Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Do combate à convivência: respostas de municípios à pandemia de Covid-19 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/do-combate-a-convivencia-respostas-de-municipios-a-pandemia-de-covid-19/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/12/21/do-combate-a-convivencia-respostas-de-municipios-a-pandemia-de-covid-19/#respond Mon, 21 Dec 2020 13:29:09 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/corona-4959447_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=334 Arthur Aguillar, Gabriella Lotta, Helyn Thami e Matheus Nunes

 

Nos últimos meses, os países do Atlântico Norte estão vivendo uma segunda onda da pandemia de Covid-19: após uma queda drástica nos casos desde meados de maio, os governos de países como Espanha, Inglaterra e Itália tentam responder ao aumento de casos impondo um novo conjunto de medidas de isolamento social. Nestes países, a pandemia, da mesma forma que a vida no poema Dia da Criação, de Vinicius de Moraes, vem em ondas. No Brasil, contudo, a pandemia não vem em ondas, mas se apresenta em um sinistro platô de mortes, e, nas últimas semanas, vem ainda acelerando. Quais as implicações de tal fato para o enfrentamento da pandemia? Em especial, como as pequenas cidades de um país que nunca foi para principiantes,  caracterizado por sua descentralização administrativa, desigualdades regionais e pela capacidade de estado local heterogênea, lidam com um evento de tamanha gravidade como a pandemia da Covid-19?

Na nota técnica “Do combate à convivência: respostas de municípios à pandemia de Covid-19” , que lançamos hoje, fruto da parceria entre o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Núcleo de Estudos das Burocracias (NEB/FGV), tentamos responder a essa pergunta. Para tal, acompanhamos 31 pequenos municípios do Norte e Nordeste do Brasil ao longo de 3 meses, para compreender as respostas à pandemia. As análises mostram que encontramos uma dinâmica pautada por dois momentos: a crise e a convivência. Esses dois momentos são bastante distintos, e o Brasil, junto talvez aos Estados Unidos, possui essa chamada jabuticaba que é a convivência com uma pandemia. Mas, antes, falemos da crise.

O momento da crise é bastante parecido no Brasil e no resto do mundo, e corresponde ao período entre o primeiro óbito e o ponto onde a média móvel de óbito atingiu seu máximo em meados do ano. A análise das respostas municipais mostra que este período foi marcado por medidas draconianas de isolamento social e sobrecarga das redes de saúde, seja no âmbito da assistência direta, seja na capacidade de testar e diagnosticar a doença em tempo oportuno. Talvez devido à novidade e complexidade do desafio, é também um período caracterizado por diversos erros de gestão: municípios fecharam algumas das Unidades Básicas de Saúde e tiveram dificuldades em implementar estratégias epidemiológicas como barreiras sanitárias, testagem e políticas de rastreamento de contatos. Os desafios enfrentados pelos municípios nessa fase se parecem muito com o que foi visto no início da pandemia na Europa e, durante um período maior, no resto da América Latina.

Já o convívio é coisa nossa, de alguns países da América Latina e, em algum grau, dos Estado Unidos, que também observaram taxas altas de infecção ao longo de todo o ano. Se a Europa foi caracterizada por rápidos períodos de pico com uma redução drástica da quantidade de casos entre os picos, isso simplesmente não ocorreu no Brasil: desde que a pandemia começou, seguimos tendo altas taxas de contaminação e óbitos sem uma redução drasticamente diferente do pico. Daí o resultado: não tivemos outra opção senão conviver com a pandemia. E a ideia de convivência é o que marca as respostas encontradas nos municípios no segundo período analisado, correspondente a setembro e outubro. Convivência significou reabertura total ou parcial dos estabelecimentos; significou uma amenização dos conflitos entre os prefeitos e outros atores locais; significou reorganização de alguns serviços de saúde; e significou, acima de tudo, uma gestão mais baseada em aprendizados. Foi neste período, por exemplo, que as prefeituras reabriram as Unidades Básicas de Saúde e começaram a utilizar os profissionais de forma mais estratégica. Também foi neste período que a sobrecarga da rede assistencial e os déficits de insumos diminuíram significativamente.

Se por um lado a passagem de tempo favoreceu a reposição de insumos que escassearam durante os primeiros meses e semanas de pandemia, essa mesma passagem do tempo e dos acontecimentos – mortes, casos, colapsos do sistema de saúde – também mostrou um agir do estado que denota um  “novo normal” mesmo sem uma trajetória descendente na curva.

O convívio nos mostra uma dinâmica conhecida no Brasil: a convivência perene da Sociedade e do Estado com problemas absurdos, seja a violência urbana e as altas taxas de homicídio, sejam os bolsões onde a incidência de doenças infecciosas que a ciência conhece há muitas décadas, como sífilis, dengue e tuberculose, é rotineiramente elevada.

Os aprendizados – adquiridos em tempo recorde pelos gestores e gestoras – se configuram como potenciais legados para muito além da pandemia. Revisão e redimensionamento da força de trabalho, reativação de capacidade instalada ociosa, aumento rápido de capacidade instalada, mais intimidade com a coleta e análise de dados, implementação ágil de políticas relativamente novas (como a telemedicina), diversidade de atores considerados na tomada de decisão são apenas alguns deles. A resiliência dos gestores públicos foi posta à prova pela crise sanitária e o grau de maturidade da ação mostrou, em alguma medida,  a capacidade de reação destes.

Por outro lado, permanece o desafio de criar resiliência e estratégias de vigilância sistemáticas que permitam uma resposta rápida porém menos reativa às emergências de saúde pública. O SUS (e seus gestores e gestoras), cujo valor está mais claro do que nunca, somam, portanto, dois desafios: conviver com a pandemia até que proporção suficiente de brasileiros estejam vacinados e ampliar a resiliência do sistema para enfrentar outras problemáticas sanitárias – por vezes amenizadas pelo costume da convivência – com as quais lidaremos por ainda mais tempo.

Gabriella Lotta é Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB/FGV)

Arthur Aguillar e Helyn Thami são pesquisadores do IEPS 

Matheus Nunes é mestrando em Administração Pública pela Fundação Getútlio Vargas (FGV)

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Monitoramento de políticas públicas e ciclos de aprendizado: os desafios e possibilidades para os novos gestores eleitos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/monitoramento-de-politicas-publicas-e-ciclos-de-aprendizado-os-desafios-e-possibilidades-para-os-novos-gestores-eleitos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/11/23/monitoramento-de-politicas-publicas-e-ciclos-de-aprendizado-os-desafios-e-possibilidades-para-os-novos-gestores-eleitos/#respond Mon, 23 Nov 2020 11:00:35 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/technology-2082642_640-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=318 Helyn Thami, Arthur Aguillar e Maria Letícia Machado

 

Em anos recentes, o monitoramento de políticas públicas, sobretudo na Saúde, ganhou ênfase em termos de discurso e de práticas. A pandemia, por consequência, acabou por endossar ainda mais a necessidade de acompanhar sistematicamente os dados para subsidiar a tomada de decisão. Painéis de indicadores foram elaborados e publicizados, levantaram-se críticas sobre a subnotificação de casos. Falamos de dados e falamos da qualidade deles.

Essa ênfase na relevância de uma estratégia de monitoramento efetiva se configura como um potencial legado da crise do novo coronavírus. Será difícil enxergarmos a análise sistemática de dados da saúde da mesma maneira como o fazíamos anteriormente, e isso tende a ser positivo para a sustentabilidade e melhoria do sistema.

Contudo, destaca-se que colocar de pé uma estratégia de monitoramento em nível municipal é uma tarefa pouco óbvia. Primeiro, é preciso reconhecer que o monitoramento não se restringe (ou não deveria) ao mero exercício de leitura de dados. Os dados precisam informar a tomada de decisão, de modo que, caso contrário, perdem sua serventia. É preciso, também, ir além e garantir que o sistema aprenda e melhore com base na análise desses dados e no acompanhamento dos resultados das decisões tomadas. Ademais, não se pode perder de vista que o monitoramento também permite a responsabilização dos provedores de serviço, o que contribui para a qualificação do sistema, de igual modo.

