Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Nada a comemorar: o Dia Mundial da Saúde e a necessidade de um lockdown https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/nada-a-comemorar-o-dia-mundial-da-saude-e-a-necessidade-de-um-lockdown/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/nada-a-comemorar-o-dia-mundial-da-saude-e-a-necessidade-de-um-lockdown/#respond Thu, 08 Apr 2021 17:35:37 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/corona-4959447_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=362 Arthur Aguillar, Helyn Thami e Rebeca Freitas

Na véspera da comemoração do Dia Mundial da Saúde (7 de abril), batemos a marca recorde de 4.211 mortos por Covid-19 em 24 horas. Os dados não mentem: estamos diante de uma aceleração da pandemia inédita no Brasil. Recentemente publicamos uma Nota Técnica mostrando que, em relação a 2020, tivemos uma aceleração da média móvel de óbitos da ordem de 84%. Diante dessa tragédia humanitária, não há dúvida: é necessária a implementação de um lockdown em todos os estados brasileiros. 

Precisamos de um lockdown pois estamos no momento mais crítico já vivenciado: não existe, na história brasileira, evento comparável em número de mortos. São mais de 340 mil pessoas que já perderam a vida pela Covid-19. A dimensão do período que atravessamos não é só sentida por todas as famílias que viveram na pele a dor da perda, mas se reflete nos números atualizados dia após dia: em apenas 1 mês (de 6 de março a 6 de abril), dobramos o recorde de óbitos diários, passando de 1.840 vidas interrompidas para mais de 4 mil. Além disso, a pior semana epidemiológica do ano de 2021 registrou uma média móvel que foi mais que o dobro daquela observada na pior semana epidemiológica de 2020. 

Com a disseminação de novas variantes e o risco de que novas ainda possam surgir diante do descontrole de transmissão, o Brasil se tornou uma bomba-relógio. O número de infectados no país corresponde a 10% do número de casos registrados no mundo(1). Atualmente, o Brasil registra o segundo maior número de óbitos por Covid no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, e superou o total de óbitos registrados na Ásia, o maior continente do mundo. O descontrole do número de óbitos se evidencia também nas projeções de cientistas para o mês de abril, que apontam para a possibilidade de atingirmos a marca de 5 mil óbitos por dia, caso não haja lockdown. Tudo isso se soma ao avanço das novas variantes e estudos da Fiocruz comprovam que estamos vivendo uma nova fase da pandemia, tendo as mortes por Covid-19 aumentado em 352,62% na faixa etária de 30 e 39 anos entre janeiro e março deste ano. 

E não se trata somente das mortes. O nosso sistema de saúde se vê estrangulado. Somos um país em que 72% das regiões de saúde apresentam menos leitos de UTI do que o mínimo preconizado pelas normativas vigentes. Isso significa que 61% de toda a população que depende do SUS já convivia com a baixa oferta de cuidados intensivos antes da pandemia. Mesmo nas regiões que cumprem tais normativas, o cenário é de falta de leitos e insumos. Não há parâmetro técnico capaz de fazer jus ao contágio desenfreado que testemunhamos neste momento. No dia 4 de abril, 16 estados e o Distrito Federal apresentavam mais de 90% de ocupação de leitos de UTI. Enquanto isso, as filas de regulação crescem e famílias precisam implorar pela garantia do direito constitucional à saúde – muitas vezes sem sucesso. Só em março no estado de São Paulo, pelo menos 496 pessoas com Covid-19 ou com suspeita da doença morreram à espera de um leito de UTI.

Engana-se quem pensa se tratar de um colapso apenas do SUS. A saúde privada está igualmente estrangulada, vivenciando falta de insumos e de vagas e, em alguns casos, recorrendo ao sistema público para conseguir mais leitos, como ocorreu, por exemplo, em São Paulo, a maior cidade do país. O colapso é uma realidade dada ou iminente na saúde como um todo, sem distinção entre quem pode ou não pagar por um plano privado. Expandir a capacidade instalada de leitos é uma necessidade, mas não é uma solução que possa ser aplicada ad infinitum. É preciso realizar o lockdown para frear a circulação do vírus paralelamente ao esforço de vacinação, que por sua vez só deve mostrar efeitos mais expressivos no número de mortes no fim do primeiro semestre. 

O que seria um lockdown? Nossos governantes precisam implementar 5 medidas: o fechamento completo de estabelecimentos que não configuram serviço essencial; de vias e estradas a indivíduos que não sejam trabalhadores essenciais;  fechamento total ou parcial de aeroportos e rodoviárias e outros polos de transporte; banimento de eventos presenciais de qualquer espécie, incluindo religiosos; proibição do uso coletivo do espaço público a qualquer hora do dia.

Precisamos de um lockdown porque, em meio à magnitude do número de mortes, , é a coisa certa a fazer. Trata-se de uma política pública de eficácia comprovada: experiências internacionais e nacionais mostram que o lockdown funciona. Em Araraquara, após um mês de implementação da medida, viu-se uma redução de 39% no número de mortes e de 57,5% nos casos, além de 13 dias sem apresentar fila de espera para leitos de UTI. Em Paris, o Rt, número de reprodução da doença, reduziu de 3,18 para 0,68 após o lockdown (2), caso semelhante ao que ocorreu na Itália onde o Rt atingiu faixas entre 0,4 e 0,7 após 14 dias do decreto de fechamento completo de atividades não essenciais (3). Na China (Wuhan), o lockdown teve o efeito de curto prazo de aumentar o intervalo necessário para os casos dobrarem (de 2 para 4 dias) (4). Após 76 dias, a cidade chinesa se viu livre de novos surtos desde 8 de abril de 2020. Hoje, a cidade voltou à normalidade e não registra novos casos desde maio de 2020. 

Sabemos que essa recomendação é politicamente sensível e administrativamente complexa. Esperamos, no entanto, que nossos governantes tomem essa decisão com base no presente e no futuro – no nosso e no deles. A dinâmica política da pandemia não se restringe ao hoje. No longo prazo, todos aqueles que não fizeram o máximo possível para reverter a atual tragédia e o maior colapso sanitário e hospitalar da nossa história serão cobrados. Do lado da implementação, esperamos que nossa tradição na saúde pública prevaleça: que as ações de nossos governantes ecoem a coragem de líderes passados, que combateram a AIDS, a meningite, diversas síndromes gripais e outras doenças infecciosas que já assolaram nosso país.

 

Referências:

 1) Cálculo feito pelos autores com base nos dados do Ministério da Saúde e do Our World In Data.

2) Di Domenico, L., Pullano, G., Sabbatini, C.E., Boëlle, P.Y. and Colizza, V., 2020. Impact of lockdown on COVID-19 epidemic in Île-de-France and possible exit strategies. BMC medicine, 18(1), pp.1-13

3) Guzzetta, G., Riccardo, F., Marziano, V., Poletti, P., Trentini, F., Bella, A., Andrianou, X., Del Manso, M., Fabiani, M., Bellino, S. and Boros, S., 2020. The impact of a nation-wide lockdown on COVID-19 transmissibility in Italy. arXiv preprint arXiv:2004.12338

4) Lau, H., Khosrawipour, V., Kocbach, P., Mikolajczyk, A., Schubert, J., Bania, J. and Khosrawipour, T., 2020. The positive impact of lockdown in Wuhan on containing the COVID-19 outbreak in China. Journal of travel medicine, 27(3), p. 37.

Arthur Aguillar é coordenador de Políticas Públicas do IEPS 

Helyn Thami e Rebeca Freitas são pesquisadoras de Políticas Públicas do IEPS

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Do combate à convivência: respostas de municípios à pandemia de Covid-19 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/do-combate-a-convivencia-respostas-de-municipios-a-pandemia-de-covid-19/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/do-combate-a-convivencia-respostas-de-municipios-a-pandemia-de-covid-19/#respond Mon, 21 Dec 2020 13:29:09 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/corona-4959447_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=334 Arthur Aguillar, Gabriella Lotta, Helyn Thami e Matheus Nunes

 

Nos últimos meses, os países do Atlântico Norte estão vivendo uma segunda onda da pandemia de Covid-19: após uma queda drástica nos casos desde meados de maio, os governos de países como Espanha, Inglaterra e Itália tentam responder ao aumento de casos impondo um novo conjunto de medidas de isolamento social. Nestes países, a pandemia, da mesma forma que a vida no poema Dia da Criação, de Vinicius de Moraes, vem em ondas. No Brasil, contudo, a pandemia não vem em ondas, mas se apresenta em um sinistro platô de mortes, e, nas últimas semanas, vem ainda acelerando. Quais as implicações de tal fato para o enfrentamento da pandemia? Em especial, como as pequenas cidades de um país que nunca foi para principiantes,  caracterizado por sua descentralização administrativa, desigualdades regionais e pela capacidade de estado local heterogênea, lidam com um evento de tamanha gravidade como a pandemia da Covid-19?

Na nota técnica “Do combate à convivência: respostas de municípios à pandemia de Covid-19” , que lançamos hoje, fruto da parceria entre o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Núcleo de Estudos das Burocracias (NEB/FGV), tentamos responder a essa pergunta. Para tal, acompanhamos 31 pequenos municípios do Norte e Nordeste do Brasil ao longo de 3 meses, para compreender as respostas à pandemia. As análises mostram que encontramos uma dinâmica pautada por dois momentos: a crise e a convivência. Esses dois momentos são bastante distintos, e o Brasil, junto talvez aos Estados Unidos, possui essa chamada jabuticaba que é a convivência com uma pandemia. Mas, antes, falemos da crise.

