Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Possíveis caminhos para solucionar os gargalos de implementação das Linhas de Cuidado de DCNTs na APS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/#respond Wed, 22 Sep 2021 10:00:04 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/eccbfb94-6a3c-4a17-a605-ca23957ed714-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Fernanda Leal e Helyn Thami

 

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) respondem por 3 de cada 4 mortes de brasileiros e brasileiras, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O envelhecimento da população e o aumento da prevalência de fatores de risco comportamentais — como inatividade física e alimentação inadequada —, tende a elevar, nos próximos anos, a incidência de DCNTs na população brasileira, pressionando a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma pesquisa desenvolvida pelo IEPS em parceria com a Umane (Panorama IEPS n. 2) mostrou que as Linhas de Cuidado (LC) para DCNTs — conjunto de fluxos assistenciais que manejam as múltiplas necessidades dos portadores dessas doenças — não estão plenamente implementadas nos municípios brasileiros. As Linhas de Cuidado devem atender às diversas demandas dos usuários, em diferentes níveis de complexidade, garantindo a promoção e a restauração da saúde.

Para os principais desafios encontrados são apontados os possíveis caminhos para…

1. Reduzir barreiras de acesso

A baixa cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) em alguns locais faz com que uma parte importante da população brasileira não tenha acesso a serviços essenciais. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, 40% dos domicílios não estão cadastrados na APS. É preciso eliminar barreiras de acesso aos serviços já existentes. Para ampliar a cobertura da Atenção Primária, alguns passos são cruciais: 

  • Mapear a mancha de cobertura de equipes da APS e identificar vazios sanitários; 
  • Identificar e hierarquizar vulnerabilidades, dando ênfase às áreas mais críticas; 
  • Planejar a expansão da APS, estimando necessidade de pessoal e equipamentos; 
  • Implantar uma estrutura física; 
  • Recrutar e selecionar os profissionais para integrar as novas equipes.

Para operacionalizar isso, pode-se, por exemplo:

  • Buscar financiamento para extensão de horários de atendimento (por exemplo, pelo programa Saúde na Hora, do governo Federal) e diversificar modelos de assistência (atendimento em horários estendidos e intervenções em vias públicas e demais pontos de circulação e socialização); 
  • Apostar no treinamento de profissionais, envolvendo também usuários, para redução de barreiras de acesso ligados a comportamentos dos membros das equipes.

2. Garantir profissionais com treinamento apropriado e em número adequado

O cuidado de qualidade às pessoas portadoras de DCNTs passa pela atuação de profissionais de diferentes áreas, mas na realidade dos municípios há ausência de treinamento apropriado e efetivo para atender às demandas dos usuários crônicos. Para resolver isso, é possível:

  • Atuar, junto a instituições de ensino e pesquisa, na criação de programas específicos para provisão de novos profissionais para esse nível de atenção;
  • Elaborar um plano de valorização e carreira para os profissionais atuantes na APS, visando a fixação de equipes.

Quanto aos modelos de treinamento e difusão do conhecimento, poderíamos:

  • Garantir que se apliquem protocolos baseados na melhor evidência disponível; 
  • Ter materiais simples e de consulta rápida para que os profissionais usem; 
  • Apostar em metodologias mais ativas para apoio de construção e implementação de protocolos.

3. Integrar melhor os níveis de cuidado

Integrar serviços de saúde está entre um dos maiores desafios do SUS.  No cuidado às pessoas com doenças crônicas, essa integração é absolutamente crucial para que haja bom uso de recursos e se consigam melhores resultados de saúde. Para promover essa interlocução, indicamos:

  • Garantir o compartilhamento de informações clínicas entre serviços em toda a rede; 
  • Realização de planejamento conjunto entre serviços envolvidos nas Linhas de Cuidado; 
  • Compartilhar recursos e metas entre serviços; 
  • Investir em posições de liderança para a integração.

