Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Saúde mental em pauta na política: o que esperar em 2022? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2022/02/02/saude-mental-em-pauta-na-politica-o-que-esperar-em-2022/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2022/02/02/saude-mental-em-pauta-na-politica-o-que-esperar-em-2022/#respond Wed, 02 Feb 2022 08:00:20 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2022/02/camara-deputados-plenario-2019-7929.jpg-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=643 Dayana Rosa e Maria Fernanda Resende Quartiero

 

Foi dada a largada ao último ano da 56ª Legislatura da Câmara e do Senado Federal, as instituições responsáveis por criar leis e fiscalizar atos do Poder Executivo, ou seja, dos governantes do país. Diretamente de Brasília (ou remotamente, por conta da pandemia), deputados e senadores correm para deixar a casa em ordem neste ano atípico, caracterizado por mudanças relacionadas às eleições, que acontecerão em outubro: suplentes assumem o cargo de prováveis candidatos; comissões têm importantes alterações em suas composições e algumas pautas ganham peso e visibilidade estratégicas, por exemplo.

Neste contexto, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Instituto Cactus inauguram hoje uma série de publicações críticas e propositivas para a agenda eleitoral em 2022, em um tema que é cada vez mais relevante para nossa sociedade: políticas públicas para a saúde mental. Nessa primeira publicação, te convidamos a pensar: o que esperar das políticas e debates no Legislativo sobre a saúde mental?

Para pautar e avançar esse debate nas casas legislativas e nas eleições de 2022, o IEPS e o Instituto Cactus vão qualificar as discussões e propor uma discussão baseada em evidências, que seja, ao mesmo tempo, propositiva e informativa, em um tema que, à primeira vista, pode parecer bastante complexo, mas é extremamente necessário. Afinal, saúde mental é um direito de todas as pessoas.

Saúde mental na pauta política em 2021

Antes da pandemia de Covid-19, a saúde mental já era tema bastante negligenciado: ainda em 2019, o Brasil foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o país mais ansioso do mundo, e o quinto país mais depressivo. Em 2021, o estudo “COVID-19 e Saúde Mental: Uma Análise das Tendências Recentes no Brasil”, realizado pelo IEPS, identificou uma piora em indicadores de bem-estar psicológico e saúde mental da população, com a aceleração do número de óbitos desde novembro de 2020. O documento aponta o aumento do número de pessoas com ansiedade e depressão no país, que  oscilou junto ao total de novos óbitos decorrentes de COVID-19.

Já o levantamento “Caminhos em Saúde Mental”, desenvolvido pelo Instituto Cactus, em parceria com o Instituto Veredas, mostra que há ainda públicos que demonstram um quadro ainda mais acentuado, como os adolescentes, as mulheres e a população negra. Na depressão, por exemplo, a ocorrência é mais comum entre a população de menor renda e entre indivíduos pretos ou pardos, e duas vezes mais comum entre mulheres do que entre homens. 

Este cenário de agravamento escancara para os legisladores a necessidade de políticas que garantam o acesso amplo a cuidados, além de políticas intersetoriais que consigam trabalhar a saúde mental de maneira estrutural, uma vez que as consequências serão sentidas ainda por muito tempo, diante da piora socioeconômica do país, e de forma bastante desigual. Tudo isso alerta para a urgência de medidas preventivas e de promoção de saúde, através da construção de políticas de saúde mental para o futuro que considerem os determinantes sociais que afetam a saúde mental e precisam ser trabalhados em conjunto com outras agendas sociais, de forma multidisciplinar e articulada.

O que esperar de 2022? 

Um dos desafios que os parlamentares enfrentarão para aprovar suas propostas de saúde mental é a visível polarização de posicionamentos no debate, notável em subtemas como internação compulsória e participação social, o que cria dois campos: um a favor do modelo territorial e outro do modelo hospitalar. Resumidamente, existe pouco espaço para propostas mais consensuais no “meio do caminho”. Outro exemplo dessa polarização no debate político é a existência de Frentes Parlamentares que representam interesses conflitantes, como a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, e a Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Terapêuticas e APACs (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). 

Para compreender melhor como as discussões de saúde mental irão se desdobrar neste ano eleitoral, é fundamental entender também quem são os principais atores que têm pavimentado esse debate, para acompanharmos seus posicionamentos e defesas em torno do tema. Nessa linha, o IEPS e o Instituto Cactus analisaram a atual produção legislativa sobre saúde mental, e foi possível identificar importantes contribuições  feitas por parlamentares da Câmara e do Senado, de diversos partidos e posições políticas, como as deputadas Erika Kokay (PT/DF), Tabata Amaral (PSB/SP) e Carmen Zanotto (Cidadania/SC); os deputados Alexandre Padilha (PT/SP), Osmar Terra (MDB/RS) e Ricardo Barros (PP/PR). No Senado, destaca-se o posicionamento dos mandatos de Alessandro Vieira (Cidadania/SE) e Humberto Costa (PT/PE).

Nossa aposta institucional para achar um denominador comum nesta trincheira consiste em fortalecer a saúde mental integrada à Atenção Primária e à Estratégia Saúde da Família. Essa ação pode contribuir para melhores desfechos em indicadores de saúde mental, e é uma posição estratégica privilegiada para oferecer iniciativas de prevenção de doenças e promoção de intervenções psicossociais. Esta é a importância da busca pelo consenso em torno do tema no Poder Legislativo: promover melhoria na qualidade de vida dos brasileiros em questões urgentes, como a ampliação do acesso aos cuidados em saúde mental, em um contexto de luto nacional e piora dos indicadores socioeconômicos. 

Dentre os Projetos de Lei (PLs) que atuam nesse sentido, recebem destaque os PLs nº 3.383 (Senado Federal) e nº 3.408 (Câmara dos Deputados), que instituem a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares, como mais uma forma de integrar a saúde mental no cotidiano da vida das pessoas e articular o tema com outras agendas sociais. De acordo com o levantamento “Caminhos em Saúde Mental”, 50% das condições de saúde mental aparecem até os 14 anos, e 75% até os 24 anos de idade, sendo que a maior parte disso (4 a cada 5 casos) passam sem diagnóstico ou tratamento. Ainda, em pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 56% dos adultos disseram que algum adolescente do domicílio apresentou um ou mais sintomas relacionados à saúde mental durante a pandemia. Sabendo disso e com um olhar que prioriza intervenções precoces, os autores dos projetos, senador Alessandro Vieira e deputada Tabata Amaral, respectivamente, protocolaram as propostas em ambas casas legislativas, dobrando assim o número de chances de implementar ações de promoção, prevenção e atenção psicossocial no âmbito das escolas. 

Um dos espaços privilegiados para essa discussão, na Câmara, é o Grupo de Trabalho (GT) destinado ao estudo sobre o aumento de suicídio, automutilação e problemas psicológicos entre os jovens brasileiros. O GT era coordenado pela deputada Liziane Bayer (PSB/RS) e, no mesmo dia que teve prorrogado seu funcionamento por mais 90 dias, em novembro de 2021, designou o deputado Osmar Terra para compor o GT, em substituição à deputada Érika Kokay. 

Neste ano, podemos contar com a continuidade da polarização dos posicionamentos e das disputas polêmicas, mas o cenário colocado exige do Poder Legislativo a busca por consensos mínimos e possíveis, como o fortalecimento da saúde mental na Atenção Primária, sobretudo em atenção às crianças e aos adolescentes. Também precisamos trazer a discussão sobre saúde mental para o centro do debate, colocando-a cada vez mais próxima do dia a dia dos brasileiros e deixando de ser vista como um tabu e/ou envolta por estigmas. Esse é um desafio que os próximos 594 novos (ou nem tão novos assim) deputados e senadores terão pela frente, fiscalizando as ações do Poder Executivo, a suficiência e a qualidade de programas e políticas de Saúde Mental.

 
>> Para sugestões de pauta, parcerias e comentários, entre em contato através dos e-mails contato@ieps.org.br e contato@institutocactus.org. Até o próximo Saúde Mental em Pauta!

Dayana Rosa é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS). Maria Fernanda Resende Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

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O cenário caótico x saúde mental = potência na resistência https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/#respond Wed, 20 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/img20200615104721797-768x463-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=554 Magna Barboza Damasceno

 

O primeiro seminário “Saúde da População Negra” (pessoas autodeclaradas pretas e pardas), realizado no Estado de São Paulo em 2004, apontou que as mulheres negras tiveram uma inadequação do atendimento durante seu pré-natal. Além disso, aproximadamente 60% dessas mulheres entraram numa espécie de peregrinação em busca do atendimento — o que evidencia a dificuldade de acesso. 

