Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 SUS: hora de avançar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/#respond Wed, 03 Nov 2021 10:00:37 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/sus-agencia-brasil-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=564 Ricardo Oliveira

 

O adiamento de cerca de 1,6 bilhão de procedimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), segundo estimativas do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), em consequência da pandemia de Covid-19 acrescenta-se às dificuldades de acesso já existentes. Espera-se, portanto,  um cenário de maiores restrições para o atendimento das necessidades de saúde da população brasileira nos próximos anos. 

Por outro lado, a atual crise sanitária criou condições para avançar na qualidade e na eficiência do atendimento aos usuários do SUS, em função, pelo menos, das quatro questões a seguir:

1- A superação da pandemia passou a ser chave para o enfrentamento das crises social e econômica e para a retomada do crescimento econômico e dos empregos, elevando a prioridade das políticas públicas de saúde junto aos governantes.

2- A necessidade, o interesse e a valorização do SUS pela população levaram a mídia, os governantes e os líderes políticos a se mobilizar com mais ênfase no debate sobre as políticas de saúde. Isso pode ser constatado pela criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado e pelo  volume de horas dedicadas à cobertura da pandemia pela imprensa.

3- A crise sanitária teve o efeito de conscientizar a população em relação à importância do autocuidado. Higienizar as mãos com álcool gel ou sabão, usar máscaras e manter distanciamento social se incorporaram como hábitos no dia a dia, mostrando a necessidade de cada um cuidar da sua saúde e da coletividade. O autocuidado é um comportamento fundamental para ajudar o SUS a superar o desafio do atendimento aos seus usuários, porque reduz a demanda ao sistema.

4- A existência de um conjunto de propostas com ampla aceitação acerca da reorganização do modelo de atenção, gestão e financiamento do SUS, a saber: a) superar a fragmentação entre os níveis de atendimento, integrando a atenção primária, especializada e hospitalar; b) implantar um modelo de atenção adequado para tratar as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs); c) organizar as Redes de Atenção (RAS) a partir das regiões de saúde; d) considerar a Atenção Primária à Saúde (APS) como coordenadora da RAS; e) aumentar a informatização da gestão e da prestação dos serviços; f) fortalecer a gestão tripartite; g) aprimorar o controle social; h) prover financiamento adequado; i) fomentar o autocuidado; j) implantar a gestão por resultados, tendo em vista o aumento da qualidade e da eficiência na prestação de serviços.

Essas propostas são bastante complexas e demandam tempo para efetiva consolidação. Por isso, concomitante  a elas, medidas emergenciais  devem ser pensadas para suprir a demanda por serviços de saúde no curto prazo, como consultas, exames, internações e cirurgias.

A pandemia mostrou a necessidade de aumentar o investimento científico, tecnológico e industrial no setor da saúde para desenvolver conhecimento e capacidade de produção de bens e serviços no Brasil. A dependência externa da produção de insumos básicos e fármacos se provou ineficaz para atender as necessidades do SUS.

Para aproveitar a conjuntura favorável ao SUS, é necessário que a comunidade da saúde pública se mobilize, tendo em vista a busca por um consenso político em relação às propostas que melhorem a prestação de serviços, garantam sua implantação ao longo do tempo e contribuam com o debate junto ao Congresso Nacional.

Essa mobilização deve ser compreendida como uma obra coletiva, uma vez que depende da liderança e do comprometimento do Ministério da Saúde (MS), assim como de governadores e prefeitos, gestores e servidores do setor, órgãos públicos que fiscalizam e controlam a gestão e o exercício das profissões da área e, por fim, da fundamental participação da sociedade. 

Apenas o setor público não vai conseguir atender as demandas dos serviços agora e no futuro. Portanto, faz-se necessário reunir todos os parceiros que possam colaborar na superação desse desafio.

O MS, em função do seu papel de coordenador nacional das políticas de saúde, deveria tomar a iniciativa de convidar os representantes do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONSAD), do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e do Conselho Nacional de Saúde (CNS) para o debate sobre como superar o enorme desafio na prestação de serviços do SUS. Não há tempo a perder!

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo entre 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde, FGV 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Possíveis caminhos para solucionar os gargalos de implementação das Linhas de Cuidado de DCNTs na APS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/#respond Wed, 22 Sep 2021 10:00:04 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/eccbfb94-6a3c-4a17-a605-ca23957ed714-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Fernanda Leal e Helyn Thami

 

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) respondem por 3 de cada 4 mortes de brasileiros e brasileiras, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O envelhecimento da população e o aumento da prevalência de fatores de risco comportamentais — como inatividade física e alimentação inadequada —, tende a elevar, nos próximos anos, a incidência de DCNTs na população brasileira, pressionando a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma pesquisa desenvolvida pelo IEPS em parceria com a Umane (Panorama IEPS n. 2) mostrou que as Linhas de Cuidado (LC) para DCNTs — conjunto de fluxos assistenciais que manejam as múltiplas necessidades dos portadores dessas doenças — não estão plenamente implementadas nos municípios brasileiros. As Linhas de Cuidado devem atender às diversas demandas dos usuários, em diferentes níveis de complexidade, garantindo a promoção e a restauração da saúde.

Para os principais desafios encontrados são apontados os possíveis caminhos para…

1. Reduzir barreiras de acesso

A baixa cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) em alguns locais faz com que uma parte importante da população brasileira não tenha acesso a serviços essenciais. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, 40% dos domicílios não estão cadastrados na APS. É preciso eliminar barreiras de acesso aos serviços já existentes. Para ampliar a cobertura da Atenção Primária, alguns passos são cruciais: 

  • Mapear a mancha de cobertura de equipes da APS e identificar vazios sanitários; 
  • Identificar e hierarquizar vulnerabilidades, dando ênfase às áreas mais críticas; 
  • Planejar a expansão da APS, estimando necessidade de pessoal e equipamentos; 
  • Implantar uma estrutura física; 
  • Recrutar e selecionar os profissionais para integrar as novas equipes.

Para operacionalizar isso, pode-se, por exemplo:

  • Buscar financiamento para extensão de horários de atendimento (por exemplo, pelo programa Saúde na Hora, do governo Federal) e diversificar modelos de assistência (atendimento em horários estendidos e intervenções em vias públicas e demais pontos de circulação e socialização); 
  • Apostar no treinamento de profissionais, envolvendo também usuários, para redução de barreiras de acesso ligados a comportamentos dos membros das equipes.

2. Garantir profissionais com treinamento apropriado e em número adequado

O cuidado de qualidade às pessoas portadoras de DCNTs passa pela atuação de profissionais de diferentes áreas, mas na realidade dos municípios há ausência de treinamento apropriado e efetivo para atender às demandas dos usuários crônicos. Para resolver isso, é possível:

  • Atuar, junto a instituições de ensino e pesquisa, na criação de programas específicos para provisão de novos profissionais para esse nível de atenção;
  • Elaborar um plano de valorização e carreira para os profissionais atuantes na APS, visando a fixação de equipes.

Quanto aos modelos de treinamento e difusão do conhecimento, poderíamos:

  • Garantir que se apliquem protocolos baseados na melhor evidência disponível; 
  • Ter materiais simples e de consulta rápida para que os profissionais usem; 
  • Apostar em metodologias mais ativas para apoio de construção e implementação de protocolos.

3. Integrar melhor os níveis de cuidado

Integrar serviços de saúde está entre um dos maiores desafios do SUS.  No cuidado às pessoas com doenças crônicas, essa integração é absolutamente crucial para que haja bom uso de recursos e se consigam melhores resultados de saúde. Para promover essa interlocução, indicamos:

  • Garantir o compartilhamento de informações clínicas entre serviços em toda a rede; 
  • Realização de planejamento conjunto entre serviços envolvidos nas Linhas de Cuidado; 
  • Compartilhar recursos e metas entre serviços; 
  • Investir em posições de liderança para a integração.

4. Ampliar e melhorar o acompanhamento dos usuários

Uma vez que não se tem Linhas de Cuidado plenamente estruturadas, o acompanhamento de quem tem doenças crônicas fica comprometido. Acompanhar adequadamente esses usuários significa ter um calendário de ações de cuidado que contemple desde a promoção da saúde e a prevenção até a recuperação da saúde e limitação de danos. Para que isso seja efetivado, vale a pena:

  • Levantar lista de usuários diagnosticados com DCNTs nos territórios; 
  • Verificar a rotina de consultas e exames destes, além de apontar aqueles que ainda não estão dentro do padrão de cuidado preconizado; 
  • Entrar em contato com usuários para agendar consultas e atividades de acompanhamento; 
  • Realizar busca ativa daqueles que forem difíceis de contactar ou que tenham faltas às atividades.