Como é possível ao gestor municipal implementar, de modo efetivo, uma estratégia de monitoramento que torne o sistema mais transparente e possibilite a aprendizagem de todos que fazem parte dele? Em primeiro lugar, é necessário compreender que a efetividade da implementação dependerá, inicialmente, de etapas de qualificação das informações disponíveis. Sabemos dos enormes desafios de qualidade e fragmentação de dados no âmbito do SUS, sobretudo no que tange à integração de bases de dados e à identificação única dos usuários, para citar alguns. Sem esses componentes, se torna inviável o acompanhamento do itinerário do usuário no sistema de saúde, o que implica em informações frágeis para a tomada de decisão ou, ainda, em um tempo muito grande para tratar as informações antes de poder aplicá-las na prática.

Sendo assim, é imprescindível que os futuros secretários de saúde invistam na construção/implantação de um sistema de informação com identificador único por usuário e na delimitação de um conjunto mínimo de dados a ser acompanhado e monitorado rotineiramente, em um modelo de painel de indicadores. Esse painel deve ser parcimonioso e cada indicador deve responder a perguntas de gestão específicas — indicadores não são fins em si mesmos. Não menos importante, os dados devem ser inteligíveis para os diversos atores interessados. Um nível incompatível de complexidade da informação compromete o entendimento do problema e, de igual modo, a resposta a ele.

Em um segundo momento, é preciso pensar em um ciclo de análise e devolutiva sobre desempenho para as equipes da ponta. Ora, se são esses os times que carregam boa parte do ônus e responsabilidade da coleta de dados, é ético, justo e adequado que esses mesmos times possam encontrar sentido na qualificação de seu trabalho através de devolutivas com periodicidade definida. Isso pode ser feito, por exemplo, no modelo de seminários de gestão ou fóruns e oficinas. Destaca-se aqui a importância da frequência e periodicidade de análise dos dados: em situações emergenciais como a atual, é preciso que a gestão esteja preparada para processar e analisar dados em alta frequência.  O desenvolvimento dessas habilidades é imperioso para as equipes de gestão efetivamente comprometidas com a melhoria do sistema de saúde.

Por fim, é preciso que o município desenhe e implemente um plano de monitoramento para as condições de maior interesse sanitário, em consonância com o planejamento estratégico do mandato, sendo esse um desdobramento do diagnóstico da situação de saúde (e de necessidades em saúde) do município. Em um sistema com recursos finitos e coexistência de desafios, priorizar é uma atividade importante, inclusive quando da definição dos objetos a serem acompanhados.

A tarefa é complexa, mas os futuros gestores municipais podem se beneficiar de ferramentas tais como a Agenda Saúde na Cidade, que traz o passo a passo de implementação e os desafios políticos e administrativos envolvidos na execução de cada uma dessas medidas fundamentais. Tirar planos do papel é uma tarefa que exige uma visão técnica apurada, sem perder de vista o contexto do mundo real em que as políticas públicas acontecem.

Há um amplo consenso entre especialistas em gestão que as organizações, incluindo os sistemas de saúde, melhoram conforme avança a sua capacidade de aprender com seus erros e acertos. Ter informação de qualidade disponível e usá-las para engajar equipes na construção de soluções, com posterior acompanhamento de seus efeitos, é essencial para que moldemos o sistema de saúde que queremos. Esse é um sonho possível e, oportunamente, as novas gestões municipais se configuram como uma importante janela de oportunidade nesse sentido.

 

Helyn Thami, Arthur Aguillar e Maria Letícia Machado são pesquisadores do IEPS

 

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Reforma da gestão pública https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/29/reforma-da-gestao-publica/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/29/reforma-da-gestao-publica/#respond Thu, 29 Oct 2020 11:07:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/Plenário_do_Congresso_17368738481-2-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=305  

Ricardo de Oliveira

 

Uma das questões mais importantes da agenda política é a reforma da gestão pública.  Isso porque é preciso garantir que a população exerça os direitos estabelecidos na constituição e, essa garantia só é possível com uma gestão pública de qualidade, que assegure que os recursos disponíveis para a administração pública (financeiros, patrimoniais, materiais, poder e pessoal) sejam aplicados, da melhor maneira possível, no interesse da população.

A criação de direitos sem que a população possa exercê-los, na sua plenitude, tem um enorme potencial de desqualificar o Estado democrático de direito. Os nossos legisladores têm priorizado a criação de direitos sem a devida preocupação com a garantia do seu exercício. Essa prática prejudica, principalmente, a parte da população mais pobre e, portanto, mais dependente dos serviços públicos, agravando a desigualdade social, que já é absurdamente alta no nosso país.

A reforma da gestão pública tem que ser pensada em toda sua complexidade, nas dimensões técnica e política. Ao contrário da gestão privada, a gestão pública age em um ambiente com fortes interações com a disputa política na sociedade, seja por interesses clientelistas, corporativos, econômicos ou institucionais, além de conviver com uma legislação de controle muito restritiva ao desempenho gerencial.

O objetivo da administração pública é prestar serviços à população com transparência, eficiência, sustentabilidade e qualidade. A reforma da gestão pública precisa, inicialmente, fazer um diagnóstico dos problemas políticos e técnicos que restringem o alcance desse objetivo. Esse passo é fundamental para que sejam procuradas soluções adequadas aos reais problemas que afetam o desempenho gerencial da administração pública. O debate é sobre o conjunto das regras de gestão e controle do setor público e sua interação com o ambiente político e institucional. É preciso identificar, com clareza, as restrições provenientes desse ambiente no desempenho gerencial da administração pública, sob pena de propor soluções parciais, com alcance limitado, na melhoria da prestação de serviços públicos à população.

Por fim, a reforma tem que ser pensada como um processo que envolve muitos atores, públicos e privados, com interesse no desenvolvimento da gestão pública como forma de promover a igualdade de oportunidades. Essa é uma obra coletiva. Não há salvadores da pátria.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi secretário estadual de gestão e recursos humanos do ES, no período de 2005/2010 e secretário estadual de saúde do ES em 2015/2018. Autor dos livros gestão pública: Democracia e Eficiência- FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde- FGV/2020.

 

 

 

 

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A obesidade infantil é uma responsabilidade que precisa ser compartilhada https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/10/23/a-obesidade-infantil-e-uma-responsabilidade-que-precisa-ser-compartilhada/#respond Fri, 23 Oct 2020 11:00:02 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/bicycle-427560_1920-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=298 Atualizado 23.out.2020 às 17:35

Roberta Costa Marques

Laís Fleury

Livia Cattaruzzi

Enquanto atravessamos a pandemia do coronavírus, uma outra epidemia, a de obesidade infantil, acomete cerca de 380 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. E o Brasil contribui significativamente para essa preocupante estatística: hoje, 1 em cada 3 crianças e adolescentes, com idade entre 5 e 19 anos, está com excesso de peso ou obesidade e, entre os adolescentes, a obesidade grave saltou de 17% para 28% na última década, segundo o Panorama da Obesidade em Crianças e Adolescentes. Projeções da OMS indicam que podemos ocupar o 5° lugar na lista de países com maiores índices de obesidade infantil em 2030.

O aumento desses índices coincide com mudanças significativas no estilo de vida das famílias brasileiras nos últimos anos, como a intensificação da urbanização, do sedentarismo e o aumento do consumo de produtos alimentícios industrializados, os quais são promovidos para crianças desde a mais tenra idade, entre outros fatores. 