Segundo o “Atlas da Violência 2019 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, a cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras; 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras; e as mulheres negras morrem mais de formas mais violentas

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2020 o alarmante crescimento de 11,5%, em 10 anos, dos assassinatos das pessoas negras. O Rio de Janeiro é o quarto estado com maior número de negros no Brasil –mais de 9 milhões, segundo dados da secretaria de saúde do estado contabilizados em 2020.

Esses dados apontam que, de toda a população atendida, as pessoas negras estão entre as 61% acometidas por doenças respiratórias e 64% por causas externas e lesões.

 Ao nos depararmos com os dados do período perinatal, verificamos que 67% das complicações foram em mulheres negras. De todos os atendidos, 62% das pessoas negras possuíam doenças infecciosas e parasitárias; e outras  62 foram atendidas por transtornos mentais.

Como estampou Fernanda Lopes no título do seu texto apresentado no seminário de 2004, “Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer….”. Para a população negra a desigualdade ao existir é um fato no Brasil, fato este que desde o primeiro seminário sobre a saúde da população negra vem sendo confirmado pelos dados apresentados ao longo dos anos pelo Instituto de Pesquisas e Estatística Aplicada (IPEA). Com o advento desses momentos pandêmicos peculiares, é de se perguntar como manter a saúde mental de uma população que parece historicamente destinada a experiências de nascer, viver, adoecer e morrer de maneira desigual e assustadoramente desumanizada?

Como manter a saúde mental da população negra num cenário como o atual, no qual nos deparamos com um processo de extermínio que nasce nos marcadores sociais que ocupamos, nas interseccionalidade que carregamos, na nossa essência e no nosso existir? Além do grande desafio para cessar o desaparecimento dos nossos corpos pretos e potentes, bem como de manter nossa subjetividade a prova de qualquer tentativa de aniquilamento. 

Esse esforço ainda parece ter importância apenas para uma parte da sociedade, daqueles que vão ao longo do caminho tentando estabelecer a resistência (leia-se aqui estratégias para a sobrevivência) que, numa toada paradoxal, ao mesmo tempo que resistem para o Existir, vão deixando pelo caminho o cuidado com os seus corpos concretos, feitos de carne e osso, veias e artérias, além de não perceber a instalação de algo bem mais perigoso, que é doença e o transtorno mental.

É comum mulheres negras serem naturalizadas como raivosas ou emocionalmente instáveis, sem direito a manifestação sentida e trazida pelo medo constante de não mais existir –e dos seus não mais existirem–, de não ter suas necessidades acolhidas por quem deveria cuidar como cuida de qualquer outro cidadão não-negro, de não ter seu reconhecimento enquanto pessoa legitimado.

Na nossa sociedade, uma mãe branca tem mais direitos e acolhimento ao denunciar a perda de um filho do que uma mãe negra que vê seu filho assassinado injustamente. Basta fazer uma breve pesquisa nos meios de comunicação e nos deparamos como a sociedade reage frente à dor de ambas as perdas.

Às mulheres e homens negros, de forma velada, não lhes é permitido o direito ao sentimento, muito menos a suas manifestações legítimas, mesmo diante de tantas opressões ao resistir para viver.

Faça uma pequena reflexão e revisite momentos em que você, pessoa negra, não pôde ter o direito à palavra, ao sentir, ao agir e até mesmo ao pensar, tendo que calcular meticulosamente quais os próximos passos para não ser taxado de brutal, raivoso, marginal e refém da manifestação da emoção devido ao afeto.

Permanentemente, o descaso perpetuado pelo Estado aos cuidados da saúde da população negra, com a dificuldade do acesso ou o acesso precário a políticas públicas, a descaracterização criada de suas emoções vivenciadas numa sociedade que deslegitima suas experiências e as taxa e nomeia de acordo com o que nos permite sentir ou não. Isso nos toma – pessoas negras –nosso modo de relacionar, de ver o mundo. E nas pequenas coisas vão sendo reafirmadas nas nossas interseccionalidades. Porém, esses efeitos psicossociais do racismo estrutural e sua interface violenta nos obriga a um estado mental permanente de alerta, o que impacta na interpretação por parte de terceiros sobre o nosso viver, e nos coloca em certa medida em um ciclo sem fim entre o gatilho mental gerado pela sobrevivência e a falta de percepção de si e do outro deste processo que gera adoecimento das relações, criando muitas vezes o famoso “cão raivoso”.

Contudo, no absurdo das contradições do nosso estado democrático de direito e no exercício da nossa cidadania integral, as pessoas negras não podem “se dar ao luxo” das doenças mentais, das crises existenciais, das dificuldades nos relacionamentos interpessoais causadas muitas vezes pelas violências produzidas pelo racismo estrutural e que geram desequilíbrios emocionais –nos quais nossa humanidade é constantemente testada.

Sem ter lançado sobre si um julgamento prévio sobre seu modo de adoecimento, as pessoas negras vão adoecendo assim como qualquer outra pessoa –sim e como adoecem!!

Se por um lado esse modo perverso e descompromissado com os afetos da população negra, gerado pela sociedade, reafirma o “grau de superioridade” das pessoas não-negras, dando a elas o “ticket” de quem será permitido sentir, pensar, agir, por outro lado produz na pessoa negra uma forma cruel de aniquilamento de sua subjetividade, pois a deslegitimação das suas emoções, das suas experiências e vivências vai se dando de forma sutil e naturalizada, que muitas vezes desemboca numa emoção pouco elaborada –como a raiva, por exemplo.

Essas questões já muito conhecidas e debatidas nos revelam um impacto devastador em nossa subjetividade. Alguns desses efeitos psicossociais vêm sendo discutidos a partir de categorias do viver –como gosto de referir–, a exemplo das discussões sobre a solidão de mulheres negras, a falta de perspectiva para o futuro, o direito à herança e ao envelhecimento da pessoa negra.

 Aos poucos, vamos nos deparando com reflexões necessárias para a manutenção da qualidade do nosso viver. E é justamente aí que encontramos o conceito ilógico das potencialidades que nascem justamente das injustiças geradas a partir dos marcadores sociais e suas interseccionalidades que nos interpõem.

Porque, ao mesmo tempo que as pessoas negras vão morrendo aos poucos, toda vez que as percepções em torno da sua origem, da sua classe social, da sua cor de pele, da sua orientação sexual chegam à frente de qualquer possibilidade de relacionar-se, elas também constroem e vão tecendo estratégias de resistência, denotando suas potencialidades e organizando o melhor viver. 

Se por um lado pessoas negras todos os dias enfrentam uma batalha por serem quem são, por outro exercitam a tarefa de continuar a ser, burlando toda a lógica posta e contrariando a velha máxima de que apenas recai sobre as pessoas negras a negatividade do existir.

Durante toda a história do povo negro há aqueles que não conseguiram resistir, mas há também aqueles que conseguiram utilizar-se de estratégias de resistência e sobrevivência desde os primórdios da escravidão. Trazendo isso para os tempos atuais, recentemente e durante a pandemia, acompanhamos essas potências de forma bem objetiva.

Verificamos que os estudos sobre a ancestralidade negra vão apontando essas formas de potências, considerando o que os antepassados construíram para que o presente fosse possível e, dessa forma, fortalecendo um futuro.

A pandemia é a prova disso! Apesar de terem sido as pessoas negras as mais atingidas pela Covid-19 em relação aos mortos, segundo o Relatório “Pesquisa Sem Parar”, da organização feminista Sempreviva, sobre o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, constatou-se que de modo geral aumentou o número de mulheres que passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém. Em relação às mulheres negras houve um aumento em 52%. Essa dimensão do cuidado nos remete a uma forma de atenção à saúde mental, já que estão atentas ao monitoramento das necessidades e da companhia umas das outras.

Outro dado curioso é que, apesar do aumento da precariedade da vida, trazida pelo isolamento social e a perda do trabalho formal, houve um aumento de 52% de mulheres negras desempregadas. Essas mulheres que tiveram dificuldade sobre como pagar em dia suas contas e como fazer a manutenção da vida, buscaram outras formas de sobrevivência –e os números evidenciaram que 61% das mulheres que estão na economia solidária, por exemplo, são negras. 