5. Ampliar os cadastros de usuários

O cadastramento é uma função primordial da APS. A não realização dos cadastros dos usuários do território implica que estes não são rotineiramente acompanhados pelas equipes e, quando o são, são atendidos em condições de demandas mais urgentes, quando, em geral, houve um quadro de agudização que poderia ter sido evitado. Para cadastrar adequadamente os usuários orienta-se seguir dois caminhos, que devem ser implementados de modo simultâneo: cadastrar por meio de visitas dos Agentes Comunitários de Saúde às residências; e ações de mobilização que ajudem as populações mais facilmente ignoradas a obter o acesso aos serviços. 

No primeiro caso, é necessário:

  • Elaborar, junto aos ACS, um cronograma para realização de cadastros e recadastros no território, através de visitas; 
  • Monitorar a execução desse calendário; 
  • Identificar barreiras para realização de cadastros e formulação de planos de ação para mitigá-los. 

No segundo caso, é recomendado: 

  • Planejar ações para mobilizar/buscar ativamente grupos populacionais invisibilizados nos serviços; 
  • Criar estratégias de busca ativa com apoio de lideranças comunitárias; 
  • Acompanhar o aumento de cadastros e cuidado ofertado aos novos usuários.

6. Acelerar a informatização da Atenção Primária à Saúde

Informatizar é uma forma de qualificar a gestão da saúde. A informatização permite compilar e analisar informações, o que pode não só agilizar, mas melhorar a tomada de decisão. No Brasil, persistem alguns gargalos de implementação relacionados aos equipamentos e infraestrutura de conectividade. Contudo, municípios podem tentar financiamento federal por meio do Programa Informatiza APS. Ajudariam muito os seguintes  passos: 

  • Estudar o mapa de infraestrutura e hierarquizar as unidades que podem ou não imediatamente receber recursos de informatização; 
  • Inscrever-se nos programas de financiamento disponíveis; 
  • Planejar as compras de equipamentos; 
  • Estabelecer programas de treinamento para as equipes, de modo a garantir o preenchimento correto das ferramentas de gestão informatizadas e o uso das informações para tomada de decisão no nível local.

7. Aumentar a adesão ao tratamento

As doenças crônicas pressupõem tratamentos e acompanhamento de longo prazo. Por vezes, o tratamento exige mudança profunda de comportamento e impõe graus variados de efeitos colaterais. A falha de adesão ao tratamento configura, portanto, um grave problema a endereçar. Apontamos como caminhos: 

  • Diversificar estratégias de desenvolvimento de vínculo e garantia de acesso. Por exemplo, por meio de atividades coletivas e atuação em espaços de socialização dos usuários; 
  • Organização do trabalho da equipe com ênfase no protagonismo da enfermagem, que é capaz de melhorar adesão; 
  • Desenvolver habilidades de ciência comportamental nas equipes, qualificando a abordagem às mudanças de comportamento necessárias para o melhor controle das doenças. 

Esses pontos estão sumarizados no Olhar IEPS, policy brief que condensa estudos científicos e endereça recomendações para gestores de saúde. O conteúdo desse material também foi discutido no Diálogos IEPS, série de webinários temáticos do IEPS, em uma mesa composta por Michael Duncan (Médico de Família e Comunidade e assessor técnico da Superintendência de APS do município do Rio de Janeiro), Patrícia Jaime (Pesquisadora do Departamento de Nutrição da USP e vice coordenadora do NUPENS), Evelyn Santos (Coordenadora de Projetos da Umane), Arthur Aguillar (Coordenador de Políticas Públicas do IEPS) e Ricardo Gandour (jornalista e mediador).

 

Fernanda Leal, Analista de Políticas Públicas do IEPS.

Helyn Thami, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

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Saúde mental e violências: aprofundando a compreensão sobre algumas das origens e atravessamentos dos sofrimentos psíquicos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/#respond Fri, 27 Aug 2021 10:00:00 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/psychological-abuse-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=508 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O combate à violência contra as mulheres teve uma conquista importante com a sanção, no final de julho deste ano, da Lei de Criminalização da Violência Psicológica (14.188/2021). A nova legislação facilita o registro de boletim de ocorrência por violência psicológica e também a obtenção de medidas protetivas de urgência. A lei contempla mais aspectos da violência psicológica, já previstos na Lei Maria da Penha, mas que não categorizava um tipo penal para condutas como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância e isolamento. Assim, na imensa maioria dos casos, essas práticas só passaram a configurar crimes com a nova lei.

O números de adoecimentos mentais e de violência contra as mulheres aumentou durante a pandemia. Por isso, aprofundar o debate sobre violência psicológica torna-se importante para ampliar as práticas de cuidado da saúde mental das mulheres. Já no caso dos jovens, as múltiplas violências, como violência sexual e doméstica e bullying, são identificadas como as principais determinantes sociais para a sua saúde mental. 

Observar as interseccionalidades e as agendas compartilhadas é fundamental para compreender com mais profundidade como as dimensões do sofrimento psíquico se relacionam com questões estruturais. O adoecimento mental de mulheres em decorrência de violência obstétrica, por exemplo, não deveria ser visto como um problema de saúde pública? Não deveríamos falar do impacto na saúde mental e do sofrimento de mães de jovens negros que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, como uma consequência de problemas na segurança pública? A violência psicológica contra as mulheres, por exemplo, é uma das formas da violência de gênero e deve ser prevenida e tratada a partir do cruzamento com outras esferas desse problema. 

Existem outras formas de violência além da psicológica: institucional, sexual, física, patrimonial e moral. Há uma infinidade de manifestações de cada uma dessas categorias. Além disso, podemos pensar sobre as violências cotidianas, comum a todas as pessoas, como por exemplo a constante minimização de nossos sofrimentos para continuar a fazer o que é preciso (trabalhar, estudar, cuidar da família) ou ainda as violências institucionais. 

A falta de acesso a tratamentos adequados de saúde mental no sistema público, a exposição à violência urbana generalizada e as condições precárias de transporte, educação e cultura a que a maior parte da população é submetida, podem ser vistas como violências institucionais que impactam a nossa saúde mental. Nesse contexto, as minorias sociais são particularmente afetadas: mulheres, crianças e adolescentes negligenciados, pessoas negras e LGBTQIA+ são alguns exemplos de grupos que se tornam mais suscetíveis ao adoecimento mental quando pensamos nesse tipo de violência. 

 

Exercitando olhares segmentados: violências contra adolescentes e mulheres  

Consciente de que é preciso estabelecer prioridades para uma atuação estratégica, o Instituto Cactus fez a aposta institucional de olhar, especialmente, para adolescentes e mulheres, públicos prioritários para pavimentar o caminho de transformação do cenário da saúde mental no Brasil. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, entre 2011 e 2018, enquanto para os adolescentes (de 15 a 19 anos) a violência física representou 59% dos atendimentos registrados, no caso dos pré-adolescentes (de 10 a 14 anos) o percentual foi de 36% do total. Quando se analisam os dados de violência autoprovocada no Brasil, conseguimos ver uma outra ponta desse desafio: são mais de trezentas mil notificações, das quais 45% dos episódios foram realizados por jovens entre 15 e 29 anos –entre os quais 67% são mulheres. Indo ao extremo do problema, dados mostram que o suicídio é  a segunda causa mais frequente de mortes de jovens de 15 a 29 anos no mundo todo –e 7 a cada 10 casos acontecem em países de baixa e média renda. 

No caso de meninas adolescentes, é necessário considerar que a violência de gênero começa, muitas vezes, ainda na infância, atravessa a transição para a juventude e se estende por toda a vida. Mulheres que foram expostas a violências na infância apresentam maior risco para revitimização na vida adulta, para episódios depressivos, de ansiedade, de estresse ou relações prejudiciais com a alimentação, a bebida alcoólica ou outras drogas. Dados de 2003 e 2010 mostram que 62% das vítimas de violência sexual e 82% das ocorrências de exploração sexual eram do sexo feminino. 

Nesse ponto do debate, nos deparamos com um desafio importante para os cuidados da saúde das mulheres: a falta de compreensão e a fragmentação nos serviços de saúde. Os profissionais admitem que nos atendimentos, no geral, as mulheres se calam sobre a violência de gênero, ao mesmo tempo em que intensificam a procura por serviços de saúde, sendo estereotipadas como “poliqueixosas”. Esse arquétipo, além de prejudicar as estratégias de tratamento, pode ser também uma forma de violência institucional e representa uma violência psicológica contra mulheres, que muitas vezes enfrentam o estigma no próprio processo de tratamento. 

