma queda da atual média móvel de 2.300 óbitos por dia para menos de 1000 óbitos por dia, a partir de maio, graças à vacinação. A queda continuaria daí em diante.

Ainda são números inaceitáveis. Mas essa redução nos óbitos já aliviaria a pressão insustentável que o sistema de saúde vive hoje.

O estudo traçou três cenários de vacinação (pessimista, intermediário e otimista), e estamos hoje mais próximos do cenário intermediário, com produção nacional de 78 milhões de doses   suficiente para vacinarmos todas as pessoas acima de 60 anos   até o começo de maio. O estudo e a metodologia completa, disponível em CoronaCidades.org, sugere que o pior momento é o que vivemos agora e nas próximas semanas.

Então, se a vacinação deve melhorar a situação a partir de maio, por que precisamos de um lockdown de 30 dias? Não podemos só esperar?

Não. Primeiro, porque se o lockdown reduzir pela metade a atual média de óbitos, em um mês serão 45 mil vidas poupadas. Há outros três motivos menos óbvios:

  • Sem lockdown, faltarão leitos para… tudo. Se o número de internações por Covid-19 não cair imediatamente (e não somente em maio, com os efeitos da vacinação), o sistema de saúde – público e privado – pode ficar sem leitos de UTI no país todo, como já ocorre em 16 dos 27 estados; e
  • Quanto mais a curva sobe, mais difícil baixá-la. Já atingimos 3000 óbitos em um único dia. Se este número não cair já, não ficaremos abaixo de 1000 óbitos nem em maio, mesmo com a vacinação.
  • Novas variantes podem surgir. Se permanecermos muito tempo com elevadíssima circulação do vírus, a chance de novas mutações surgirem aumenta, sendo possível até que o efeito da imunização seja menos potente e pessoas vacinadas venham a óbito. Neste caso, as projeções acima serão invalidadas. Estaríamos de volta a uma situação sem perspectiva de melhora.

Há luz no fim do túnel e ela está próxima; mas se não formos rápidos, ela pode se apagar.

Não podemos esperar mais nenhum dia. Após indesculpável atraso, o novo auxílio emergencial nacional, enfim, está a caminho, o que nos permite reduzir, agora, a circulação de pessoas, com medidas rígidas e de curto prazo, em todos os estados com mais de 85% de ocupação dos leitos de UTI ou internações por Covid-19 em ascensão.

Mesmo com um rígido lockdown agora, em 30 dias não estará “tudo bem”. Máscaras e distanciamento social permanecem necessários. Mas não sofreremos mais com falta generalizada de leitos e insumos médicos. Não necessitaremos de novos lockdowns nacionais. O pior terá passado.

É verdade que não será fácil: economicamente, psicologicamente. Mas março de 2021 não é março de 2020: sabemos o que fazer, e temos vacinas. Será o último esforço desta magnitude que precisaremos fazer como nação.

Desde sua criação, há 30 anos, o SUS já salvou milhões de vidas. Agora, somos nós que precisamos fazer nossa parte para, nos próximos 30 dias, salvarmos o SUS.

 

*Por um erro de divulgação da assessoria dos autores do artigo, o texto acima também foi publicado na seção Tendências/Debates

 

João Moraes Abreu, Diretor Executivo da Impulso Gov, realizadora do CoronaCidades.org

Marco Brancher, Coordenador de Dados da Impulso Gov

Carlos Lula, Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde

Marcia Castro, Professora da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard

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Em busca de lanternas no apagão dos dados da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/08/em-busca-de-lanternas-no-apagao-dos-dados-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/08/em-busca-de-lanternas-no-apagao-dos-dados-da-pandemia/#respond Tue, 08 Dec 2020 10:00:27 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/istockphoto-1050260814-612x612-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=322 Pedro de Paula e Renato Teixeira

 

Imagine que você está dirigindo um carro em uma noite chuvosa. Após uma curva fechada, depois de cruzar com um caminhão no sentido contrário que por pouco não acertou seu carro, seus faróis subitamente se apagam. Qual é a sensação de estar nessa situação?