Pesquisas indicam que durante a pandemia as pessoas negras reuniram suas forças para ajudarem sua comunidade, o que demonstra uma alta capacidade criativa, organizando novas soluções para o bem viver, mesmo em um cenário caótico, assustador e desumanizante.

Como podemos constatar, falar da saúde mental da população negra não é uma tarefa fácil, diante de uma realidade que traz dados massacrantes de qualquer subjetividade. Porém, falar de saúde mental também é falar de vida, seja ela nascida da dor de não poder ser e existir, seja ela nascida da potência que é viver as contradições das minorias oprimidas.

Outras formas de potência que já estão aí há muito tempo e devem ser reconhecidas, veneradas e divulgadas, são os trabalhos como os que realizam os coletivos como o Criola –uma organização composta por mulheres negras que há quase 30 anos vem pensando estratégias de defesa e promoção dos direitos das mulheres negras. O instituto AMMA Psique e Negritude, uma organização cuja atuação está pautada no enfrentamento do racismo, da discriminação, do preconceito –que produzem efeitos psicossociais negativos na saúde mental da população negra. Outro bom exemplo é o Fundo Baobá para Equidade Racial, que vem disponibilizando acesso a diversos ciclos de vida da população negra, para o fortalecimento de lideranças com a perspectiva de aumentar a equidade racial.

São organizações formais e informais que nascem de pessoas negras, para pessoas negras e com pessoas negras, a partir da dor do aniquilamento da subjetividade de pessoas negras.

Falar de saúde mental da população negra é também falar deste trampolim para a potencialidade, que gera possibilidade do bem viver.

Pense nisso. 

O que você tem feito para dar qualidade à saúde mental da população negra?

 

Magna Barboza Damasceno é Mestre em Psicologia Social pela PUC SP, especialista em Gestão pública pela FESPSSP, em Impactos da Violência na Saúde pela (ENSP/FIOCRUZ) e em Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde, pelo Instituto Sírio-Libanês, é coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP). Liderança acelerada pelo Fundo de Equidade Racial Baobá e Ganhadora do prêmio viva promovido na parceria entre o Instituto Avon e a Revista Marie Claire.

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Saúde mental não é pauta “pop”: precisamos institucionalizar o debate para além da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/#respond Wed, 01 Sep 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-mental-pandemia-covid-19-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=515 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Todos já sabemos que as medidas de isolamento social impostas pela pandemia de Covid-19 agravaram o processo de adoecimento da população, mas também sabemos que o exponencial aumento de adoecimentos mentais em todo mundo não é um fenômeno recente. Estamos diante de um problema antigo e precisamos assumir as consequências de anos de descuido no campo: o debate público sobre saúde mental era um problema de saúde pública. 

Mas não estamos falando de um desafio exclusivo da área da saúde, para reduzir os danos provocados pela pandemia e atuar de forma preventiva em saúde mental temos que considerar os aspectos transversais do tema e outras agendas sociais, afinal, saúde mental permeia toda a nossa vida. Saúde, educação, sistema de justiça e segurança pública, assistência social, cultura e lazer  são setores igualmente responsáveis por criar soluções para esse desafio, assim como famílias e comunidades são indispensáveis em qualquer ação, de cuidado ou prevenção. 

O desafio no pós-pandemia é maior, mas agora também temos a oportunidade de aproveitar a atenção que a saúde mental recebeu nos últimos tempos e prolongar esse olhar a longo prazo. Não podemos deixar que a luz posta neste tema se apague, precisamos institucionalizar o debate sobre saúde mental no Brasil em todos os setores sociais, de forma sustentável e estrutural, e colocá-lo em pauta em todos os lugares. 

Em relação a saúde mental no “pós-pandemia”, ainda é cedo para diferenciar o que são reações “esperadas” frente ao estresse causado pela pandemia e o que pode ser considerado um transtorno, por isso devemos ter cautela ao já querer pular para diagnósticos precipitados. Mas já sabemos que devemos a chamada “quarta onda de COVID”, durante 3 e 4 anos, que resulta dos efeitos colaterais deste período de isolamento social, que incluem aumento de ansiedade e depressão, de transtornos obsessivos compulsivos e obesidade, e outras consequências à saúde em decorrência da pandemia. 

Fonte: Tseng, 2000.

Nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, aponta que é possível estimar o agravamento no cenário da saúde mental no Brasil, após a pandemia. Até 80% da população poderá desenvolver sofrimento psíquico, automutilação, conflito interpessoal e tentativa de suicídio. Cerca de um quarto da população (entre 15% e 25%) poderá se encontrar em maior risco, com sua estrutura psíquica mais fragilizada, e precisar de suporte imediato para evitar colapsos maiores e entre 1% e 4% da população diz respeito a pessoas que poderão precisar de atenção especializada. 

 

Efeitos a longo prazo 

Além dos efeitos colaterais de curto prazo, teremos também que lidar com a sociabilidade e a solidão no pós-pandemia. Mal começamos a perceber os impactos deste longo período de isolamento social na nossa capacidade de nos relacionar e existem muitas questões em aberto: de que maneira as mudanças de comportamento adotadas vão impactar nosso contato físico e trocas de afeto? Nossas rotinas e redes de apoio? Ou ainda, que tipo de soluções serão criadas a partir da perspectiva de que é possível fazer tudo de forma remota? Não precisamos mais nos encontrar presencialmente, tudo pode ser mediado por tecnologia? Como lidaremos com o pertencimento, fator tão relevante para a proteção da nossa saúde mental?

Especialmente com relação aos adolescentes, que propostas estamos criando para lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) já percebida antes da pandemia mais profundamente agrava com o isolamento social? Que tipo de lugar eles ocuparão no futuro da sociedade, em um contexto de precarização do acesso à sua educação e de redução das oportunidades de emprego? Dados do relatório Caminhos em Saúde Mental apontam o afastamento e a evasão de crianças e adolescentes, assim como o aumento do trabalho infantil e doméstico e as violências domésticas, como desafios agravados pela pandemia. 

Para além de “apagar incêndios”, pensando um pouco mais no futuro, precisamos, antes de tudo, afinar nossa compreensão coletiva sobre o que é saúde mental e como podemos incorporá-la ao nosso cotidiano de forma mais consistente. Independentemente da definição que se adote, é indispensável afirmar que a saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é o resultado da complexa interação entre esses aspectos individuais e as condições de vida das pessoas, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva e o acesso a bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária. 

Por isso não tem como melhorar os índices de educação, trabalho, alimentação, moradia, entre tantos outros,sem olhar de forma permanente para a saúde mental, o que nos leva de volta ao começo: precisamos urgentemente atuar na prevenção em saúde mental. Se não começarmos a prevenir os adoecimentos do futuro agora, chegaremos nele apagando incêndios tanto quanto hoje, sempre respondendo às demandas e não atuando de forma estrutural. 

E ainda teremos que continuar lidando com os velhos estigmas e preconceitos acerca do tema, que persistem em aparecer, mesmo com o crescimento do debate sobre saúde mental. Apenas citando alguns, a relutância em procurar ajuda ou tratamento, a falta de compreensão por parte da família, amigos e comunidade e, muitas vezes, a falta de preparo dos próprios cuidadores e profissionais “porta de entrada” da saúde para lidar com saúde mental são os questões que irão persistir no debate da saúde mental, mesmo no pós-pandemia. 

Devemos ressaltar que atuar em saúde mental não é um projeto individual com começo, meio e fim, é um projeto coletivo para vida toda. Precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de trabalhar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. A saúde mental de cada um de nós depende da articulação permanente entre os indivíduos, a comunidade e todos os setores sociais, trabalhando juntos para criar condições para uma vida digna e uma realidade social mais justa para todas as pessoas.  Como podemos fazer este debate tão central perdurar nos nossos lares, trabalhos e relações sociais?

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

 

 

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Saúde mental e violências: aprofundando a compreensão sobre algumas das origens e atravessamentos dos sofrimentos psíquicos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/#respond Fri, 27 Aug 2021 10:00:00 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/psychological-abuse-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=508 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O combate à violência contra as mulheres teve uma conquista importante com a sanção, no final de julho deste ano, da Lei de Criminalização da Violência Psicológica (14.188/2021). A nova legislação facilita o registro de boletim de ocorrência por violência psicológica e também a obtenção de medidas protetivas de urgência. A lei contempla mais aspectos da violência psicológica, já previstos na Lei Maria da Penha, mas que não categorizava um tipo penal para condutas como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância e isolamento. Assim, na imensa maioria dos casos, essas práticas só passaram a configurar crimes com a nova lei.