A Lei de Criminalização da Violência Psicológica é um grande passo para coibir a violência contra as mulheres, mas é necessário ir além e atacar todas as formas de violência para avançar promoção e prevenção em saúde mental. Refinar a análise sobre a violência psicológica e institucional requer a produção de estudos sobre os efeitos e abordagens para trabalhar as  violência de instituições, como, por exemplo, asilos, abrigos, instituições de tratamento para usuários de drogas e também no sistema penitenciário. 

As diversas formas de violências são um fenômeno social que não pode ser reduzido aos estados psíquicos relacionados ao sofrimento mental, por isso a convergência com os debates sobre saúde mental tem muito a contribuir. Sejam impactos relacionados a situações de violência psicológica, física, sexual ou institucional, as soluções propostas devem abordar de forma assertiva o sofrimento psíquico decorrente dessas violências. É preciso, ainda, considerar as especificidades dos diversos adoecimentos e criar abordagens adequadas para diferentes públicos, pois as consequências de cada tipo de violência podem ser muito particulares e não se pode deixar de lado os olhares segmentados para esse debate.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Quem está na porta de entrada dos serviços de saúde mental? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/#respond Wed, 18 Aug 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/GettyImages-1266600929-web-conferência-SUS-800-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Helyn Thami e Maria Fernanda Quartiero

 

Precisamos focar no treinamento, provisão e capacitação de trabalhadores da atenção primária e de outros níveis de atenção para oferecer cuidados na perspectiva da saúde integral

 

Imagine a seguinte situação: uma pessoa vai a um serviço público de saúde se queixando de dor no peito e é encaminhada ao cardiologista sem que sequer tenha sido questionada sobre seu estado de saúde mental. Não é difícil de imaginar, certo? 

Um dos desafios no campo da saúde mental no Brasil é integrar os cuidados em saúde psíquica à perspectiva da saúde integral. Sabemos que muitas manifestações físicas, como na situação imaginada, podem estar relacionadas à ansiedade, depressão e outros sintomas de sofrimento mental. Pode ser, por exemplo, diante da atual crise, fruto de angústia relacionada a processos de luto ou ao desemprego. Acolher e encaminhar usuários sem levar em conta a sua saúde mental, apesar de ser prática rotineira, é prejudicial à perspectiva de cuidados integrais, como preconizado no sistema de saúde brasileiro. 

A hipótese descrita acima é apenas um dos exemplos possíveis de práticas de cuidado que invisibilizam e negligenciam a saúde mental como parte indissociável da saúde como um todo. Somos um só: ou, como se diz popularmente, “corpo e mente estão sempre conectados”. Por isso, os serviços de atendimento devem incluir os aspectos físicos e mentais na avaliação e no tratamento, e desenvolver soluções adequadas para cada indivíduo. 

Para tal, há que se reformular os currículos de formação de todas as categorias profissionais da saúde para incluir abordagens humanizadas e que levem em conta questões estruturais que ajudam a produzir o adoecimento –emprego, renda, acesso a serviços básicos e outros. Essas abordagens precisam dialogar, fazer parte de uma estratégia geral de cuidado que o potencialize –nas ações preventivas e curativas. É importante que diagnósticos e soluções sejam elaborados a partir da análise interdisciplinar dos profissionais envolvidos, desde a assistência social até as especialidades biomédicas. Para isso, o processo de escuta qualificada também é imprescindível: os profissionais de saúde precisam ouvir para entender a trajetória dos usuários e absorver as especificidades de cada um. 

Outra reflexão importante é o quanto a rede de saúde e a formação profissional ainda privilegiam o atendimento a pessoas com condições psicossociais agravadas, negligenciando a promoção da saúde, a prevenção e o acolhimento das primeiras manifestações de sofrimento, que muitas vezes poderiam ser tratadas sem o uso de medicação e sem necessidade de cuidados especializados, por exemplo.

Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) entre 2012 e 2013, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. Mas quando falamos de saúde mental não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, especialidades comumente associadas à ela: precisamos exercitar um olhar mais ampliado para entender quem é o “Recurso Humano” da saúde mental. 

Por exemplo, uma revisão de literatura mostra que um grande desafio que se descortina para a consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil é a integração entre a atenção primária e a rede de atenção psicossocial. Isso significa que os recursos humanos para uma adequada provisão de cuidado em saúde mental não estão confinados a poucas categorias profissionais, mas dizem, sim, respeito a toda uma gama de pessoas que compõem o sistema de saúde. 

A melhor prática para consolidar essa integração é por meio do matriciamento: os profissionais especializados devem estabelecer espaços de troca e trabalho compartilhado com as equipes da atenção primária, aumentando a resolutividade desta e garantindo o ganho de capacidades desse nível de atenção a médio e longo prazos. Essa prática, inovadora e desafiadora, pode ser considerada contra hegemônica e ainda incipiente nos programas de formação de profissionais de saúde.

Se é preciso entender as transversalidades do tema para criar soluções adequadas para os usuários, é necessário levar isso em conta também nos processos de formação de profissionais de outras áreas da saúde e, inclusive, de outros setores, como educação, cultura, segurança pública e sistema de justiça. Afinal, a saúde mental permeia toda a nossa vida. Família e comunidade também são peça chave para trabalhar essa perspectiva de escuta ampliada, engajar atores fundamentais no processo terapêutico e capilarizar ainda mais o cuidado com a saúde mental. Um bom exemplo de como oferecer atenção em saúde mental na comunidade é o Banco da Amizade no Zimbabwe.

Não podemos esquecer a supervisão e o acompanhamento desses profissionais. As práticas e cuidados em saúde mental não são estáticas, elas se renovam e se aperfeiçoam junto com  necessidades do público atendido. Por isso a capacitação em saúde mental não se esgota em nível de formação ou cursos pontuais. Ela precisa ser contínua e promover a perspectiva de empoderamento de cada pessoa – inclusive dentro do próprio mundo do trabalho. 

O cuidado não-multiprofissional na saúde mental –que não considera a interface entre as áreas de cuidado– impede o uso eficiente dos recursos públicos disponíveis no sistema de saúde. Por isso, o investimento em mais capacitação em saúde mental para uma gama mais vasta de profissionais pode ser uma solução custo-efetiva para avançar nesse campo, considerando a estrutura que o Brasil já tem. Por meio delas seria possível um olhar mais atento a sinais precoces e fatores de risco para o sofrimento mental.

Nesse ponto, um desafio adicional é a desigualdade de investimento e de provisão de profissionais entre as áreas da saúde, especialmente considerando as categorias mais especializadas. Dados do estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil mostram que o nível da assistência prestada regionalmente não tem como ser a mesma em um contexto em que o número de psicólogos por habitante do Pará (estado com menor oferta) é 4 vezes menor do que o mesmo parâmetro no Distrito Federal (estado com maior oferta) –isso considerando serviços do SUS e da saúde suplementar. Se a proporção de psicólogos fosse balanceada em todo o território nacional, o processo assistencial e matricial poderia ser mais efetivo. 

Além disso, há uma concentração muito grande nas capitais quando comparadas a outros municípios no país: 3 a cada 10 psicólogos estão nas capitais; já entre os psiquiatras essa proporção é de 4 a cada 10. A referência para psiquiatria no Brasil é de 5,8 psiquiatras a cada 100 mil habitantes e essa distribuição é bastante desigual no território, conforme se vê no quadro abaixo:

 Região

Psiquiatras

Psicólogos

Norte 1,09 18,44
Nordeste 2,59 25,02
Sudeste 5,81 41,61
Sul 6,13 48,88
Centro-Oeste 3,97 40,26

Assim, percebemos que existem desafios importantes a serem superados para efetivar uma atenção em saúde mental que seja concreta  e integrada. Primeiro, é preciso entender a saúde mental como parte da saúde geral, sem fragmentação. Segundo, é preciso entender que, para que coloquemos em prática as melhores ações de cuidado, a formação profissional precisa mudar. Terceiro, temos que potencializar os recursos já disponíveis e fortalecer o aprendizado contínuo, mesmo (e talvez principalmente) dentro dos próprios serviços. Não menos importante, é preciso combater as desigualdades de provisão de profissionais no território nacional.

Tudo isso se conecta para organizar o processo de cuidado de acordo com cada necessidade e aproveitar os recursos humanos do sistema para ampliar o acesso a um cuidado em saúde adequado, incluindo a saúde mental, sempre respeitando a lógica da integralidade, que é um princípio fundante do Sistema Único de Saúde (SUS). 