O momento da crise é bastante parecido no Brasil e no resto do mundo, e corresponde ao período entre o primeiro óbito e o ponto onde a média móvel de óbito atingiu seu máximo em meados do ano. A análise das respostas municipais mostra que este período foi marcado por medidas draconianas de isolamento social e sobrecarga das redes de saúde, seja no âmbito da assistência direta, seja na capacidade de testar e diagnosticar a doença em tempo oportuno. Talvez devido à novidade e complexidade do desafio, é também um período caracterizado por diversos erros de gestão: municípios fecharam algumas das Unidades Básicas de Saúde e tiveram dificuldades em implementar estratégias epidemiológicas como barreiras sanitárias, testagem e políticas de rastreamento de contatos. Os desafios enfrentados pelos municípios nessa fase se parecem muito com o que foi visto no início da pandemia na Europa e, durante um período maior, no resto da América Latina.

Já o convívio é coisa nossa, de alguns países da América Latina e, em algum grau, dos Estado Unidos, que também observaram taxas altas de infecção ao longo de todo o ano. Se a Europa foi caracterizada por rápidos períodos de pico com uma redução drástica da quantidade de casos entre os picos, isso simplesmente não ocorreu no Brasil: desde que a pandemia começou, seguimos tendo altas taxas de contaminação e óbitos sem uma redução drasticamente diferente do pico. Daí o resultado: não tivemos outra opção senão conviver com a pandemia. E a ideia de convivência é o que marca as respostas encontradas nos municípios no segundo período analisado, correspondente a setembro e outubro. Convivência significou reabertura total ou parcial dos estabelecimentos; significou uma amenização dos conflitos entre os prefeitos e outros atores locais; significou reorganização de alguns serviços de saúde; e significou, acima de tudo, uma gestão mais baseada em aprendizados. Foi neste período, por exemplo, que as prefeituras reabriram as Unidades Básicas de Saúde e começaram a utilizar os profissionais de forma mais estratégica. Também foi neste período que a sobrecarga da rede assistencial e os déficits de insumos diminuíram significativamente.

Se por um lado a passagem de tempo favoreceu a reposição de insumos que escassearam durante os primeiros meses e semanas de pandemia, essa mesma passagem do tempo e dos acontecimentos – mortes, casos, colapsos do sistema de saúde – também mostrou um agir do estado que denota um  “novo normal” mesmo sem uma trajetória descendente na curva.

O convívio nos mostra uma dinâmica conhecida no Brasil: a convivência perene da Sociedade e do Estado com problemas absurdos, seja a violência urbana e as altas taxas de homicídio, sejam os bolsões onde a incidência de doenças infecciosas que a ciência conhece há muitas décadas, como sífilis, dengue e tuberculose, é rotineiramente elevada.

Os aprendizados – adquiridos em tempo recorde pelos gestores e gestoras – se configuram como potenciais legados para muito além da pandemia. Revisão e redimensionamento da força de trabalho, reativação de capacidade instalada ociosa, aumento rápido de capacidade instalada, mais intimidade com a coleta e análise de dados, implementação ágil de políticas relativamente novas (como a telemedicina), diversidade de atores considerados na tomada de decisão são apenas alguns deles. A resiliência dos gestores públicos foi posta à prova pela crise sanitária e o grau de maturidade da ação mostrou, em alguma medida,  a capacidade de reação destes.

Por outro lado, permanece o desafio de criar resiliência e estratégias de vigilância sistemáticas que permitam uma resposta rápida porém menos reativa às emergências de saúde pública. O SUS (e seus gestores e gestoras), cujo valor está mais claro do que nunca, somam, portanto, dois desafios: conviver com a pandemia até que proporção suficiente de brasileiros estejam vacinados e ampliar a resiliência do sistema para enfrentar outras problemáticas sanitárias – por vezes amenizadas pelo costume da convivência – com as quais lidaremos por ainda mais tempo.

Gabriella Lotta é Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB/FGV)

Arthur Aguillar e Helyn Thami são pesquisadores do IEPS 

Matheus Nunes é mestrando em Administração Pública pela Fundação Getútlio Vargas (FGV)

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Em busca de lanternas no apagão dos dados da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/08/em-busca-de-lanternas-no-apagao-dos-dados-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/08/em-busca-de-lanternas-no-apagao-dos-dados-da-pandemia/#respond Tue, 08 Dec 2020 10:00:27 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/istockphoto-1050260814-612x612-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=322 Pedro de Paula e Renato Teixeira

 

Imagine que você está dirigindo um carro em uma noite chuvosa. Após uma curva fechada, depois de cruzar com um caminhão no sentido contrário que por pouco não acertou seu carro, seus faróis subitamente se apagam. Qual é a sensação de estar nessa situação?

É mais ou menos assim que os gestores públicos podem se sentir ao liderar a resposta à maior pandemia de nossas gerações quando há um apagão nos dados da saúde. Devemos manter as escolas abertas ou fechá-las? Reduzir ou aumentar as restrições às interações sociais? Ampliar a capacidade das UTIs ou desativar hospitais de campanha? Essas decisões podem ser tomadas rápida e eficientemente, mas somente com os dados corretos. Os gestores precisam saber o número de casos, hospitalizações, mortes e, talvez o mais importante, se esses números estão aumentando ou diminuindo. Para que a resposta do setor público à COVID-19 seja ágil, as informações disponíveis também devem ser atuais.

A COVID-19 deixou muitos no escuro, mas também proporcionou uma oportunidade para explorar novas fontes de dados e os resultados têm sido surpreendentes. Muitos termos e informações importantes que antes não eram familiares ao público em geral tornaram-se amplamente conhecidos: número e porcentagens de testes positivos, total de internações, porcentagem de leitos de UTI ocupados, e total de mortes por COVID-19. Um número crítico é o excesso de mortalidade – o número total de mortes de todas as causas que excede o número esperado de mortes com base em médias históricas. Além destas informações essenciais, também é crucial saber como as pessoas estão se comportando, ou seja, se estão usando ou não máscaras e adotando medidas voluntárias de distanciamento físico, entre outras. Estes são indicadores estratégicos de como os níveis de transmissão podem evoluir.

É por isso que é crucial para os governos fazer uso estratégico de todas as fontes de dados disponíveis. Não apenas os conjuntos de dados oficiais, mas também as informações geradas pela mídia social e pela vigilância comunitária, pois eles poderiam desempenhar um papel importante na melhoria da resposta da política de saúde pública.

Saber que, em maio de 2020, o estado de São Paulo enfrentou seu maior número de mortes em excesso ao esperado para o mês é muito importante para análises mais profundas e de longo prazo; mas para decidir se bares e restaurantes podem continuar recebendo pessoas hoje, o gestor necessita saber diariamente, com o menor atraso possível, qual a variação de casos e de internações no último dia e nas últimas semanas. Além de saber se a trajetória desses casos tem sido consistentemente crescente ou decrescente, é também fundamental saber como a população tem se comportado em termos de distanciamento, uso de máscaras e outros indicadores sociais.

Como fazer tudo isso no meio de um apagão de dados, como relatado no início de novembro? Mesmo com os sistemas de informação estabilizados, como uma resposta à pandemia que parou o mundo pode ser moldada apenas por dados de mortalidade, o que pinta um quadro estreito e retardado da tragédia da saúde pública? Ou, no máximo, dados de testes ou hospitalizações que estão disponíveis com até 10 dias de atraso?

Uma maneira é investir em testes e monitoramento extensivos, juntamente com o fortalecimento dos sistemas de informação nos municípios, estados ou do país. Assim, é possível diagnosticar rapidamente os problemas e agir antes que eles se tornem irreversíveis. Entretanto, fortalecer tais sistemas e capacidades no meio de uma pandemia pode ser difícil e caro, e podem ocorrer falhas. Portanto, deve ser dada atenção a caminhos complementares. Existem fontes de informação oficiais extras que podem e devem complementar as análises de saúde pública.

A vigilância comunitária pode indicar a existência de zonas não adequadamente cobertas pelo sistema institucionalizado de saúde pública, como é o caso do painel “COVID-19 nas favelas do Rio de Janeiro”. Dados produzidos nas redes sociais podem servir de indícios do comportamento da pandemia. No início do ano, por exemplo, indicadores de mobilidade da população obtidos por meio de dados de GPS de celulares foram uma interessante aproximação da real efetividade das políticas de distanciamento. Com a redução da adesão a essas medidas, precisamos saber rapidamente onde e como estão se comportando os novos surtos para agir de forma eficaz, como mostra ser necessário a recente experiência em países da Europa, sob pena de um altíssimo custo humano.

O recente caso no Estado de São Paulo é ilustrativo da utilidade dos dados produzidos nas redes sociais para complementar as fontes oficiais. Entre os dias 6 e 9 de novembro, o Estado de São Paulo – em virtude de problemas nos sistemas de informação – não divulgou nenhum caso ou óbito em todo seu território. Nas semanas que antecederam esse apagão, a tendência era de queda e a população começava a acreditar que o pior já havia passado. No entanto, quando os dados voltaram a ser divulgados, percebeu-se que naquele período houve uma inversão de trajetória, indicando uma retomada do aumento dos casos e das hospitalizações, o que foi reforçado por declarações de hospitais privados na capital.

Só em 11 de novembro a preocupação com o aumento de casos começou a tomar conta dos noticiários e do debate público. Isso ocorreu cinco dias após o início do apagão e possivelmente com mais de uma semana de atraso da real inversão de tendências. Mas não era necessário esperar tanto para se ter um retrato mais atual da pandemia no Estado de São Paulo.