O números de adoecimentos mentais e de violência contra as mulheres aumentou durante a pandemia. Por isso, aprofundar o debate sobre violência psicológica torna-se importante para ampliar as práticas de cuidado da saúde mental das mulheres. Já no caso dos jovens, as múltiplas violências, como violência sexual e doméstica e bullying, são identificadas como as principais determinantes sociais para a sua saúde mental. 

Observar as interseccionalidades e as agendas compartilhadas é fundamental para compreender com mais profundidade como as dimensões do sofrimento psíquico se relacionam com questões estruturais. O adoecimento mental de mulheres em decorrência de violência obstétrica, por exemplo, não deveria ser visto como um problema de saúde pública? Não deveríamos falar do impacto na saúde mental e do sofrimento de mães de jovens negros que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, como uma consequência de problemas na segurança pública? A violência psicológica contra as mulheres, por exemplo, é uma das formas da violência de gênero e deve ser prevenida e tratada a partir do cruzamento com outras esferas desse problema. 

Existem outras formas de violência além da psicológica: institucional, sexual, física, patrimonial e moral. Há uma infinidade de manifestações de cada uma dessas categorias. Além disso, podemos pensar sobre as violências cotidianas, comum a todas as pessoas, como por exemplo a constante minimização de nossos sofrimentos para continuar a fazer o que é preciso (trabalhar, estudar, cuidar da família) ou ainda as violências institucionais. 

A falta de acesso a tratamentos adequados de saúde mental no sistema público, a exposição à violência urbana generalizada e as condições precárias de transporte, educação e cultura a que a maior parte da população é submetida, podem ser vistas como violências institucionais que impactam a nossa saúde mental. Nesse contexto, as minorias sociais são particularmente afetadas: mulheres, crianças e adolescentes negligenciados, pessoas negras e LGBTQIA+ são alguns exemplos de grupos que se tornam mais suscetíveis ao adoecimento mental quando pensamos nesse tipo de violência. 

 

Exercitando olhares segmentados: violências contra adolescentes e mulheres  

Consciente de que é preciso estabelecer prioridades para uma atuação estratégica, o Instituto Cactus fez a aposta institucional de olhar, especialmente, para adolescentes e mulheres, públicos prioritários para pavimentar o caminho de transformação do cenário da saúde mental no Brasil. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, entre 2011 e 2018, enquanto para os adolescentes (de 15 a 19 anos) a violência física representou 59% dos atendimentos registrados, no caso dos pré-adolescentes (de 10 a 14 anos) o percentual foi de 36% do total. Quando se analisam os dados de violência autoprovocada no Brasil, conseguimos ver uma outra ponta desse desafio: são mais de trezentas mil notificações, das quais 45% dos episódios foram realizados por jovens entre 15 e 29 anos –entre os quais 67% são mulheres. Indo ao extremo do problema, dados mostram que o suicídio é  a segunda causa mais frequente de mortes de jovens de 15 a 29 anos no mundo todo –e 7 a cada 10 casos acontecem em países de baixa e média renda. 

No caso de meninas adolescentes, é necessário considerar que a violência de gênero começa, muitas vezes, ainda na infância, atravessa a transição para a juventude e se estende por toda a vida. Mulheres que foram expostas a violências na infância apresentam maior risco para revitimização na vida adulta, para episódios depressivos, de ansiedade, de estresse ou relações prejudiciais com a alimentação, a bebida alcoólica ou outras drogas. Dados de 2003 e 2010 mostram que 62% das vítimas de violência sexual e 82% das ocorrências de exploração sexual eram do sexo feminino. 

Nesse ponto do debate, nos deparamos com um desafio importante para os cuidados da saúde das mulheres: a falta de compreensão e a fragmentação nos serviços de saúde. Os profissionais admitem que nos atendimentos, no geral, as mulheres se calam sobre a violência de gênero, ao mesmo tempo em que intensificam a procura por serviços de saúde, sendo estereotipadas como “poliqueixosas”. Esse arquétipo, além de prejudicar as estratégias de tratamento, pode ser também uma forma de violência institucional e representa uma violência psicológica contra mulheres, que muitas vezes enfrentam o estigma no próprio processo de tratamento. 

A Lei de Criminalização da Violência Psicológica é um grande passo para coibir a violência contra as mulheres, mas é necessário ir além e atacar todas as formas de violência para avançar promoção e prevenção em saúde mental. Refinar a análise sobre a violência psicológica e institucional requer a produção de estudos sobre os efeitos e abordagens para trabalhar as  violência de instituições, como, por exemplo, asilos, abrigos, instituições de tratamento para usuários de drogas e também no sistema penitenciário. 

As diversas formas de violências são um fenômeno social que não pode ser reduzido aos estados psíquicos relacionados ao sofrimento mental, por isso a convergência com os debates sobre saúde mental tem muito a contribuir. Sejam impactos relacionados a situações de violência psicológica, física, sexual ou institucional, as soluções propostas devem abordar de forma assertiva o sofrimento psíquico decorrente dessas violências. É preciso, ainda, considerar as especificidades dos diversos adoecimentos e criar abordagens adequadas para diferentes públicos, pois as consequências de cada tipo de violência podem ser muito particulares e não se pode deixar de lado os olhares segmentados para esse debate.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Quem está na porta de entrada dos serviços de saúde mental? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/#respond Wed, 18 Aug 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/GettyImages-1266600929-web-conferência-SUS-800-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Helyn Thami e Maria Fernanda Quartiero

 

Precisamos focar no treinamento, provisão e capacitação de trabalhadores da atenção primária e de outros níveis de atenção para oferecer cuidados na perspectiva da saúde integral

 

Imagine a seguinte situação: uma pessoa vai a um serviço público de saúde se queixando de dor no peito e é encaminhada ao cardiologista sem que sequer tenha sido questionada sobre seu estado de saúde mental. Não é difícil de imaginar, certo? 

Um dos desafios no campo da saúde mental no Brasil é integrar os cuidados em saúde psíquica à perspectiva da saúde integral. Sabemos que muitas manifestações físicas, como na situação imaginada, podem estar relacionadas à ansiedade, depressão e outros sintomas de sofrimento mental. Pode ser, por exemplo, diante da atual crise, fruto de angústia relacionada a processos de luto ou ao desemprego. Acolher e encaminhar usuários sem levar em conta a sua saúde mental, apesar de ser prática rotineira, é prejudicial à perspectiva de cuidados integrais, como preconizado no sistema de saúde brasileiro. 

A hipótese descrita acima é apenas um dos exemplos possíveis de práticas de cuidado que invisibilizam e negligenciam a saúde mental como parte indissociável da saúde como um todo. Somos um só: ou, como se diz popularmente, “corpo e mente estão sempre conectados”. Por isso, os serviços de atendimento devem incluir os aspectos físicos e mentais na avaliação e no tratamento, e desenvolver soluções adequadas para cada indivíduo. 

Para tal, há que se reformular os currículos de formação de todas as categorias profissionais da saúde para incluir abordagens humanizadas e que levem em conta questões estruturais que ajudam a produzir o adoecimento –emprego, renda, acesso a serviços básicos e outros. Essas abordagens precisam dialogar, fazer parte de uma estratégia geral de cuidado que o potencialize –nas ações preventivas e curativas. É importante que diagnósticos e soluções sejam elaborados a partir da análise interdisciplinar dos profissionais envolvidos, desde a assistência social até as especialidades biomédicas. Para isso, o processo de escuta qualificada também é imprescindível: os profissionais de saúde precisam ouvir para entender a trajetória dos usuários e absorver as especificidades de cada um. 

Outra reflexão importante é o quanto a rede de saúde e a formação profissional ainda privilegiam o atendimento a pessoas com condições psicossociais agravadas, negligenciando a promoção da saúde, a prevenção e o acolhimento das primeiras manifestações de sofrimento, que muitas vezes poderiam ser tratadas sem o uso de medicação e sem necessidade de cuidados especializados, por exemplo.

Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) entre 2012 e 2013, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. Mas quando falamos de saúde mental não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, especialidades comumente associadas à ela: precisamos exercitar um olhar mais ampliado para entender quem é o “Recurso Humano” da saúde mental. 

Por exemplo, uma revisão de literatura mostra que um grande desafio que se descortina para a consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil é a integração entre a atenção primária e a rede de atenção psicossocial. Isso significa que os recursos humanos para uma adequada provisão de cuidado em saúde mental não estão confinados a poucas categorias profissionais, mas dizem, sim, respeito a toda uma gama de pessoas que compõem o sistema de saúde. 