No caso da pessoa da nossa situação hipotética com dores no peito, tem-se uma demanda para psiquiatra, psicólogo, médico da família ou ambos? Como outras áreas, caso da assistência social ou da comunidade escolar, no caso de crianças e adolescentes, poderiam ajudar nesse processo? A distribuição e o compartilhamento dessa responsabilidade de forma estratégica  é fundamental para o sucesso dos cuidados em saúde mental. Considerando as desigualdades e a defasagem de recursos humanos e financeiros no SUS, a qualificação contínua, mudança de paradigma de formação e a consolidação do matriciamento podem ser um bom caminho para melhorar o sistema.

 

Helyn Thami é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

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Por que as linhas de cuidado de doenças crônicas não transmissíveis no Brasil ainda pertencem ao mundo da ficção? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/#respond Fri, 13 Aug 2021 10:00:34 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/111111111-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=478 Fernanda Leal

 

As Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs) matam 41 milhões de pessoas a cada ano, o equivalente a 71% de todas as mortes no mundo. É o que afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS). Desse total, 15 milhões morrem por alguma DCNT entre 30 e 69 anos, e mais de 85% dessas mortes “prematuras” ocorrem em países de baixa e média renda, como o Brasil.

Nos últimos anos, o Brasil passou por importantes transformações no seu padrão de mortalidade e morbidade, em função dos processos de transição epidemiológica, demográfica e nutricional da população. Assim como em nível mundial, aqui as DCNTs são altamente relevantes, tendo sido responsáveis, em 2016, por 74% do total de mortes, com destaque para doenças cardiovasculares (28%), neoplasias (18%), doenças respiratórias (6%) e diabetes (5%), de acordo com dados da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel). 

O que se sabe é que um pequeno conjunto de fatores de risco responde pela maior parte das mortes por DCNTs e por fração substancial da carga de doenças relacionadas a essas enfermidades. Entre esses fatores destacam-se o tabagismo, o consumo alimentar inadequado, a inatividade física e o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Pensando nisso, o Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS) e a Umane desenvolveram um extenso relatório, denominado Panorama IEPS, que busca entender os motivos que tornam as DCNTs gargalos sistêmicos dos nossos sistema de saúde e como enfrentar esse desafio por meio da implementação de linhas de cuidado de DCNTs nos municípios.

O documento identificou importante deficiência na implementação dessas linhas de cuidado e que isso  se deve a 7 causas principais:

  1. Gargalos de acesso impedem que usuárias e usuários realizem rastreio e tratamento de DCNTs. Rastrear adequadamente as DCNTs e tratá-las em tempo oportuno depende de acesso a uma Atenção Primária à Saúde (APS) capilarizada e efetiva. Nesse sentido, é preciso aumentar a cobertura e resolver barreiras de acesso em serviços já existentes. 
  2. Faltam profissionais e treinamento para a atuação em equipes multiprofissionais no Sistema Único de Saúde (SUS). Além da falta de profissionais qualificados para lidar com a APS, os modelos de treinamento têm muito espaço para melhora.
  3. As Linhas de Cuidado são operadas em total ou parcial segregação entre níveis de cuidado. Isso significa que a fragmentação compromete a integralidade. É preciso que serviços de saúde de diferentes complexidades atuem de forma coordenada e sinérgica para que cada usuária ou usuário do SUS tenha o tratamento de que necessita, em tempo oportuno.
  4. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está sendo acompanhada. O acompanhamento de usuários crônicos deixa a desejar. Os números do Previne Brasil mostram o baixo percentual de hipertensos e diabéticos com registro de pressão arterial e hemoglobina glicada, respectivamente, destacando que a longitudinalidade está longe de ser uma realidade.
  5. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está cadastrada. Pesquisas mostram que os brasileiros iniciam o cuidado a partir de um diagnóstico, sem prevenção. Para que o cuidado se inicie em momento oportuno, o cadastro dos usuários do território da unidade precisa ser realizado. Para isso, há diversos desafios, como equipes incompletas e desmotivadas, agentes comunitários de saúde como peças facultativas das equipes e territórios descobertos, caracterizando desertos sanitários.
  6. Lentidão do processo de informatização da Atenção Primária no Brasil. Falta de infraestrutura, de financiamento amplo, de profissionais de tecnologia com interseção em saúde e sensibilidade das gestões sobre os benefícios do uso de dados são os principais desafios contidos nessa causa.
  7. Por fim, a variável que impede a implantação adequada das Linhas de Cuidado de DCNTs é a baixa adesão ao tratamento por parte dos portadores de doenças crônicas. Profissionais têm dificuldades de sensibilizar os usuários para a importância do autocuidado e adesão às orientações, incluindo tomar medicações, seguir recomendações alimentares e/ou mudar comportamentos.

Esses pontos foram levados em uma democrática mesa de discussões no webinarDiálogos IEPS”, realizado no último dia 28 de julho e que uniu a visão de pesquisadores e de gestores que vivem na pele os desafios diários de tratar usuários crônicos. Apesar das diferentes vivências, a conclusão sobre o tema foi a mesma: as Linhas de Cuidado de doenças crônicas não transmissíveis ainda pertencem ao mundo da ficção. 

Isso significa que temos as Linhas de Cuidado de jure, expressas em normativas do Ministério da Saúde, nos planos de enfrentamento de DCNTs e nos Cadernos de Atenção Básica, pouco atentas aos desafios de implementação dos municípios, além de assumir hipóteses irrealistas como a ideia de que as cidades conhecem todos os seus portadores de DCNTs e que a informação está bem organizada localmente. No nível municipal, porém, é que são implementadas as Linhas de Cuidado de facto. Um conjunto de práticas e procedimentos, muitos dos quais tácitos e não normatizados, que uma rede de saúde utiliza para manejar as DCNTs e que são muito desconectadas do que é preconizado pelo Ministério da Saúde. As linhas de cuidado do mundo real são repletas de improvisos e até de  práticas inovadoras, porém com alguns gargalos recorrentes.

Assim, há um alerta: o Ministério da Saúde precisa ter planos mais condizentes com as diferentes realidades experimentadas no Brasil, adaptando normativas para as particularidades regionais e acompanhando mais de perto a implementação de redes estruturadas de cuidado para tratar o problema mais crítico e letal do nosso sistema de saúde.

O próximo evento “Diálogos IEPS”, dia 1º de setembro, retomará esse tema, mas dessa vez pensando em como endereçar todos os desafios identificados. As discussões se darão em torno de possíveis soluções para os problemas detectados e experiências exitosas que gestores de saúde e profissionais de saúde poderão implementar nos seus municípios.

 

Fernanda Leal, mestra em Ciência Política (UFPE) e assistente de políticas públicas do Instituto de Estudo Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Atuar na prevenção e tratamento em saúde mental de mulheres e adolescentes é prioridade https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/#respond Wed, 11 Aug 2021 10:00:39 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/istock-mulher-terapia_widelg-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=474 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) acaba de divulgar novas diretrizes sobre cuidados em saúde mental, priorizando a recuperação de comunidades e com orientações de combate às violações de direitos humanos. Promover saúde, na lógica dos direitos humanos, significa ir além da lógica estritamente sanitária, muitas vezes centrada na superação dos adoecimentos e não em sua prevenção, para assumir a lógica do bem-estar da saúde de forma integral.

Para o Instituto Cactus combater as violações de direitos humanos no campo da saúde mental requer compreender que não existe uma “receita de bolo” para trabalhar os sofrimentos psíquicos, tampouco existe um caminho que serve para todos ou uma solução que dê conta de toda a complexidade desse tema. Quando falamos em saúde mental, é preciso incorporar uma “lente de aumento” para viabilizar olhares segmentados e adequados para cada grupo, pois suas especificidades determinam como se deve atuar. 

Para criar esses olhares segmentados, pode-se adotar o uso de dados e indicadores na gestão pública, que funcionam como sinalizadores da realidade e podem orientar a tomada de decisões. Cruzar e interpretar essas informações ajuda a compreender as dinâmicas locais, características e necessidades de diferentes territórios e, em consequência, melhora a qualidade dos serviços oferecidos. Os grupos, por sua vez, têm que ser segmentados com base em perfis que incluem preferências, estilos de vida e condições sociais, o que se apoia em uma visão de indivíduo como ser biopsicossocial, integrando questões biológicas, psicológicas e sociais. Ao abordar o indivíduo como ser biopsicossocial e a sua associação com saúde mental como um estado de bem-estar, há que se atentar para não elevar para a saúde mental o nível de exigência que temos para a saúde biológica –já que conflito, inadequação e sofrimento fazem parte do cenário.