É mais ou menos assim que os gestores públicos podem se sentir ao liderar a resposta à maior pandemia de nossas gerações quando há um apagão nos dados da saúde. Devemos manter as escolas abertas ou fechá-las? Reduzir ou aumentar as restrições às interações sociais? Ampliar a capacidade das UTIs ou desativar hospitais de campanha? Essas decisões podem ser tomadas rápida e eficientemente, mas somente com os dados corretos. Os gestores precisam saber o número de casos, hospitalizações, mortes e, talvez o mais importante, se esses números estão aumentando ou diminuindo. Para que a resposta do setor público à COVID-19 seja ágil, as informações disponíveis também devem ser atuais.

A COVID-19 deixou muitos no escuro, mas também proporcionou uma oportunidade para explorar novas fontes de dados e os resultados têm sido surpreendentes. Muitos termos e informações importantes que antes não eram familiares ao público em geral tornaram-se amplamente conhecidos: número e porcentagens de testes positivos, total de internações, porcentagem de leitos de UTI ocupados, e total de mortes por COVID-19. Um número crítico é o excesso de mortalidade – o número total de mortes de todas as causas que excede o número esperado de mortes com base em médias históricas. Além destas informações essenciais, também é crucial saber como as pessoas estão se comportando, ou seja, se estão usando ou não máscaras e adotando medidas voluntárias de distanciamento físico, entre outras. Estes são indicadores estratégicos de como os níveis de transmissão podem evoluir.

É por isso que é crucial para os governos fazer uso estratégico de todas as fontes de dados disponíveis. Não apenas os conjuntos de dados oficiais, mas também as informações geradas pela mídia social e pela vigilância comunitária, pois eles poderiam desempenhar um papel importante na melhoria da resposta da política de saúde pública.

Saber que, em maio de 2020, o estado de São Paulo enfrentou seu maior número de mortes em excesso ao esperado para o mês é muito importante para análises mais profundas e de longo prazo; mas para decidir se bares e restaurantes podem continuar recebendo pessoas hoje, o gestor necessita saber diariamente, com o menor atraso possível, qual a variação de casos e de internações no último dia e nas últimas semanas. Além de saber se a trajetória desses casos tem sido consistentemente crescente ou decrescente, é também fundamental saber como a população tem se comportado em termos de distanciamento, uso de máscaras e outros indicadores sociais.

Como fazer tudo isso no meio de um apagão de dados, como relatado no início de novembro? Mesmo com os sistemas de informação estabilizados, como uma resposta à pandemia que parou o mundo pode ser moldada apenas por dados de mortalidade, o que pinta um quadro estreito e retardado da tragédia da saúde pública? Ou, no máximo, dados de testes ou hospitalizações que estão disponíveis com até 10 dias de atraso?

Uma maneira é investir em testes e monitoramento extensivos, juntamente com o fortalecimento dos sistemas de informação nos municípios, estados ou do país. Assim, é possível diagnosticar rapidamente os problemas e agir antes que eles se tornem irreversíveis. Entretanto, fortalecer tais sistemas e capacidades no meio de uma pandemia pode ser difícil e caro, e podem ocorrer falhas. Portanto, deve ser dada atenção a caminhos complementares. Existem fontes de informação oficiais extras que podem e devem complementar as análises de saúde pública.

A vigilância comunitária pode indicar a existência de zonas não adequadamente cobertas pelo sistema institucionalizado de saúde pública, como é o caso do painel “COVID-19 nas favelas do Rio de Janeiro”. Dados produzidos nas redes sociais podem servir de indícios do comportamento da pandemia. No início do ano, por exemplo, indicadores de mobilidade da população obtidos por meio de dados de GPS de celulares foram uma interessante aproximação da real efetividade das políticas de distanciamento. Com a redução da adesão a essas medidas, precisamos saber rapidamente onde e como estão se comportando os novos surtos para agir de forma eficaz, como mostra ser necessário a recente experiência em países da Europa, sob pena de um altíssimo custo humano.