Uma parceria entre o Facebook Data for Good, Carnegie Mellon University e a University of Maryland, tornou público bases de dados com informações para relatar sobre sintomas relacionados à COVID-19. Todos os dias, os usuários do Facebook com 18 anos ou mais são solicitados a responder voluntariamente a um questionário com informações que vão desde os sintomas autorrelatados da COVID-19 até o uso de máscara e transporte público. Estas bases de dados, que são anônimas e não revelam informações pessoais nem permitem rastrear indivíduos, mostraram que desde o final de outubro já era possível observar uma mudança na tendência da porcentagem de pessoas que responderam que tinham sintomas de uma doença semelhante à COVID-19, que é definida como febre acompanhada de tosse ou falta de ar ou dificuldade para respirar. Ao analisar os dados atualizados do Ministério da Saúde, observa-se que após alguns dias de baixo número de notificações, foi apresentado um padrão semelhante de crescimento (FIGURA 1 para o BRASIL). E, como dito, com um atraso de 8 dias, a plataforma do Estado de São Paulo mostrou crescimento nos casos relatados diariamente.

 

Figura 1 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Casos em todo o Brasil, entre 1º de outubro e 28 de novembro de 2020.

 

Esse padrão de antecipação de tendências se repete em outros estados, como no Ceará, Goiás, Minas Gerais e outros. Sempre que houve uma inversão de tendências de redução ou aumento de casos na base dos casos notificados do MS, essa redução também estava refletida através desse levantamento realizado no Facebook.

Esses dias de alerta precoce são preciosos na leitura de cenário e na tomada de decisões ágeis sobre a pandemia. Mais do que suprir apagões, ter sinais de alerta para novos surtos pode antecipar as respostas públicas, salvando vidas e reduzindo os danos do aumento da transmissão.

Embora informações e indicadores auxiliares ainda estejam longe de suprirem os dados oficiais de saúde e serem os faróis que necessitamos nessa longa noite chuvosa, eles se prestam a complementar o repertório de inteligência a ser utilizada na contínua luta contra a COVID-19. A disponibilidade de dados atualizados e confiáveis é essencial para o direcionamento das ações contra a COVID-19. Embora cada vez mais se confirmem as expectativas positivas nas vacinas, viveremos por muito tempo sem o controle e a supressão total do vírus. Teremos que buscar todas as luzes ao nosso alcance para orientar nossa viagem nessa estrada escura e tortuosa.

 

Figura 2 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Estado de São Paulo, 1º de outubro a 28 de novembro de 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 3 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Brasil, 1º de maio a 28 de novembro de 2020.

 

Figura 4 – Proporção de respondentes da pesquisa com sintomas semelhantes ao da COVID-19 e casos notificados pelo Ministério da Saúde. Estado de São Paulo, 1º de maio a 28 de novembro de 2020.

 

Pedro de Paula é Diretor-Executivo da Vital Strategies Brasil. Pedro é advogado formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Mestre em Direito Econômico e Economia Política pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente é Doutorando. Também leciona na Faculdade de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Renato Teixeira é consultor técnico da Vital Strategies Brasil. Graduado no curso de Estatística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Epidemiologia e Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Medicina da UFMG, Renato vem analisando dados que podem auxiliar no melhor compreendimento e monitoramento da COVID-19.

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A hora e a vez da parceria: onde a academia, o terceiro setor e os problemas da vida real se encontram https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/11/03/a-hora-e-a-vez-da-parceria-onde-a-academia-o-terceiro-setor-e-os-problemas-da-vida-real-se-encontram/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/11/03/a-hora-e-a-vez-da-parceria-onde-a-academia-o-terceiro-setor-e-os-problemas-da-vida-real-se-encontram/#respond Tue, 03 Nov 2020 11:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/connect-20333_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=309 Helyn Thami, Natália Sabat, Ana Lucia Sartori, Darley Maria Oliveira e Neiva Pereira Paim

A crise sanitária e econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus escancarou feridas antigas e, possivelmente, criou algumas novas. Dentro do primeiro grupo, podemos citar o grau de desconexão entre a atuação de diversos setores da sociedade no apoio ao enfrentamento dos problemas da vida real.

Por exemplo, é problemático ter muitos cérebros a pesquisar sem que os resultados da pesquisas sejam transformados em legados para aqueles que, através do pagamento de seus impostos, financiam boa parte da pesquisa acadêmica no Brasil. Outro exemplo é atuação pontual do terceiro setor na solução de problemáticas muito complexas e que exigem uma visão menos assistencialista e mais de construção de um legado de capacidades para a boa execução de políticas públicas.

Experiência recente, contudo, foi capaz de mostrar que uma Academia engajada e o terceiro setor podem trabalhar juntos, com êxito, para solucionar problemas que acometem a população e interferem na resposta do setor público aos desafios atuais.

O palco dessa experiência foi a cidade de Sinop, no Mato Grosso, com seus cerca de 150 mil habitantes. O campus da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT Sinop), localizado na cidade, tomou a iniciativa, por meio de projetos de extensão, de conceber e operacionalizar os serviços de monitoramento remoto dos casos de Covid-19, bem como pela organização de uma central telefônica para dúvidas, situada no Instituto de Ciências da Saúde do campus, que funcionava por demanda espontânea dos cidadãos.  Os alunos e professores dos cursos de enfermagem e medicina ficaram responsáveis pelo contato direto com a população (atendendo munícipes de Sinop e de outras cidades próximas, de menor porte), contando com a coordenação e supervisão das professoras Ana Lucia Sartori, Darley Maria Oliveira e Neiva Pereira Paim. O planejamento e implementação das operações teve o apoio da plataforma CoronaCidades, que oferece apoio técnico gratuito aos municípios no enfrentamento da crise e é resultado da parceria de três organizações do terceiro setor: o IEPS, a Impulso e o Instituto Arapyaú. Os projetos, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde da cidade, realizou mais de 6.000 atendimentos de monitoramento e atendeu aproximadamente 650 pessoas com dúvidas ou sintomas (não somente relacionados à Covid-19) para orientações ou referenciamento aos serviços de saúde públicos ou privados. Recentemente, a iniciativa foi reconhecida com uma Moção de Aplauso pelo Conselho de Saúde local.

O valor desse serviço ultrapassa sua contribuição na resposta à crise, por algumas razões. Primeiro, porque alunos e professores tiveram a chance de estreitar suas relações com a comunidade onde se inserem e com a sociedade em geral. Essa é uma crítica frequentemente feita por alguns setores quando o assunto é integração entre instituições de ensino e tudo aquilo que as cerca – pessoas, problemas, territórios. A universidade não deve ser uma “bolha”.

Em segundo lugar, é possível afirmar que os alunos tiveram uma oportunidade prática de aprendizagem sem igual em tópicos bastante complexos da atuação em Saúde, que são a teleorientação e a telemedicina. É importante ressaltar, nesse caso, que existem dificuldades – impostas pela atuação não-presencial –, o que torna esses tópicos pouco óbvios. Ao mesmo tempo, contudo, a telemedicina é uma ferramenta que deve se expandir no dia a dia dos profissionais de saúde e se tornar cada vez mais relevante para o mercado de trabalho, como uma consequência da própria pandemia. Certamente, essa experiência tornou o corpo discente mais preparados para o exercício da profissão no cenário da vida como ela é (ou como ela está se tornando).

A maioria dos problemas sociais que enfrentamos neste século são complexos e não aceitam respostas simplistas ou reducionistas. Logo, as soluções podem e devem ser pensadas e implementadas por conjuntos de atores sociais, através de visões programáticas e valores comuns. Se rios divididos ainda podem se encontrar no mar, as águas são mais fortes quando correm juntas por todo o seu curso.

 

Helyn Thami é pesquisadora do IEPS

Natália Sabat é gestora de projetos na Impulso

Ana Lucia Sartori é enfermeira e professora adjunta do curso de Enfermagem da UFMT Sinop

Darley Maria Oliveira é enfermeira e professora adjunta do curso de Medicina da UFMT Sinop

Neiva Pereira Paim é médica e coordenadora do curso de Medicina da UFMT Sinop

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A obesidade infantil é uma responsabilidade que precisa ser compartilhada https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/#respond Fri, 23 Oct 2020 11:00:02 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/bicycle-427560_1920-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=298 Atualizado 23.out.2020 às 17:35

Roberta Costa Marques

Laís Fleury

Livia Cattaruzzi

Enquanto atravessamos a pandemia do coronavírus, uma outra epidemia, a de obesidade infantil, acomete cerca de 380 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. E o Brasil contribui significativamente para essa preocupante estatística: hoje, 1 em cada 3 crianças e adolescentes, com idade entre 5 e 19 anos, está com excesso de peso ou obesidade e, entre os adolescentes, a obesidade grave saltou de 17% para 28% na última década, segundo o Panorama da Obesidade em Crianças e Adolescentes. Projeções da OMS indicam que podemos ocupar o 5° lugar na lista de países com maiores índices de obesidade infantil em 2030.

O aumento desses índices coincide com mudanças significativas no estilo de vida das famílias brasileiras nos últimos anos, como a intensificação da urbanização, do sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios industrializados, os quais são promovidos para crianças desde a mais tenra idade, entre outros fatores. 

Além de prejuízos ainda na infância, como estigma e diabetes, crianças com excesso de peso ou obesidade têm cinco vezes mais chances de desenvolver doenças crônicas na vida adulta, resultando em uma pior qualidade de vida e maiores custos para o sistema de saúde.

Apesar dos altos e crescentes índices, a obesidade infantil ainda é pouco discutida no Brasil, o que provoca uma percepção equivocada a respeito da responsabilidade que o tema carrega. Considerando esse cenário, o Instituto Desiderata e o Instituto Alana lançaram a publicação Obesidade Infantil – uma responsabilidade compartilhada, com o objetivo de que a sociedade reconheça que não se trata de uma questão restrita aos âmbitos individual e familiar, mas, sim, de um problema de saúde pública, e compreenda alguns dos fatores ambientais que contribuem para o agravamento desse cenário.