Além de prejuízos ainda na infância, como estigma e diabetes, crianças com excesso de peso ou obesidade têm cinco vezes mais chances de desenvolver doenças crônicas na vida adulta, resultando em uma pior qualidade de vida e maiores custos para o sistema de saúde.

Apesar dos altos e crescentes índices, a obesidade infantil ainda é pouco discutida no Brasil, o que provoca uma percepção equivocada a respeito da responsabilidade que o tema carrega. Considerando esse cenário, o Instituto Desiderata e o Instituto Alana lançaram a publicação Obesidade Infantil – uma responsabilidade compartilhada, com o objetivo de que a sociedade reconheça que não se trata de uma questão restrita aos âmbitos individual e familiar, mas, sim, de um problema de saúde pública, e compreenda alguns dos fatores ambientais que contribuem para o agravamento desse cenário.

O senso comum ainda trata  a obesidade infantil como uma questão individual, fechando os olhos para os múltiplos fatores que a influenciam, como condições socioeconômicas, culturais, ambientais e políticas. Como garantir uma existência mais saudável para as nossas crianças se vivemos em um ambiente que desfavorece um modo de vida mais ativo e as expõem a estratégias comerciais que promovem junk food e bebidas adoçadas? Tais fatores são determinantes para a adoção de hábitos pouco saudáveis, mas não costumam fazer parte dessa discussão. 

Situação mais grave durante a pandemia de coronavírus

Em tempos de pandemia, esses desafios são ainda maiores, com a limitação da circulação das pessoas e o excesso do uso de telas. Para a maior parte das famílias, em especial as que vivem em grandes centros urbanos, a insegurança nas ruas e a escassez de espaços ao ar livre que estimulem a circulação e a brincadeira dificultam ainda mais esse cenário.

O maior tempo em casa aumentou o uso de telas em todas as classes sociais, do celular à televisão, ampliando a exposição das crianças a mensagens publicitárias, cada vez mais veladas e sofisticadas, direcionadas a elas – ainda que a prática de publicidade infantil já seja considerada ilegal pela legislação brasileira – promovendo o consumo excessivo e habitual de produtos alimentícios ultraprocessados, de baixo valor nutricional e com altos índices de ingredientes artificiais que prolongam sua durabilidade.

Proporcionar atividade física ao ar livre e uma alimentação adequada e saudável não é tarefa fácil em uma realidade em que tantas famílias sequer têm acesso a  alimentos e espaços saudáveis. Para dar conta dessa questão de saúde pública, poder público, organizações sociais e setor privado precisam atuar juntos para disponibilizar informação clara e transparente, adotar medidas regulatórias eficazes que diminuam o consumo de alimentos ultraprocessados e bebidas adoçadas, assim como criar espaços seguros, acessíveis e livres de publicidade infantil para a circulação de crianças pelas cidades. Apenas por meio do engajamento de todos esses setores em conjunto, será possível  transformar o atual cenário para garantir a essas crianças uma vida e um futuro mais saudáveis.

 

Roberta Costa Marques é diretora executiva do Instituto Desiderata

Laís Fleury é coordenadora do programa Criança e Natureza do Instituto Alana

Livia Cattaruzzi é advogada do programa Criança e Consumo do Instituto Alana

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Precisamos resgatar a ideia de que a ciência é apartidária, diz epidemiologista de Harvard https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/09/06/precisamos-resgatar-a-ideia-de-que-a-ciencia-e-apartidaria-diz-epidemiologista-de-harvard/#respond Mon, 07 Sep 2020 02:15:23 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/61bc2a1ab4d4a5a3801cc2bc172f73a6e91a2df41ad82036651044a4baf58dcf_5f544398abc1d-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=273  

Pablo Peña Corrales

Miguel Lago

Fernando Falbel

Em fevereiro deste ano, quando a Covid-19 parecia uma preocupação distante, Marc Lipsitch alertou para o alto risco de uma pandemia. Como professor de epidemiologia na Universidade Harvard especializado em modelagem matemática de epidemias, ele logo encontrou padrões alarmantes de contágio e mortalidade. Desde então, Lipsitch é um dos cientistas mais consultados pela mídia norte-americana para entender a evolução da pandemia no mundo.

 

Em 2019, um índice global de segurança sanitária feito pela Universidade Johns Hopkins e pela revista The Economist classificou EUA e Reino Unido como os países mais bem preparados para uma epidemia. A China não estava no top 50, e a Nova Zelândia nem no top 30. O quadro evoluiu de forma bem diferente. Como a Covid-19 mudou nosso entendimento do que significa estar preparado?  

 

 

Marc Lipsitch: A pandemia mostrou que a liderança, em nível nacional e subnacional, pode pesar mais do que dispositivos sistêmicos. Não que baste ter boa liderança; um país desprovido de infraestrutura continuará despreparado. Mas, se há capacidade sistêmica, o nível de liderança —tanto em termos de respeitar a ciência e a saúde pública como de planejamento estratégico e coordenação— pode superar todo o resto.

Os EUA não tinham plano, e a resposta tem sido mais tática do que estratégica em nível nacional. Daqui em diante, creio que os índices de preparo deverão levar em conta não só o país, mas seu governo.

A Organização Mundial da Saúde tem sido criticada por sua resposta lenta à crise, como ter demorado para aconselhar o uso de máscaras em locais públicos. A OMS argumenta que só deveria mudar suas diretrizes diante de evidências esmagadoras. O sr. concorda? 

Não. Diante de epidemias de doenças infecciosas, em que a ação precoce importa muito, o critério deveria ser a existência de evidência sugestiva de um benefício e nenhuma grande desvantagem em fazer determinada coisa. A evidência pode favorecer a ação mesmo que não seja conclusiva.

Um exemplo é o lockdown preventivo. A evidência era muito forte de que ele poderia retardar a crise por vir. Embora o lado negativo não fosse pequeno, sua mitigação era possível, de modo que defendi medidas rápidas antes de sabermos todos os detalhes e dados. Uma abordagem mais analítica de decisão, em vez de uma abordagem apenas de evidência científica, é apropriada no caso.

Nos últimos meses, houve uma explosão de artigos científicos sobre a Covid-19 compartilhados em versões preprint, antes da revisão por pares, da verificação e revisão detalhada. O fato de as proteções do rigor científico estarem sendo dribladas preocupa?

Isso é uma bênção e uma maldição, embora mais positiva que negativa.

A revisão por pares é um dentre quatro níveis de controle de qualidade científica.

O primeiro é o treinamento dos cientistas para que eles saibam o que estão fazendo —e que vem sendo driblado, com pesquisadores trabalhando em campos com que estão pouco familiarizados.

O segundo é a autoedição científica: sua reputação está atrelada à credibilidade do seu trabalho, portanto evitar estar errado é um importante incentivo. No entanto, esse processo está sofrendo uma erosão pela pressa de publicar.

A revisão pelos pares, o terceiro nível, nem sempre está acontecendo e é também um processo imperfeito, mesmo quando funciona. A replicação é o quarto, e muitas vezes não há tempo para fazer isso.

Portanto, acho que a rapidez é um problema. Dado o enfraquecimento dos mecanismos de controle de qualidade, não me preocupam os preprints, até porque elas têm aspectos positivos, como acelerar as comunicações, o que é valioso.

Fora que a revisão por pares no Twitter está realmente acontecendo, já participei de ambos os lados. Acabei de colocar um preprint no MedRxiv que recebeu muitas críticas no Twitter, muitas das quais incorporamos na nova versão.

Acho que outros mecanismos estão funcionando. Não que substituam a revisão por pares, ou que sejam perfeitos, mas quem não aceita ser criticado deveria sair da ciência.

Algumas pessoas sugerem que devemos analisar o que foi chamado de totalidade das evidências, ou seja, incluir as desvantagens dos lockdowns sobre a economia, a saúde mental, a desigualdade etc. É possível incluir tantas dimensões na tomada de decisões do dia a dia?