Na impossibilidade de atacar todos os problemas de uma única vez de forma efetiva e consistente, o Instituto Cactus elege as mulheres e os adolescentes como públicos prioritários para pavimentar o caminho no campo da saúde mental. O primeiro esforço nesse sentido foi a publicação do levantamento Caminhos em Saúde Mental, desenvolvido em parceria com o Instituto Veredas com o objetivo de oferecer um entendimento amplo e complexo a respeito do campo da saúde mental, considerando tanto os consensos produzidos pelos organismos internacionais quanto a própria experiência brasileira, e ouvindo especialistas das mais diversas áreas: sociologia, gestão pública, medicina e atores do campo.

A escolha desses públicos ilustra como um olhar cuidadoso, empático e direcionado pode ser feito quando se trata de olhar para públicos específicos em saúde mental.  Entendemos que esses públicos trazem questões relevantes que merecem ser priorizadas na compreensão e abordagem da saúde mental, como detalhado a seguir.

 

Adolescentes 

A adolescência é um período marcado por transformações psicossociais em que  acontece a construção da identidade e existem inúmeras mudanças na anatomia, fisiologia, no ambiente social, na relação com a sexualidade etc. Apesar disso, é um momento invisível e negligenciado, o que gera estigmas e impactos negativos na qualidade de vida dos adolescentes, e que serão carregados até a fase adulta. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, 50% das condições de saúde mental começam até os 14 anos de idade e afetam 3 a cada 4 pessoas até os 24 anos. Ainda, segundo a OMS, suicídio é segunda causa de morte entre jovens de 15 a 24 anos. Esse é o público que, no futuro, serão os líderes da sociedade, cidadãos e agentes de transformação do mundo. Mas como construir o futuro sem cuidar no presente da saúde mental de quem será responsável por ele? 

Aproximadamente 80% dos casos não são diagnosticados ou tratados adequadamente e, por isso, muitos dos quadros que poderiam ser prevenidos ou recebido intervenções precocemente se agravam e afetam não só o indivíduo, mas todo o seu entorno. Nesse sentido, a prevenção em saúde mental é extremamente necessária. Não podemos continuar sendo um país que apaga incêndios e não ataca a raiz dos problemas com ações sistemáticas para resolvê-los a longo prazo. Os estigmas e as consequências de transtornos não tratados impactam a qualidade de vida desses adolescentes por toda a vida, sua habilidade de convívio em comunidade, sua produtividade e suas relações sociais e com o meio ambiente. 

O rótulo de “aborrescente”, que os define como inconsequentes e rebeldes sem causa, naturaliza os obstáculos dessa fase da vida e diminui o sofrimento decorrente de violências sexuais e domésticas, bullying etc.. Têm também repercussões drásticas na vida desses jovens, como o uso abusivo de substâncias, desenvolvimento de psicopatologias, reflexos negativos nas relações interpessoais e comportamentos de risco para aqueles que são tidos como o “futuro da nação”. 

 

Mulheres

A prevalência de condições de saúde mental é maior nas mulheres, quando comparadas aos homens, e isso vai muito além da perspectiva biológica. Segundo a OMS, o gênero implica diferentes suscetibilidades e exposições a riscos específicos para a saúde mental, por conta de diferentes processos biológicos e relações sociais. Nascer mulher perpassa papéis, comportamentos, atividades e oportunidades que determinam o que podemos experimentar ao longo da vida e, portanto, estabelece vivências estruturalmente diferentes daquelas experimentadas pelos homens. 

Uma em cada cinco mulheres apresenta transtornos mentais comuns e a taxa de depressão é, em média, o dobro da taxa de homens com o mesmo sofrimento, podendo ainda ser mais persistente nas mulheres. A sobrecarga física e mental de trabalho é apontada como um dos principais fatores que deixam as mulheres especialmente vulneráveis aos sofrimentos psicológicos: em mulheres com alta sobrecarga doméstica, por exemplo, o número de mulheres com transtornos mentais comuns vai de 1 a cada 5 mulheres para 1 a cada 2 mulheres. Esses dados impactam também os dados sobre tentativas de suicídio –mulheres são duas vezes mais propensas.

Nesse sentido, o acolhimento das mulheres com questões de saúde mental demanda um olhar ampliado para outras questões físicas, psicológicas e sociais relacionadas ao gênero. Os transtornos alimentares, por exemplo, são causas importantes de morbidade e mortalidade entre mulheres jovens e precisam ser considerados a partir de um debate sobre os padrões físicos impostos pela mídia e pela indústria da beleza. Além disso podemos vivenciar transtornos mentais associados à gestação, ao aborto, ao puerpério e à menopausa, inclusive como sequelas de violência médica e obstétrica. 

Que marcas a violência obstétrica, que tem como maiores vítimas as mulheres negras, deixa na vida de uma mulher que não é poupada da dor no momento de dar a luz e não recebe uma série de outros cuidados tão importantes nesse momento? Por isso precisamos olhar para esse público de forma segmentada e específica. Como um primeiro passo para avançar nesse desafio, além de consolidar dados e convocar mais olhares para o tema no “Caminhos em Saúde Mental”, o Instituto Cactus apoia um projeto de acolhimento psicológico de emergência para mulheres negras, pardas, indígenas e/ou periféricas da Casa de Marias, iniciativa focado em democratizar acesso a ferramentas de alívio emergencial de sofrimento mental para esse público. 

 

Porque priorizar a saúde mental de adolescentes e mulheres 

Adolescentes e mulheres são importantes vetores de mudança para a sociedade. Eles são os líderes dessa e das próximas gerações e elas, as principais responsáveis por práticas de cuidado, predominando em categorias como educadoras, enfermeiras, assistentes sociais etc., além de  referências em seus núcleos familiares. Ambos possuem uma grande importância e têm, no melhor dos casos, recebido uma atenção parcial no país. Por isso a decisão de focar as ações do Instituto Cactus, inicialmente, nesses públicos. 

Sabemos que esse recorte não é exclusivo ou exaustivo e que existem diversos outros grupos que merecem atenção e cuidado de forma emergencial, como a população negra, os povos indígenas e as populações que são submetidas a situações de emergência humanitária, mas nossa escolha pelos públicos de mulheres e adolescentes se baseia, em grande parte, no entendimento de que estes grupos não só mereciam mais atenção como multiplicadores de mudança, mas também como bastante negligenciados pelas políticas públicas e iniciativas atuais e, portanto, com uma grande oportunidade de atuação e impacto positivo.

O foco nesses públicos faz parte de um esforço vital para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Agenda 2030 da ONU. O ODS número 3 tem como meta boa saúde e bem-estar, o que requer a redução da carga de transtornos mentais e mortes por suicídio. O ODS 5 busca a igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres e meninas. Esses dois objetivos andam de mãos dadas, pois sabemos que meninas e mulheres sofrem desproporcionalmente as consequências negativas dos transtornos mentais comuns, que estão fortemente associados às experiências femininas de violência e oportunidades e compensação desiguais em termos de educação e oportunidades no mercado de trabalho. 

Construir olhares segmentados que deem conta da individualidade de cada um, com empatia, e que contribuam para a construção de práticas e intervenções mais efetivas é fundamental para um trabalho mais assertivo e sustentável para trabalhar a saúde mental.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Não é efeito pandemia: saúde mental já era um problema de saúde pública e a conta é de todos nós https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/#respond Wed, 14 Jul 2021 10:00:41 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terapia-de-casal-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O debate público sobre sofrimento psicológico pode ser recente, mas os dados alarmantes sobre o tema não são, e precisamos assumir a responsabilidade coletiva desse problema.

 

Não dá mais pra fugir do assunto: saúde mental entrou em pauta de forma irreversível e em caráter de urgência devido à crise desencadeada pela pandemia de Covid-19. As taxas de ansiedade, depressão, insônia, síndromes de esgotamento mental e outros sintomas de sofrimentos psíquicos aumentaram drasticamente e a saúde mental virou assunto cada vez mais comum em nossas conversas no trabalho, com a família e amigos, em instituições de ensino e na internet. 