O senso comum ainda trata  a obesidade infantil como uma questão individual, fechando os olhos para os múltiplos fatores que a influenciam, como condições socioeconômicas, culturais, ambientais e políticas. Como garantir uma existência mais saudável para as nossas crianças se vivemos em um ambiente que desfavorece um modo de vida mais ativo e as expõem a estratégias comerciais que promovem junk food e bebidas adoçadas? Tais fatores são determinantes para a adoção de hábitos pouco saudáveis, mas não costumam fazer parte dessa discussão. 

Situação mais grave durante a pandemia de coronavírus

Em tempos de pandemia, esses desafios são ainda maiores, com a limitação da circulação das pessoas e o excesso do uso de telas. Para a maior parte das famílias, em especial as que vivem em grandes centros urbanos, a insegurança nas ruas e a escassez de espaços ao ar livre que estimulem a circulação e a brincadeira dificultam ainda mais esse cenário.

O maior tempo em casa aumentou o uso de telas em todas as classes sociais, do celular à televisão, ampliando a exposição das crianças a mensagens publicitárias, cada vez mais veladas e sofisticadas, direcionadas a elas – ainda que a prática de publicidade infantil já seja considerada ilegal pela legislação brasileira – promovendo o consumo excessivo e habitual de produtos alimentícios ultraprocessados, de baixo valor nutricional e com altos índices de ingredientes artificiais que prolongam sua durabilidade.

Proporcionar atividade física ao ar livre e uma alimentação adequada e saudável não é tarefa fácil em uma realidade em que tantas famílias sequer têm acesso a  alimentos e espaços saudáveis. Para dar conta dessa questão de saúde pública, poder público, organizações sociais e setor privado precisam atuar juntos para disponibilizar informação clara e transparente, adotar medidas regulatórias eficazes que diminuam o consumo de alimentos ultraprocessados e bebidas adoçadas, assim como criar espaços seguros, acessíveis e livres de publicidade infantil para a circulação de crianças pelas cidades. Apenas por meio do engajamento de todos esses setores em conjunto, será possível  transformar o atual cenário para garantir a essas crianças uma vida e um futuro mais saudáveis.

 

Roberta Costa Marques é diretora executiva do Instituto Desiderata

Laís Fleury é coordenadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana

Livia Cattaruzzi é advogada do programa Criança e Consumo do Instituto Alana

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América Latina precisa ser agressiva para transferir renda durante a pandemia: entrevista com Andrés Velasco https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/20/america-latina-precisa-ser-agressiva-para-transferir-renda-durante-a-pandemia-entrevista-com-andres-velasco/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/20/america-latina-precisa-ser-agressiva-para-transferir-renda-durante-a-pandemia-entrevista-com-andres-velasco/#respond Mon, 21 Sep 2020 02:15:27 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/WhatsApp-Image-2020-09-20-at-15.56.16-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=278 Pablo Peña Corrales
Miguel Lago
Fernando Falbel

A América Latina vive um momento extremamente delicado. A região é uma das mais afetadas pela pandemia da Covid-19, com mais de 320 mil mortes confirmadas, quase um terço do número total mundial. Previsões estimam que a economia encolha cerca de 10% neste ano.

Para entender esses múltiplos desafios de ordem sanitária, econômica, social e política na região, o blog Saúde em Público falou com Andrés Velasco, um dos mais influentes intelectuais latino-americanos.

Hoje reitor da escola de políticas públicas da prestigiosa London School of Economics, Velasco foi ministro da Fazenda do Chile (2006-2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet) e é pré-candidato à Presidência do país.

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Antes da pandemia do novo coronavírus, a saúde já era uma das grandes preocupações da América Latina. Dos protestos brasileiros em 2013 às manifestações chilenas em 2019, a saúde também tem sido uma demanda frequente. Por que os latino-americanos parecem tão insatisfeitos com seus sistemas de saúde? Sem dúvida, muitas pessoas estão insatisfeitas, e isso não é surpreendente por vários motivos.

Em primeiro lugar, muitos sistemas na região deixam muito a desejar.

Em segundo lugar, se há algo que sabemos sobre as tendências de médio prazo da economia e da sociedade, é que os tratamentos médicos estão se tornando mais caros.

Quando um país é muito pobre, as pessoas morrem de diarreia. Isso pode ser corrigido com gastos públicos limitados. Quando o país eleva seus padrões e as pessoas morrem de câncer, ataques cardíacos ou similares, é mais caro tratar, requer maior infraestrutura, maior nível de sofisticação, maior cobertura, e, nessa dimensão, todos os nossos sistemas ficam aquém.

Terceiro, a saúde é muito difícil de reformar. [O ex-presidente dos Estados Unidos Bill] Clinton, que falhou na tentativa, sabe muito bem disso; [Barack] Obama, que conseguiu fazê-lo —embora com dificuldades que ainda não foram completamente superadas, em parte porque não existe uma receita óbvia e compartilhada—, também o sabe.

Agora, não sejamos unanimemente pessimistas. Nos principais países da região, como Uruguai ou Chile, a expectativa de vida ao nascer é próxima à dos países desenvolvidos, embora gastando cerca de um terço ou um quarto per capita.

Portanto, há algo a partir do qual se pode construir, mas ainda há muito a ser feito. Nos países menos desenvolvidos, alguns da região andina, outros da América Central ou do Caribe, praticamente tudo está por fazer, tanto em termos de cobertura quanto de qualidade.

Especialistas como Ezekiel Emanuel, da Universidade da Pensilvânia, afirmam que muitas vezes exageramos o impacto dos tratamentos médicos sobre a saúde e argumentam que os resultados de saúde são explicados principalmente por fatores exógenos, como pobreza, alimentação ou desigualdade. O sr. acha que falta uma visão ampla da saúde na América Latina? Provavelmente, sim. Existe uma correlação evidente entre a pobreza e o impacto de certos choques, conforme evidenciado pela Covid. E isso não é um problema apenas na América Latina.

No Reino Unido, a taxa de mortalidade entre minorias étnicas é três vezes a taxa de mortalidade do resto da população. No entanto, esse não é um argumento para não melhorar os sistemas de saúde, mas sim para melhorá-los e também avançar em outras direções.

Mas, como governar é priorizar, e não há país que possa fazer tudo ao mesmo tempo, você tem que se perguntar onde estão as prioridades e onde estão os recursos. Desse ponto de vista, melhorar a saúde é provavelmente algo que pode ser alcançado em um prazo mais próximo do que abolir a pobreza ou acabar com a desigualdade.

Em alguns países, como México e Brasil, mais do que se esconderem atrás de especialistas, os líderes políticos parecem ignorá-los por completo. O que os líderes regionais, os cidadãos e a sociedade civil podem fazer para influenciar a resposta nacional? Espero que a sociedade, nas próximas eleições, leve em consideração o desempenho desastroso, catastrófico e patético de alguns desses líderes populistas que não acreditam na ciência.

Expressar um certo ceticismo sobre a sabedoria científica, que é o que acabei de fazer, parece-me inevitável. Mas ir ao extremo de sustentar, como disse o presidente do Brasil, que o vírus foi uma invenção da imprensa para prejudicá-lo, ou ao ponto de fazer como fez o presidente do México, que continua organizando atividades políticas nas quais aperta as mãos e abraça seus correligionários porque é muito macho e o vírus não atinge os machos, é um ato de irresponsabilidade brutal que seria tragicômico se não tivesse provavelmente custado milhares ou dezenas de milhares de mortes.

E o mecanismo que temos nas democracias para punir aqueles que se comportam de forma irresponsável é negar-lhes o voto da próxima vez.

Como a economia da América Latina será afetada? Acho que a crise econômica vai se traduzir em um agravamento de muitas coisas na América Latina. Falemos em termos quantitativos. Em quase todos os países da América Latina, salvo raras exceções, o PIB vai se contrair em 10%, um pouco mais ou um pouco menos, neste ano.

Com isso, esta será a maior crise da América Latina: para alguns países, desde os anos 1980, e, para outros, provavelmente desde a Grande Depressão. É verdade que esperamos um crescimento positivo no próximo ano, mas não podemos esquecer que é um crescimento a partir de um ponto muito inferior.

Portanto, a questão é quanto tempo levará para as economias produzirem a mesma coisa que produziram, digamos, em dezembro do ano passado. E suspeito que esse tempo não será de um ano. Serão dois anos ou mais.

Ademais, essa crise chega em um momento de muitas mudanças tecnológicas. Isso favorece quem tem alto capital humano, porque pode usá-lo em todo o mundo, mas é muito ruim para quem não o tem e precisa ir trabalhar em um restaurante e lavar a louça.

Além disso, alguns empregadores perceberam com esta crise que há coisas que podem ser feitas remotamente ou mesmo que as máquinas podem fazer, e, portanto, não seria surpreendente se, juntamente com a contração cíclica do emprego, houvesse uma contração estrutural do emprego.

Sou economista e otimista e acho que, quando a economia destrói empregos, também cria empregos a longo prazo. O problema é que ambos não acontecem ao mesmo tempo. A destruição é rápida, a criação é lenta e, portanto, eu não ficaria surpreso se tivéssemos um período prolongado de dois, três, quatro anos com taxas de desemprego muito altas na região.

Por fim, essa recessão prolongada afetará muito as finanças públicas. A necessidade de outro ajuste fiscal se tornará, mais cedo ou mais tarde, aguda.