Eu concordo com esse princípio, de que se os bloqueios fossem mais prejudiciais em termos de saúde mental e economia do que benéficos em termos do vírus isso seria uma consideração importante contra.

Na prática, contudo, é muito difícil comparar. Primeiro, cada efeito desses é difícil de estimar. Segundo, se o vírus está se espalhando, isso tem efeitos amplos: afeta a saúde mental e a economia, pois a reação das pessoas é tentar se isolar. Não é questão de separá-los, contá-los e pesá-los. Está tudo inter-relacionado, e a dimensão temporal é confusa.

Acho que é realmente difícil e não culpo nenhuma decisão política por ter dificuldade em equilibrá-los. Mas a decisão a curto prazo, a decisão imediata de bloquear, foi válida. Minha percepção no momento é que ainda temos um equilíbrio favorável em relação a medidas de controle extremas, pois elas podem reduzir o número de casos de maneira relativamente rápida.

Isso não significa que se deva lidar assim com todo surto viral. Se este fosse menos letal, a decisão poderia ser outra.

A solução parece ser a vacina. Temos mais de 160 candidatas, mais de 20 em teste, e os resultados iniciais parecem promissores. O que está por trás deste sucesso?  

Houve enorme investimento por governos e empresas, e minha intuição diz que a busca por vacinas contra o coronavírus da Mers e da Sars, que já estava em curso, deu impulso.

Ainda ficaria surpreso se uma vacina viável chegasse, plenamente, antes de 18 meses após o começo da pandemia [antes de junho de 2021].

As previsões atuais são que talvez daqui a uns meses tenhamos duas ou três candidatas com alguma comprovação. Seria surpreendente se elas fossem vacinas excelentes, pois esta é claramente uma infecção difícil, e geralmente as primeiras vacinas inventadas são imperfeitas.

Do ponto de vista da saúde pública, há uma forma ideal de distribuir a vacina? Seria por nível de vulnerabilidade ou é melhor imunizar totalmente toda uma região? Alguma estratégia parece mais eficaz? 

Depende das características da vacina. Há de se ver se ela oferece proteção contra infecção e transmissão ou apenas protege contra doenças. Ainda é cedo, mas meu palpite é que ela fará um pouco dos dois. Algumas pessoas interpretaram que os ensaios em símios da vacina de Oxford sugerem ser mais provável que ela proteja só contra doenças; eu acho que não necessariamente.

Se ela protege contra doenças e sintomas graves, será importante vacinar antes pessoas de alto risco; se ela protege contra a transmissão, pode valer a pena priorizar profissionais de saúde e outras pessoas.

A segunda dimensão é se ela funciona tão bem nas pessoas de alto risco como funciona nos jovens saudáveis. Se sim, há um argumento forte para priorizar as pessoas com maior risco de complicação, sobretudo se houver um número limitado de doses.

Se não funciona tão bem neles, então acaba sendo melhor uma estratégia em que se vacinam prioritariamente as classes de transmissão, em grande parte pessoas jovens, saudáveis, e depois se tenta proteger os idosos e as populações de risco indiretamente.

A resposta está na interseção dessas duas questões. Quando a primeira vacina for aprovada, não teremos certeza de nada disso, pois os ensaios não têm o poder de estudar os efeitos em todos os subgrupos.

Em países como os EUA e o Brasil, questões técnicas como usar máscara ou tomar hidroxicloroquina viraram questões partidárias. Seria possível isolar a resposta científica à Covid-19 da política? 

Isso exigirá esforços a longo prazo, e o terreno dessa politização foi preparado por grupos de esquerda e de direita, mas sobretudo de direita, que politizaram questões científicas como vacinas e mudança climática.

A visão de que a ciência é para todos e não tem partido precisa ser recuperada.

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Uma proposta de agenda para o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/31/uma-proposta-de-agenda-para-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/31/uma-proposta-de-agenda-para-o-sus/#respond Mon, 31 Aug 2020 23:16:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Samu_em_Ibotirama_2011-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=264  

Ricardo de Oliveira

A pandemia da Covid-19 jogou uma luz forte sobre a importância do SUS na proteção à saúde da população e da necessidade do seu aperfeiçoamento. O desafio é complexo, mas o setor saúde tem profissionais e organizações qualificadas capazes de ajudar o país a superá-lo, conforme observamos no enfrentamento da atual pandemia.

Para superar esse desafio é necessário estabelecer uma agenda que oriente os debates sobre como melhorar a prestação de serviços do SUS.

Essa agenda deve contemplar as várias dimensões que impactam a prestação dos serviços de saúde, conforme abaixo relacionado:

  1. REORGANIZAÇÃO DO MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE

Essa agenda se impõe, especialmente pela atual transição demográfica que indica um envelhecimento da população e consequente predomínio das doenças crônicas. O novo modelo deve superar a atual fragmentação do sistema de saúde, de modo a promover maior articulação e coordenação entre os vários níveis de atenção (primária, ambulatorial especializada e hospitalar) e, assim, organizar melhor o fluxo dos usuários dentro do sistema. É necessário, também, promover os conceitos de vida saudável (alimentação e exercício físico), do auto cuidado e implantar as Redes de Atenção à Saúde. É fundamental o fortalecimento da atenção primária como porta de entrada nas redes de assistência e coordenadora do processo de atendimento. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) desenvolve dois importantes projetos para reorganizar o modelo de atenção à saúde: a planificação da atenção primária e da ambulatorial especializada.

  1. FINANCIAMENTO

Os aportes financeiros ao SUS são baixos, se comparados aos exemplos internacionais. O Brasil se encontra muito aquém do nível de gasto público necessário para financiar um sistema público e universal de saúde. O país tem um gasto público que corresponde a 47% do gasto total em saúde (público e privado), enquanto nos outros países, com sistema universal, está em torno de 70%. O nosso gasto público em saúde corresponde a 3,8% do PIB enquanto no Reino Unido é de 7,9%. No entanto, quando consideramos o gasto total, em relação ao PIB, constatamos que os nossos gastos são semelhantes aos desses países. O Brasil gasta 8,9% do PIB e o Reino Unido, considerado o melhor sistema público do mundo 9,9%.

  1. REGIONALIZAÇÃO

Um dos problemas que impactam a gestão do SUS é a excessiva municipalização dos serviços de saúde, sem que exista escala que viabilize a prestação desses serviços. A consequência é a pulverização de recursos, contribuindo para a ineficiência do sistema e prejudicando a qualidade do atendimento aos usuários do SUS. É preciso, portanto, desenvolver uma lógica política baseada em uma visão regional de assistência à saúde que promova cooperação entre os vários níveis de governo por região.

  1. REVISÃO DO MODELO DE GESTÃO

A revisão do modelo de gestão do SUS é importante para que possamos transformar os recursos disponíveis em serviços eficientes e de qualidade à população. Para tanto, o setor público de saúde deveria ter regras de gestão específicas por tratar de questões relacionadas com a qualidade e a manutenção da vida.

Relaciono a seguir, as questões que considero relevantes que interferem no ambiente de gestão do SUS:

– O atual marco regulatório administrativo e de controle do setor público que prioriza os processos ao invés dos resultados no atendimento.

– A atuação dos Tribunais de Contas e Ministérios Públicos que dificultam a formação de equipes técnicas e gerenciais em função de um temor generalizado em assinar documentos ou decidir sobre processos em andamento.

– Os sistemas de informação devem ser aprimorados, inclusive para viabilizar a implantação do cartão SUS e o prontuário eletrônico.

– As dificuldades na coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. Além do sistema tripartite, temos o Judiciário, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, os Conselhos Profissionais, dentre outros.

– A cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas na relação do Estado com a sociedade que provoca ineficiências e favorece a corrupção. Essas práticas induzem à descontinuidade administrativa sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e a frequente troca de gestores.

