Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Orçamento público para a saúde da população negra: uma tarefa por fazer https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/#respond Fri, 05 Nov 2021 08:00:16 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/0b6d7e87ff86e86f6dddbb12ef854e9f_1616619191805_2002334538-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=572 Clara Marinho Pereira e Julia Rodrigues

 

A maioria da população brasileira se declara negra: são 89,7 milhões de pardos e 19,2 milhões de pretos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o 3º trimestre de 2020. No entanto, em face das vulnerabilidades provocadas pelo racismo, os impactos da pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido desproporcionalmente maiores na saúde da população negra por, pelo menos, quatro motivos.

Primeiro, porque a população negra teve menores oportunidades de se isolar. Sem políticas públicas para conter a contaminação em comunidades e favelas, o vírus espalhou-se rapidamente entre os mais pobres. Cabe lembrar que 67% dos moradores das comunidades e favelas brasileiras são negros.

Segundo, porque a população negra é maioria nos segmentos econômicos considerados essenciais para a manutenção da vida coletiva, de natureza intensiva em mão-de-obra. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 mostram que, na limpeza urbana, 55,4% do total de vínculos eram compostos por negros; na segurança, 52,9%; e na construção civil, 50,2%, dentre tantos outros serviços. No  cotidiano, cada trabalhador(a) negro(a) se expõe ao contato com dezenas, até centenas de pessoas.

Terceiro, porque a população negra também é maioria na informalidade. Dados de 2019 do IBGE mostram que 47,4% dos trabalhadores negros do Brasil estão inseridos na informalidade, contra 34,5% da população branca.  Com a atividade econômica restringida ou afetada pela circulação do vírus, fragilizaram-se os circuitos de trabalho e de ganho diário, lançando rapidamente trabalhadores à pobreza, à miséria e à fome; uma situação que dificulta o isolamento e a capacidade das pessoas negras em ter uma resposta imunológica adequada quando contaminadas.

Quarto, quando contaminados, os negros demoram mais a ter acesso aos serviços de saúde. Muitas vezes impossibilitados de faltar ao trabalho, ou então sem dinheiro para pagar o transporte até o posto de saúde,  negros acabam por postergar a busca pela assistência médica. Quando o fazem, a situação já está agravada.

Não por acaso, negros morrem mais do que brancos. Conforme estudo realizado pelo Instituto Pólis, a taxa de mortalidade padronizada da doença para a população negra foi de 172 mortes para cada 100 mil habitantes entre março e julho de 2020 na cidade de São Paulo – município mais populoso do país. O número é 60% maior do que a taxa de mortalidade padronizada da população branca da cidade, que ficou em 115 mortes para cada 100 mil habitantes.

Em estudo mais recente, de setembro de 2021, e de caráter nacional, pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária mostram, a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, que homens negros morrem mais por Covid-19 do que homens brancos, independentemente da ocupação e mesmo quando estão no topo do mercado de trabalho. Já as mulheres negras morrem mais do que todos os outros grupos (mulheres branca, homens brancos e homens negros) na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação.

No entanto, a vacinação começou com pouca atenção a esses aspectos, partindo do centro para as periferias; dos grupos afluentes para os mais vulneráveis, o que mostra, mais uma vez, o uso seletivo das evidências para informar as políticas públicas. As “evidências”, muitas vezes, são mobilizadas para reforçar estruturas prévias de poder, e não questionar o melhor uso do recurso delas.

Com a Covid-19 ainda no horizonte, quais as chances de racionalizar o debate sobre o gasto em saúde daqui em diante? Aqui, propõe-se o exercício de olhar para trás, com o intuito de entender as possibilidades futuras.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, construída pela sociedade civil em parceria com o governo federal, estabelece um conjunto de diretrizes para que os serviços públicos de saúde acolham as especificidades da população negra na sua oferta, reconhecendo o racismo como uma determinante social das condições de saúde, ou seja, como o racismo impacta na ocorrência de problemas de saúde e amplifica seus fatores de risco.

A despeito dos imensos esforços colocados desde meados dos anos 1990 para a construção desse arcabouço de intervenção pública, o Estado brasileiro não tem sido diligente para dar visibilidade à sua atuação na garantia do bem-estar da população negra.

Um dos principais instrumentos para atuação do Estado é o orçamento público. É por meio dele que são comunicadas à sociedade as prioridades do governo e são alocados recursos para sua implementação.

O Plano Plurianual (PPA) para o ciclo 2016-2019 do governo federal possuía um programa específico para o enfrentamento das questões raciais: o Programa 2034 – Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, que tinha como uma das metas “Contribuir para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, incluindo a atualização do seu Plano Operativo” (Meta 4MC). Já no PPA para o ciclo 2020-2023, há um completo apagamento da questão racial, com nenhum programa, objetivo ou meta endereçados ao tema.

Do ponto de vista da Lei Orçamentária Anual (LOA), os recursos são, na maioria das vezes, alocados em ações genéricas, com o objetivo de facilitar o desembolso daqueles. No entanto, essa prática dificulta sobremaneira o controle social, pois impossibilita que sejam acompanhadas as despesas por recortes de gênero, raça, faixa etária e orientação sexual. No Ministério da Saúde, esse fenômeno (as ações genéricas) é recorrente, sendo difícil até mesmo obter a localização geográfica do gasto.

Até o ano de 2020, contudo, era possível enxergar uma (mínima) preocupação do Ministério com a promoção da equidade, devido à existência da ação orçamentária 20YM – Implementação de Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, cujo objetivo era a promoção do direito à saúde para segmentos populacionais expostos a iniquidades em saúde, como ciganos, LGBT, populações do campo, da floresta e das águas, população negra, população em situação de rua, população albina e gestores do SUS. No ano de 2016, essa ação chegou a contar com R$46,5 milhões de reais, em 2018 caiu para R$8,8 milhões e, em 2020, chegou a R$28 milhões.

No entanto, em sintonia com o apagamento das questões raciais no PPA 2020-23, a ação 20YM deixou de constar do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2021, encaminhado pelo Poder Executivo. Foi transformada em uma classificação gerencial (chamada Plano Orçamentário e que pode ser modificada a qualquer instante) da ação 21CE – Implementação de Políticas de Atenção Primária à Saúde. Em 2021, foram previstos R$28 milhões e, para 2022, o valor foi repetido, indicando que, em termos reais, os montantes diminuem a cada ano.

Contraditoriamente, portanto, justo quando a questão racial na saúde está exacerbada pelos dados, pelos achados de pesquisas e pelas tragédias, é quando ela mais se ausenta de identificação e controle social no orçamento, bem como de vínculos com o planejamento público de médio prazo.

Qualquer tentativa de assegurar o direito à saúde da maior parte da população brasileira que não observe a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra conjugada à consignação de recursos no orçamento estará condenada ao questionamento de sempre: será mesmo que o Estado brasileiro está comprometido com o atendimento igualitário no Sistema Único de Saúde (SUS)?

Hoje, infelizmente parece que a resposta é “Não”. Fazer mais do mesmo apenas trará mais mortes e iniquidades.

 

Clara Marinho Pereira é Mestre em Desenvolvimento Econômico e Fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente.

Júlia Rodrigues é Economista, Doutoranda em Ciência Política e Consultora de Orçamento.

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Implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no município do Rio de Janeiro https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/#respond Wed, 13 Oct 2021 10:00:28 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/750_racismo-estrutural-populacao-negra-covid19-pandemia-coronavirus_20201117154514-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=547 Monique Miranda, Louise Mara S. Silva e Michele Gonçalves da Costa

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), publicada pela Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009, pelo Ministério da Saúde (MS), apresenta como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com o objetivo de promover a equidade em saúde. Os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população, segundo a Comissão Nacional de Determinantes Sociais em Saúde (CNDSS).