E, portanto, quando os governos têm menos dinheiro, enfim, gastam menos em muitas coisas, não seria estranho que víssemos menos dinheiro indo para a saúde.

Portanto, a combinação de todos esses fatores é catastrófica. E, desse ponto de vista, não me surpreenderia se tivéssemos alguns anos em que os indicadores de saúde na América Latina, que vêm melhorando, diminuíssem fortemente.

Quais medidas econômicas podem ajudar tanto a controlar a pandemia quanto reduzir seu impacto econômico? O economista peruano Roberto Chan sintetizou uma das chaves da pandemia com uma montagem: mostrou uma foto de um ano atrás de um dos principais mercados de Lima [capital do Peru], com a praça repleta de gente. Ele então mostrou uma foto do mesmo lugar no meio da quarentena de Lima. E o que se viu? Uma praça repleta de gente. É triste, mas não é surpreendente. Em muitos lugares de Lima não há geladeira, e mais da metade da força de trabalho é informal.

Em geral, nos países em desenvolvimento, a política econômica, a política de transferências é indissociável da política de saúde. Temos que ser muito agressivos e proativos nas políticas de transferências. Tanto por razões humanitárias, porque há pessoas que não têm o suficiente para alimentar os filhos, como também por questões de saúde, porque é a melhor forma de permitir que as pessoas fiquem em casa.

Agora, qual é a dificuldade? Obviamente, existem governos que não têm dinheiro. Há, pelo menos na América Latina, uma separação muito clara entre países com capacidade de endividamento que conseguiram emitir dívidas e receber fundos e o resto.

Peru e Chile conseguiram empréstimos sem maiores problemas. O Brasil conseguiu, mas alcançando níveis de endividamento que vêm se tornando muito perigosos. A Argentina fez isso emitindo pesos, o que em algum momento trará uma pressão inflacionária.

Há também uma dificuldade prática: quando os sistemas de seguridade social são muito primários, não há um cadastro adequado das famílias, muitas das quais não têm conta em banco. Embora o governo tenha o dinheiro, não é fácil garantir que os recursos cheguem às pessoas.

No Peru, eles tentaram levar dinheiro para as famílias, o governo tinha o dinheiro, mas a única maneira de as pessoas coletarem esses recursos era ficando em uma longa fila do lado de fora de um banco.

Ora, é difícil imaginar algo mais propício ao contágio do que milhares de cidadãos amontoados na porta de um banco tentando receber um cheque ou um pagamento em dinheiro.

Concluindo, duas lições: as emergências são mais um motivo para deixar um espaço fiscal em tempos normais e precisamos regularizar e bancarizar muito mais famílias na região.

O cenário que o senhor descreve é, para dizer o mínimo, desafiador. O que recomendaria aos reformadores e líderes políticos latino-americanos que desejam melhorar a saúde em seus países Primeiro uma recomendação conceitual, depois uma recomendação tática.

O conceito é que você não deve se apegar a sistemas puros. Acho que muitas vezes na América Latina o debate sobre saúde, assim como o debate sobre a previdência, não é muito produtivo porque se discutem abstrações de mercado puro ou somente Estado, que, a bem da verdade, não existem em muitos países ou, quando existem, não funcionam muito bem.

Portanto, seria aconselhável procurar modelos híbridos adaptados às circunstâncias de cada país.

E a recomendação tática é que a saúde é uma área que precisa de reformas mais ou menos extensas. Não apenas porque é bom ser ambicioso mas porque, se o pacote de reformas for muito pequeno e incluir muito pouco, sempre haverá perdedores evidentes.

Mas,0 quando se mudam várias coisas ao mesmo tempo, é possível que, se um grupo perder aqui, ganhará ali, e isso permite fazer compensações que facilitam a viabilidade política dessa reforma.

Andrés Velasco é formado em economia e filosofia na Universidade Yale e doutor em economia pela Universidade Columbia, é reitor da escola de políticas públicas da London School of Economics; foi ministro da Fazenda do Chile (março de 2006 a março de 2010, no primeiro governo de Michelle Bachelet)
 
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Covid-19 terá onda de efeitos na saúde mental, diz professor de Harvard https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/covid-19-tera-onda-de-efeitos-na-saude-mental-diz-professor-de-harvard/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/covid-19-tera-onda-de-efeitos-na-saude-mental-diz-professor-de-harvard/#respond Tue, 01 Sep 2020 14:57:28 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/37509663536_2b3b6fd8b4_o-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=269

Dr. Shekhar Saxena

Pablo Peña Corrales e Miguel Lago

 

A Covid-19 ameaça a saúde mental de milhões de pessoas no mundo. O isolamento social, as mortes de amigos e familiares, a crise econômica e o desemprego aumentam o risco de depressão, ansiedade e outras doenças.

Antes da crise, 14% da carga global de doenças era atribuída a questões de saúde mental. Segundo especialistas, a tendência é que isso aumente com a pandemia.

 

 

A despeito de sua frequência e gravidade, as doenças mentais são ainda muito pouco visibilizadas. O senhor. poderia explicar quais fatores afetam a saúde mental?

 

A saúde mental pode ser influenciada por fatores genéticos e biológicos, mas também por fatores socioeconômicos e sociodemográficos. Para dar alguns exemplos de demografia; as doenças e o nível de saúde mental dependem do estágio vital. Na primeira infância há mais risco de autismo, na adolescência de depressão e ansiedade, e na velhice de demência.

Em todas as etapas do ciclo de vida os efeitos econômicos e sociais pesam. Tanto a pobreza absoluta como a relativa estão associadas a uma maior prevalência de transtornos mentais, especialmente ansiedade, depressão e abuso de substâncias.

A pobreza afeta direta e indiretamente a saúde mental, piorando a nutrição, o status e a educação e aumentando a violência. Além disso, as iniquidades predizem a extensão dos problemas mentais na comunidade.

 

Algo que parece bastante paradoxal é o quanto a saúde mental ruim prevalece também nas sociedades desenvolvidas. Por que você acha que isso acontece? 

 

Tenho dito com muita frequência que, quando se trata de saúde mental, todos os países são países em desenvolvimento. O sistema de saúde que muitos países de alta renda têm não é adequado para o tipo de assistência que as pessoas precisam. Especialmente no que diz respeito à parte de promoção e prevenção, que está quase totalmente ausente. Mesmo no tratamento há muitas dificuldades. Mesmo em países de alta renda, 60% das pessoas que sofrem de depressão não são identificadas e tratadas. E a porcentagem em muitos dos países de baixa e média renda essa taxa é de quase 90%.

 

Você está preocupado com o impacto que a crise da Covid-19 pode ter na saúde mental global?

 

Muito. Não só estamos enfrentando mais fatores socioeconômicos que deveriam dar origem a mais problemas de saúde mental: desemprego, diminuição de renda, maior isolamento e maior carga com cuidado de crianças e idosas, trabalho remoto. Também estamos enfrentando a diminuição do acesso aos cuidados de saúde mental porque você não pode ir ao hospital e não pode comprar drogas.

Depois da primeira onda viral, eu temo uma segunda onda na saúde mental. Este não será um efeito de curto prazo, mesmo que a Covid-19 se resolva amanhã e ninguém mais seja infectado, o impacto socioeconômico disso continuará pelo menos por muitos anos. Isto dará origem ao aumento das disparidades na sociedade, o que terá um impacto sobre a saúde mental.

 

Precisamos de um novo enfoque para a saúde mental?

Primeiro, precisamos reconhecer que a saúde mental é uma parte da saúde. Segundo, nós devemos lembrar que a definição de saúde é sobre bem-estar físico, mental e até mesmo social. A maioria dos países tem um Ministério da Saúde que na verdade é um ministério da doença. A maior parte do tempo e recursos são destinados a tratar doenças. Ora, ainda que a integralidade de uma população não esteja doente, é necessário cuidar da saúde de todos. Terceiro, a saúde mental tem que ser vista como uma dimensão contínua, em vez binária, e mutante no tempo. Todos estamos sujeitos a  ter problemas mentais em algum momento da vida e é possível intervir em distintas etapas, não apenas no pico do sintoma.

 

Há mais de uma década, você editou uma série de artigos no Lancet e declarou com o título que não havia “nenhuma saúde sem saúde mental”. Naquela época já havia um consenso sobre como melhorar a saúde mental. Mas porque tem se avançado tão lentamente?

 

Existem vários fatores. O primeiro é preconceito da sociedade e dos formuladores de políticas. Quando falamos com os formuladores de políticas, eles enfatizam a importância da saúde mental. Mas quando se trata de decidir sobre o orçamento e fazer planos, é uma das menores prioridades entre todas as questões.

A segunda razão é que carecemos de recursos humanos suficientes para proporcionar saúde mental. Na verdade, os desenvolvimentos recentes no Brasil, até onde eu sei, estão indo muito em direção ao desenvolvimento de habilidades profissionais, mas mesmo assim há uma escassez de profissionais de saúde que cuidam da saúde mental.

 

Finalmente, as alocações financeiras têm sido muito pobres. O mundo gasta muito pouco em saúde mental, em países de alta renda, a porcentagem está entre 4% e 5% do orçamento da saúde. Nos países de baixa e média renda, é cerca de 1-2% do orçamento.

 

Como podemos mudar essa cultura onde a saúde mental é algo que não se discute publicamente ou que preferimos esconder?

 

Antes da Covid-19, o mundo acreditava que havia algumas pessoas que tinham distúrbios mentais, e todas as outras estavam bem. Hoje, o estresse incomum que muitas pessoas estão enfrentando está diminuindo o estigma. Essa é a resposta rápida, mas a resposta mais longa é que precisamos reconhecer não apenas a parte da doença em uma pessoa, mas também a parte normal de uma pessoa, para que vejamos as pessoas com experiência vivida de doença mental como pessoas em primeiro lugar e a doença em segundo.