4. Ampliar e melhorar o acompanhamento dos usuários

Uma vez que não se tem Linhas de Cuidado plenamente estruturadas, o acompanhamento de quem tem doenças crônicas fica comprometido. Acompanhar adequadamente esses usuários significa ter um calendário de ações de cuidado que contemple desde a promoção da saúde e a prevenção até a recuperação da saúde e limitação de danos. Para que isso seja efetivado, vale a pena:

  • Levantar lista de usuários diagnosticados com DCNTs nos territórios; 
  • Verificar a rotina de consultas e exames destes, além de apontar aqueles que ainda não estão dentro do padrão de cuidado preconizado; 
  • Entrar em contato com usuários para agendar consultas e atividades de acompanhamento; 
  • Realizar busca ativa daqueles que forem difíceis de contactar ou que tenham faltas às atividades.

5. Ampliar os cadastros de usuários

O cadastramento é uma função primordial da APS. A não realização dos cadastros dos usuários do território implica que estes não são rotineiramente acompanhados pelas equipes e, quando o são, são atendidos em condições de demandas mais urgentes, quando, em geral, houve um quadro de agudização que poderia ter sido evitado. Para cadastrar adequadamente os usuários orienta-se seguir dois caminhos, que devem ser implementados de modo simultâneo: cadastrar por meio de visitas dos Agentes Comunitários de Saúde às residências; e ações de mobilização que ajudem as populações mais facilmente ignoradas a obter o acesso aos serviços. 

No primeiro caso, é necessário:

  • Elaborar, junto aos ACS, um cronograma para realização de cadastros e recadastros no território, através de visitas; 
  • Monitorar a execução desse calendário; 
  • Identificar barreiras para realização de cadastros e formulação de planos de ação para mitigá-los. 

No segundo caso, é recomendado: 

  • Planejar ações para mobilizar/buscar ativamente grupos populacionais invisibilizados nos serviços; 
  • Criar estratégias de busca ativa com apoio de lideranças comunitárias; 
  • Acompanhar o aumento de cadastros e cuidado ofertado aos novos usuários.

6. Acelerar a informatização da Atenção Primária à Saúde

Informatizar é uma forma de qualificar a gestão da saúde. A informatização permite compilar e analisar informações, o que pode não só agilizar, mas melhorar a tomada de decisão. No Brasil, persistem alguns gargalos de implementação relacionados aos equipamentos e infraestrutura de conectividade. Contudo, municípios podem tentar financiamento federal por meio do Programa Informatiza APS. Ajudariam muito os seguintes  passos: 

  • Estudar o mapa de infraestrutura e hierarquizar as unidades que podem ou não imediatamente receber recursos de informatização; 
  • Inscrever-se nos programas de financiamento disponíveis; 
  • Planejar as compras de equipamentos; 
  • Estabelecer programas de treinamento para as equipes, de modo a garantir o preenchimento correto das ferramentas de gestão informatizadas e o uso das informações para tomada de decisão no nível local.

7. Aumentar a adesão ao tratamento

As doenças crônicas pressupõem tratamentos e acompanhamento de longo prazo. Por vezes, o tratamento exige mudança profunda de comportamento e impõe graus variados de efeitos colaterais. A falha de adesão ao tratamento configura, portanto, um grave problema a endereçar. Apontamos como caminhos: 

  • Diversificar estratégias de desenvolvimento de vínculo e garantia de acesso. Por exemplo, por meio de atividades coletivas e atuação em espaços de socialização dos usuários; 
  • Organização do trabalho da equipe com ênfase no protagonismo da enfermagem, que é capaz de melhorar adesão; 
  • Desenvolver habilidades de ciência comportamental nas equipes, qualificando a abordagem às mudanças de comportamento necessárias para o melhor controle das doenças. 

Esses pontos estão sumarizados no Olhar IEPS, policy brief que condensa estudos científicos e endereça recomendações para gestores de saúde. O conteúdo desse material também foi discutido no Diálogos IEPS, série de webinários temáticos do IEPS, em uma mesa composta por Michael Duncan (Médico de Família e Comunidade e assessor técnico da Superintendência de APS do município do Rio de Janeiro), Patrícia Jaime (Pesquisadora do Departamento de Nutrição da USP e vice coordenadora do NUPENS), Evelyn Santos (Coordenadora de Projetos da Umane), Arthur Aguillar (Coordenador de Políticas Públicas do IEPS) e Ricardo Gandour (jornalista e mediador).