  1. JUDICIALIZAÇÃO

O crescimento exponencial da judicialização da saúde é um fenômeno recente e tem sérias consequências na execução da política pública de saúde. Ela está criando outra porta de entrada no SUS, comprometendo a equidade no acesso aos serviços e mobilizando vultuosos recursos. Convém ressaltar que o acesso à justiça faz parte do Estado democrático de direito, porém, precisamos debater com urgência as razões do seu crescimento excessivo.

A justiça tem responsabilizado o gestor criando um clima que impacta fortemente o desempenho gerencial. Cada dia torna-se mais difícil selecionar profissionais para assumir cargos de chefia, uma vez que o risco de serem culpabilizados pessoalmente cresce com o aumento da judicialização. É necessário estabelecer, com urgência, um ambiente de segurança jurídica que afaste o risco dos profissionais serem responsabilizados pelas deficiências de atendimento na prestação de serviços de saúde por obrigações do Estado.

  1. COMPLEXO INDUSTRIAL, CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO DA SAÚDE

A pandemia do Covid-19 mostrou que o país possui uma boa infraestrutura de ciência e tecnologia e profissionais capacitados e, a necessidade de aumentar o investimento na área. Contudo, foi possível identificar deficiências que devem ser corrigidas. Precisamos, por exemplo, aumentar e qualificar nossa capacidade laboratorial e reduzir a dependência externa em relação a insumos de proteção individual dos profissionais (EPIs) e na produção de medicamentos. Essas demandas específicas e outras, podem alavancar o nosso parque industrial na internalização de tecnologias estratégicas para atender às necessidades da saúde. Uma das preocupações da política de saúde tem sido a relação com o setor produtivo para suprir as necessidades do país e deve ser fortalecida.

  1. PARCERIA COM O SETOR PRIVADO FILANTRÓPICO, ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE E EMPRESAS PRIVADAS

O SUS compra serviços e produtos de vários parceiros do setor privado, como as organizações filantrópicas, as organizações sociais de saúde e as empresas privadas, uma vez que não tem estrutura suficiente para prestação de todos os serviços, tampouco produz tudo que precisa. O funcionamento adequado dessas parcerias depende fundamentalmente da capacidade do poder público de selecionar bons fornecedores, fiscalizar a aplicação dos recursos e a qualidade do atendimento aos usuários.

Uma questão importante na política de saúde é estabelecer um diálogo com as operadoras de seguro saúde com objetivo de buscar acordo sobre sua área de atuação, financiamento e sua relação complementar com o SUS na prestação de serviços. A falta de uma visão consensuada tem gerado um conflito dentro do setor saúde que provoca ineficiências.

É preciso utilizar com eficiência todos os recursos disponíveis na área de saúde, público e privado, para atendimento à população, obedecendo os mandamentos constitucionais.

Por fim, é preciso construir uma unidade política com todos os atores envolvidos, tendo como objetivo defender os interesses dos usuários do SUS. É preciso reconhecer que o SUS é fruto de uma obra coletiva, que envolve toda a população e várias instituições, perpassa vários governos e, precisa de continuidade nas suas políticas, como forma de garantir o direito à saúde. Há uma frase muito utilizada pelo CONASS que sintetiza esse diagnóstico: “O SUS não é um problema sem solução, é uma solução com problemas”.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, consultor em gestão pública e palestrante. Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012. 

 

 

 

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Reabertura das escolas? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/reabertura-das-escolas/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/28/reabertura-das-escolas/#respond Fri, 28 Aug 2020 19:20:48 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/students-5201719_1920-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=260  

Roberto Cooper

 

Após 8 meses de pandemia, ainda não temos as informações, baseadas em evidências, que nos permitam responder à questão de reabrir ou não as escolas. Dito de outra forma, “a ciência”, tão evocada na mídia como uma entidade única e detentora da Verdade, não tem resposta para essa questão. Ou melhor, tem respostas para o gosto do freguês.

Se a pessoa está inclinada a defender a abertura das escolas, vai citar os exemplos da Suécia, Dinamarca, França e Alemanha como bem-sucedidos em termos de reabertura das escolas (a Suécia nunca chegou a fechá-las). Se a pessoa está inclinada a defender que as escolas permaneçam fechadas, vai citar os exemplos de Israel e, localizadamente, da França.

Também temos um cardápio ao gosto do freguês para a questão da transmissibilidade das crianças. O estudo da Coréia do Sul aponta, de modo resumido, que crianças transmitem e as de idades entre 10 e 19 anos, transmitem como adultos. Mas o estudo da Irlanda (muitíssimo menor) conclui o oposto. O mesmo concluem (o oposto da Coréia do Sul) os dois estudos produzidos em Genebra.

Quando me refiro ao gosto do freguês, quero dizer, sua visão de mundo, seu viés político (não há como negar a existência desse viés, para qualquer decisão), suas preferências pessoais ou afetivas. Portanto, neste momento, devemos ser francos e honestos, afirmando que não temos, evidências científicas ou epidemiológicas que possam sustentar uma posição clara de reabrir ou manter fechadas as escolas.

Se não temos essa resposta, temos alguns consensos:

  • A reabertura de escolas somente deveria se dar quando a circulação do vírus estivesse reduzida e sob controle. Isso implica em decisões locais, em função da epidemiologia. Impossível tomar uma decisão única para um estado e, muito menos, país. O consenso vai parar no enunciado porque, ato contínuo, vai se iniciar uma discussão sobre o que significa circulação reduzida e situação sob controle. Parece óbvio que a redução da circulação do vírus se dá com o isolamento social, uso de máscaras e lavagem das mãos. Quando uma sociedade privilegia a reabertura de bares e academias de ginástica, manda uma mensagem clara a respeito do valor da educação. Bares e academias deveriam permanecer fechados, favorecendo a reabertura das escolas.

Ainda para podermos abrir as escolas, uns defenderão a testagem em grande escala, enquanto outros, invocando o fato de que esta testagem é impraticável e não foi feita em lugar algum do mundo (focando na reabertura das escolas), sendo necessário utilizar o número de casos e óbitos como indicadores desse controle.

  • A reabertura das escolas somente poderá ocorrer quando, além das condições epidemiológica favoráveis, houver um protocolo bem estabelecido pelas escolas, com respeito ao funcionamento cotidiano das unidades escolares. Este protocolo deve contemplar desde a logística de entrada e saída de alunos, funcionários e fornecedores, até o tamanho das turmas e o seu funcionamento como coortes “fechadas”, passando pela desinfecção ambiental, medidas contingenciais em caso de suspeita ou confirmação de Covid-19 na comunidade escolar e treinamento de toda a equipe. Aqui, novamente, existem áreas de indefinição e subjetividade. Crianças não usarão máscaras, dirão alguns. O protocolo do Reino Unido, Dinamarca e EUA (citação não exaustiva), elimina o uso de máscaras para crianças menores de 9 a 10 anos, dirão outros. Como reduzir o tamanho das turmas é um problema real e concreto, tanto maior no setor público. Em Israel, o brote de casos ocorreu por conta de turmas grandes em dias de calor intenso, quando as janelas foram fechadas e o ar condicionado foi ligado. Em um país tropical como o nosso, esta situação não é difícil de ser imaginada.
  • Os funcionários das escolas devem ser previamente avaliados, antes de qualquer reabertura, para identificar os que podem apresentar fatores de risco como idade e comorbidades. Para estes, um planejamento à parte deverá ser feito, com o objetivo de minimizar uma exposição que coloque o funcionário em risco.
  • Reabrir escolas não significa assumir (ou fingir) que está tudo bem. Não está. O vírus ainda circula entre nós, mesmo nas cidades onde os indicadores sinalizam uma redução real de casos e óbitos. Reabrir escolas significa repensar cada detalhe da rotina diária da escola, introduzindo mudanças fundamentais nesse cotidiano. Estamos há 4 meses com o vírus entre nós e nesse tempo, seria de se supor que as escolas públicas e privadas estivessem se preparando para, quando as condições permitissem reabrir, fazê-lo com segurança. Usamos esse tempo para aprender e nos planejar ou, agora, vamos no improviso, no jeitinho brasileiro, na torcida e na fé?