 

O estigma não se reduz com a publicação de um artigo de jornal, ele se reduz vivendo com pessoas que estão enfrentando problemas de saúde mental e falando sobre isso.

 

Há mais de quatro décadas, a declaração de Alma Ata, em 1978, pediu a integração da saúde mental na saúde primária. O que precisa mudar para que essa integração seja plenamente alcançada?

A orientação é muito clara: todos os profissionais de saúde precisam ter um conhecimento básico de saúde mental. Um sistema ideal de saúde mental seria organizado com um primeiro nível de atenção, com cuidados informais e cuidados primários e em um segundo nível com cuidados especializados.

 

Este sistema seria muito útil para diminuir até mesmo o estigma, porque se você não tiver que ir a um psiquiatra, você se sentirá muito melhor. Infelizmente, a capacidade do sistema é muito pequena. Além disso, a maioria dos sistemas de saúde não tem uma métrica de avaliação para o tratamento de problemas de saúde mental.

 

Qual você acha que é o potencial da tecnologia, inovação, dados, para melhorar a saúde mental? Está limitada pelos riscos de privacidade?

 

A tecnologia tem estado pronta para a assistência à saúde mental por muito tempo, mas havia muitas barreiras para implementá-la. De repente a pandemia abriu a porta para isso. A tecnologia pode ajudar de várias maneiras. Uma delas é treinando pessoas e construindo suas habilidades. Também pode ajudar as pessoas que acessam a saúde mental remotamente.

 

Sobre privacidade, acredito que ela é importante para todos nós, não apenas na saúde mental. Você confia nos sites para colocar o número do seu cartão de crédito e em sites para fazer amigos. A saúde mental não é algo muito diferente de qualquer outra área sensível. A privacidade pode ser uma barreira para a tecnologia, mas às vezes também pode ser um facilitador.

Muitas pessoas, especialmente os jovens, têm uma grande relutância em começar a falar com a pessoa, mas na verdade eles estão muito felizes em falar com uma máquina.

 

Se você tivesse que dar uma recomendação a um político que lesse esta entrevista, por onde ele teria que começar?

 

Penso que o contexto importa, mas existem algumas recomendações gerais que são aplicáveis para o mundo inteiro. Minha mensagem para um tomador de decisão, seja ele um administrador ou um político, é que a saúde mental é importante demais para continuar sendo ignorada. Devemos investir mais nela. Não apenas para a saúde do povo, mas também para o desenvolvimento e prosperidade do país.

 

Minha mensagem para os prestadores de serviços de saúde – independentemente da função que exercem dentro do sistema – é que adotem uma abordagem integrada e não ignorem a saúde mental,. Minha mensagem para a população em geral é que a saúde mental é importante demais para que você a ignore ou evite procurar ajuda.

Shekhar Saxena foi editor de séries sobre o tema para a prestigiosa revista científica The Lancet em 2007, 2011 e 2018. Atualmente é professor na Universidade de Harvard. 
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Uma proposta de agenda para o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/31/uma-proposta-de-agenda-para-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/31/uma-proposta-de-agenda-para-o-sus/#respond Mon, 31 Aug 2020 23:16:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Samu_em_Ibotirama_2011-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=264  

Ricardo de Oliveira

A pandemia da Covid-19 jogou uma luz forte sobre a importância do SUS na proteção à saúde da população e da necessidade do seu aperfeiçoamento. O desafio é complexo, mas o setor saúde tem profissionais e organizações qualificadas capazes de ajudar o país a superá-lo, conforme observamos no enfrentamento da atual pandemia.

Para superar esse desafio é necessário estabelecer uma agenda que oriente os debates sobre como melhorar a prestação de serviços do SUS.

Essa agenda deve contemplar as várias dimensões que impactam a prestação dos serviços de saúde, conforme abaixo relacionado:

  1. REORGANIZAÇÃO DO MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE

Essa agenda se impõe, especialmente pela atual transição demográfica que indica um envelhecimento da população e consequente predomínio das doenças crônicas. O novo modelo deve superar a atual fragmentação do sistema de saúde, de modo a promover maior articulação e coordenação entre os vários níveis de atenção (primária, ambulatorial especializada e hospitalar) e, assim, organizar melhor o fluxo dos usuários dentro do sistema. É necessário, também, promover os conceitos de vida saudável (alimentação e exercício físico), do auto cuidado e implantar as Redes de Atenção à Saúde. É fundamental o fortalecimento da atenção primária como porta de entrada nas redes de assistência e coordenadora do processo de atendimento. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) desenvolve dois importantes projetos para reorganizar o modelo de atenção à saúde: a planificação da atenção primária e da ambulatorial especializada.

  1. FINANCIAMENTO

Os aportes financeiros ao SUS são baixos, se comparados aos exemplos internacionais. O Brasil se encontra muito aquém do nível de gasto público necessário para financiar um sistema público e universal de saúde. O país tem um gasto público que corresponde a 47% do gasto total em saúde (público e privado), enquanto nos outros países, com sistema universal, está em torno de 70%. O nosso gasto público em saúde corresponde a 3,8% do PIB enquanto no Reino Unido é de 7,9%. No entanto, quando consideramos o gasto total, em relação ao PIB, constatamos que os nossos gastos são semelhantes aos desses países. O Brasil gasta 8,9% do PIB e o Reino Unido, considerado o melhor sistema público do mundo 9,9%.

  1. REGIONALIZAÇÃO

Um dos problemas que impactam a gestão do SUS é a excessiva municipalização dos serviços de saúde, sem que exista escala que viabilize a prestação desses serviços. A consequência é a pulverização de recursos, contribuindo para a ineficiência do sistema e prejudicando a qualidade do atendimento aos usuários do SUS. É preciso, portanto, desenvolver uma lógica política baseada em uma visão regional de assistência à saúde que promova cooperação entre os vários níveis de governo por região.

  1. REVISÃO DO MODELO DE GESTÃO

A revisão do modelo de gestão do SUS é importante para que possamos transformar os recursos disponíveis em serviços eficientes e de qualidade à população. Para tanto, o setor público de saúde deveria ter regras de gestão específicas por tratar de questões relacionadas com a qualidade e a manutenção da vida.

Relaciono a seguir, as questões que considero relevantes que interferem no ambiente de gestão do SUS:

– O atual marco regulatório administrativo e de controle do setor público que prioriza os processos ao invés dos resultados no atendimento.

– A atuação dos Tribunais de Contas e Ministérios Públicos que dificultam a formação de equipes técnicas e gerenciais em função de um temor generalizado em assinar documentos ou decidir sobre processos em andamento.

– Os sistemas de informação devem ser aprimorados, inclusive para viabilizar a implantação do cartão SUS e o prontuário eletrônico.

– As dificuldades na coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. Além do sistema tripartite, temos o Judiciário, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, os Conselhos Profissionais, dentre outros.

– A cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas na relação do Estado com a sociedade que provoca ineficiências e favorece a corrupção. Essas práticas induzem à descontinuidade administrativa sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e a frequente troca de gestores.

  1. JUDICIALIZAÇÃO

O crescimento exponencial da judicialização da saúde é um fenômeno recente e tem sérias consequências na execução da política pública de saúde. Ela está criando outra porta de entrada no SUS, comprometendo a equidade no acesso aos serviços e mobilizando vultuosos recursos. Convém ressaltar que o acesso à justiça faz parte do Estado democrático de direito, porém, precisamos debater com urgência as razões do seu crescimento excessivo.

A justiça tem responsabilizado o gestor criando um clima que impacta fortemente o desempenho gerencial. Cada dia torna-se mais difícil selecionar profissionais para assumir cargos de chefia, uma vez que o risco de serem culpabilizados pessoalmente cresce com o aumento da judicialização. É necessário estabelecer, com urgência, um ambiente de segurança jurídica que afaste o risco dos profissionais serem responsabilizados pelas deficiências de atendimento na prestação de serviços de saúde por obrigações do Estado.

  1. COMPLEXO INDUSTRIAL, CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO DA SAÚDE

A pandemia do Covid-19 mostrou que o país possui uma boa infraestrutura de ciência e tecnologia e profissionais capacitados e, a necessidade de aumentar o investimento na área. Contudo, foi possível identificar deficiências que devem ser corrigidas. Precisamos, por exemplo, aumentar e qualificar nossa capacidade laboratorial e reduzir a dependência externa em relação a insumos de proteção individual dos profissionais (EPIs) e na produção de medicamentos. Essas demandas específicas e outras, podem alavancar o nosso parque industrial na internalização de tecnologias estratégicas para atender às necessidades da saúde. Uma das preocupações da política de saúde tem sido a relação com o setor produtivo para suprir as necessidades do país e deve ser fortalecida.

  1. PARCERIA COM O SETOR PRIVADO FILANTRÓPICO, ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE E EMPRESAS PRIVADAS

O SUS compra serviços e produtos de vários parceiros do setor privado, como as organizações filantrópicas, as organizações sociais de saúde e as empresas privadas, uma vez que não tem estrutura suficiente para prestação de todos os serviços, tampouco produz tudo que precisa. O funcionamento adequado dessas parcerias depende fundamentalmente da capacidade do poder público de selecionar bons fornecedores, fiscalizar a aplicação dos recursos e a qualidade do atendimento aos usuários.

Uma questão importante na política de saúde é estabelecer um diálogo com as operadoras de seguro saúde com objetivo de buscar acordo sobre sua área de atuação, financiamento e sua relação complementar com o SUS na prestação de serviços. A falta de uma visão consensuada tem gerado um conflito dentro do setor saúde que provoca ineficiências.