É inegável que as medidas de isolamento social intensificaram o processo de adoecimento da população, mas é um equívoco tratar o colapso na saúde mental como um fenômeno recente.  Estamos arcando com as consequências de anos de desatenção nesse campo. O debate público sobre a saúde mental pode até ser atual, mas os dados alarmantes sobre sofrimentos psíquicos não são. Para enfrentar essa questão, agora emergencial, precisamos antes de tudo reconhecer que esse é um desafio antigo, que já afetava milhões de brasileiros havia muito tempo –e admiti-lo como um problema de saúde pública

Antes do novo coronavírus já vivíamos uma pandemia de violência e uma crise socioeconômica que afetava a saúde mental de todos os brasileiros. Ainda em 2019 o Brasil foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o país mais ansioso do mundo, com mais de 18 milhões de pessoas acometidas, o que representa mais do que toda a população da região norte. Também já éramos o quinto país mais depressivo, um salto de 34% em relação aos dados de 2013. Esses dados nos levam à compreensão de que saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é também resultado da complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida das pessoas. Por isso é fundamental trabalhar essa pauta em interface com outras agendas sociais, considerando as interseccionalidades do tema. 

Até hoje, as políticas públicas de promoção e prevenção em saúde mental foram tímidas e limitadas para enfrentar um problema dessa dimensão, e atravessado por questões estruturais e com muitas especificidades. O direito à alimentação saudável e adequada, à moradia, saneamento básico, trabalho, educação, transporte, lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais são fatores determinantes e condicionantes para a efetivação do direito à saúde. Por isso, não podemos optar por soluções isoladas, que não considerem as abordagens mais adequadas para cada pessoa.

 

Interseccionalidades e soluções individualizadas 

Como um problema de saúde pública, o cuidado com a saúde mental é uma tarefa coletiva, que precisa direcionar esforços do poder público, sociedade civil e ciência. Por esse motivo o debate não pode ficar restrito aos profissionais que atuam diretamente nos serviços de atendimento. É preciso fortalecer a perspectiva de saúde integral para que o sistema seja mais efetivo na oferta de tratamentos de saúde mental que sejam associados a outras especialidades da saúde integral e que considerem questões estruturais nos diagnósticos –analisar os adoecimentos físicos e mentais  em conjunto para, então, cuidar de forma integral. 

A dimensão do sofrimento é comum a todas as pessoas e não é mensurável em nível individual. Em uma sociedade extremamente desigual, os sofrimentos psíquicos podem até ser os mesmos (ansiedade, angústia, solidão), mas afetam cada indivíduo com base na introjeção da realidade material de cada um –por isso precisamos considerar questões estruturais. Nesse cenário, as minorias sociais são particularmente afetadas, como por exemplo as mulheres com alta sobrecarga doméstica —48% delas apresentam prevalência de transtornos mentais comuns. Em mulheres com baixa sobrecarga essa taxa cai para 22,5%, o que indica que aspectos referentes ao trabalho doméstico devem ser considerados e incorporados à avaliação da saúde mental das mulheres

Na prática, pessoas em situação de vulnerabilidade social são ainda mais suscetíveis ao adoecimento mental, pois têm muito mais restrições no acesso aos serviços de saúde — tanto os de prevenção como os de tratamento–, além da negação e da violação de outros direitos básicos. Nesse sentido, compreendemos que o sofrimento é uma condição da natureza humana. O sofrimento é “democrático”, mas o acesso aos cuidados desses sofrimentos não –é socialmente determinado.

Por isso precisamos atuar não só no tratamento dos sintomas, mas também criar soluções individualizadas de cuidado com base na reflexão sobre as questões estruturais que intensificam o processo de sofrimento a alguns grupos sociais. E fazer isto promovendo o acesso aos meios de elaboração do sofrimento psíquico, aos serviços de saúde integral e a outras condições necessárias para a saúde mental de todas as pessoas. Individualizar, porém, não significa personalizar atendimentos caso a caso, mas sim propor alternativas adaptadas que considerem as diferenças individuais. As soluções de saúde mental têm que ser consistentes e segmentadas em seus públicos. 

 

Então de quem é a responsabilidade pela saúde mental? 

São muitos os desafios no campo da saúde mental e só poderemos superá-los em rede e articulando diferentes setores. Especialmente em idades precoces, os sofrimentos psíquicos têm consequências que podem se estender ao longo do ciclo vital, comprometendo também a vida adulta ativa e saudável e gerando fragilidades tanto para o indivíduo quanto para famílias e comunidades. 

Crianças e adolescentes não se informam sobre saúde mental, mas leem os cuidadores e espelham seu comportamento em outros espaços sociais, então quanto mais ansiosa nossa sociedade estiver, mais as futuras gerações estarão. Como será o desenvolvimento e o futuro de uma criança ou adolescente para os quais não abordamos preventivamente a saúde mental? Como iremos lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) profundamente agravada entre adolescentes devido à pandemia? 

Por isso é fundamental que gestores, educadores, orientadores e assistentes sociais, em interface com profissionais de saúde, tenham à disposição ferramentas e recursos para lidar com a saúde mental em ambientes escolares e também que recebam acompanhamento terapêutico para terem condições de exercer essas atividades de cuidado. As pessoas não passam a se cuidar só porque alguém está dizendo que é preciso, nem mesmo aquelas que trabalham cuidando dos outros – é um processo de médio e longo prazo em práticas de cuidado em saúde mental, um investimento que dá trabalho e tem que ser sistêmico. 

 

Saúde mental: esse desafio deve ser compartilhado em rede

A epidemia vai passar, mas deixará traumas e sintomas de estresse pós-traumático para gerações inteiras, que terão que aprender a arcar com a conta da saúde mental a longo prazo. Ao dar luz aos sofrimentos psíquicos e falar sobre isso em ambientes públicos e privados, vamos descobrindo estratégias individuais e coletivas para promoção e prevenção em saúde mental, com a criação de autonomia, de oportunidades que capacitem cada pessoa a fazer escolhas e que permitam a sua participação como protagonista do seu cuidado.

Podemos fazer desse desafio uma oportunidade de enfrentar um problema antigo e urgente, além de melhorar nossa capacidade de articulação e colaboração trabalhando de forma coordenada em prol da saúde mental. Precisamos nos articular em rede, envolver mais atores estratégicos e acionar outros serviços e setores para que o direito à saúde mental seja efetivado e essa discussão ultrapasse os muros dos órgãos de saúde. Para isso, precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de tratar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. 

A essa altura é fundamental destacar que, apesar de a responsabilidade ser compartilhada, não podemos criar barreiras de ação na tentativa de encaixar as estratégias nesse campo em “caixinhas”, de forma setorizada, ministerial ou mesmo temática. Precisamos coordenar nossos esforços e entender que olhar para a saúde mental das mulheres, por exemplo, não é responsabilidade exclusiva dos órgãos e projetos de saúde, nem apenas das relacionadas à saúde mental, tampouco unicamente de entidades de direitos das mulheres. Se ficarmos nessa perspectiva podemos deixar vácuos de atuação justamente nos públicos mais vulneráveis, atravessados por uma série de questões interseccionais, como educação, trabalho, moradia etc. 

No Instituto Cactus, organização com atuação focada em saúde mental, especialmente de mulheres e adolescentes, trabalhamos para contribuir com esse imenso desafio de reunir esforços e para traçar caminhos de atuação em saúde mental no Brasil. Em nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, publicado em maio em parceria com o Instituto Veredas, destacamos a necessidade de priorização de políticas públicas de saúde mental, que devem ser monitoradas por meio de iniciativas como análise da situação, avaliação de serviços com indicadores, formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental, além da integração de dados e prontuários em sistemas digitais de regulação e referenciamento e elaboração de estudos de implementação, com apoio e orientação para análise de cenários.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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O enfrentamento à pandemia pela transformação digital no Recife https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/#respond Wed, 07 Jul 2021 10:00:11 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/e622b8ea-ac89-47d8-b60e-c6cb46ade602-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=442 Agatha Eleone, Gustavo Godoy e Rafael Figueiredo

 

De todos os problemas de saúde, cerca de 85% podem ser resolvidos por meio da Atenção Primária, nome que se dá ao modelo de acolhimento que comprovadamente reduz custos em saúde. O motivo é um instrumento que contempla ações individuais e coletivas voltadas para promoção, proteção da saúde e prevenção de doenças, e para além da abrangência do diagnóstico, do tratamento e da reabilitação.

Apesar do seu inegável e histórico avanço, o modelo ainda é insuficiente em diversos âmbitos, principalmente no que diz respeito à infraestrutura e à disponibilidade de recursos humanos. No intuito de ordenar esforços para melhorar cuidados em saúde e dada a necessidade premente (e impulsionada pela pandemia) de medidas para contenção do colapso dos sistemas de saúde, o uso de tecnologias resolutivas e de ações de inovação se faz ainda mais necessário para superar esses desafios. Experiências internacionais de combate à covid-19 destacam, por exemplo, a oferta à população de aplicativos para identificação de casos leves e graves da doença, além da oferta de teleconsultas, serviços de apoio a pessoas em sofrimento psíquico  e monitoramento de casos em isolamento domiciliar. 