A melhor prática para consolidar essa integração é por meio do matriciamento: os profissionais especializados devem estabelecer espaços de troca e trabalho compartilhado com as equipes da atenção primária, aumentando a resolutividade desta e garantindo o ganho de capacidades desse nível de atenção a médio e longo prazos. Essa prática, inovadora e desafiadora, pode ser considerada contra hegemônica e ainda incipiente nos programas de formação de profissionais de saúde.

Se é preciso entender as transversalidades do tema para criar soluções adequadas para os usuários, é necessário levar isso em conta também nos processos de formação de profissionais de outras áreas da saúde e, inclusive, de outros setores, como educação, cultura, segurança pública e sistema de justiça. Afinal, a saúde mental permeia toda a nossa vida. Família e comunidade também são peça chave para trabalhar essa perspectiva de escuta ampliada, engajar atores fundamentais no processo terapêutico e capilarizar ainda mais o cuidado com a saúde mental. Um bom exemplo de como oferecer atenção em saúde mental na comunidade é o Banco da Amizade no Zimbabwe.

Não podemos esquecer a supervisão e o acompanhamento desses profissionais. As práticas e cuidados em saúde mental não são estáticas, elas se renovam e se aperfeiçoam junto com  necessidades do público atendido. Por isso a capacitação em saúde mental não se esgota em nível de formação ou cursos pontuais. Ela precisa ser contínua e promover a perspectiva de empoderamento de cada pessoa – inclusive dentro do próprio mundo do trabalho. 

O cuidado não-multiprofissional na saúde mental –que não considera a interface entre as áreas de cuidado– impede o uso eficiente dos recursos públicos disponíveis no sistema de saúde. Por isso, o investimento em mais capacitação em saúde mental para uma gama mais vasta de profissionais pode ser uma solução custo-efetiva para avançar nesse campo, considerando a estrutura que o Brasil já tem. Por meio delas seria possível um olhar mais atento a sinais precoces e fatores de risco para o sofrimento mental.

Nesse ponto, um desafio adicional é a desigualdade de investimento e de provisão de profissionais entre as áreas da saúde, especialmente considerando as categorias mais especializadas. Dados do estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil mostram que o nível da assistência prestada regionalmente não tem como ser a mesma em um contexto em que o número de psicólogos por habitante do Pará (estado com menor oferta) é 4 vezes menor do que o mesmo parâmetro no Distrito Federal (estado com maior oferta) –isso considerando serviços do SUS e da saúde suplementar. Se a proporção de psicólogos fosse balanceada em todo o território nacional, o processo assistencial e matricial poderia ser mais efetivo. 

Além disso, há uma concentração muito grande nas capitais quando comparadas a outros municípios no país: 3 a cada 10 psicólogos estão nas capitais; já entre os psiquiatras essa proporção é de 4 a cada 10. A referência para psiquiatria no Brasil é de 5,8 psiquiatras a cada 100 mil habitantes e essa distribuição é bastante desigual no território, conforme se vê no quadro abaixo:

 Região

Psiquiatras

Psicólogos

Norte 1,09 18,44
Nordeste 2,59 25,02
Sudeste 5,81 41,61
Sul 6,13 48,88
Centro-Oeste 3,97 40,26

Assim, percebemos que existem desafios importantes a serem superados para efetivar uma atenção em saúde mental que seja concreta  e integrada. Primeiro, é preciso entender a saúde mental como parte da saúde geral, sem fragmentação. Segundo, é preciso entender que, para que coloquemos em prática as melhores ações de cuidado, a formação profissional precisa mudar. Terceiro, temos que potencializar os recursos já disponíveis e fortalecer o aprendizado contínuo, mesmo (e talvez principalmente) dentro dos próprios serviços. Não menos importante, é preciso combater as desigualdades de provisão de profissionais no território nacional.

Tudo isso se conecta para organizar o processo de cuidado de acordo com cada necessidade e aproveitar os recursos humanos do sistema para ampliar o acesso a um cuidado em saúde adequado, incluindo a saúde mental, sempre respeitando a lógica da integralidade, que é um princípio fundante do Sistema Único de Saúde (SUS). 

No caso da pessoa da nossa situação hipotética com dores no peito, tem-se uma demanda para psiquiatra, psicólogo, médico da família ou ambos? Como outras áreas, caso da assistência social ou da comunidade escolar, no caso de crianças e adolescentes, poderiam ajudar nesse processo? A distribuição e o compartilhamento dessa responsabilidade de forma estratégica  é fundamental para o sucesso dos cuidados em saúde mental. Considerando as desigualdades e a defasagem de recursos humanos e financeiros no SUS, a qualificação contínua, mudança de paradigma de formação e a consolidação do matriciamento podem ser um bom caminho para melhorar o sistema.

 

Helyn Thami é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

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Atuar na prevenção e tratamento em saúde mental de mulheres e adolescentes é prioridade https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/#respond Wed, 11 Aug 2021 10:00:39 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/istock-mulher-terapia_widelg-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=474 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) acaba de divulgar novas diretrizes sobre cuidados em saúde mental, priorizando a recuperação de comunidades e com orientações de combate às violações de direitos humanos. Promover saúde, na lógica dos direitos humanos, significa ir além da lógica estritamente sanitária, muitas vezes centrada na superação dos adoecimentos e não em sua prevenção, para assumir a lógica do bem-estar da saúde de forma integral.

Para o Instituto Cactus combater as violações de direitos humanos no campo da saúde mental requer compreender que não existe uma “receita de bolo” para trabalhar os sofrimentos psíquicos, tampouco existe um caminho que serve para todos ou uma solução que dê conta de toda a complexidade desse tema. Quando falamos em saúde mental, é preciso incorporar uma “lente de aumento” para viabilizar olhares segmentados e adequados para cada grupo, pois suas especificidades determinam como se deve atuar. 

Para criar esses olhares segmentados, pode-se adotar o uso de dados e indicadores na gestão pública, que funcionam como sinalizadores da realidade e podem orientar a tomada de decisões. Cruzar e interpretar essas informações ajuda a compreender as dinâmicas locais, características e necessidades de diferentes territórios e, em consequência, melhora a qualidade dos serviços oferecidos. Os grupos, por sua vez, têm que ser segmentados com base em perfis que incluem preferências, estilos de vida e condições sociais, o que se apoia em uma visão de indivíduo como ser biopsicossocial, integrando questões biológicas, psicológicas e sociais. Ao abordar o indivíduo como ser biopsicossocial e a sua associação com saúde mental como um estado de bem-estar, há que se atentar para não elevar para a saúde mental o nível de exigência que temos para a saúde biológica –já que conflito, inadequação e sofrimento fazem parte do cenário.

Na impossibilidade de atacar todos os problemas de uma única vez de forma efetiva e consistente, o Instituto Cactus elege as mulheres e os adolescentes como públicos prioritários para pavimentar o caminho no campo da saúde mental. O primeiro esforço nesse sentido foi a publicação do levantamento Caminhos em Saúde Mental, desenvolvido em parceria com o Instituto Veredas com o objetivo de oferecer um entendimento amplo e complexo a respeito do campo da saúde mental, considerando tanto os consensos produzidos pelos organismos internacionais quanto a própria experiência brasileira, e ouvindo especialistas das mais diversas áreas: sociologia, gestão pública, medicina e atores do campo.

A escolha desses públicos ilustra como um olhar cuidadoso, empático e direcionado pode ser feito quando se trata de olhar para públicos específicos em saúde mental.  Entendemos que esses públicos trazem questões relevantes que merecem ser priorizadas na compreensão e abordagem da saúde mental, como detalhado a seguir.

 

Adolescentes 

A adolescência é um período marcado por transformações psicossociais em que  acontece a construção da identidade e existem inúmeras mudanças na anatomia, fisiologia, no ambiente social, na relação com a sexualidade etc. Apesar disso, é um momento invisível e negligenciado, o que gera estigmas e impactos negativos na qualidade de vida dos adolescentes, e que serão carregados até a fase adulta. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, 50% das condições de saúde mental começam até os 14 anos de idade e afetam 3 a cada 4 pessoas até os 24 anos. Ainda, segundo a OMS, suicídio é segunda causa de morte entre jovens de 15 a 24 anos. Esse é o público que, no futuro, serão os líderes da sociedade, cidadãos e agentes de transformação do mundo. Mas como construir o futuro sem cuidar no presente da saúde mental de quem será responsável por ele? 