 

Além dos aspectos relacionados diretamente ao vírus (transmissão, infecção, prevenção etc.), existem aspectos sociais importantíssimos que devem ser levados em consideração em qualquer decisão de reabertura ou não das escolas:

 

  • A reabertura das escolas é necessária para que os pais possam retornar aos seus trabalhos, caso estes estejam exigindo a presença física do funcionário. A classe média e os mais ricos ainda conseguem uma rede de suporte constituída por familiares e/ou empregados. Estes precisam do trabalho e saem de casa para cuidar dos filhos dos outros, sem ter com quem deixar os seus. Acrescente-se o dado que o percentual de pessoas em situação de trabalho informal é de 40%, segundo o IBGE, mas ultrapassa 50% e 11 estados. Esses trabalhadores informais precisam sair de casa, todos os dias, para conseguir colocar comida na mesa de casa.
  • As escolas, além de serem um lugar seguro (em princípio) para as crianças ficarem, oferece refeições que são fundamentais para as famílias mais pobres e vulneráveis. Nos EUA, país rico, 20 milhões de crianças dependem do café da manhã e almoço servido nas escolas. Qual seria esse número no Brasil?
  • A reabertura de algumas escolas (privadas) e não de outras (públicas), além de escancarar a forma com que a concentração de riqueza afeta, objetivamente, as pessoas, contribui para perpetuar e aprofundar as diferenças entre pobres e ricos, dificultando a tarefa de construirmos um país mais justo e equânime. Dito isso, a solução seria não permitir que as escolas privadas, dado o cumprimento das exigências e recomendações, abrissem? Ou, abrir as públicas junto com as privadas, colocando em risco este segmento da população (alunos e funcionários) porque não conseguem atender às exigências e recomendações?

 

Finalmente e não menos importante, existem os aspectos psicopedagógicos e psico-afetivos envolvidos no fechamento das escolas.

Parece ser consenso entre pedagogos que a interrupção prolongada do ensino presencial, acarreta uma perda, temporária, da capacidade cognitiva. Isto é, alunos quando retornam de férias mais longas, não apresentam a mesma capacidade de absorção de novos conhecimentos e competências que apresentavam ao final do período anterior. Assim, é de se supor que esta perda cognitiva temporária estará presente no retorno às aulas e será tanto maior, quanto maior o tempo de fechamento das escolas. Esta perda já é, habitualmente, mais intensa nos alunos de famílias pobres e vulneráveis. Com o retorno à escola, esse grupo deveria receber um suporte pedagógico específico e mais intenso, sob o risco de termos uma faixa de alunos que vão se “arrastar” ainda mais que o habitual, pelos anos escolares, com um agravamento das consequências de um ensino que já era sofrível.

Do ponto de vista pisco-afetivo, crianças, como todos os humanos, são seres sociais. O que nos caracteriza como humanos é a nossa interdependência e a necessidade de nos relacionarmos. Assim, ainda que não seja mensurado, o dano por conta do isolamento existe e está presente nas crianças. O retorno à socialização e expressão do afeto (incluindo as discussões e brigas) é um atributo fundamental no desenvolvimento emocional saudável das crianças. Manter as crianças em casa, protegidas do vírus, o que poderia ser dito de outra forma -vivas, é fundamental. Mas é preciso considerar que crianças, como adultos, são seres biopsicossociais e a escola é o espaço onde podem expressar isso de forma plena.

 

Como disse no início, não há uma pessoa que possa responder, com segurança, à pergunta: as escolas já podem reabrir? Isso, considerando uma visão binária do mundo -pode ou não pode. Ora, o mundo não funciona desta forma. O mundo é um gradiente, complexo, multifatorial e uma visão binária é típica de uma criança, onde o pensamento mágico infantil (ou pré-lógico), categoriza tudo em bom/mau, feio/bonito, gosto/não gosto. A complexidade é para adultos, assim como conviver com inseguranças e incertezas. Temos o dever moral de responder às questões complexas e não deixa-las, neste caso, exclusivamente para os pais. Quando profissionais de saúde optam por fazer um tratamento farmacológico é porque supõem que os benefícios superam os malefícios. Devemos avaliar esta questão sob a mesma ótica e ponderar benefícios e malefícios das diferentes soluções possíveis. Mais, não poderemos generalizar porque, para determinados locais ou grupos, uma solução pode ser benéfica, enquanto a mesma solução para outro local ou grupo e maléfica.

 

Não há como tratar de uma questão tão urgente e complexa, sem registrar que a ausência de uma coordenação federal, leia-se Ministério da Saúde, acolhendo diferentes saberes, promovendo o debate de ideias, buscando o bem de todos, apenas contribui para mais confusão, ignorância e obscurantismo. Quando uma ameaça a todos, poderia nos aproximar de forma humana e solidária, a abstinência do poder federal, revela o descaso pela vida.

 

 Roberto Cooper é pediatra, tem mestrado em saúde da família (Unesa), e é professor no curso de medicina (Unesa).

 

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O “remédio mais caro do mundo” e os dilemas para o SUS e o STF https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/26/o-remedio-mais-caro-do-mundo-e-os-dilemas-para-o-sus-e-o-stf/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/08/26/o-remedio-mais-caro-do-mundo-e-os-dilemas-para-o-sus-e-o-stf/#respond Wed, 26 Aug 2020 11:00:17 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Supremo_Tribunal_Federal_-_vista-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=256 Daniel Wei Liang Wang
Luís Correia
Adriano Massuda
Ana Carolina Morozowski

A ANVISA recentemente aprovou o registro do medicamento Zolgensma para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), doença rara que causa paralisia muscular progressiva. Embora mais estudos sejam necessários, inclusive para atestar seus efeitos a longo prazo, o registro foi concedido em caráter excepcional pela gravidade da doença, pela ausência de alternativa terapêutica e porque as pesquisas existentes apontam para maior sobrevida, redução da necessidade de auxílio de aparelhos para respirar e melhora no desenvolvimento motor dos pacientes com o medicamento.

O fato de um tratamento tão promissor estar disponível é uma excelente notícia que traz uma preocupação. Ainda não se sabe o preço do tratamento no Brasil, mas nos EUA ele custa US$2,1 milhões (R$12 milhões) por paciente. Isso torna impossível a sua aquisição por famílias e cria um dilema para o SUS.

Registro na ANVISA não significa a incorporação pelo SUS para distribuição gratuita. A concessão do registro é apenas a autorização para que o produto entre no mercado nacional. A incorporação passa por outro processo, que considera diversos fatores, incluindo custo. Nem sempre se quer falar em dinheiro quando se discute saúde, mas como o orçamento é limitado e há mais necessidades que recursos, eventual incorporação de um tratamento tão caro inevitavelmente retirará recursos de outras políticas de saúde.

Se, por ano, há 3 milhões de nascimento no Brasil, e 1 a cada 10.000 crianças nascem com AME, então 300 crianças por ano nascem com AME no Brasil. Considerando que metade delas terão AME do tipo 1, para o qual Zolgensma foi aprovado, e que esse é um tratamento ministrado em dose única, então o custo do seu fornecimento universal pelo SUS ao preço praticado nos EUA seria de R$1,8 bilhões por ano. Isso é 10% do gasto anual de União, Estados e Municípios com todos os quase mil tratamentos da relação de medicamentos do SUS, o dobro do gasto anual com drogas para DST/AIDS e três vezes o valor acordado pelo governo brasileiro para produzir 30,5 milhões de doses de vacina para Covid-19 atualmente em teste.