No Brasil o município do Recife, em parceria com o estado de Pernambuco, desenvolveu o aplicativo Atende em Casa. Por meio de um contact center composto por médicos, enfermeiros, operadores de teleatendimento e com o apoio da SUSi – chatbot do aplicativo com mais de 40 perguntas e respostas frequentes –, o aplicativo oferta atendimento através de chamada de vídeo, telefone ou via chat para pessoas com suspeita de covid-19, além de prover orientação sobre as medidas de distanciamento social e isolamento domiciliar. A ferramenta oferece, ainda, teleorientação com profissionais de saúde em casos de risco de agravamento da doença e, se necessário, encaminha o usuário ao serviço de saúde mais próximo e adequado à gravidade, amparando o monitoramento sistemático durante o período de isolamento domiciliar (telemonitoramento) e oferecendo suporte à saúde mental de pessoas em sofrimento psíquico (teleacolhimento). Com o avanço da vacinação contra a Covid-19, o aplicativo também passou a servir como apoio antes, durante e após a vacinação. Por consequência, continua prevenindo aglomerações e filas nas unidades de saúde.

A expansão do uso do Atende em Casa pela população recifense, associada às normativas vigentes de distanciamento no ambiente de trabalho, culminou no investimento em tecnologia VoIP (sigla para Voice Over IP, telefonia baseada na internet) para o contato telefônico, permitindo que parte da equipe de profissionais que o opera pudesse atuar em regime de trabalho remoto. Para o atendimento, são criadas salas digitais (webconferência) de colaboração em tempo real entre teleorientadores e profissionais referência de coordenação, que distribuem informações e atualizações para toda a equipe de saúde. A limitação de acesso à internet no Recife e no Brasil é um fator que, em muitos casos, impossibilita a condução de videochamadas e dificulta o processo de transformação digital. Por essa razão, boa parte dos atendimentos são realizados por telefone. Ainda assim, ambos os recursos (a videochamada e o atendimento telefônico) possibilitaram que profissionais do grupo de risco para covid-19 pudessem continuar a exercer suas atividades de forma segura.

O data analytics acessado pela equipe de monitoramento dos indicadores avalia que mais de 240 mil pessoas no estado estão cadastradas no aplicativo. Foram realizados, até agora, mais de 200 mil atendimentos por médicos e enfermeiros, em chamadas de vídeo ou telefone, e avaliadas mais de 117 mil pessoas com sintomas de risco para formas graves da doença. O impacto do teleatendimento e do telemonitoramento é notório. Apenas 14,7% do total de pessoas atendidas precisaram ser encaminhadas para consulta presencial. Todo o restante da população que recebeu atendimento pôde ser acolhida e orientada a manter o isolamento domiciliar, evitando o deslocamento desnecessário de milhares de pessoas com quadros leves de covid-19. A SUSi, assistente virtual do Atende em Casa, resolveu 67% dos mais de 250 mil atendimentos via chat no “Posso ajudar”. Com relação ao teleacolhimento, a iniciativa garantiu o apoio emocional por profissionais da Rede de Atenção Psicossocial do Recife em quase 5 mil atendimentos.

A ferramenta tecnológica permitiu a ampliação do acesso e a melhoria contínua da qualidade de atenção para a população. A autoavaliação de sintomas com classificação de risco, teleorientação e telemonitoramento com profissionais de saúde pode ajudar pessoas a cuidar melhor da hipertensão arterial, da diabetes, apoiar o acompanhamento das gestantes durante o pré-natal, melhorar a adesão ao tratamento de pessoas com tuberculose e hanseníase e apoiar emocionalmente pessoas em tratamento para depressão e ansiedade, entre outros benefícios já relatados por inúmeras pesquisas ao redor do mundo. A telessaúde do Recife não tem a proposta de substituir o cuidado presencial, mas vem rompendo barreiras de acesso aos serviços de saúde e ocupando lacunas de monitoramento sem competir com serviços de saúde já implantados.

O caráter dinâmico e transitório da pandemia, apesar de intensificar as fragilidades dos serviços públicos de saúde, proporcionou ao Recife a criação de um projeto que pode ser expandido tanto para diversas linhas de cuidado quanto para outros serviços do sistema de saúde, além de desafiar o planejamento e a mobilização de recursos humanos para responder à alta demanda de atendimentos. Os resultados consolidados pela experiência do Atende em Casa evidenciam a necessidade de firmar bases para sua continuidade sustentável e servem como ponto de partida para diversas outras iniciativas inovadoras.

 

Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

Gustavo Godoy, Coordenador do Núcleo Municipal de Telessaúde do Recife.

Rafael Figueiredo, Secretário Executivo de Transformação Digital do Recife.

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Recursos humanos e doenças crônicas no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/#respond Tue, 22 Jun 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/20200826185253802642o-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=426 Agatha Eleone e Helyn Thami

 

É em países de renda baixa ou média, caso do Brasil, que ocorrem 80% das mortes por doenças crônicas, segundo a Organização Panamericana de Saúde.  Nesses países, 30% das mortes ocorrem prematuramente –abaixo dos 60 anos de idade. As doenças crônicas são um grande fator de estresse para os sistemas de saúde e para o desenvolvimento econômico. A literatura é contundente ao mostrar, também, a importância das áreas de recursos humanos (RH) no desempenho do cuidado oferecido aos portadores de doenças crônicas.

Apesar da relevância do tema, o Brasil parece caminhar na contramão dos fatos. Recentemente, com o lançamento do Previne Brasil, o novo modelo de financiamento da APS (Atenção Primária em Saúde), o Nasf-AB (Núcleo Ampliado de Saúde da Família), e que complementava as equipes da Atenção Primária com profissionais de diversas categorias, teve seu financiamento suspenso. Assim, municípios e estados que quiserem manter o provimento dessas equipes multidisciplinares terão de custeá-las com recursos próprios, uma opção complexa em meio à crise vivida pelos entes subnacionais. 

Se existe espaço para se discutir os desafios de gestão e provisão dessas equipes multidisciplinares no contexto brasileiro, é um risco não termos direcionamento e coordenação nacionais para garantir que categorias profissionais diversas integrem permanentemente o sistema. O cuidado não-multiprofissional para as condições crônicas é um cuidado falho –e esse último impede o uso eficiente dos recursos disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde). 

Ademais, há um outro desafio: o manejo adequado das doenças crônicas no sistema público requer conhecimento sobre as diretrizes, princípios, protocolos e políticas setoriais do tema do próprio SUS, o que ainda é um gargalo no Brasil. Os modelos predominantes de disseminação de novos protocolos parecem não levar em conta a complexidade de se alterar comportamentos de profissionais de saúde de modo eficaz. O compartilhamento de novos guias clínicos por e-mail ou aplicativos de mensagens instantâneas, por exemplo, não é suficiente para garantir adesão aos procedimentos-padrão. 

Estudos mostram que os verdadeiros fatores que determinam a consolidação de diretrizes clínicas são experiência clínica pessoal e preferências pessoais (no nível individual) e participação no desenho do protocolo, treinamento e existência de mecanismos de controle (no nível organizacional). Considerando o exposto, é crucial que municípios desenvolvam metodologias mais ativas, bem como mecanismos de controle, para garantir a correta adesão aos protocolos preconizados. 

Em relação à dificuldade dos entes públicos em garantir implantação e permanência de profissionais (principalmente médicos) nos serviços, pode-se dizer que os principais motivos de desinteresse pelas áreas de Saúde da Família e Atenção Primária — que são de suma importância na prevenção a fatores de risco e doenças crônicas — têm sido relacionados frequentemente à baixa remuneração e às oportunidades de carreira e de formação oferecidas. Há uma intensa desmotivação e “desprestígio” vinculados a essa área de atuação, que resultam do modelo de atuação que enaltece o acompanhamento de doenças isoladas ao invés de sujeitos complexos. 

Tal modelo opera na lógica da chamada ‘queixa-conduta’, preconizando a execução de procedimentos, diagnósticos e prescrições, em detrimento do acolhimento e do cuidado para a promoção da saúde. Ainda, leva profissionais da saúde à percepção (equivocada) de que o perfil técnico científico de outras especialidades é maior ou superior que o da APS e retarda o aprimoramento dos currículos dos cursos nas áreas da saúde do brasil, que até hoje pouco estimulam o interesse e conhecimento nas áreas de saúde pública e saúde coletiva.