Políticas de equidade no Brasil, convenções e tratados internacionais demonstram que as desigualdades de raça e gênero determinam oportunidades de trabalho e renda, acesso a recursos institucionais, condições de moradia, vulnerabilidades e exposição à violência. Entretanto, o gênero e, em especial, a variável raça/cor, ainda são insuficientemente incorporados no desenho de políticas, programas e serviços das instituições públicas e privadas.

A PNSIPN endossa e correlaciona-se com outros marcos legais: a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886 de 20 de novembro de 2003), a Regulação do Sistema Único de Saúde-SUS (Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010), a Política Nacional de Promoção da Saúde (Portaria MS/GM nº 687, de 30 de março de 2006), a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas (Durban 2001), a Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela Assembleia Geral da ONU (Resolução 68/237, para o período entre 2015 e 2024). Por fim, destaca-se o artigo 196 da Constituição Federal de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e 207 econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,7% da população brasileira é composta por pessoas negras (somatório de autodeclarados pretos e pardos), correspondendo a 96,7 milhões de indivíduos. Na cidade do Rio de Janeiro os dados epidemiológicos apontam maior vulnerabilidade de cidadãos pretos e pardos aos agravos à saúde, embasando a necessidade de se priorizar a implantação de uma política específica de equidade racial da população negra em nossa cidade. Análises dos sistemas de informação em saúde demonstram maior mortalidade infantil da população negra em comparação com a branca; maior risco de morte entre os jovens da população negra em comparação com os jovens brancos; maior mortalidade materna das mulheres negras quando comparadas com as mulheres brancas.  Da mesma forma, a ocorrência de doenças tais como hipertensão, diabetes, tuberculose dentre outras também são prevalentes entre pretos e pardos, inclui-se ainda nesse  padrão os óbitos por Covid-19.

O marco fundamental para o combate às desigualdades étnico-raciais em saúde na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro foi a realização do “II Seminário de Promoção da Saúde: Equidade em Saúde da População Negra”, em dezembro de 2006. Este evento foi organizado pela então Assessoria de Promoção da Saúde em parceria com a ONG de mulheres negras, a Criola.  O seminário teve como intuito sensibilizar profissionais, gestores da saúde e definir estratégias para a implantação da PNSIPN na cidade. Estavam presentes aproximadamente 300 participantes: gestores e profissionais de saúde, ativistas do movimento negro e de mulheres negras, sociedade civil, lideranças comunitárias e representantes das religiões afro-brasileiras. Para o fomentar e articular o processo de implantação da política foram deliberadas as seguintes propostas no evento:

  • criação de um Comitê Técnico de Saúde da População Negra;
  • implantação do registro da variável raça/cor nos impressos oficiais da SMS;
  • diagnóstico epidemiológico da saúde da população negra;
  • formulação e estabelecimento de indicadores;
  • enfrentamento ao racismo institucional;
  • valorização das religiões de matriz africana;
  • institucionalização de recursos financeiros para a implantação da política;
  • fomento da participação do controle social e o fortalecimento de articulações intersetoriais.

No ano de 2007 foi criado o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, por meio da  Resolução SMS Nº 1298/2007, antes mesmo da promulgação da PNSIPN. O referido Comitê Técnico tem como atribuições:

I – sistematizar propostas que visem à promoção da equidade racial na atenção à saúde da população negra;

II – apresentar subsídios técnicos e políticos voltados à melhoria da atenção à saúde da população negra;

III – elaborar e implementar um plano de ação e monitoramento para intervenção pelas diversas instâncias e órgãos do Sistema Único de Saúde;

IV – fomentar e participar de iniciativas intersetoriais relacionadas com a saúde da população negra;

V – atuar na implantação, acompanhamento e avaliação das ações programáticas e políticas referentes à promoção da equidade em saúde da população negra na SMS/Rio, em consonância com as normativas do SUS.

O Comitê é composto por profissionais da gestão da SMS-Rio e de suas áreas técnicas, assim como  pelas representações da  sociedade civil, como universidades, ONGs , coletivos e outas instâncias,  em especial dos movimento negros e do movimento de mulheres.  Desta forma o CTSPN tem tido ao longo desses anos papel fundamental no impulso e acompanhamento da implantação da PNSIPN,  além de ser a instância de permeabilização do diálogo da SMS-Rio com a sociedade civil e na construção conjunta de ações para a redução das desigualdade étnico-raciais.

A mudança do panorama das graves iniquidades que atingem a população negra  requer o reconhecimento da sua situação de saúde. Para isso, é necessário que a variável raça/cor seja incluída em todos os sistemas de informação , formulários, cadastros, prontuários , impressos. Destacamos que um  dos objetivos específicos da PNSIPN é a inclusão do quesito cor em todos os instrumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos, conveniados ou contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Cabe destacar que o Rio de Janeiro instituiu desde 2008, pela Lei n.º 4.930/08 a inclusão obrigatória do quesito raça em todos formulários de informações em saúde do Município.

É fundamental  que as desigualdades étnico-raciais sejam monitoradas por dados, indicadores e informação em saúde  desagregados  por raça/cor. Embora na SMS-Rio o início da implantação da PNSIPN tenha completado pouco mais de uma década e exista atualmente um bom preenchimento da variável raça/cor , ainda é  incipiente  e descontínua sua utilização  na análise,  planejamento e  tomada de decisões nas  políticas e ações de saúde, assim como no investimento de recursos. Além disso, é necessário que os dados  por raça/cor sejam divulgados e disponibilizados de forma ampla, sistemática e transparente através dos canais de informação da prefeitura e junto  a sociedade civil e a população em geral.

As informações com os dados desagregados por cor ou raça são relevantes para atender ao princípio da equidade do SUS, ao reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde, oferecendo atendimento de acordo com as necessidades das populações, o que pode contribuir na redução do impacto dos determinantes sociais de saúde aos quais estão submetidas. São os dados desagregados por raça/cor que nos permitem confirmar o racismo como determinante social em saúde em um município como o Rio de Janeiro, onde segundo os dados do Instituto Pereira Passos (órgão responsável pela sistematização dos dados demográficos da cidade) a população em 2010 era composta por 51,3% brancos e 11,2% pretos; 36,7% pardos, configurando em 47,9% o quantitativo populacional negro.

Uma multiplicidade de pesquisas e estudos no campo da saúde coletiva expõe através de indicadores de morbimortalidade a grave situação de iniquidade sofrida pela população negra e indígena. Pesquisas qualitativas demonstram que o racismo institucional dificulta o acesso de pessoas pretas, pardas e indígenas aos serviços de saúde, influencia na qualidade da atenção à saúde prestada pelos profissionais e também  agrava a violência institucional  como no atendimento ao parto das mulheres negras.

Reconhecer que as práticas racistas também estão dentro do modelo de atenção à saúde e buscar a transformação desse cenário deve ser um objetivo de todos que estejam envolvidos com o cuidado em saúde e com as instâncias de gestão.  Os indicadores em saúde espelham a realidade da discriminação e desigualdade racial, embasando  a necessidade de se intensificar e ampliar a implantação da PNSIPN. Infelizmente o  racismo institucional na estrutura e entre os agentes públicos  da Prefeitura-Rio pouco mudou, decorrendo então que graves iniquidades raciais em saúde persistem na cidade do Rio de Janeiro.

A PNSIPN (2009) e a  Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas (2002)  são marcos no reconhecimento de diferenças e especificidade étnico-raciais na população brasileira. Essas políticas , em especial a primeira, trazem para a área de atuação dos gestores e profissionais de saúde as questões  da identidade racial e das desigualdades étnico-raciais, demandando para a sua implantação  um intenso e contínuo trabalho de combate ao racismo institucional  e estrutural.