 

Fernanda Leal, Analista de Políticas Públicas do IEPS.

Helyn Thami, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

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Desigualdade social, pandemia e o Brasil que alimenta a fome e a insegurança alimentar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/#respond Wed, 08 Sep 2021 10:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/prato5-1200x675-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=522 Agatha Eleone, Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Além da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 trouxe aos holofotes um outro fenômeno que impacta diretamente a saúde dos brasileiros: a fome. Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, naquele ano o número de brasileiros em situação de fome voltou a atingir os patamares de 2004. A chegada da pandemia no país marcou também o aumento de 27,6% do número de brasileiros enfrentando a fome, em comparação com o ano de 2018, totalizando 19,1 milhões de pessoas –quase 9 milhões de pessoas a mais do que dois anos antes, o que corresponde a 9% da população brasileira.

O levantamento Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bioeconomy mostrou que, entre os meses de agosto e outubro de 2020, 13,6% dos brasileiros maiores de 18 anos passaram ao menos um dia inteiro sem comer ou com apenas uma refeição, e 125 milhões de brasileiros enfrentaram alguma forma de insegurança alimentar, ou seja, reduziram o número de refeições consumidas por dia ou a quantidade de comida consumida por refeição, motivados pela incerteza de conseguir alimentos posteriormente.

Entre as famílias que enfrentam a insegurança alimentar, a pesquisa também destacou que a fome no Brasil tem gênero e cor –73,8% dos lares chefiados por mulheres e 66,8% por pessoas pretas. A insegurança alimentar também é maior nas residências habitadas por crianças (70,6%) e adolescentes (66,4%) e mais frequente nos domicílios do Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) do país. Ainda, na maioria desses lares a renda familiar não passava dos R$500 mensais, em contraste com o preço médio da cesta básica que, em outubro de 2020, variou de R$ 436,76 em Natal a R$ 595,87 em São Paulo.

Como consequência da insegurança alimentar, a maior parcela da população que hoje não possui renda para custear uma alimentação balanceada  recorre aos ultraprocessados. Apesar de serem normalmente mais baratos, esses alimentos são também mais pobres em nutrientes e ricos em farinhas, açúcares, gorduras, e aditivos químicos, prejudiciais à saúde quando consumidos em grande quantidade. Com isso, outras facetas da insegurança alimentar podem ser a subnutrição e a obesidade da população.  

A situação atual, certamente agravada pela pandemia, evidencia a necessidade de políticas estatais robustas e de longo prazo para combate da miséria e da fome. No entanto, vemos o Governo Federal rumando em direção contrária. Flertando com o segmento de supermercados durante participação no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento no último mês de junho, o Ministro da Economia Paulo Guedes chegou a defender a ideia de que sobras de restaurantes de classe média poderiam ser destinadas a populações vulneráveis. No mesmo evento, a Ministra da Pecuária, Agricultura e Abastecimento, Tereza Cristina, confirmou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a flexibilização de regras sobre a validade dos alimentos como uma alternativa para combater a alta dos preços e o alto índice de insegurança alimentar no país.

Diante dessas falas, é importante pontuar: ignorar a crescente desigualdade e distribuir restos de alimentos ou alimentos vencidos a pessoas pobres não resolve o problema da fome e da insegurança alimentar dos brasileiros, uma vez que esses fenômenos não decorrem simplesmente da falta de alimentos disponíveis para consumo, mas sim da falta de acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para a sobrevivência. Em outras palavras, o problema existe por sucessivos erros na condução das políticas públicas voltadas para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Tanto a fome quanto a insegurança alimentar constituem violação de Direitos Humanos, sendo a alimentação um direito reconhecido pelo Pacto Internacional de Direitos e previsto na Constituição Brasileira.