Aproximadamente 80% dos casos não são diagnosticados ou tratados adequadamente e, por isso, muitos dos quadros que poderiam ser prevenidos ou recebido intervenções precocemente se agravam e afetam não só o indivíduo, mas todo o seu entorno. Nesse sentido, a prevenção em saúde mental é extremamente necessária. Não podemos continuar sendo um país que apaga incêndios e não ataca a raiz dos problemas com ações sistemáticas para resolvê-los a longo prazo. Os estigmas e as consequências de transtornos não tratados impactam a qualidade de vida desses adolescentes por toda a vida, sua habilidade de convívio em comunidade, sua produtividade e suas relações sociais e com o meio ambiente. 

O rótulo de “aborrescente”, que os define como inconsequentes e rebeldes sem causa, naturaliza os obstáculos dessa fase da vida e diminui o sofrimento decorrente de violências sexuais e domésticas, bullying etc.. Têm também repercussões drásticas na vida desses jovens, como o uso abusivo de substâncias, desenvolvimento de psicopatologias, reflexos negativos nas relações interpessoais e comportamentos de risco para aqueles que são tidos como o “futuro da nação”. 

 

Mulheres

A prevalência de condições de saúde mental é maior nas mulheres, quando comparadas aos homens, e isso vai muito além da perspectiva biológica. Segundo a OMS, o gênero implica diferentes suscetibilidades e exposições a riscos específicos para a saúde mental, por conta de diferentes processos biológicos e relações sociais. Nascer mulher perpassa papéis, comportamentos, atividades e oportunidades que determinam o que podemos experimentar ao longo da vida e, portanto, estabelece vivências estruturalmente diferentes daquelas experimentadas pelos homens. 

Uma em cada cinco mulheres apresenta transtornos mentais comuns e a taxa de depressão é, em média, o dobro da taxa de homens com o mesmo sofrimento, podendo ainda ser mais persistente nas mulheres. A sobrecarga física e mental de trabalho é apontada como um dos principais fatores que deixam as mulheres especialmente vulneráveis aos sofrimentos psicológicos: em mulheres com alta sobrecarga doméstica, por exemplo, o número de mulheres com transtornos mentais comuns vai de 1 a cada 5 mulheres para 1 a cada 2 mulheres. Esses dados impactam também os dados sobre tentativas de suicídio –mulheres são duas vezes mais propensas.

Nesse sentido, o acolhimento das mulheres com questões de saúde mental demanda um olhar ampliado para outras questões físicas, psicológicas e sociais relacionadas ao gênero. Os transtornos alimentares, por exemplo, são causas importantes de morbidade e mortalidade entre mulheres jovens e precisam ser considerados a partir de um debate sobre os padrões físicos impostos pela mídia e pela indústria da beleza. Além disso podemos vivenciar transtornos mentais associados à gestação, ao aborto, ao puerpério e à menopausa, inclusive como sequelas de violência médica e obstétrica. 

Que marcas a violência obstétrica, que tem como maiores vítimas as mulheres negras, deixa na vida de uma mulher que não é poupada da dor no momento de dar a luz e não recebe uma série de outros cuidados tão importantes nesse momento? Por isso precisamos olhar para esse público de forma segmentada e específica. Como um primeiro passo para avançar nesse desafio, além de consolidar dados e convocar mais olhares para o tema no “Caminhos em Saúde Mental”, o Instituto Cactus apoia um projeto de acolhimento psicológico de emergência para mulheres negras, pardas, indígenas e/ou periféricas da Casa de Marias, iniciativa focado em democratizar acesso a ferramentas de alívio emergencial de sofrimento mental para esse público. 

 

Porque priorizar a saúde mental de adolescentes e mulheres 

Adolescentes e mulheres são importantes vetores de mudança para a sociedade. Eles são os líderes dessa e das próximas gerações e elas, as principais responsáveis por práticas de cuidado, predominando em categorias como educadoras, enfermeiras, assistentes sociais etc., além de  referências em seus núcleos familiares. Ambos possuem uma grande importância e têm, no melhor dos casos, recebido uma atenção parcial no país. Por isso a decisão de focar as ações do Instituto Cactus, inicialmente, nesses públicos. 

Sabemos que esse recorte não é exclusivo ou exaustivo e que existem diversos outros grupos que merecem atenção e cuidado de forma emergencial, como a população negra, os povos indígenas e as populações que são submetidas a situações de emergência humanitária, mas nossa escolha pelos públicos de mulheres e adolescentes se baseia, em grande parte, no entendimento de que estes grupos não só mereciam mais atenção como multiplicadores de mudança, mas também como bastante negligenciados pelas políticas públicas e iniciativas atuais e, portanto, com uma grande oportunidade de atuação e impacto positivo.

O foco nesses públicos faz parte de um esforço vital para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Agenda 2030 da ONU. O ODS número 3 tem como meta boa saúde e bem-estar, o que requer a redução da carga de transtornos mentais e mortes por suicídio. O ODS 5 busca a igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres e meninas. Esses dois objetivos andam de mãos dadas, pois sabemos que meninas e mulheres sofrem desproporcionalmente as consequências negativas dos transtornos mentais comuns, que estão fortemente associados às experiências femininas de violência e oportunidades e compensação desiguais em termos de educação e oportunidades no mercado de trabalho. 

Construir olhares segmentados que deem conta da individualidade de cada um, com empatia, e que contribuam para a construção de práticas e intervenções mais efetivas é fundamental para um trabalho mais assertivo e sustentável para trabalhar a saúde mental.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Saúde mental: indicadores e dados descomplicados são fundamentais para melhorar a efetividade dos serviços no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/#respond Wed, 21 Jul 2021 10:00:30 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/1d7dc5b1146b96618d440d3a8ddadd46_05-29-17_05-35-32-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=456 Maria Fernanda Quartiero, Luciana Barrancos, Daniela Krausz e Isabel Opice 

 

Uso de dados e indicadores na gestão de saúde potencializa a implementação de políticas públicas e a formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental

 

Como se mede a satisfação de usuários e o sucesso dos serviços de saúde mental? Para rever e ajustar estratégias de cuidado oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS), é necessário entender o que está funcionando, o que não está e porquê. Dados e indicadores são fundamentais para apoiar tomadas de decisão com base em evidências e avançar no seu uso na gestão pública é uma oportunidade para alavancar formas de avaliação e aprimoramento dos serviços de saúde mental no Brasil.  

Atualmente, não existe um conjunto de indicadores que seja aplicado de forma consensual e consistente, tendo como objetivo monitorar e medir a efetividade do sistema de saúde mental no nível no país. Sabemos que sete a cada 10 pessoas dependem exclusivamente do SUS, e também que saúde mental foi o sexto motivo mais frequente apontado como impedimento para a realização de atividades habituais –como mostrou o último levantamento sobre acesso e utilização dos serviços de saúde do IBGE em 2019.

Mas apesar de a saúde mental ser um tema cada vez mais presente na agenda do dia, por que razão os governos ainda têm pouco acesso a informações de qualidade e não usam indicadores para direcionar esforços e recursos em direção às necessidades da população?

São três os principais desafios identificados para o uso de indicadores no desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental no Brasil.

O primeiro desafio refere-se à subjetividade do diagnóstico. Diferentemente de indicadores relativos a doenças como hipertensão e diabetes, muitas vezes binários e mais objetivos (há ou não há determinado quadro), o diagnóstico na saúde mental é mais subjetivo. Definir um distúrbio depende de observações e de um entendimento amplo e integral do usuário, razão pela qual se recomenda que os diagnósticos sejam feitos dentro de um espectro –desde casos mais leves a casos mais graves. A complexidade do diagnóstico no nível individual dificulta o entendimento mais amplo e a construção de indicadores no nível das redes de saúde.  

Como segundo elemento, destaca-se a  falta de uma visão completa do usuário e de sua trajetória dentro da  rede de atenção psicossocial. Para utilizar dados e indicadores, é crucial entender a trajetória de uma pessoa dentro do sistema, oferecendo informações sobre a continuidade de tratamentos iniciados dentro do equipamento e apontando caminhos para melhorias nas práticas de cuidado. Hoje, as principais informações registradas sobre cidadãos no sistemas de saúde –como quantidade de atendimentos realizados, por exemplo– não são suficientes para desenvolver indicadores que permitam o entendimento de onde esse fluxo não está funcionando. A multiplicidade de sistemas existentes também contribui para esse desafio, com a gestão pública se deparando com problemas na trajetória do usuário, mas não dispondo de métricas para entender o tamanho do problema ou o ponto exato onde o fluxo está disfuncional.