Outro gargalo para o bom cuidado aos portadores(as) de condições crônicas é a atuação integrada de uma rede variada de serviços de saúde. Para que essa rede opere em harmonia, existem fatores ligados aos Recursos Humanos que não podem ser ignorados. Um exemplo é o desenvolvimento de “lideranças de integração” — figuras que estudam liderança na perspectiva de unir e pactuar conjuntamente metas de resultados para um conjunto de serviços diferentes –, que recebe pouca ênfase no contexto brasileiro, mas que se provou relevante em sistemas de saúde mundo afora.

As condições crônicas permanecem sem resposta adequada pelo fato de os sistemas de saúde operarem de modo fragmentado e voltado para as condições agudas ou agudizadas de condições crônicas, isto é, para doenças já em estágio de agravamento ocasionados por ausência ou falha no cuidado preventivo. Atrelados a isso, existem problemas estruturais de interlocução da rede que contribuem ainda mais para essa fragmentação e que, se executada da forma adequada, favoreceria o trânsito do usuário dos serviços de saúde e garantiria a continuidade das ações e serviços. Na prática, um cidadão adequadamente referenciado ou que foi buscado ativamente por atores dos serviços estaria menos propenso a padecer por condições crônicas de saúde.

A disponibilidade de equipes de saúde que contem com profissionais de formação adequada para atuar na APS é um dos principais fatores para garantir o cumprimento das diretrizes do SUS. Dessa maneira, é preciso que o setor público se planeje para lidar com os desafios de um mundo onde a longevidade aumenta, juntamente com a prevalência desse tipo de condição, e isso passa por repensar diversos pontos da gestão de RH. É necessário, portanto, formular estratégias inovadoras para captação e capacitação, executando um plano robusto e sustentável de formação voltada para a APS, além de pensar em ações que possibilitem maior interesse pela área e a consequente implantação de profissionais em territórios vulnerabilizados, reduzindo as barreiras de acesso aos serviços de saúde.

 

Agatha Eleone e Helyn Thami são pesquisadoras de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

 

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Baixos salários e sobrecarga de trabalho da enfermagem https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/baixos-salarios-e-sobrecarga-de-trabalho-da-enfermagem/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/baixos-salarios-e-sobrecarga-de-trabalho-da-enfermagem/#respond Wed, 16 Jun 2021 10:00:20 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/saude-do-trabalhador-enfermagem-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=420 Alice Mariz, Kênia Lara da Silva, Márcia Caúla e Mario Dal Poz

 

Os profissionais da saúde têm enfrentado dramas, originados por problemas crônicos,  desde que a pandemia da Covid-19 se instalou, em especial os que atuam no campo da enfermagem.

Diversos estudos vêm apontando fragilidades e precarizações nas condições de trabalho de enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem no país. Há cerca de 20 anos esses profissionais vêm pleiteando a adoção de medidas que revertam esse cenário, especialmente por meio da regularização da jornada de 30 horas semanais e da fixação de um piso salarial compatível com o trabalho realizado. Essa busca se alinha com as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que indica, para a área de saúde, a jornada de 30 horas como a mais adequada, tendo em vista os desgastes sofridos pelos trabalhadores nesse setor. Somem-se a isso as condições específicas do trabalho da enfermagem –com baixos salários, sobrecarga, dupla jornada, contratos frágeis, assédios, dentre tantos outros problemas. Essas condições repercutem em maiores índices de adoecimento das trabalhadoras e comprometimento da segurança e da qualidade do cuidado prestado. 

Podemos exemplificar essa situação no contexto da pandemia da Covid-19. Segundo  dados do Ministério da Saúde, por meio dos boletins epidemiológicos, nota-se que dentre os profissionais de saúde, os técnicos e auxiliares de enfermagem, seguido dos enfermeiros, ocupam os primeiros lugares em número de casos e óbitos.

Acontece que, atualmente, não existem políticas que fixam, em nível nacional, jornada de trabalho de 30 horas e piso salarial, o que leva grande parte dos profissionais a se submeterem a múltiplos vínculos trabalhistas em busca dos rendimentos necessários a seu sustento e de sua família. Devemos ressaltar que a enfermagem é composta majoritariamente por mulheres, muitas das quais assumem sozinhas ou com grande parcela de contribuição, os orçamentos familiares. Em função disso, são submetidas a cargas excessivas de trabalho, somadas a períodos de recuperação e descanso insuficientes, levando-as à exaustão física, mental e emocional.

Com o intuito de enfrentar essa situação, foi proposto o Projeto de Lei (PL) n° 2564, de 2020, que pretende instituir o piso salarial nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira.  O PL está no Senado para ser avaliado e votado. Porém, embora em pesquisa realizada pelo próprio site do Senado, haja aproximadamente 984.227 pessoas favoráveis à proposta e somente 5.035 contrários, o PL tem encontrado obstáculos para sua aprovação, em especial de dirigentes de corporações e empregadores do setor privado. Entre as justificativas para esse posicionamento contrário está o argumento de que a redução da carga horária das trabalhadoras de enfermagem leva a impactos financeiros nas instituições. As entidades que defendem o PL 2564 demonstram que esse argumento é frágil, pois os impactos advindos dos adoecimentos, de uma assistência insegura, em função das jornadas exaustivas, com condições precárias que induzem a erros e danos no processo de trabalho, representam gastos maiores para instituições públicas e privadas do setor.

Ademais, há um componente de custos imensuráveis no debate sobre a jornada de trabalho e o piso salarial que se refere à dimensão subjetiva do trabalho que, quando realizado sob condições que representam reconhecimento social e financeiro, repercutem em maior satisfação, maior identificação e maior comprometimento com o que se faz. Em consequência há maior preocupação e entrega ao exercício profissional repercutindo numa assistência mais segura e de qualidade para pacientes e trabalhadoras.

A proposta de regulamentação da jornada de trabalho e do piso salarial é um processo que se arrasta há décadas. Contudo a categoria parece possuir hoje maior capacidade de articulação e convergência dada a visibilidade alcançada com os movimentos de valorização da profissão exibidas em vários países durante o ano de 2020. Deve-se lembrar que, em outras épocas, foi sinalizado o aceite desta proposta, mas apenas para os enfermeiros graduados, excluindo os técnicos e auxiliares, o que a categoria nunca aceitou.

A ausência de políticas que garantam condições dignas de atuação à categoria pode também estar relacionada a fatores como misoginia, racismo, classismo e à LGBTQIA+fobia. Pesquisas apontam que cerca de 85,6% do total de profissionais da enfermagem são mulheres e mais da metade são negras (pretas e pardas), principalmente entre técnicos e auxiliares de enfermagem. 

Investir no desenvolvimento das condições de trabalho da enfermagem, incluindo boas remunerações, planos de cargos e salários e de aperfeiçoamento profissional, significa enfrentar diretamente as disparidades sociais e as opressões às quais determinados grupos estão expostos no Brasil, pois o mercado de trabalho envolve múltiplos aspectos e norteia as condições às quais os profissionais são submetidos. 

A Pesquisa Perfil da Enfermagem (Cofen/Fiocruz), publicada em 2013, apresentou um diagnóstico da situação da enfermagem no Brasil que permitiu compreender as diversas realidades locais que se apresentam num país com dimensões continentais como o Brasil. O cenário mostrado pelo estudo gerou dados que têm subsidiado a discussão de propostas políticas para mudanças nessa profissão tão necessária, mas tão negligenciada. Observa-se hoje um contingente de profissionais mais politizado, ainda que com poucos avanços do ponto de vista das políticas públicas e de recursos humanos para a categoria.

Assim, na luta por melhores condições de vida para a população, incluindo a redução das disparidades e o acesso a assistência de saúde de qualidade, cabe planejar e adotar ações que tragam impacto efetivo para a maior força de trabalho em saúde no Brasil. Um instrumento para isso é a produção de informações relevantes, em estudos sobre demografia e mercado de trabalho em saúde em enfermagem que possibilite e  disponibilize informações confiáveis e acessíveis que poderão nortear e embasar a construção de estratégias assertivas que trarão benefícios não só aos profissionais de enfermagem, mas a toda população brasileira.

 

Alice Mariz, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da UERJ.

Kênia Lara da Silva, Professora Associada da Escola de Enfermagem da UFMG.

Márcia do Carmo Bizerra Caúla, Enfermeira Especialista em Saúde Pública,  Coordenadora da Câmara Técnica e Unidade de Processo Ético do COREN-MG. 

Mario Dal Poz, Professor Titular do Instituto de Medicina Social da UERJ.

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