Dentre as ações que evidenciam a negligência com a saúde e a segurança alimentar do país estão as inúmeras tentativas de reformulação do Guia Alimentar para a População Brasileira — só em 2020, foram dois pedidos enviados pelo Ministério da Agricultura ao Ministério da Saúde. O documento é referência internacional por apresentar recomendações para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando não apenas aspectos nutricionais, mas também o contexto cultural, social e ambiental em que os indivíduos se inserem. Além dos ataques ao Guia, a classificação NOVA, que agrupa e classifica os alimentos pelo grau de processamento, não foi mencionada pela Sociedade Brasileira de Pediatria no Manual de Atualidades em Nutrologia Pediátrica publicado em maio deste ano.

  Além disso, um dos principais alvos do lobby da indústria de ultraprocessados é a discussão sobre a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento da incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Baseados no argumento de que as DCNT são multifatoriais, surge a tentativa de desresponsabilizar o consumo de ultraprocessados como um potencial causador de agravos, distorcendo as crescentes evidências científicas que o associam significativamente a desfechos negativos tanto para a saúde das populações quanto para o meio ambiente. Não à toa a regra de ouro preconizada pelo Guia sugere que aqueles produtos  devam ser totalmente evitados pela população.

Há quem diga que a situação atual é uma consequência gerada exclusivamente pela pandemia de covid-19. Na contramão, evidências anteriores já apontavam para a piora da situação alimentar dos brasileiros. Na linha das ações necessárias para virar esse jogo, um dos primeiros passos seria a atualização da linha de pobreza do Programa Bolsa Família, uma vez que a política, apesar de precursora, hoje conta com uma extensa lista de espera e subestima o número de pessoas que deveriam ser enquadradas no critério de recebimento do benefício. Ainda, é importante garantir o aumento de gastos federais com políticas de desenvolvimento agrário e de estímulo à agricultura familiar; e, finalmente, admitir a fome e a insegurança alimentar como problemas de saúde pública e não apenas como emergência assistencial, fomentando a execução de ações intersetoriais, bem como pesquisa e a formulação de políticas públicas com base em evidência.

 

Agatha Eleone é nutricionista, especialista em saúde da família e em gestão da atenção básica, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). 

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos  para Políticas de Saúde (IEPS). 

Rebeca Freitas é cientista social, bacharel em Direito, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, e especialista em relações governamentais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Saúde mental e violências: aprofundando a compreensão sobre algumas das origens e atravessamentos dos sofrimentos psíquicos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/#respond Fri, 27 Aug 2021 10:00:00 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/psychological-abuse-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=508 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O combate à violência contra as mulheres teve uma conquista importante com a sanção, no final de julho deste ano, da Lei de Criminalização da Violência Psicológica (14.188/2021). A nova legislação facilita o registro de boletim de ocorrência por violência psicológica e também a obtenção de medidas protetivas de urgência. A lei contempla mais aspectos da violência psicológica, já previstos na Lei Maria da Penha, mas que não categorizava um tipo penal para condutas como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância e isolamento. Assim, na imensa maioria dos casos, essas práticas só passaram a configurar crimes com a nova lei.

O números de adoecimentos mentais e de violência contra as mulheres aumentou durante a pandemia. Por isso, aprofundar o debate sobre violência psicológica torna-se importante para ampliar as práticas de cuidado da saúde mental das mulheres. Já no caso dos jovens, as múltiplas violências, como violência sexual e doméstica e bullying, são identificadas como as principais determinantes sociais para a sua saúde mental. 

Observar as interseccionalidades e as agendas compartilhadas é fundamental para compreender com mais profundidade como as dimensões do sofrimento psíquico se relacionam com questões estruturais. O adoecimento mental de mulheres em decorrência de violência obstétrica, por exemplo, não deveria ser visto como um problema de saúde pública? Não deveríamos falar do impacto na saúde mental e do sofrimento de mães de jovens negros que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, como uma consequência de problemas na segurança pública? A violência psicológica contra as mulheres, por exemplo, é uma das formas da violência de gênero e deve ser prevenida e tratada a partir do cruzamento com outras esferas desse problema. 