Zolgensma está longe de ser um caso isolado. O SUS já tem fornecido, via judicialização ou incorporação, tratamentos de altíssimo custo como o Soliris e o Spinraza. Muitos outros tratamentos com preços elevados logo entrarão no mercado. O FDA, órgão regulador americano correspondente à ANVISA, prevê que até 2025 aprovará de 10 a 20 terapias gênicas, como o Zolgensma, por ano.

Portanto, é preciso que como sociedade tenhamos uma discussão muito séria sobre o financiamento do SUS, quanto estamos dispostos a gastar com inovações em saúde e quais as consequências distributivas de nossas escolhas. Por isso, mais do que nunca, é necessário que se atente à economia da saúde para decidir quais tecnologias serão custeadas.

Existem alguns métodos para guiar essa discussão. Um deles é a análise de custo-efetividade, que avalia a relação entre o benefício trazido por um novo tratamento e o seu custo. Tratamentos cujos ganhos em saúde não justificam o seu preço muito elevado não são incorporados porque consomem recursos que poderiam ser empregados em intervenções que trazem grandes ganhos a baixo custo. Outro é a análise de impacto orçamentário, em que se estabelece um limite para o custo total que o sistema de saúde aceita gastar com um tratamento para evitar que a sua incorporação inviabilize outras políticas de saúde.

Análises de custo-efetividade e de impacto orçamentário já são previstas em lei e aplicadas pelo Ministério da Saúde, mas precisam ser melhor conhecidas e compreendidas pela sociedade. Assim, poderão ser aprimoradas, aplicadas com mais consistência e respaldadas pela opinião pública e tomadores de decisão, mesmo quando os resultados são frustrantes para pacientes.

A análise econômica pode levar à difícil decisão de não fornecer um tratamento. Contudo, a experiência internacional mostra que mais comumente ela é utilizada para dar a sistemas de saúde poder de barganha na negociação de preços e condições com a indústria farmacêutica, o que certamente será necessário no caso de tratamentos como o Zolgensma.

Porém, esse tipo de análise pode ser seriamente dificultado a depender do resultado de um julgamento que será concluído pelo STF ainda esta semana. Trata-se da decisão que fixará a Tese de Repercussão Geral do Tema 6, que definirá quando pacientes terão o direito de receber tratamentos não incorporados pelo SUS. Duas teses estão em disputa no STF.

Uma, defendida pelo Ministro Marco Aurélio, entende que pacientes terão o direito de receber um tratamento não incorporado sempre que conseguirem comprovar a sua necessidade perante um juiz. Ou seja, a necessidade individual que chegou ao Judiciário deve ser atendida independentemente do impacto sobre o sistema de saúde e outros usuários.

A outra, defendida pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Barroso, dá ao SUS o poder de definir quais tratamentos devem ser custeados pelo Estado. Portanto, não há a obrigação de se fornecer um tratamento que os órgãos técnicos do SUS decidiram não incorporar após uma análise de evidência científica, custo-efetividade e impacto orçamentário. Ao Judiciário fica a tarefa de garantir o fornecimento dos tratamentos já incorporados e de decidir excepcionalmente na ausência de uma decisão do próprio SUS.

Se prevalecer a primeira tese, a judicialização tirará do SUS instrumentos importantes para evitar que a introdução de tecnologias de alto custo criem inequidades e ameacem a sua sustentabilidade. O resultado será um SUS que gasta cada vez mais para beneficiar um número cada vez menor de pessoas, provavelmente em prejuízo daqueles com menos voz e das políticas com pouca visibilidade mas não menos importantes (como atenção primária e preventiva). Isso manterá e agravará o cenário de um sistema de saúde no qual a oferta de tratamento de altíssimo custo convive com desabastecimentos, filas de espera, deterioramento de serviço e a dificuldade do sistema de se expandir e de reduzir desigualdades.

 

Daniel Wei Liang Wang é professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas – SP

Luís Correia é professor Adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Adriano Massuda é professor da Fundação Getúlio Vargas – SP. Foi Secretário de Saúde de Curitiba e Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde

Ana Carolina Morozowski é juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba, com competência especializada em saúde

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Como garantir o exercício do direito à saúde? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/como-garantir-o-exercicio-do-direito-a-saude/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/07/28/como-garantir-o-exercicio-do-direito-a-saude/#respond Tue, 28 Jul 2020 11:32:33 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/26684219238_41999927ba_k-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=241  

Ricardo de Oliveira

Fruto de uma grande mobilização política na sociedade, foi escrito na Constituição de 1988 que a Saúde é direito de todos e um dever do Estado.

Uma vez conquistado esse direito, a sociedade se depara com o desafio de garantir o acesso aos serviços públicos de saúde a toda população brasileira. Esse é um desafio sem paralelo no mundo, vez que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes e com dimensões continentais que tem um sistema público e universal (SUS).

E temos que vencê-lo nos limites do marco regulatório administrativo e de controle da administração pública, que impõem inúmeras dificuldades para uma gestão pública eficiente, capaz de transformar os recursos disponíveis em serviços de qualidade para a população.

O SUS enfrenta esse desafio desde sua criação em 1988 e, apesar das dificuldades, foi capaz de organizar uma enorme prestação de serviços em todo o país. A pandemia da COVID-19 está demonstrando a importância do sistema público de saúde na proteção da saúde da população.

Garantir o direito à saúde significa prover serviços públicos de saúde a toda população, ou seja, a qualquer hora, em qualquer dia ou lugar desse país, alguém precisa de atendimento público de saúde e o SUS tem que estar preparado para atender.

Manter em todo o país serviços de saúde significa, do ponto de vista técnico, ter pessoas qualificadas e no quantitativo adequado, equipamentos, prédios, insumos e capacidade gerencial distribuídas por todo o país, de forma que a população possa acessar os serviços segundo suas necessidades, inclusive a tempo de ser atendida sem prejudicar sua saúde.

O SUS se depara, também, com alguns desafios de gestão do ponto de vista político. A nossa cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas, na relação do Estado com a sociedade, provoca ineficiências; desperdício de recursos; favorece a corrupção; prejudica a qualidade da prestação de serviços de saúde à população; e induz à descontinuidade administrativa, sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e com a frequente troca de gestores, em todos os níveis de governo.

Outra prática prejudicial à prestação de serviços de saúde ocorre quando há mudança de governo. Os novos gestores, frequentemente, renegam o trabalho do gestor anterior, ao invés de aperfeiçoar e dar continuidade aos projetos que tiveram um bom resultado por interesse de construir uma ‘marca própria’ e/ou desqualificar o antecessor.

Um desafio relevante é a coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. O funcionamento do SUS depende da coordenação de diferentes níveis de governo, onde temos diferentes partidos representados, cada um com sua ideologia e interesses que orientam suas políticas públicas finalísticas e de organização. Acrescente-se ainda a atuação dos vários órgãos públicos como o Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Defensoria Pública e Conselhos Profissionais que, em cumprimento aos seus papéis institucionais, dispõem de poder para direcionar gastos e influenciar as políticas públicas de saúde e a sua execução.

Nesse quadro político complexo, como fazer com que o conjunto de interesses políticos e institucionais trabalhem no mesmo sentido, com foco nos interesses dos usuários do SUS?

E, ainda, como fazer para organizar a prestação de serviços públicos de saúde, de forma a garantir com qualidade, eficiência e transparência, o exercício do direito à saúde com os conceitos atuais de gestão e controle que orientam o nosso marco regulatório administrativo e de controle?

As soluções para esses questionamentos dependem, sobretudo, do grau de comprometimento dos tomadores de decisão com a defesa do sistema público e universal de saúde; da nossa capacidade de coordenar essa ação coletiva; da modernização do nosso marco regulatório administrativo e de controle; da concepção do papel do Estado na provisão dos serviços públicos; e da prevalência, ou não, de interesses clientelistas, patrimonialistas e corporativos sobre os interesses dos usuários do SUS.