A ampliação do acesso ao SUS e a integralidade das ações de saúde, assim como a transformação das graves desigualdades étnico-raciais demandam que profissionais, gestores e sociedade civil reconheçam o racismo institucional, comprometendo-se para o desafio cotidiano da desconstrução da ideologia racista existente em  nossa sociedade.

 

Monique Miranda é enfermeira, mestre em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Louise Mara S. Silva é enfermeira e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Michele Gonçalves da Costa é sanitarista, especialista em saúde coletiva, mestranda em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

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Desigualdade social, pandemia e o Brasil que alimenta a fome e a insegurança alimentar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/#respond Wed, 08 Sep 2021 10:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/prato5-1200x675-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=522 Agatha Eleone, Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Além da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 trouxe aos holofotes um outro fenômeno que impacta diretamente a saúde dos brasileiros: a fome. Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, naquele ano o número de brasileiros em situação de fome voltou a atingir os patamares de 2004. A chegada da pandemia no país marcou também o aumento de 27,6% do número de brasileiros enfrentando a fome, em comparação com o ano de 2018, totalizando 19,1 milhões de pessoas –quase 9 milhões de pessoas a mais do que dois anos antes, o que corresponde a 9% da população brasileira.

O levantamento Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bioeconomy mostrou que, entre os meses de agosto e outubro de 2020, 13,6% dos brasileiros maiores de 18 anos passaram ao menos um dia inteiro sem comer ou com apenas uma refeição, e 125 milhões de brasileiros enfrentaram alguma forma de insegurança alimentar, ou seja, reduziram o número de refeições consumidas por dia ou a quantidade de comida consumida por refeição, motivados pela incerteza de conseguir alimentos posteriormente.

Entre as famílias que enfrentam a insegurança alimentar, a pesquisa também destacou que a fome no Brasil tem gênero e cor –73,8% dos lares chefiados por mulheres e 66,8% por pessoas pretas. A insegurança alimentar também é maior nas residências habitadas por crianças (70,6%) e adolescentes (66,4%) e mais frequente nos domicílios do Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) do país. Ainda, na maioria desses lares a renda familiar não passava dos R$500 mensais, em contraste com o preço médio da cesta básica que, em outubro de 2020, variou de R$ 436,76 em Natal a R$ 595,87 em São Paulo.

Como consequência da insegurança alimentar, a maior parcela da população que hoje não possui renda para custear uma alimentação balanceada  recorre aos ultraprocessados. Apesar de serem normalmente mais baratos, esses alimentos são também mais pobres em nutrientes e ricos em farinhas, açúcares, gorduras, e aditivos químicos, prejudiciais à saúde quando consumidos em grande quantidade. Com isso, outras facetas da insegurança alimentar podem ser a subnutrição e a obesidade da população.  

A situação atual, certamente agravada pela pandemia, evidencia a necessidade de políticas estatais robustas e de longo prazo para combate da miséria e da fome. No entanto, vemos o Governo Federal rumando em direção contrária. Flertando com o segmento de supermercados durante participação no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento no último mês de junho, o Ministro da Economia Paulo Guedes chegou a defender a ideia de que sobras de restaurantes de classe média poderiam ser destinadas a populações vulneráveis. No mesmo evento, a Ministra da Pecuária, Agricultura e Abastecimento, Tereza Cristina, confirmou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a flexibilização de regras sobre a validade dos alimentos como uma alternativa para combater a alta dos preços e o alto índice de insegurança alimentar no país.

Diante dessas falas, é importante pontuar: ignorar a crescente desigualdade e distribuir restos de alimentos ou alimentos vencidos a pessoas pobres não resolve o problema da fome e da insegurança alimentar dos brasileiros, uma vez que esses fenômenos não decorrem simplesmente da falta de alimentos disponíveis para consumo, mas sim da falta de acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para a sobrevivência. Em outras palavras, o problema existe por sucessivos erros na condução das políticas públicas voltadas para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Tanto a fome quanto a insegurança alimentar constituem violação de Direitos Humanos, sendo a alimentação um direito reconhecido pelo Pacto Internacional de Direitos e previsto na Constituição Brasileira.

Dentre as ações que evidenciam a negligência com a saúde e a segurança alimentar do país estão as inúmeras tentativas de reformulação do Guia Alimentar para a População Brasileira — só em 2020, foram dois pedidos enviados pelo Ministério da Agricultura ao Ministério da Saúde. O documento é referência internacional por apresentar recomendações para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando não apenas aspectos nutricionais, mas também o contexto cultural, social e ambiental em que os indivíduos se inserem. Além dos ataques ao Guia, a classificação NOVA, que agrupa e classifica os alimentos pelo grau de processamento, não foi mencionada pela Sociedade Brasileira de Pediatria no Manual de Atualidades em Nutrologia Pediátrica publicado em maio deste ano.

  Além disso, um dos principais alvos do lobby da indústria de ultraprocessados é a discussão sobre a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento da incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Baseados no argumento de que as DCNT são multifatoriais, surge a tentativa de desresponsabilizar o consumo de ultraprocessados como um potencial causador de agravos, distorcendo as crescentes evidências científicas que o associam significativamente a desfechos negativos tanto para a saúde das populações quanto para o meio ambiente. Não à toa a regra de ouro preconizada pelo Guia sugere que aqueles produtos  devam ser totalmente evitados pela população.

Há quem diga que a situação atual é uma consequência gerada exclusivamente pela pandemia de covid-19. Na contramão, evidências anteriores já apontavam para a piora da situação alimentar dos brasileiros. Na linha das ações necessárias para virar esse jogo, um dos primeiros passos seria a atualização da linha de pobreza do Programa Bolsa Família, uma vez que a política, apesar de precursora, hoje conta com uma extensa lista de espera e subestima o número de pessoas que deveriam ser enquadradas no critério de recebimento do benefício. Ainda, é importante garantir o aumento de gastos federais com políticas de desenvolvimento agrário e de estímulo à agricultura familiar; e, finalmente, admitir a fome e a insegurança alimentar como problemas de saúde pública e não apenas como emergência assistencial, fomentando a execução de ações intersetoriais, bem como pesquisa e a formulação de políticas públicas com base em evidência.

 

Agatha Eleone é nutricionista, especialista em saúde da família e em gestão da atenção básica, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). 

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos  para Políticas de Saúde (IEPS). 

Rebeca Freitas é cientista social, bacharel em Direito, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, e especialista em relações governamentais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Saúde mental não é pauta “pop”: precisamos institucionalizar o debate para além da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/#respond Wed, 01 Sep 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-mental-pandemia-covid-19-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=515 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Todos já sabemos que as medidas de isolamento social impostas pela pandemia de Covid-19 agravaram o processo de adoecimento da população, mas também sabemos que o exponencial aumento de adoecimentos mentais em todo mundo não é um fenômeno recente. Estamos diante de um problema antigo e precisamos assumir as consequências de anos de descuido no campo: o debate público sobre saúde mental era um problema de saúde pública. 

Mas não estamos falando de um desafio exclusivo da área da saúde, para reduzir os danos provocados pela pandemia e atuar de forma preventiva em saúde mental temos que considerar os aspectos transversais do tema e outras agendas sociais, afinal, saúde mental permeia toda a nossa vida. Saúde, educação, sistema de justiça e segurança pública, assistência social, cultura e lazer  são setores igualmente responsáveis por criar soluções para esse desafio, assim como famílias e comunidades são indispensáveis em qualquer ação, de cuidado ou prevenção. 