Por fim, há o obstáculo relativo ao  baixo uso de indicadores de sucesso e de resultado dos serviços de saúde mental. Não há, de forma consistente no Brasil, métricas de resultado e sucesso que ajudem gestores a entender deficiências dos serviços e a rever as estratégias para ajustar o que for necessário, com base em dados concretos. Por exemplo, o que leva uma pessoa a abandonar um tratamento em saúde mental? Qual é o impacto de um serviço na qualidade de vida das pessoas que passam por ele? Quais são os serviços capazes de potencializar a autonomia de pessoas com transtornos de saúde mental? No Canadá, mede-se a taxa de repetição de hospitalizações para pessoas com doença mental em um ano, já que uma taxa alta pode indicar uma deficiência do atendimento. 

Em função desses desafios, dada a importância da saúde mental para a qualidade de vida dos brasileiros, o Instituto Cactus e a ImpulsoGov estão desenvolvendo projeto piloto, em parceria com governos municipais, com o objetivo de consolidar indicadores de saúde mental que forneçam informações-chave ao gestor público, e que ajudem a melhorar a qualidade dos atendimentos e possam ser utilizados em outras cidades do Brasil. 

Para isso, envolver o ecossistema de saúde mental do Brasil no uso de indicadores é fundamental. Acreditamos que todo esse processo precisa ser feito de maneira integrada ao dia a dia da gestão e ao funcionamento dos equipamentos de saúde pública. Criar indicadores de saúde mental, gerando informação de qualidade e descomplicada, é um passo-chave que terá impacto positivo a cuidadores e usuários do sistema de saúde, permitindo que a alocação e uso do orçamento de recursos públicos sejam otimizados, e que os processos decisórios, a qualidade e a efetividade dos serviços públicos de saúde mental sejam aprimorados no Brasil, impactando milhões de brasileiros.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício.

Daniela Krausz é Gerente Sênior de Projetos na ImpulsoGov, uma organização brasileira de saúde pública que tem como objetivo impulsionar o uso de dados e tecnologia no setor público para assegurar o direito a uma vida saudável a todas as brasileiras e brasileiros, sem exceção.

Isabel Opice é Co-fundadora e Diretora de Operações da ImpulsoGov e Mestre em Desenvolvimento Internacional pela Universidade de Harvard, com experiência no Governo do Estado de São Paulo e no Instituto Ayrton Senna.

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Não é efeito pandemia: saúde mental já era um problema de saúde pública e a conta é de todos nós https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/#respond Wed, 14 Jul 2021 10:00:41 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terapia-de-casal-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O debate público sobre sofrimento psicológico pode ser recente, mas os dados alarmantes sobre o tema não são, e precisamos assumir a responsabilidade coletiva desse problema.

 

Não dá mais pra fugir do assunto: saúde mental entrou em pauta de forma irreversível e em caráter de urgência devido à crise desencadeada pela pandemia de Covid-19. As taxas de ansiedade, depressão, insônia, síndromes de esgotamento mental e outros sintomas de sofrimentos psíquicos aumentaram drasticamente e a saúde mental virou assunto cada vez mais comum em nossas conversas no trabalho, com a família e amigos, em instituições de ensino e na internet. 

É inegável que as medidas de isolamento social intensificaram o processo de adoecimento da população, mas é um equívoco tratar o colapso na saúde mental como um fenômeno recente.  Estamos arcando com as consequências de anos de desatenção nesse campo. O debate público sobre a saúde mental pode até ser atual, mas os dados alarmantes sobre sofrimentos psíquicos não são. Para enfrentar essa questão, agora emergencial, precisamos antes de tudo reconhecer que esse é um desafio antigo, que já afetava milhões de brasileiros havia muito tempo –e admiti-lo como um problema de saúde pública

Antes do novo coronavírus já vivíamos uma pandemia de violência e uma crise socioeconômica que afetava a saúde mental de todos os brasileiros. Ainda em 2019 o Brasil foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o país mais ansioso do mundo, com mais de 18 milhões de pessoas acometidas, o que representa mais do que toda a população da região norte. Também já éramos o quinto país mais depressivo, um salto de 34% em relação aos dados de 2013. Esses dados nos levam à compreensão de que saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é também resultado da complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida das pessoas. Por isso é fundamental trabalhar essa pauta em interface com outras agendas sociais, considerando as interseccionalidades do tema. 

Até hoje, as políticas públicas de promoção e prevenção em saúde mental foram tímidas e limitadas para enfrentar um problema dessa dimensão, e atravessado por questões estruturais e com muitas especificidades. O direito à alimentação saudável e adequada, à moradia, saneamento básico, trabalho, educação, transporte, lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais são fatores determinantes e condicionantes para a efetivação do direito à saúde. Por isso, não podemos optar por soluções isoladas, que não considerem as abordagens mais adequadas para cada pessoa.

 

Interseccionalidades e soluções individualizadas 

Como um problema de saúde pública, o cuidado com a saúde mental é uma tarefa coletiva, que precisa direcionar esforços do poder público, sociedade civil e ciência. Por esse motivo o debate não pode ficar restrito aos profissionais que atuam diretamente nos serviços de atendimento. É preciso fortalecer a perspectiva de saúde integral para que o sistema seja mais efetivo na oferta de tratamentos de saúde mental que sejam associados a outras especialidades da saúde integral e que considerem questões estruturais nos diagnósticos –analisar os adoecimentos físicos e mentais  em conjunto para, então, cuidar de forma integral. 

A dimensão do sofrimento é comum a todas as pessoas e não é mensurável em nível individual. Em uma sociedade extremamente desigual, os sofrimentos psíquicos podem até ser os mesmos (ansiedade, angústia, solidão), mas afetam cada indivíduo com base na introjeção da realidade material de cada um –por isso precisamos considerar questões estruturais. Nesse cenário, as minorias sociais são particularmente afetadas, como por exemplo as mulheres com alta sobrecarga doméstica —48% delas apresentam prevalência de transtornos mentais comuns. Em mulheres com baixa sobrecarga essa taxa cai para 22,5%, o que indica que aspectos referentes ao trabalho doméstico devem ser considerados e incorporados à avaliação da saúde mental das mulheres

Na prática, pessoas em situação de vulnerabilidade social são ainda mais suscetíveis ao adoecimento mental, pois têm muito mais restrições no acesso aos serviços de saúde — tanto os de prevenção como os de tratamento–, além da negação e da violação de outros direitos básicos. Nesse sentido, compreendemos que o sofrimento é uma condição da natureza humana. O sofrimento é “democrático”, mas o acesso aos cuidados desses sofrimentos não –é socialmente determinado.

Por isso precisamos atuar não só no tratamento dos sintomas, mas também criar soluções individualizadas de cuidado com base na reflexão sobre as questões estruturais que intensificam o processo de sofrimento a alguns grupos sociais. E fazer isto promovendo o acesso aos meios de elaboração do sofrimento psíquico, aos serviços de saúde integral e a outras condições necessárias para a saúde mental de todas as pessoas. Individualizar, porém, não significa personalizar atendimentos caso a caso, mas sim propor alternativas adaptadas que considerem as diferenças individuais. As soluções de saúde mental têm que ser consistentes e segmentadas em seus públicos. 

 

Então de quem é a responsabilidade pela saúde mental? 

São muitos os desafios no campo da saúde mental e só poderemos superá-los em rede e articulando diferentes setores. Especialmente em idades precoces, os sofrimentos psíquicos têm consequências que podem se estender ao longo do ciclo vital, comprometendo também a vida adulta ativa e saudável e gerando fragilidades tanto para o indivíduo quanto para famílias e comunidades. 

Crianças e adolescentes não se informam sobre saúde mental, mas leem os cuidadores e espelham seu comportamento em outros espaços sociais, então quanto mais ansiosa nossa sociedade estiver, mais as futuras gerações estarão. Como será o desenvolvimento e o futuro de uma criança ou adolescente para os quais não abordamos preventivamente a saúde mental? Como iremos lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) profundamente agravada entre adolescentes devido à pandemia? 