O recente caso no Estado de São Paulo é ilustrativo da utilidade dos dados produzidos nas redes sociais para complementar as fontes oficiais. Entre os dias 6 e 9 de novembro, o Estado de São Paulo – em virtude de problemas nos sistemas de informação – não divulgou nenhum caso ou óbito em todo seu território. Nas semanas que antecederam esse apagão, a tendência era de queda e a população começava a acreditar que o pior já havia passado. No entanto, quando os dados voltaram a ser divulgados, percebeu-se que naquele período houve uma inversão de trajetória, indicando uma retomada do aumento dos casos e das hospitalizações, o que foi reforçado por declarações de hospitais privados na capital.

Só em 11 de novembro a preocupação com o aumento de casos começou a tomar conta dos noticiários e do debate público. Isso ocorreu cinco dias após o início do apagão e possivelmente com mais de uma semana de atraso da real inversão de tendências. Mas não era necessário esperar tanto para se ter um retrato mais atual da pandemia no Estado de São Paulo.

Uma parceria entre o Facebook Data for Good, Carnegie Mellon University e a University of Maryland, tornou público bases de dados com informações para relatar sobre sintomas relacionados à COVID-19. Todos os dias, os usuários do Facebook com 18 anos ou mais são solicitados a responder voluntariamente a um questionário com informações que vão desde os sintomas autorrelatados da COVID-19 até o uso de máscara e transporte público. Estas bases de dados, que são anônimas e não revelam informações pessoais nem permitem rastrear indivíduos, mostraram que desde o final de outubro já era possível observar uma mudança na tendência da porcentagem de pessoas que responderam que tinham sintomas de uma doença semelhante à COVID-19, que é definida como febre acompanhada de tosse ou falta de ar ou dificuldade para respirar. Ao analisar os dados atualizados do Ministério da Saúde, observa-se que após alguns dias de baixo número de notificações, foi apresentado um padrão semelhante de crescimento (FIGURA 1 para o BRASIL). E, como dito, com um atraso de 8 dias, a plataforma do Estado de São Paulo mostrou crescimento nos casos relatados diariamente.

 

Figura 1 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Casos em todo o Brasil, entre 1º de outubro e 28 de novembro de 2020.

 

Esse padrão de antecipação de tendências se repete em outros estados, como no Ceará, Goiás, Minas Gerais e outros. Sempre que houve uma inversão de tendências de redução ou aumento de casos na base dos casos notificados do MS, essa redução também estava refletida através desse levantamento realizado no Facebook.

Esses dias de alerta precoce são preciosos na leitura de cenário e na tomada de decisões ágeis sobre a pandemia. Mais do que suprir apagões, ter sinais de alerta para novos surtos pode antecipar as respostas públicas, salvando vidas e reduzindo os danos do aumento da transmissão.

Embora informações e indicadores auxiliares ainda estejam longe de suprirem os dados oficiais de saúde e serem os faróis que necessitamos nessa longa noite chuvosa, eles se prestam a complementar o repertório de inteligência a ser utilizada na contínua luta contra a COVID-19. A disponibilidade de dados atualizados e confiáveis é essencial para o direcionamento das ações contra a COVID-19. Embora cada vez mais se confirmem as expectativas positivas nas vacinas, viveremos por muito tempo sem o controle e a supressão total do vírus. Teremos que buscar todas as luzes ao nosso alcance para orientar nossa viagem nessa estrada escura e tortuosa.

 

Figura 2 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Estado de São Paulo, 1º de outubro a 28 de novembro de 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 3 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Brasil, 1º de maio a 28 de novembro de 2020.

 

Figura 4 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Estado de São Paulo, 1º de maio a 28 de novembro de 2020.

 

Pedro de Paula é Diretor-Executivo da Vital Strategies Brasil. Pedro é advogado formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Mestre em Direito Econômico e Economia Política pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente é Doutorando. Também leciona na Faculdade de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Renato Teixeira é consultor técnico da Vital Strategies Brasil. Graduado no curso de Estatística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Epidemiologia e Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Medicina da UFMG, Renato vem analisando dados que podem auxiliar no melhor compreendimento e monitoramento da COVID-19.