O desafio no pós-pandemia é maior, mas agora também temos a oportunidade de aproveitar a atenção que a saúde mental recebeu nos últimos tempos e prolongar esse olhar a longo prazo. Não podemos deixar que a luz posta neste tema se apague, precisamos institucionalizar o debate sobre saúde mental no Brasil em todos os setores sociais, de forma sustentável e estrutural, e colocá-lo em pauta em todos os lugares. 

Em relação a saúde mental no “pós-pandemia”, ainda é cedo para diferenciar o que são reações “esperadas” frente ao estresse causado pela pandemia e o que pode ser considerado um transtorno, por isso devemos ter cautela ao já querer pular para diagnósticos precipitados. Mas já sabemos que devemos a chamada “quarta onda de COVID”, durante 3 e 4 anos, que resulta dos efeitos colaterais deste período de isolamento social, que incluem aumento de ansiedade e depressão, de transtornos obsessivos compulsivos e obesidade, e outras consequências à saúde em decorrência da pandemia. 

Fonte: Tseng, 2000.

Nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, aponta que é possível estimar o agravamento no cenário da saúde mental no Brasil, após a pandemia. Até 80% da população poderá desenvolver sofrimento psíquico, automutilação, conflito interpessoal e tentativa de suicídio. Cerca de um quarto da população (entre 15% e 25%) poderá se encontrar em maior risco, com sua estrutura psíquica mais fragilizada, e precisar de suporte imediato para evitar colapsos maiores e entre 1% e 4% da população diz respeito a pessoas que poderão precisar de atenção especializada. 

 

Efeitos a longo prazo 

Além dos efeitos colaterais de curto prazo, teremos também que lidar com a sociabilidade e a solidão no pós-pandemia. Mal começamos a perceber os impactos deste longo período de isolamento social na nossa capacidade de nos relacionar e existem muitas questões em aberto: de que maneira as mudanças de comportamento adotadas vão impactar nosso contato físico e trocas de afeto? Nossas rotinas e redes de apoio? Ou ainda, que tipo de soluções serão criadas a partir da perspectiva de que é possível fazer tudo de forma remota? Não precisamos mais nos encontrar presencialmente, tudo pode ser mediado por tecnologia? Como lidaremos com o pertencimento, fator tão relevante para a proteção da nossa saúde mental?

Especialmente com relação aos adolescentes, que propostas estamos criando para lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) já percebida antes da pandemia mais profundamente agrava com o isolamento social? Que tipo de lugar eles ocuparão no futuro da sociedade, em um contexto de precarização do acesso à sua educação e de redução das oportunidades de emprego? Dados do relatório Caminhos em Saúde Mental apontam o afastamento e a evasão de crianças e adolescentes, assim como o aumento do trabalho infantil e doméstico e as violências domésticas, como desafios agravados pela pandemia. 

Para além de “apagar incêndios”, pensando um pouco mais no futuro, precisamos, antes de tudo, afinar nossa compreensão coletiva sobre o que é saúde mental e como podemos incorporá-la ao nosso cotidiano de forma mais consistente. Independentemente da definição que se adote, é indispensável afirmar que a saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é o resultado da complexa interação entre esses aspectos individuais e as condições de vida das pessoas, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva e o acesso a bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária. 

Por isso não tem como melhorar os índices de educação, trabalho, alimentação, moradia, entre tantos outros,sem olhar de forma permanente para a saúde mental, o que nos leva de volta ao começo: precisamos urgentemente atuar na prevenção em saúde mental. Se não começarmos a prevenir os adoecimentos do futuro agora, chegaremos nele apagando incêndios tanto quanto hoje, sempre respondendo às demandas e não atuando de forma estrutural. 

E ainda teremos que continuar lidando com os velhos estigmas e preconceitos acerca do tema, que persistem em aparecer, mesmo com o crescimento do debate sobre saúde mental. Apenas citando alguns, a relutância em procurar ajuda ou tratamento, a falta de compreensão por parte da família, amigos e comunidade e, muitas vezes, a falta de preparo dos próprios cuidadores e profissionais “porta de entrada” da saúde para lidar com saúde mental são os questões que irão persistir no debate da saúde mental, mesmo no pós-pandemia. 

Devemos ressaltar que atuar em saúde mental não é um projeto individual com começo, meio e fim, é um projeto coletivo para vida toda. Precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de trabalhar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. A saúde mental de cada um de nós depende da articulação permanente entre os indivíduos, a comunidade e todos os setores sociais, trabalhando juntos para criar condições para uma vida digna e uma realidade social mais justa para todas as pessoas.  Como podemos fazer este debate tão central perdurar nos nossos lares, trabalhos e relações sociais?

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

 

 

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O cenário das doenças crônicas no Brasil e as pressões orçamentárias sobre o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/#respond Wed, 25 Aug 2021 10:00:42 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-dinheiro-800x533-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=496 Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Um dos aprendizados de 2020 é que o enfrentamento à pandemia poderia ter tido maior sucesso se a estrutura da atenção primária tivesse sido melhor utilizada. Em um contexto de emergência sanitária, testemunhamos a despriorização das ações de vigilância comunitária e epidemiológica, cruciais no rastreamento e contenção do contágio pelo vírus. Muito se noticiou sobre a ausência de testes de Covid-19 e a insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para minimizar a contaminação de profissionais de saúde. No entanto, um assunto que recebeu menos holofotes, mas que exerce grande impacto sobre o sistema de saúde foram os efeitos da pandemia sobre o represamento de serviços, como o cuidado longitudinal de doentes crônicos.

As Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), classificação em que se encontram doenças cardiovasculares, cânceres, doenças respiratórias crônicas e diabetes, são tipos de disfunções que possuem fatores de risco comuns e evitáveis, como colesterol alto e hipertensão, e que necessitam de acompanhamento constante. Uma vez que se desenvolve uma  DCNT, a qualidade de vida também se torna condicionada a um processo de cuidado contínuo. 

Dentro da estrutura do sistema de saúde brasileiro, a Atenção Primária atua de forma estratégica para proporcionar o acompanhamento dos usuários crônicos. Está dentro das atribuições da Estratégia Saúde da Família, por meio do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a identificação de demandas de saúde, a circulação de informações e a orientação sobre cuidados. As visitas domiciliares dos ACS, em especial, permitem um cuidado à saúde mais humanizado, estabelecendo laços de confiança entre os profissionais de saúde e a população.

No entanto, com a chegada do coronavírus no Brasil, tornou-se mais difícil tanto detectar precocemente quanto acompanhar sistematicamente as condições crônicas de saúde na população e a função de “porta de entrada”dos usuários no Sistema Único de Saúde (SUS) exercida pela Atenção Básica foi prejudicada. No que se refere à rotina das unidades básicas de saúde, em algumas localidades, procedimentos foram descaracterizados, como o trabalho de rua dos ACS, e atendimentos precisaram ser paralisados para o redirecionamento da força de trabalho para ações de combate a Covid-19. Também a necessidade de adoção do isolamento social fez com que muitos usuários ficassem receosos de se deslocar até os estabelecimentos de saúde. 

Em números, o reflexo dessa quebra do vínculo entre os usuários e as unidades de saúde durante a pandemia se traduz na queda brusca da quantidade de consultas da atenção básica, reduzidas em quase 50% no ano de 2020. Dados de um estudo recente realizado pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e por pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV-Saúde) demonstram a interrupção de procedimentos preventivos e de detecção precoce. Em comparação com 2019, o estudo evidenciou uma queda generalizada em 2020 na produção ambulatorial, que inclui procedimentos diagnósticos (-21,7%), de rastreio (-32,9%) e consultas médicas (-32,1%). 