Por isso é fundamental que gestores, educadores, orientadores e assistentes sociais, em interface com profissionais de saúde, tenham à disposição ferramentas e recursos para lidar com a saúde mental em ambientes escolares e também que recebam acompanhamento terapêutico para terem condições de exercer essas atividades de cuidado. As pessoas não passam a se cuidar só porque alguém está dizendo que é preciso, nem mesmo aquelas que trabalham cuidando dos outros – é um processo de médio e longo prazo em práticas de cuidado em saúde mental, um investimento que dá trabalho e tem que ser sistêmico. 

 

Saúde mental: esse desafio deve ser compartilhado em rede

A epidemia vai passar, mas deixará traumas e sintomas de estresse pós-traumático para gerações inteiras, que terão que aprender a arcar com a conta da saúde mental a longo prazo. Ao dar luz aos sofrimentos psíquicos e falar sobre isso em ambientes públicos e privados, vamos descobrindo estratégias individuais e coletivas para promoção e prevenção em saúde mental, com a criação de autonomia, de oportunidades que capacitem cada pessoa a fazer escolhas e que permitam a sua participação como protagonista do seu cuidado.

Podemos fazer desse desafio uma oportunidade de enfrentar um problema antigo e urgente, além de melhorar nossa capacidade de articulação e colaboração trabalhando de forma coordenada em prol da saúde mental. Precisamos nos articular em rede, envolver mais atores estratégicos e acionar outros serviços e setores para que o direito à saúde mental seja efetivado e essa discussão ultrapasse os muros dos órgãos de saúde. Para isso, precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de tratar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. 

A essa altura é fundamental destacar que, apesar de a responsabilidade ser compartilhada, não podemos criar barreiras de ação na tentativa de encaixar as estratégias nesse campo em “caixinhas”, de forma setorizada, ministerial ou mesmo temática. Precisamos coordenar nossos esforços e entender que olhar para a saúde mental das mulheres, por exemplo, não é responsabilidade exclusiva dos órgãos e projetos de saúde, nem apenas das relacionadas à saúde mental, tampouco unicamente de entidades de direitos das mulheres. Se ficarmos nessa perspectiva podemos deixar vácuos de atuação justamente nos públicos mais vulneráveis, atravessados por uma série de questões interseccionais, como educação, trabalho, moradia etc. 

No Instituto Cactus, organização com atuação focada em saúde mental, especialmente de mulheres e adolescentes, trabalhamos para contribuir com esse imenso desafio de reunir esforços e para traçar caminhos de atuação em saúde mental no Brasil. Em nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, publicado em maio em parceria com o Instituto Veredas, destacamos a necessidade de priorização de políticas públicas de saúde mental, que devem ser monitoradas por meio de iniciativas como análise da situação, avaliação de serviços com indicadores, formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental, além da integração de dados e prontuários em sistemas digitais de regulação e referenciamento e elaboração de estudos de implementação, com apoio e orientação para análise de cenários.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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Saúde mental: o que é, por que não falamos tanto sobre isso, e por que deveríamos falar mais? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/#respond Wed, 30 Jun 2021 10:00:29 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Colunas_PandemiaTerapia_060421_FatCameraGettyImages-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Uma infinidade de conceitos surge quando se fala em saúde mental. Eles nos remetem à presença ou à ausência de uma doença, ou então ao mais completo bem-estar. Podemos pensar, ainda, em saúde mental sob o ponto de vista do indivíduo, ou dando ênfase ao contexto coletivo, social e suas complexidades.

Essas definições às vezes se complementam, em outras se opõem, mas não refletem necessariamente a complexidade da saúde mental e sua profunda integração com outros temas sociais como educação, trabalho e sistemas de saúde. A saúde mental não é só inexistência de doença e também não deveria ser uma expressão para designar “vida perfeita”. Também não é apenas sinônimo de bem-estar, leveza e despreocupação, sob o risco de cairmos em uma situação de positividade tóxica, em que estaríamos rejeitando a tristeza e outras emoções entendidas como negativas. Saúde mental também não pode ser vista apenas sob a perspectiva do indivíduo e suas questões genéticas e biológicas, negligenciando os diversos componentes sociais, estruturais e de comunidade que a influenciam.

Saúde mental é parte fundamental da saúde do nosso organismo. Do nosso funcionamento biológico e psicológico. Do nosso corpo pessoal e também social. Nesse sentido, ela está relacionada à forma como cada pessoa lida com seu entorno, seus desafios cotidianos e as transformações da vida. É o resultado de uma complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva, a educação, as violências e o acesso ou falta de bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária.

 

Abordagens falhas e estigmas dificultam o debate sobre Saúde Mental

Muitas vezes por incompreensão do tema e falta de informação qualificada, a narrativa da saúde mental na nossa sociedade não faz jus à centralidade que ela efetivamente ocupa.

Atualmente, em média,  menos de 2% dos orçamentos públicos de saúde são alocados para a saúde mental globalmente, sendo que a situação é ainda pior em países de baixa e média renda, como o Brasil, em que se gasta menos de USD 2 per capita no tratamento e prevenção de transtornos mentais, comparado com um investimento de USD 50 per capita em países de alta renda.

Em termos de investimento social privado, apenas 4% do total de R$2,5 bilhões de investimento social privado no Brasil em 2019 foram destinados à saúde e esporte, bastante abaixo do que seria necessário para intervenções estruturais no campo.

Além da desinformação, barreiras culturais, financeiras e estruturais também são relevantes, como o estigma, a descrença no tratamento e o insuficiente treinamento das equipes de atenção básica para lidar com o assunto.

Outro fator de destaque é a falta de dados e indicadores atualizados sobre saúde mental –o último levantamento nacional abrangente do tema se deu em 2015, não tendo sido atualizado desde então, o que dificulta um entendimento robusto da situação. Estudos epidemiológicos são de fundamental importância para determinar um panorama assertivo da saúde mental, e para podermos compreender melhor os determinantes sociais da saúde mental, trabalhar abordagens preventivas, priorizar a alocação de recursos, e obter insumos importantes para o planejamento adequado das políticas públicas.

 

Por que é preciso falar mais sobre Saúde Mental?

Os impactos econômicos e sociais dos problemas de saúde mental estão associados a consequências negativas que afetam a sociedade como um todo, abrangendo a redução de mão de obra qualificada, o desemprego, a falta de moradia, a morte prematura, o impacto na educação, a oneração do sistema público de saúde, entre outros.

Recentemente, um levantamento colocou as doenças mentais –como os transtornos depressivos e os transtornos de ansiedade–  como a categoria com maior fardo global de doenças no que diz respeito aos anos vividos com incapacidade (YLD), representando 32,4% do total de anos. Já em termos de anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs), que consideram tanto os YLD quanto as mortes prematuras relacionadas à doença (YLL), as doenças mentais representam significativos 13% do total de anos, percentual equivalente às doenças cardiovasculares e circulatórias.

Para além dos desafios existentes na vida dos indivíduos relacionados à carga global de doença, existe um crescente reconhecimento de que a falta de atenção dada à saúde mental reflete diretamente em custos financeiros relevantes. Dados do Fórum Econômico Mundial estimam que de 2010 até 2030 haverá perdas econômicas globais de USD 16 trilhões atribuíveis aos transtornos mentais, neurológicos e por uso de substâncias, o que representa mais de 10 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2020.  Estimativas da pesquisadora Sara Evans-Lacko, da London School of Economics, mostram que no ambiente de trabalho o Brasil perde USD 78 bilhões com a queda de produtividade. Além disso, o “burnout” é uma das maiores causas de absenteísmo e representa de 20% a 50% das causas de “turnover” nas empresas. No que diz respeito à educação, pesquisas das “national academies” de ciências, engenharia e medicina dos Estados Unidos revelaram que a evasão escolar de estudantes com problemas de saúde mental chegava a 43% a 86%, enquanto que um dos primeiros estudos a investigar a relação entre saúde mental e evasão escolar, feito por pesquisadores do Canadá, revelou que estudantes com depressão têm duas vezes mais chance de deixar a escola comparado com seus pares sem quadros depressivos.

Concluímos que é  imprescindível refletir na narrativa da saúde mental a mesma centralidade que ela já ocupa na nossa sociedade, nos nossos lares, corporações e vidas pessoais. Precisamos falar abertamente sobre isso,  de forma clara e articulada, e redirecionar investimentos públicos e privados para essa causa. Nessa encruzilhada, a promoção e a proteção da saúde mental devem estar em primeiro plano, sendo indispensável a avaliação contínua das políticas implementadas, de modo a adaptar a oferta e o cuidado com a saúde mental às demandas do momento e do contexto.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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