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A obesidade infantil é uma responsabilidade que precisa ser compartilhada https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/#respond Fri, 23 Oct 2020 11:00:02 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/bicycle-427560_1920-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=298 Atualizado 23.out.2020 às 17:35

Roberta Costa Marques

Laís Fleury

Livia Cattaruzzi

Enquanto atravessamos a pandemia do coronavírus, uma outra epidemia, a de obesidade infantil, acomete cerca de 380 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. E o Brasil contribui significativamente para essa preocupante estatística: hoje, 1 em cada 3 crianças e adolescentes, com idade entre 5 e 19 anos, está com excesso de peso ou obesidade e, entre os adolescentes, a obesidade grave saltou de 17% para 28% na última década, segundo o Panorama da Obesidade em Crianças e Adolescentes. Projeções da OMS indicam que podemos ocupar o 5° lugar na lista de países com maiores índices de obesidade infantil em 2030.

O aumento desses índices coincide com mudanças significativas no estilo de vida das famílias brasileiras nos últimos anos, como a intensificação da urbanização, do sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios industrializados, os quais são promovidos para crianças desde a mais tenra idade, entre outros fatores. 

Além de prejuízos ainda na infância, como estigma e diabetes, crianças com excesso de peso ou obesidade têm cinco vezes mais chances de desenvolver doenças crônicas na vida adulta, resultando em uma pior qualidade de vida e maiores custos para o sistema de saúde.

Apesar dos altos e crescentes índices, a obesidade infantil ainda é pouco discutida no Brasil, o que provoca uma percepção equivocada a respeito da responsabilidade que o tema carrega. Considerando esse cenário, o Instituto Desiderata e o Instituto Alana lançaram a publicação Obesidade Infantil – uma responsabilidade compartilhada, com o objetivo de que a sociedade reconheça que não se trata de uma questão restrita aos âmbitos individual e familiar, mas, sim, de um problema de saúde pública, e compreenda alguns dos fatores ambientais que contribuem para o agravamento desse cenário.

O senso comum ainda trata  a obesidade infantil como uma questão individual, fechando os olhos para os múltiplos fatores que a influenciam, como condições socioeconômicas, culturais, ambientais e políticas. Como garantir uma existência mais saudável para as nossas crianças se vivemos em um ambiente que desfavorece um modo de vida mais ativo e as expõem a estratégias comerciais que promovem junk food e bebidas adoçadas? Tais fatores são determinantes para a adoção de hábitos pouco saudáveis, mas não costumam fazer parte dessa discussão. 

Situação mais grave durante a pandemia de coronavírus

Em tempos de pandemia, esses desafios são ainda maiores, com a limitação da circulação das pessoas e o excesso do uso de telas. Para a maior parte das famílias, em especial as que vivem em grandes centros urbanos, a insegurança nas ruas e a escassez de espaços ao ar livre que estimulem a circulação e a brincadeira dificultam ainda mais esse cenário.

O maior tempo em casa aumentou o uso de telas em todas as classes sociais, do celular à televisão, ampliando a exposição das crianças a mensagens publicitárias, cada vez mais veladas e sofisticadas, direcionadas a elas – ainda que a prática de publicidade infantil já seja considerada ilegal pela legislação brasileira – promovendo o consumo excessivo e habitual de produtos alimentícios ultraprocessados, de baixo valor nutricional e com altos índices de ingredientes artificiais que prolongam sua durabilidade.

Proporcionar atividade física ao ar livre e uma alimentação adequada e saudável não é tarefa fácil em uma realidade em que tantas famílias sequer têm acesso a  alimentos e espaços saudáveis. Para dar conta dessa questão de saúde pública, poder público, organizações sociais e setor privado precisam atuar juntos para disponibilizar informação clara e transparente, adotar medidas regulatórias eficazes que diminuam o consumo de alimentos ultraprocessados e bebidas adoçadas, assim como criar espaços seguros, acessíveis e livres de publicidade infantil para a circulação de crianças pelas cidades. Apenas por meio do engajamento de todos esses setores em conjunto, será possível  transformar o atual cenário para garantir a essas crianças uma vida e um futuro mais saudáveis.

 

Roberta Costa Marques é diretora executiva do Instituto Desiderata

Laís Fleury é coordenadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana

Livia Cattaruzzi é advogada do programa Criança e Consumo do Instituto Alana

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