Somado à queda nos demais níveis de atenção, em serviços como os de cirurgias e transplantes, o número de procedimentos totais realizados caiu, no mesmo ano, 19,2%. Em termos econômicos, essa contração significou uma redução de transferências federais para o SUS de aproximadamente R$ 3,6 bilhões em 2020. Os resultados do estudo apontam para um cenário preocupante de aumento de demanda dos serviços de atenção à saúde no país e, na sua contramão, o agravamento da insustentabilidade financeira do sistema.
No segundo semestre de 2021, a pandemia continua demandando intensamente dos profissionais e serviços de saúde e a Covid-19 tem deixado sequelas nos casos mais graves dos acometidos pela doença, o que pode vir a exigir cuidados de médio a longo prazo. Não bastasse esse cenário desolador, tudo indica que a atual pressão orçamentária deve ainda ser acrescida da demanda reprimida de doentes crônicos.  

Em 2019, no Brasil pré-pandemia, as DCNTs foram responsáveis pela morte de 1.025.708 brasileiros em idade inferior a 70 anos, número equivalente a 77,86% do total de mortes no ano — percentual calculado a partir do total de mortos em 2019 em idade inferior a 70 anos informado pelo IBGE. No Brasil da Covid-19, presenciamos o agravamento da insegurança alimentar no país, com 9% da população brasileira enfrentando a fome e o aumento no consumo de tabaco e álcool, fenômenos que sabidamente contribuem para o desenvolvimento de doenças crônicas.

Para enfrentar esse horizonte nada animador seriam necessários investimentos e planejamento estatal robusto e baseado em evidências, que permitisse preparar o sistema de saúde para atender simultaneamente às vítimas da Covid-19 e aos novos e antigos doentes crônicos. Na contramão disso, o que vemos é uma espécie de apagão estatístico sobre a saúde da população durante a pandemia e a não publicação do relatório de 2020 da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), principal instrumento de acompanhamento de fatores de risco para DCNT. Para agravar a situação, até o momento corremos o risco da não realização da pesquisa em 2021

O fato é que a Atenção Básica brasileira, uma das grandes referências para o resto do mundo, vem sofrendo fragilizações sistemáticas e o cenário das doenças crônicas no país é um gigante debaixo de um tapete que não pode mais ser ignorado. A “conta” que ficará para a população só cresce e, caso o orçamento público federal para a saúde não seja reavaliado, a consequência direta será o aumento do número de mortes evitáveis no país. 

 

Maria Letícia Machado é pesquisadora de políticas públicas no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Rebeca Freitas é especialista em relações governamentais no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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O enfrentamento à pandemia pela transformação digital no Recife https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/#respond Wed, 07 Jul 2021 10:00:11 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/e622b8ea-ac89-47d8-b60e-c6cb46ade602-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=442 Agatha Eleone, Gustavo Godoy e Rafael Figueiredo

 

De todos os problemas de saúde, cerca de 85% podem ser resolvidos por meio da Atenção Primária, nome que se dá ao modelo de acolhimento que comprovadamente reduz custos em saúde. O motivo é um instrumento que contempla ações individuais e coletivas voltadas para promoção, proteção da saúde e prevenção de doenças, e para além da abrangência do diagnóstico, do tratamento e da reabilitação.

Apesar do seu inegável e histórico avanço, o modelo ainda é insuficiente em diversos âmbitos, principalmente no que diz respeito à infraestrutura e à disponibilidade de recursos humanos. No intuito de ordenar esforços para melhorar cuidados em saúde e dada a necessidade premente (e impulsionada pela pandemia) de medidas para contenção do colapso dos sistemas de saúde, o uso de tecnologias resolutivas e de ações de inovação se faz ainda mais necessário para superar esses desafios. Experiências internacionais de combate à covid-19 destacam, por exemplo, a oferta à população de aplicativos para identificação de casos leves e graves da doença, além da oferta de teleconsultas, serviços de apoio a pessoas em sofrimento psíquico  e monitoramento de casos em isolamento domiciliar. 

No Brasil o município do Recife, em parceria com o estado de Pernambuco, desenvolveu o aplicativo Atende em Casa. Por meio de um contact center composto por médicos, enfermeiros, operadores de teleatendimento e com o apoio da SUSi – chatbot do aplicativo com mais de 40 perguntas e respostas frequentes –, o aplicativo oferta atendimento através de chamada de vídeo, telefone ou via chat para pessoas com suspeita de covid-19, além de prover orientação sobre as medidas de distanciamento social e isolamento domiciliar. A ferramenta oferece, ainda, teleorientação com profissionais de saúde em casos de risco de agravamento da doença e, se necessário, encaminha o usuário ao serviço de saúde mais próximo e adequado à gravidade, amparando o monitoramento sistemático durante o período de isolamento domiciliar (telemonitoramento) e oferecendo suporte à saúde mental de pessoas em sofrimento psíquico (teleacolhimento). Com o avanço da vacinação contra a Covid-19, o aplicativo também passou a servir como apoio antes, durante e após a vacinação. Por consequência, continua prevenindo aglomerações e filas nas unidades de saúde.

A expansão do uso do Atende em Casa pela população recifense, associada às normativas vigentes de distanciamento no ambiente de trabalho, culminou no investimento em tecnologia VoIP (sigla para Voice Over IP, telefonia baseada na internet) para o contato telefônico, permitindo que parte da equipe de profissionais que o opera pudesse atuar em regime de trabalho remoto. Para o atendimento, são criadas salas digitais (webconferência) de colaboração em tempo real entre teleorientadores e profissionais referência de coordenação, que distribuem informações e atualizações para toda a equipe de saúde. A limitação de acesso à internet no Recife e no Brasil é um fator que, em muitos casos, impossibilita a condução de videochamadas e dificulta o processo de transformação digital. Por essa razão, boa parte dos atendimentos são realizados por telefone. Ainda assim, ambos os recursos (a videochamada e o atendimento telefônico) possibilitaram que profissionais do grupo de risco para covid-19 pudessem continuar a exercer suas atividades de forma segura.

O data analytics acessado pela equipe de monitoramento dos indicadores avalia que mais de 240 mil pessoas no estado estão cadastradas no aplicativo. Foram realizados, até agora, mais de 200 mil atendimentos por médicos e enfermeiros, em chamadas de vídeo ou telefone, e avaliadas mais de 117 mil pessoas com sintomas de risco para formas graves da doença. O impacto do teleatendimento e do telemonitoramento é notório. Apenas 14,7% do total de pessoas atendidas precisaram ser encaminhadas para consulta presencial. Todo o restante da população que recebeu atendimento pôde ser acolhida e orientada a manter o isolamento domiciliar, evitando o deslocamento desnecessário de milhares de pessoas com quadros leves de covid-19. A SUSi, assistente virtual do Atende em Casa, resolveu 67% dos mais de 250 mil atendimentos via chat no “Posso ajudar”. Com relação ao teleacolhimento, a iniciativa garantiu o apoio emocional por profissionais da Rede de Atenção Psicossocial do Recife em quase 5 mil atendimentos.

A ferramenta tecnológica permitiu a ampliação do acesso e a melhoria contínua da qualidade de atenção para a população. A autoavaliação de sintomas com classificação de risco, teleorientação e telemonitoramento com profissionais de saúde pode ajudar pessoas a cuidar melhor da hipertensão arterial, da diabetes, apoiar o acompanhamento das gestantes durante o pré-natal, melhorar a adesão ao tratamento de pessoas com tuberculose e hanseníase e apoiar emocionalmente pessoas em tratamento para depressão e ansiedade, entre outros benefícios já relatados por inúmeras pesquisas ao redor do mundo. A telessaúde do Recife não tem a proposta de substituir o cuidado presencial, mas vem rompendo barreiras de acesso aos serviços de saúde e ocupando lacunas de monitoramento sem competir com serviços de saúde já implantados.