É preciso utilizar com eficiência todos os recursos disponíveis na área de saúde, público e privado, para atendimento à população, obedecendo os mandamentos constitucionais.

Por fim, é preciso construir uma unidade política com todos os atores envolvidos, tendo como objetivo defender os interesses dos usuários do SUS. É preciso reconhecer que o SUS é fruto de uma obra coletiva, que envolve toda a população e várias instituições, perpassa vários governos e, precisa de continuidade nas suas políticas, como forma de garantir o direito à saúde. Há uma frase muito utilizada pelo CONASS que sintetiza esse diagnóstico: “O SUS não é um problema sem solução, é uma solução com problemas”.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, consultor em gestão pública e palestrante. Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012. 

 

 

 

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Reabertura das escolas? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/reabertura-das-escolas/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/reabertura-das-escolas/#respond Fri, 28 Aug 2020 19:20:48 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/students-5201719_1920-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=260  

Roberto Cooper

 

Após 8 meses de pandemia, ainda não temos as informações, baseadas em evidências, que nos permitam responder à questão de reabrir ou não as escolas. Dito de outra forma, “a ciência”, tão evocada na mídia como uma entidade única e detentora da Verdade, não tem resposta para essa questão. Ou melhor, tem respostas para o gosto do freguês.

Se a pessoa está inclinada a defender a abertura das escolas, vai citar os exemplos da Suécia, Dinamarca, França e Alemanha como bem-sucedidos em termos de reabertura das escolas (a Suécia nunca chegou a fechá-las). Se a pessoa está inclinada a defender que as escolas permaneçam fechadas, vai citar os exemplos de Israel e, localizadamente, da França.

Também temos um cardápio ao gosto do freguês para a questão da transmissibilidade das crianças. O estudo da Coréia do Sul aponta, de modo resumido, que crianças transmitem e as de idades entre 10 e 19 anos, transmitem como adultos. Mas o estudo da Irlanda (muitíssimo menor) conclui o oposto. O mesmo concluem (o oposto da Coréia do Sul) os dois estudos produzidos em Genebra.

Quando me refiro ao gosto do freguês, quero dizer, sua visão de mundo, seu viés político (não há como negar a existência desse viés, para qualquer decisão), suas preferências pessoais ou afetivas. Portanto, neste momento, devemos ser francos e honestos, afirmando que não temos, evidências científicas ou epidemiológicas que possam sustentar uma posição clara de reabrir ou manter fechadas as escolas.

Se não temos essa resposta, temos alguns consensos:

  • A reabertura de escolas somente deveria se dar quando a circulação do vírus estivesse reduzida e sob controle. Isso implica em decisões locais, em função da epidemiologia. Impossível tomar uma decisão única para um estado e, muito menos, país. O consenso vai parar no enunciado porque, ato contínuo, vai se iniciar uma discussão sobre o que significa circulação reduzida e situação sob controle. Parece óbvio que a redução da circulação do vírus se dá com o isolamento social, uso de máscaras e lavagem das mãos. Quando uma sociedade privilegia a reabertura de bares e academias de ginástica, manda uma mensagem clara a respeito do valor da educação. Bares e academias deveriam permanecer fechados, favorecendo a reabertura das escolas.

Ainda para podermos abrir as escolas, uns defenderão a testagem em grande escala, enquanto outros, invocando o fato de que esta testagem é impraticável e não foi feita em lugar algum do mundo (focando na reabertura das escolas), sendo necessário utilizar o número de casos e óbitos como indicadores desse controle.

  • A reabertura das escolas somente poderá ocorrer quando, além das condições epidemiológica favoráveis, houver um protocolo bem estabelecido pelas escolas, com respeito ao funcionamento cotidiano das unidades escolares. Este protocolo deve contemplar desde a logística de entrada e saída de alunos, funcionários e fornecedores, até o tamanho das turmas e o seu funcionamento como coortes “fechadas”, passando pela desinfecção ambiental, medidas contingenciais em caso de suspeita ou confirmação de Covid-19 na comunidade escolar e treinamento de toda a equipe. Aqui, novamente, existem áreas de indefinição e subjetividade. Crianças não usarão máscaras, dirão alguns. O protocolo do Reino Unido, Dinamarca e EUA (citação não exaustiva), elimina o uso de máscaras para crianças menores de 9 a 10 anos, dirão outros. Como reduzir o tamanho das turmas é um problema real e concreto, tanto maior no setor público. Em Israel, o brote de casos ocorreu por conta de turmas grandes em dias de calor intenso, quando as janelas foram fechadas e o ar condicionado foi ligado. Em um país tropical como o nosso, esta situação não é difícil de ser imaginada.
  • Os funcionários das escolas devem ser previamente avaliados, antes de qualquer reabertura, para identificar os que podem apresentar fatores de risco como idade e comorbidades. Para estes, um planejamento à parte deverá ser feito, com o objetivo de minimizar uma exposição que coloque o funcionário em risco.
  • Reabrir escolas não significa assumir (ou fingir) que está tudo bem. Não está. O vírus ainda circula entre nós, mesmo nas cidades onde os indicadores sinalizam uma redução real de casos e óbitos. Reabrir escolas significa repensar cada detalhe da rotina diária da escola, introduzindo mudanças fundamentais nesse cotidiano. Estamos há 4 meses com o vírus entre nós e nesse tempo, seria de se supor que as escolas públicas e privadas estivessem se preparando para, quando as condições permitissem reabrir, fazê-lo com segurança. Usamos esse tempo para aprender e nos planejar ou, agora, vamos no improviso, no jeitinho brasileiro, na torcida e na fé?

 

Além dos aspectos relacionados diretamente ao vírus (transmissão, infecção, prevenção etc.), existem aspectos sociais importantíssimos que devem ser levados em consideração em qualquer decisão de reabertura ou não das escolas:

 

  • A reabertura das escolas é necessária para que os pais possam retornar aos seus trabalhos, caso estes estejam exigindo a presença física do funcionário. A classe média e os mais ricos ainda conseguem uma rede de suporte constituída por familiares e/ou empregados. Estes precisam do trabalho e saem de casa para cuidar dos filhos dos outros, sem ter com quem deixar os seus. Acrescente-se o dado que o percentual de pessoas em situação de trabalho informal é de 40%, segundo o IBGE, mas ultrapassa 50% e 11 estados. Esses trabalhadores informais precisam sair de casa, todos os dias, para conseguir colocar comida na mesa de casa.
  • As escolas, além de serem um lugar seguro (em princípio) para as crianças ficarem, oferece refeições que são fundamentais para as famílias mais pobres e vulneráveis. Nos EUA, país rico, 20 milhões de crianças dependem do café da manhã e almoço servido nas escolas. Qual seria esse número no Brasil?
  • A reabertura de algumas escolas (privadas) e não de outras (públicas), além de escancarar a forma com que a concentração de riqueza afeta, objetivamente, as pessoas, contribui para perpetuar e aprofundar as diferenças entre pobres e ricos, dificultando a tarefa de construirmos um país mais justo e equânime. Dito isso, a solução seria não permitir que as escolas privadas, dado o cumprimento das exigências e recomendações, abrissem? Ou, abrir as públicas junto com as privadas, colocando em risco este segmento da população (alunos e funcionários) porque não conseguem atender às exigências e recomendações?

 

Finalmente e não menos importante, existem os aspectos psicopedagógicos e psico-afetivos envolvidos no fechamento das escolas.

Parece ser consenso entre pedagogos que a interrupção prolongada do ensino presencial, acarreta uma perda, temporária, da capacidade cognitiva. Isto é, alunos quando retornam de férias mais longas, não apresentam a mesma capacidade de absorção de novos conhecimentos e competências que apresentavam ao final do período anterior. Assim, é de se supor que esta perda cognitiva temporária estará presente no retorno às aulas e será tanto maior, quanto maior o tempo de fechamento das escolas. Esta perda já é, habitualmente, mais intensa nos alunos de famílias pobres e vulneráveis. Com o retorno à escola, esse grupo deveria receber um suporte pedagógico específico e mais intenso, sob o risco de termos uma faixa de alunos que vão se “arrastar” ainda mais que o habitual, pelos anos escolares, com um agravamento das consequências de um ensino que já era sofrível.

Do ponto de vista pisco-afetivo, crianças, como todos os humanos, são seres sociais. O que nos caracteriza como humanos é a nossa interdependência e a necessidade de nos relacionarmos. Assim, ainda que não seja mensurado, o dano por conta do isolamento existe e está presente nas crianças. O retorno à socialização e expressão do afeto (incluindo as discussões e brigas) é um atributo fundamental no desenvolvimento emocional saudável das crianças. Manter as crianças em casa, protegidas do vírus, o que poderia ser dito de outra forma -vivas, é fundamental. Mas é preciso considerar que crianças, como adultos, são seres biopsicossociais e a escola é o espaço onde podem expressar isso de forma plena.

 

Como disse no início, não há uma pessoa que possa responder, com segurança, à pergunta: as escolas já podem reabrir? Isso, considerando uma visão binária do mundo -pode ou não pode. Ora, o mundo não funciona desta forma. O mundo é um gradiente, complexo, multifatorial e uma visão binária é típica de uma criança, onde o pensamento mágico infantil (ou pré-lógico), categoriza tudo em bom/mau, feio/bonito, gosto/não gosto. A complexidade é para adultos, assim como conviver com inseguranças e incertezas. Temos o dever moral de responder às questões complexas e não deixa-las, neste caso, exclusivamente para os pais. Quando profissionais de saúde optam por fazer um tratamento farmacológico é porque supõem que os benefícios superam os malefícios. Devemos avaliar esta questão sob a mesma ótica e ponderar benefícios e malefícios das diferentes soluções possíveis. Mais, não poderemos generalizar porque, para determinados locais ou grupos, uma solução pode ser benéfica, enquanto a mesma solução para outro local ou grupo e maléfica.