Infelizmente, a grande mobilização política que sustentou a criação do direito à saúde não se manteve para apoiar a superação dos desafios políticos e técnicos da gestão. Hoje, os grupos que mais se mobilizam em defesa do SUS se dividem quanto aos desafios da gestão em função de visões diferentes de como organizar a prestação de serviços do Estado e do papel da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde, como, por exemplo, na polêmica sobre a utilização das organizações sociais (OSs) na gestão dos serviços de saúde.

Essas divergências e a desmobilização política teve como consequência a transferência, na prática, de responsabilidades do Congresso Nacional, em relação às condições de gestão e financiamento, para os poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais, os quais, como sabemos, não têm poderes e recursos para enfrentar sozinhos tamanho desafio, e, assim, comprometemos o pleno exercício desse direito.

Essa ‘transferência de responsabilidades’ pode ser politicamente conveniente. Contudo, não é viável e se insere em uma cultura política de ‘empurrar o problema’, e está na raiz das atuais dificuldades enfrentadas pela população no acesso aos serviços de saúde, além de explicar grande parte do desgaste da imagem do SUS.

A população não identifica o Congresso Nacional e o governo federal como tendo responsabilidades pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde no dia a dia. Sendo assim, tende a responsabilizar apenas os estados e municípios que são, na prática, os provedores majoritários desses serviços; tende, também, a achar que elas não se resolvem apenas por falta de interesse político dos gestores diretos dos serviços, mas infelizmente não é bem assim. Alguns dos principais problemas enfrentados pelos gestores, estaduais e municipais, para garantir o acesso aos serviços depende de decisões a nível nacional.

Isso fica evidente quando se debatem questões de financiamento à saúde no Congresso Nacional e no Executivo Federal, pois não se consegue mais um apoio suficiente no sentido de garantir financiamento adequado, ou regras de gestão e controle específicas que favoreçam a eficiência na utilização de recursos destinados ao SUS.

Outras questões de suma importância para a gestão do SUS, como a excessiva judicialização da saúde ou o fato do gasto privado ser maior que o gasto público, em um sistema público e universal, também não tem merecido a atenção devida por parte do Congresso Nacional e do Governo Federal. Aliás, o debate sobre essas questões não tem ganhado espaço nem em campanhas eleitorais presidenciais ou para o Congresso Nacional, o que é uma enorme contradição, visto ser a saúde um dos temas que mais preocupam a população brasileira, conforme as várias pesquisas de opinião.

A sociedade cobra, com razão, mais resultados do sistema público de saúde. Contudo, ainda não conseguiu perceber que algumas questões cruciais para melhorar o atendimento, como condições de financiamento e regras de gestão e controle adequadas para entregar tais resultados, dependem do Congresso Nacional. Por isso, é fundamental que elejamos candidatos comprometidos com o desenvolvimento do SUS e com práticas políticas republicanas.

O SUS é uma construção social, pressupõem a participação de todos, população, gestores, técnicos, parlamentares, juízes, procuradores, controladores, defensores públicos e conselhos profissionais. Infelizmente não há um culpado de plantão como gostaria o populismo político.

 

Ricardo de Oliveira, engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010, e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: democracia e eficiência – FGV/2012.

 

 

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Diplomacia da Saúde: Rumo à Cobertura Universal https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/12/diplomacia-da-saude-rumo-a-cobertura-universal/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2020/06/12/diplomacia-da-saude-rumo-a-cobertura-universal/#respond Fri, 12 Jun 2020 11:58:48 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/International_conference_on_Primary_Health_Care_-_Conferencia_Internacional_sobre_Atención_Primaria_de_Salud_-_Almaty_-1978.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=200 Marcelo Costa

Marise Nogueira

 

Nas últimas décadas, as implicações políticas, sociais e econômicas de temas sanitários têm exigido a participação cada vez maior de diplomatas em negociações sobre saúde internacional e de especialistas em saúde pública no universo diplomático, como tem ficado mais evidente no atual contexto de resposta global à pandemia de Covid-19.  A interação entre essas duas áreas de conhecimento propiciou a criação de um novo campo de atuação profissional e acadêmica -a diplomacia da saúde. Desde a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários à Saúde de Alma-Ata, em 1978, que consagrou o lema “Saúde para Todos”, uma das principais frentes da diplomacia da saúde é a Cobertura Universal de Saúde.

Atualmente metade da população mundial não dispõe de cobertura completa de serviços essenciais de saúde. Além disso, a cada ano, cerca de 100 milhões de pessoas no mundo são levadas à situação de extrema pobreza em função de gastos com saúde.  Tendo em conta essa desafiadora realidade, uma das metas estabelecidas na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU visa a “atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos”.

Com a adoção, em 2015, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em particular do ODS 3 (assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades), a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), principal foro político multilateral, reafirmou o elevado interesse da comunidade internacional pelos  temas de saúde. Vale recordar, nesse sentido, o papel do Brasil como um dos sete membros fundadores do grupo “Política Externa e Saúde Global” -iniciativa propulsora da agenda de saúde no âmbito da ONU, o que confere ao país reconhecida legitimidade nos debates da área.

Desde então, a AGNU, em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) – face mais visível da complexa rede de instituições e organismos que integram o campo da diplomacia da saúde –, vem intensificando sua atuação na área da saúde. Nesse sentido, foram realizadas, nos últimos anos, cinco reuniões de alto nível político (com a participação de chefes de estado e governo), que resultaram em compromissos comuns,  objeto de longa negociação entre os países, sobre assuntos como HIV/Aids; doenças não transmissíveis; resistência antimicrobiana; tuberculose; e, mais recentemente, em setembro de 2019, cobertura universal de saúde.

Na ocasião, os 193 estados-membros da ONU aprovaram a Declaração Política intitulada “Caminhando Juntos Para Construir um Mundo Mais Saudável”, considerada pelo secretário-geral da organização, António Guterres, o acordo mais abrangente já alcançado sobre saúde global.  Trata-se, de fato, do mais significativo chamado à ação feito por líderes mundiais sobre a necessidade de fortalecer as capacidades dos sistemas nacionais de saúde, o que, por sua vez, viria a constituir fundamental contribuição ao objetivo de se cumprir o lema da Agenda 2030 “de não deixar ninguém para trás”.

A Declaração estimula a cooperação entre governos, sociedade civil, academia e setor privado, tanto no plano nacional quanto global, com o objetivo de acelerar a implementação da cobertura universal de saúde nos próximos anos com foco em temas fundamentais para o avanço dessa agenda, como, entre outros, a democratização do acesso a medicamentos e vacinas; a expansão da atenção primária; a capacitação dos trabalhadores da área; o incremento do financiamento de políticas de saúde pública; e o reforço de ações de prevenção e controle de pandemias.

A atual pandemia de Covid-19 veio recordar que as doenças não respeitam fronteiras, podendo, como temos observado, acarretar graves danos para a saúde pública, o bem-estar da população e a economia de países dos mais variados níveis de renda e desenvolvimento. Nesse contexto, tornam-se ainda mais importantes ações que, por um lado, fortaleçam os sistemas nacionais de saúde – o SUS no caso brasileiro, e, por outro, que valorizem mecanismos diplomáticos regionais e multilaterais, a fim de intensificar a cooperação internacional com vistas à busca de soluções comuns. Em ambos os casos, a diplomacia da saúde tem papel decisivo a desempenhar.

Marcelo Costa, formado em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba, é diplomata de carreira. Foi assessor para temas de saúde global da 73a Presidente da Assembleia Geral da ONU. 

Marise Nogueira, formada em Medicina pela Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mestre em Radiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é diplomata de carreira.

(Este artigo foi escrito a título pessoal, não refletindo posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores)

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