O caráter dinâmico e transitório da pandemia, apesar de intensificar as fragilidades dos serviços públicos de saúde, proporcionou ao Recife a criação de um projeto que pode ser expandido tanto para diversas linhas de cuidado quanto para outros serviços do sistema de saúde, além de desafiar o planejamento e a mobilização de recursos humanos para responder à alta demanda de atendimentos. Os resultados consolidados pela experiência do Atende em Casa evidenciam a necessidade de firmar bases para sua continuidade sustentável e servem como ponto de partida para diversas outras iniciativas inovadoras.

 

Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

Gustavo Godoy, Coordenador do Núcleo Municipal de Telessaúde do Recife.

Rafael Figueiredo, Secretário Executivo de Transformação Digital do Recife.

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Vacinação, voz e a impossibilidade de saída na pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/vacinacao-voz-e-a-impossibilidade-de-saida-na-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/vacinacao-voz-e-a-impossibilidade-de-saida-na-pandemia/#respond Wed, 09 Jun 2021 10:00:52 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/img20201218103533331-768x512-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=409 Agatha Eleone e Arthur Aguillar

 

A lentidão do processo de vacinação e a recente segunda onda da Covid-19 no Brasil tem criado uma série de questões sociais. Empresários buscam adquirir vacinas para si, suas famílias e seus empregados. Para esses últimos, o objetivo é possibilitar a retomada econômica o quanto antes. Uma parte considerável da elite já está voando para Miami, agora que o governo norte-americano anunciou a vacinação de turistas. Não é para menos: em um mundo com uma prevalência desigual da doença, a vacina funciona como um novo seguro de saúde que nos permitirá dormir em paz, sabendo que nem nós, nem os nossos perecerão. Para além disso, será também um passaporte para a realização de muitos desejos reprimidos: viagens, festas, idas a restaurantes e a casas noturnas voltam a ser uma possibilidade, já muito ansiada após quase um ano e meio dentro de casa – para aqueles que tiveram o privilégio de poder se proteger da doença através do isolamento. 

A possibilidade de buscar uma via privada para adquirir vacinas e proteger-se da Covid-19 é o que o falecido economista Albert Hirschman, um tipo de patrono dos economistas que se arriscam na interdisciplinaridade, chamaria de “saída”. Ao analisar a dinâmica entre a qualidade entre trens e rodovias na Nigéria, Hirschman criou uma tipologia para entender a dinâmica de qualidade e eficácia de serviços públicos. 

Diante de um serviço público considerado ruim, como o caso dos trens na Nigéria dos anos 1970, um beneficiário deste serviço (por exemplo, um grande produtor de biscoitos, como o pai da protagonista do livro Hibisco Roxo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie) tem, usualmente, duas opções. Ele pode simplesmente deixar de usar o serviço de trens (saída) e começar a usar caminhões para escoar sua produção. Alternativamente, ele pode também reclamar do serviço (voz), exercendo a ação coletiva através de reclamações formais e informais, protestos e ativação da mídia, criticando a qualidade dos serviços. Hirschman nos mostra em seu livro Saída, Voz e Lealdade que ainda que um produtor de biscoitos possa deixar de usar o trem (sair) para usar as rodovias, ele não pode optar por sair de ambos os serviços, pois afinal, ainda precisa de um meio para escoar a sua produção. Nesse exemplo, os empresários locais possuem, portanto, a opção de saída do serviço. A teoria levantada por Hirschman propõe que, quanto maior a possibilidade de saída do sistema público, menos provável que as elites locais utilizem sua voz e conexões políticas para exigir a melhora de um serviço.

Hirschman, um cidadão do mundo que sempre esteve em contato com os maiores desafios do seu tempo, seja ajudando judeus a fugirem da Europa ocupada pelos nazistas, contribuindo como economista no Plano Marshall ou mesmo enquanto participante da primeira missão do Banco Mundial em um país em desenvolvimento, certamente se interessaria pela dinâmica entre voz e saída dos sistemas públicos de saúde em face da pandemia de Covid-19.

A primeira conclusão a que chegamos a partir do arcabouço de Saída, Voz e Lealdade é que o processo de contornar o SUS para se vacinar contra a Covid-19 encarna um desejo humano natural que só pode ser exercido pelas camadas mais ricas da população diante de um serviço público de qualidade insatisfatória: se possível, sair. O exercício deste desejo, no entanto, tem consequências sociais óbvias, já que os mais ricos são justamente o grupo social com a maior capacidade de ação coletiva e mobilização (voz). Quando aqueles capazes de cobrar a gestão pública (seja por doarem grandes somas às campanhas eleitorais, possuírem espaço na mídia ou qualquer outra forma de influência) deixam de fazê-lo em função da opção de saída, todos os beneficiários do serviço perdem.

A segunda conclusão é que no caso da pandemia da Covid-19 — e de maneira geral, na maioria dos desafios de saúde coletiva –, a saída, na verdade, é uma impossibilidade lógica. Isso acontece porque em um evento desse tipo, a saúde do indivíduo não depende apenas de suas ações individuais, mas possui uma relação de interdependência com as ações de todos os outros indivíduos que compõem uma sociedade: mesmo que um empresário consiga tomar a vacina, isso não altera de maneira significativa a transmissibilidade e a vulnerabilidade associada à Covid-19: grande parte da força de trabalho ainda estará impedida de realizar suas atividades; medidas restritivas de ordem coletiva ainda serão necessárias para frear a doença; e a vulnerabilidade social e insegurança alimentar que decorrem da paralisação econômica continuarão a demandar um papel ativo do estado no fortalecimento das redes de proteção social.

Se estamos convencidos que a saída é uma impossibilidade lógica, resta exercer a voz. Aqui, temos muito o que fazer: é possível propor parcerias eficazes entre entidades privadas e serviço público. No nível da opinião pública existe um longo caminho a ser percorrido na comunicação de risco com a população, na disseminação de informações confiáveis sobre a pandemia e no combate às fake news. No nível da gestão pública, nossos municípios precisam de ajuda com a aquisição de insumos, transporte e armazenamento de vacinas, assim como na vigilância epidemiológica, tarefa complexa que muitas cidades pequenas não têm escala para executar. E no nível macro, é necessário responsabilizar o governo federal por sua omissão e negligência tanto na tomada de medidas restritivas quanto no processo de compra e aquisição de vacinas.

Hirschman, um economista que gostava de palíndromos e outros jogos de palavras (chegando a partir deles a importantes hipóteses sobre a inter-relação de forças políticas e forças econômicas), possivelmente notaria a ironia intrínseca ao momento presente. A pandemia trouxe à tona o que há muito não víamos no contexto da saúde brasileira: “obrigou os produtores de biscoitos a usar o trem”. É possível voar para os EUA para vacinar a si e os mais chegados gastando 450 mil reais (o suficiente para comprar 45 mil doses de Coronavac), como fez recentemente um empresário. Mas não dá pra levar a empresa no bagageiro do avião. Para aqueles que não têm acesso à saída (hoje, o conjunto total de pessoas que vivem no Brasil), resta apenas a voz.