 

Não há como tratar de uma questão tão urgente e complexa, sem registrar que a ausência de uma coordenação federal, leia-se Ministério da Saúde, acolhendo diferentes saberes, promovendo o debate de ideias, buscando o bem de todos, apenas contribui para mais confusão, ignorância e obscurantismo. Quando uma ameaça a todos, poderia nos aproximar de forma humana e solidária, a abstinência do poder federal, revela o descaso pela vida.

 

 Roberto Cooper é pediatra, tem mestrado em saúde da família (Unesa), e é professor no curso de medicina (Unesa).

 

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Globalização almejada até a chegada do vírus é inatingível https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/globalizacao-almejada-ate-a-chegada-do-virus-e-inatingivel/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/globalizacao-almejada-ate-a-chegada-do-virus-e-inatingivel/#respond Mon, 24 Aug 2020 02:15:15 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/WhatsApp-Image-2020-08-23-at-16.38.05-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=248  

Miguel Lago e
Pablo Peña Corrales
Há décadas, Dani Rodrik, professor de economia na Universidade Harvard, adverte sobre os perigos de uma globalização excessiva, que ameaçaria a democracia e a soberania nacional, e critica receitas clássicas de liberalização e desregulação para o desenvolvimento econômico.
Agora, o economista afirma que estamos “começando a perceber que o tipo de hiperglobalização que tentamos ter até a [chegada da] Covid-19 não é mais atingível”.
“Mas muitas dessas tendências nas cadeias de valor globais já estavam se estabelecendo há mais ou menos uma década.”
As ideias de Rodrik, consideradas por muito tempo heterodoxas, estão agora no centro do debate público. Uma delas, a teoria do trilema da economia global, diz que não se pode perseguir simultaneamente democracia, soberania nacional e globalização econômica.
Se a ideia é impulsionar a globalização, afirma o acadêmico, será necessário desistir do Estado-nação ou de políticas democráticas. Se o projeto for aprofundar a democracia, é preciso escolher entre integração econômica internacional e autodeterminação nacional. Por fim, se a soberania nacional for a prioridade, será necessário apostar na democracia ou na globalização.
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Durante a crise da Covid-19, a globalização parece ter diminuído drasticamente. Esse movimento é temporário ou duradouro? Muitos indicadores econômicos mostram uma forte queda, e não sabemos ainda quanto tempo vai demorar para se recuperar. Mas o quadro geral é que muitas dessas tendências no comércio e nas cadeias de valor globais já estavam se estabelecendo há mais ou menos uma década. Após a crise financeira global de 2008, o comércio mundial começou a desacelerar a expansão das cadeias de valor globais, e começamos a ver uma regionalização cada vez mais forte.
Se observarmos a proporção das exportações no PIB, a China viu uma queda em torno de 15 pontos percentuais, e a Índia caiu algo como cinco pontos percentuais. Portanto, há tendências seculares em curso que nos afastam do que eu chamaria de “hiperglobalização”.
Nessa nova globalização, e diante da Covid-19, como ficará a mobilidade da mão de obra e a migração global? Mais limitada? Penso que sim. Mas gostaria de salientar que os países estavam começando a limitar o fluxo internacional de pessoas. Nunca tivemos um regime internacional que regulasse e liberalizasse progressivamente a circulação de pessoas entre países, ao contrário do que ocorre com comércio de bens, serviços, capital e finanças.
Eu diria que, nos últimos 20 ou 30 anos, uma combinação de globalização crescente e tendências tecnológicas realmente afastaram as sociedades umas das outras. Tem havido muita insegurança, econômica, cultural, física e, agora, cada vez mais, de saúde.
O sr. disse que existem diferentes tipos de globalização. Vivemos três globalizações diferentes desde o final do século 19, e acho que poderíamos facilmente imaginar diferentes variantes no futuro. Diferentes globalizações se distinguem pelos mercados em que a globalização ocorre. Com o padrão ouro no final do século 19, por exemplo, a globalização era uma em que não se tinha apenas capital, mas também livre mobilidade de trabalhadores, algo que não existe depois da Segunda Guerra, quando ela focou mais bens industriais.
O tipo de globalização que tivemos desde a década de 1990 restringiu cada vez mais o que os governos eram capazes de fazer em suas economias domésticas. A tarefa agora é visualizar uma globalização que será muito mais consistente com o tipo de diversidade que temos no mundo.
Precisamos alcançar um equilíbrio entre os ditames de uma economia mundial aberta e as preferências de diferentes nações para conduzir seus modelos econômicos e sociais.
Como podemos identificar quais áreas precisam de regras globais e quais áreas deveriam ser reguladas por determinação nacionais? Há dois critérios que nos moveriam na direção da cooperação global. Um deles é se questionar se existem características de bens públicos. Se sim, haveria incentivos significativos para que os países ajam como passageiros clandestinos e gerem resultados muito negativos para o mundo como um todo se não houver regras globais ou disciplinas globais?
Duas áreas em que isto se aplica especialmente são, primeiro, a mudança climática, porque ela afeta a todos, mas nenhum país quer pagar o custo da descarbonização, e, segundo, a saúde pública, incluindo o desenvolvimento de vacinas e terapias. Curiosamente, a maioria das áreas econômicas em que temos realmente procurado criar regras globais não tem características de bem público global.
Os países têm interesse em estabelecer regulamentos financeiros adequados, políticas econômicas abertas e estabilidade macroeconômica. Portanto, os países relativamente bem governados tenderiam a perseguir políticas econômicas que também são boas para todos os outros.
Um segundo critério para a cooperação global é evitar políticas genuinamente mesquinhas. Elas são relativamente poucas: o abuso do poder de mercado, por exemplo, com países que produzem alguma mercadoria rara e podem aumentar os preços nos mercados mundiais, ou países que estabelecem paraísos fiscais para empresas fictícias. Se não tivermos bens públicos ou políticas mesquinhas, acho que o instinto deveria ser deixar os países escolherem o que querem fazer por conta própria.
Que tipo de coordenação global precisamos nas políticas de saúde? Todo regime global enfrenta uma espécie de compromisso entre os benefícios das regras comuns e os benefícios da diversidade, ou a experimentação de regras.
Na saúde, é muito importante ter uma cooperação global em redes de informação e conhecimento. No caso da Covid-19, houve atrasos significativos no compartilhamento de informações, e outros países pagaram caro por isso. Outra grande área da saúde em que haveria benefícios significativos de uma cooperação global seria o desenvolvimento de vacinas.
Uma vez que a vacina é desenvolvida, o custo para utilizá-la é muito pequeno. Se tivéssemos um sistema de saúde pública global realmente bom, a pesquisa para a vacina seria realizada por meio de uma organização de saúde global.
Há outras áreas em que precisamos ser mais cuidadosos. Se você centralizar as recomendações de resposta [a crises], pode acabar coordenando políticas erradas, e às vezes há benefício em deixar os países seguirem seus próprios caminhos para que possam descobrir o que funciona melhor.
Um exemplo concreto disso é que, no início, a OMS [Organização Mundial da Saúde] foi bastante contrária ao uso de máscaras, o que acabou se revelando, em grande parte, um erro. Em um mundo onde a OMS fosse levada muito mais a sério e, assim, muitos mais países seguiriam suas recomendações provavelmente teríamos ficado em uma situação pior.
O trilema que o sr. desenvolveu sugere que os países só podem escolher dois elementos entre globalização, soberania nacional e democracia. A soberania nacional está no caminho para dominar essa trindade? A razão pela qual isso está acontecendo é que principalmente os populistas autoritários de direita têm entendido efetivamente a lógica do trilema. Eles aproveitaram as tensões que o trilema destaca para ganhar impulso político e não estão interessados em fortalecer a democracia, porque seus instintos tendem a ser autoritários.
Penso que a única maneira de sairmos dessa situação é esperar que tenhamos forças políticas progressistas, uma espécie de populismo de esquerda que possa não só capturar o terreno em termos de soberania nacional, mas também fazê-lo de uma forma que não prejudique as normas democráticas. Voltando ao trilema, você pode ter no máximo dois [dos três pontos] e certamente pode ter dois. Nós estamos tendo apenas um, e isso não é bom.
A reivindicação por soberania nacional acrescentou mais tensões políticas em organizações internacionais. É algo que temos que tolerar ou existem maneiras de alcançar uma globalização mais tecnocrática? Não creio que possamos ou devemos ter uma globalização tecnocrática. A economia, a saúde ou o meio ambiente não são questões puramente técnicas; elas têm ramificações de distribuição muito significativas. Impossível imaginar qualquer tipo de regime político que seja ou deva ser isolado da política.
A maioria das instituições de representação de responsabilidade é em nível local e nacional e, nas instituições globais, a cadeia de delegação democrática é muito longa. Essa é outra razão pela qual teremos muito cuidado ao delegar demais a organizações internacionais, pois isso tende a fortalecer interesses particulares que têm os recursos e a capacidade de influenciar essas organizações.
Estamos começando a perceber que, de fato, o tipo de hiperglobalização que tentamos ter até a Covid-19 não é mais atingível. Acho que isto poderia ser o tipo de motor de uma globalização mais multifacetada, mais contextual, mais flexível. Certamente também existem cenários ruins, e receio não poder ignorá-los. Depende um pouco de que lado da cama me levanto.


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