 

Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Arthur Aguillar, Coordenador de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Profissionais de Enfermagem: a força de trabalho que sustenta a saúde no país https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/#respond Fri, 28 May 2021 10:00:03 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/download-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=401 Lidiane Toledo, Helena Maria Scherlowski Leal David, Alice Mariz e Mario Dal Poz

 

A enfermagem corresponde a 70% da força de trabalho em saúde (FTS) no Brasil e é composta, em sua maioria, por profissionais técnicos e auxiliares (75%). Entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020, o Brasil contava com 1,3 enfermeiros e 3,3 técnicos e auxiliares de enfermagem por mil habitantes, respectivamente. A enfermagem é reconhecida mundialmente como pilar importante para que os estados-nação possam alcançar o acesso e a cobertura universal de saúde. Em 2020, a crise sanitária e humanitária da Covid-19, colocou em destaque a importância da enfermagem na resposta à pandemia. Enfermeiros, técnicos e auxiliares têm estado na linha de frente da resposta à crise, seja ocupando cargos de gestão, pesquisa, vigilância epidemiológica, seja na assistência aos casos de Covid-19 leves, moderados, graves e mais recentemente liderando as campanhas de vacinação.  A atuação na linha de frente da pandemia tem trazido consequências de morbimortalidade para os profissionais de enfermagem. Até o dia 21 de maio de 2021, foram informados mais de 55 mil casos confirmados de Covid-19 e mais de 700 mortes entre esses profissionais no Brasil.

Apesar de sua notória importância e da enfermagem ser a categoria da saúde mais afetada pela pandemia no Brasil, na prática, são poucas as iniciativas que se traduzem em mudanças e valorização efetiva da profissão. Por décadas, a categoria tem sofrido com condições de trabalho inadequadas, baixa remuneração, vínculos contratuais frágeis, múltiplos vínculos empregatícios, sobrecarga e alta rotatividade, o que por vezes culminam no êxodo da profissão.

O Relatório o Estado da Enfermagem no Mundo, publicado durante a pandemia da Covid-19, apontou que há lacunas significativas de dados primários e secundários sobre a demografia e o mercado de trabalho em enfermagem em todo o mundo, o que dificulta que sejam realizadas análises epidemiológicas que informem políticas públicas e decisões de investimento público/privado na área. No Brasil, esta realidade não é diferente. Quando a pandemia se iniciou no Brasil, a maioria das evidências científicas sobre a demografia e o mercado de trabalho da enfermagem estavam desatualizadas e/ou restritas a contextos locais (estados e/ou municípios).

Em relação a dados secundários, apesar de o Brasil contar com uma ampla gama de bases de registros administrativos sobre demografia, mercado de trabalho, previdência social, educação, referentes à população em geral, tais bases são poucos exploradas no que tange os profissionais de enfermagem, além de, muitas vezes, apresentarem preenchimento inconsistente e frequentemente estarem desatualizadas. Em relação a estudos com coleta de dados primários na área de enfermagem, ampla maioria destes tem sido descritivos, com amostras de conveniência, locais, sendo necessário a realização de estudos de base populacional que possam realizar estimativas representativas dos profissionais de enfermagem não somente a nível nacional mas também em outros estratos geográficos como estados, municípios rurais, faixa de fronteira etc.

Avaliar as dinâmicas do mercado de trabalho (estoque de profissionais ativos, as áreas de atuação, condições de trabalho, vínculo empregatício), formação (superior e técnica), especialização (latu e stricto sensu), remuneração e distribuição geográfica, são essenciais para o desenvolvimento, planejamento e gestão das políticas de saúde e da enfermagem. O aprimoramento das informações científicas acerca da demografia e mercado de trabalho da enfermagem é urgente para que possamos conhecer de forma mais abrangente esta classe trabalhadora, que é maioria no SUS e no setor privado, além de apoiar gestores públicos e privados na tomada de decisão baseada em evidências e fomentar as pautas que são caras aos trabalhadores da enfermagem.

Como resultado de dois seminários realizados em 2020 pelo República.org, Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi organizada uma agenda de prioridades de pesquisa sobre políticas e gestão na área de enfermagem no Brasil. No âmbito desta agenda, está em curso a organização de um amplo estudo sobre a Demografia e o Mercado de Trabalho da Enfermagem Brasileira, que tem por objetivo avaliar indicadores relacionados à questões sobre características sociodemográficas, formação e trabalho das profissões de enfermagem. A pesquisa pretende responder questionamentos como: Como tem sido os fluxos de mercado de trabalho? Quais são as características de emprego? Quais são as condições de trabalho? Qual é a densidade e o estoque ativo da força de trabalho da enfermagem no Brasil? Quais são as características no estoque inativo (proporção de desistências/cancelamento, aposentadoria, mortalidade)? A força de trabalho de enfermagem é adequada às necessidades dos sistemas de saúde do Brasil? A sua capacidade é aproveitada? Quantos enfermeiros ocupam cargos de gestão? Quantos estão em posição de liderança na mesa de negociação das estratégias em saúde?

A pesquisa pretende ser um espaço acadêmico coletivo e colaborativo, coordenado pela Faculdade de Enfermagem e o Instituto de Medicina Social da UERJ. O projeto conta com apoio da OMS, OPAS, e do Instituto República, e no momento está em fase de construção de parceria estratégica para sua execução com o COFEN e alguns Conselhos Regionais de Enfermagem (CORENs). Já manifestaram apoio ao projeto, a ABEn Nacional, e diversas Escolas e Faculdades de Enfermagem, além de Institutos de apoio à pesquisa. A ideia é desenvolver um estudo-piloto em três Estados da Região Sudeste – RJ, SP e MG, com a participação das Faculdades de Enfermagem da USP-SP e Ribeirão Preto e da UFMG, as quais vêm colaborando desde as discussões iniciais.

 

Lidiane Toledo, Doutora em epidemiologia.

Helena Maria Scherlowski Leal David, Professora Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Alice Mariz, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Mario Dal Poz, Professor Titular do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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Engajar a todos: comunicação de risco como uma estratégia para reduzir os danos da Covid-19 antes, durante e após a vacinação https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/engajar-a-todos-comunicacao-de-risco-como-uma-estrategia-para-reduzir-os-danos-da-covid-19-antes-durante-e-apos-a-vacinacao/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/engajar-a-todos-comunicacao-de-risco-como-uma-estrategia-para-reduzir-os-danos-da-covid-19-antes-durante-e-apos-a-vacinacao/#respond Wed, 28 Apr 2021 10:00:15 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/panfleto-2-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=378 Pedro de Paula e Gilberto Perre

 

Enquanto enfrentamos os tristes recordes diários de mortes na pandemia de COVID-19 e o colapso do sistema de saúde nacional, a vacinação  – nossa luz no fim do túnel – anda a passos lentos. Apenas 6% de toda a população recebeu as duas doses da vacina até agora. Com a baixa oferta de vacinas no Brasil, a comunicação de risco, encorajando as medidas de saúde pública e sociais, é nossa melhor arma contra a COVID-19.

A gravidade do que vivemos muda rapidamente, novos estudos científicos sobre a COVID-19 surgem diariamente e enfrentamos com frequência a desinformação. Nesse contexto, é a “comunicação de risco” que deve ajudar o governo a responder a emergências e a ajudar as pessoas a entenderem a gravidade da ameaça e quais ações elas podem tomar para reduzir os riscos a elas e suas comunidades. A comunicação de risco também auxilia gestores públicos a compartilharem informações sobre a crise em seus diversos estágios. Esta abordagem foi ainda apoiada por uma recente pesquisa da rede de Pesquisa Solidária, que confirmou que as campanhas de comunicação e informação são fundamentais para conter a disseminação do COVID-19.

Para que a comunicação de risco seja bem-sucedida, os governos devem, antes de mais nada, ter empatia com sua população. Demonstrando compreensão dos medos, emoções e desafios que as pessoas estão vivendo. Durante tempos de incerteza como o que vivemos, os governos podem construir confiança. Assim, as pessoas podem fazer escolhas para tomar medidas e atitudes mais viáveis para proteger a si mesmas, suas famílias e comunidades.

Se um risco é comunicado com antecedência, de forma precisa, transparente, unificada e com uma relação clara de causa e consequência, as chances das pessoas adotarem as recomendações e confiarem na ciência podem aumentar significativamente. As informações compartilhadas com o público devem ser precisas e oportunas, e comunicadas de uma forma que seja facilmente acessada e compreendida dentro do contexto local.

Há alguns anos, órgãos internacionais de saúde reconhecem a importância da comunicação de riscos. Em 2005, a Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizou a necessidade da comunicação de riscos como parte das estratégias para ajudar a prevenir e responder a sérios riscos à saúde pública.

Em nossas experiências em saúde pública e nas parcerias desenvolvidas com a OMS e outros especialistas, temos visto o sucesso da comunicação de risco quando as pessoas são informadas de quais riscos à saúde estão sujeitas e quais medidas podem tomar para se proteger.

A campanha Cidades Contra Covid-19 é um bom exemplo de como engajar os governos e gestores. Nós, da Frente Nacional de Prefeitos e da Vital Strategies, unimos forças com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e também do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e desenvolvemos um conjunto de materiais para oferecer guias de aplicação prática de comunicação de risco e peças para diversas plataformas. Toda a comunicação foi baseada em recomendações científicas.

Uma população exposta ao risco é menos vulnerável se dispõe de informações e orientações sobre as reações mais adequadas. Enquanto a maioria da população aguarda a vacina, os planos de imunização precisam ser comunicados de forma rápida e clara, ao mesmo tempo em que deve ser reforçada a importância do uso de máscara, mantendo distanciamento físico das outras pessoas e evitando aglomerações e locais fechados.

Os governantes precisam estar preparados para enfrentar esta situação e integrar a comunicação da crise na estrutura de liderança da cidade ou estado. É evidente, dentro e fora do país, que o Brasil carece de coordenação nacional para responder à pandemia. Na ausência de um sistema nacional para informar as políticas, entidades e organizações têm se mobilizado para encontrar soluções para informar a população. Comunicar ao público diariamente  –  através de diferentes canais de comunicação – usando a imprensa como aliada e engajando líderes comunitários que possam apoiar esse esforço de comunicação, especialmente com populações marginalizadas e de alto risco, estão entre as estratégias que nos ajudarão a superar esta difícil crise que estamos passando.

O fim da pandemia é possível com vontade política, coordenação e comunicação clara, empática, transparente e baseada na ciência. Os líderes governamentais precisam fornecer orientação com antecedência e compartilhar dilemas, sem tranquilizar ou prometer demais. É uma questão de priorizar a vida: esta é a principal missão dos gestores públicos!

 

Pedro de Paula, Diretor Executivo da Vital Strategies no Brasil
Gilberto Perre, Secretário Executivo da Frente Nacional de Prefeitos

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A vida em sociedade, governo e políticas públicas https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/a-vida-em-sociedade-governo-e-politicas-publicas/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/14/a-vida-em-sociedade-governo-e-politicas-publicas/#respond Wed, 14 Apr 2021 10:00:08 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/06103620_920542_GDO-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=371 Ricardo de Oliveira

 

Viver em coletividade depende cada vez mais da postura individual do cidadão e da capacidade e qualidade da ação coletiva da sociedade, através do Estado. Essa constatação nos coloca um desafio duplo: melhorar continuamente a qualidade dos governos, e envolver a população na formulação e implantação das políticas públicas.

Passamos de 1 bilhão de pessoas, em 1900, para cerca de 7 bilhões atualmente, tendo como consequência a ampliação do papel do Estado, o aumento da complexidade na organização dos governos e também da vida em sociedade. Já não faz mais sentido pensar que o Estado, sozinho, resolverá todos os problemas da coletividade. Além disso, passou da hora de reformarmos o Estado para que ele seja mais eficiente, eficaz, efetivo, e cumpra o papel que os tempos atuais demandam dele.

Vários problemas da sociedade como, por exemplo, os relativos à preservação do meio ambiente e da saúde, têm evidenciado a importância do envolvimento da população para a sua solução. Como fazer coleta de lixo seletiva, se cada cidadão não separar o seu lixo a partir da sua residência? Como manter a cidade limpa, se os cidadãos jogam lixo nas ruas? Será que a única solução é aumentar, cada vez mais, a estrutura dos governos que prestam esse tipo de serviço? A sociedade está disposta a assumir esse custo? Ou será que os governos também deveriam envolver a população por meio de uma campanha de educação, para conscientizá-la da importância da sua participação na manutenção de uma cidade limpa? Por outro lado, como manter os rios e lagoas livres de poluição se os governos forem incompetentes na prestação de serviços de saneamento? Esses são alguns questionamentos que mostram que hoje, mais do que nunca, viver em sociedade depende da articulação entre a participação cidadã e governos competentes.

No governo FHC, tivemos um bom exemplo de articulação entre ação do Estado e a participação dos cidadãos: o controle do uso da energia elétrica para evitar um apagão generalizado, algo que seria mais danoso para a sociedade. O governo estabeleceu meta para o consumo de cada residência e as famílias priorizaram de que forma consumir a sua cota de energia. Este episódio mostrou a importância da liderança do Estado e da mobilização da população em torno das políticas públicas.

Isso ocorre também na área da saúde. Como fazer ações de promoção à saúde que envolvam a incorporação de hábitos como alimentação saudável e a prática de exercícios físicos, sem estimular o protagonismo do cidadão nos cuidados com a própria saúde? A prevenção para um conjunto de doenças pressupõe um estilo de vida com práticas saudáveis. O papel do governo, nesse caso, é fornecer informações e atendimento adequado, de forma que o cidadão possa tomar a decisão mais condizente com sua saúde.

O combate à dengue é um caso clássico. Como eliminar o mosquito da dengue sem a participação da população, uma vez que 80% dos focos estão dentro das casas? Outro exemplo é a vacinação: como vacinar a população, se ela não estiver consciente da sua importância para prevenir doenças? Hoje em dia, a pandemia da COVID-19 escancarou a necessidade da participação de todos os cidadãos e da capacidade de liderança dos governos para superar esse grave problema de saúde pública.

Esse novo imperativo de comportamento solidário não é só uma questão de compaixão pelo outro. A atitude individual promove uma melhor qualidade de vida para mim e para todos. Como explicou Alexis de Tocqueville em seu clássico “Democracia na América”, analisando a cultura americana que combinava um forte individualismo com participação comunitária, é o “interesse bem compreendido”; ou seja, os americanos compreendiam que, além de cuidar do interesse próprio, era preciso cuidar do interesse coletivo.

No entanto, o envolvimento da sociedade pressupõe um governo confiável, reconhecido pela população como um aliado na melhoria de suas condições de vida. Esse é um desafio que ainda não superamos, conforme podemos constatar pela baixa credibilidade das nossas instituições governamentais, repetidamente mostrada nas pesquisas de opinião. Segundo pesquisa do Latinobarômetro, entre 2008 e 2018, o percentual de latino-americanos que declararam ter pouca ou nenhuma confiança nos respectivos governos subiu de cerca de 55% para mais de 70%. A prestação de serviços públicos desempenha um papel importante na construção dessa credibilidade; diariamente milhões de pessoas procuram os órgãos governamentais, e a experiência do usuário quanto à qualidade do atendimento pode contribuir para melhorar ou piorar a confiança da população na administração pública. Essa é uma das razões pelas quais precisamos incorporar, definitivamente, a reforma da gestão pública na agenda política permanente do país.

Os tempos atuais têm demonstrado que muitos problemas enfrentados pela sociedade devem ser enfrentados coletivamente, envolvendo governos e participação civil. Aqui comentei apenas sobre saúde e meio ambiente.

Parece não haver outra saída para o avanço civilizatório senão o estímulo da solidariedade, da consciência cívica e a melhoria da qualidade dos governos.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública – Democracia e Eficiência, FGV/2012 e, Gestão Pública e Saúde, FGV 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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