Existem outras formas de violência além da psicológica: institucional, sexual, física, patrimonial e moral. Há uma infinidade de manifestações de cada uma dessas categorias. Além disso, podemos pensar sobre as violências cotidianas, comum a todas as pessoas, como por exemplo a constante minimização de nossos sofrimentos para continuar a fazer o que é preciso (trabalhar, estudar, cuidar da família) ou ainda as violências institucionais. 

A falta de acesso a tratamentos adequados de saúde mental no sistema público, a exposição à violência urbana generalizada e as condições precárias de transporte, educação e cultura a que a maior parte da população é submetida, podem ser vistas como violências institucionais que impactam a nossa saúde mental. Nesse contexto, as minorias sociais são particularmente afetadas: mulheres, crianças e adolescentes negligenciados, pessoas negras e LGBTQIA+ são alguns exemplos de grupos que se tornam mais suscetíveis ao adoecimento mental quando pensamos nesse tipo de violência. 

 

Exercitando olhares segmentados: violências contra adolescentes e mulheres  

Consciente de que é preciso estabelecer prioridades para uma atuação estratégica, o Instituto Cactus fez a aposta institucional de olhar, especialmente, para adolescentes e mulheres, públicos prioritários para pavimentar o caminho de transformação do cenário da saúde mental no Brasil. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, entre 2011 e 2018, enquanto para os adolescentes (de 15 a 19 anos) a violência física representou 59% dos atendimentos registrados, no caso dos pré-adolescentes (de 10 a 14 anos) o percentual foi de 36% do total. Quando se analisam os dados de violência autoprovocada no Brasil, conseguimos ver uma outra ponta desse desafio: são mais de trezentas mil notificações, das quais 45% dos episódios foram realizados por jovens entre 15 e 29 anos –entre os quais 67% são mulheres. Indo ao extremo do problema, dados mostram que o suicídio é  a segunda causa mais frequente de mortes de jovens de 15 a 29 anos no mundo todo –e 7 a cada 10 casos acontecem em países de baixa e média renda. 

No caso de meninas adolescentes, é necessário considerar que a violência de gênero começa, muitas vezes, ainda na infância, atravessa a transição para a juventude e se estende por toda a vida. Mulheres que foram expostas a violências na infância apresentam maior risco para revitimização na vida adulta, para episódios depressivos, de ansiedade, de estresse ou relações prejudiciais com a alimentação, a bebida alcoólica ou outras drogas. Dados de 2003 e 2010 mostram que 62% das vítimas de violência sexual e 82% das ocorrências de exploração sexual eram do sexo feminino. 

Nesse ponto do debate, nos deparamos com um desafio importante para os cuidados da saúde das mulheres: a falta de compreensão e a fragmentação nos serviços de saúde. Os profissionais admitem que nos atendimentos, no geral, as mulheres se calam sobre a violência de gênero, ao mesmo tempo em que intensificam a procura por serviços de saúde, sendo estereotipadas como “poliqueixosas”. Esse arquétipo, além de prejudicar as estratégias de tratamento, pode ser também uma forma de violência institucional e representa uma violência psicológica contra mulheres, que muitas vezes enfrentam o estigma no próprio processo de tratamento. 

A Lei de Criminalização da Violência Psicológica é um grande passo para coibir a violência contra as mulheres, mas é necessário ir além e atacar todas as formas de violência para avançar promoção e prevenção em saúde mental. Refinar a análise sobre a violência psicológica e institucional requer a produção de estudos sobre os efeitos e abordagens para trabalhar as  violência de instituições, como, por exemplo, asilos, abrigos, instituições de tratamento para usuários de drogas e também no sistema penitenciário. 

As diversas formas de violências são um fenômeno social que não pode ser reduzido aos estados psíquicos relacionados ao sofrimento mental, por isso a convergência com os debates sobre saúde mental tem muito a contribuir. Sejam impactos relacionados a situações de violência psicológica, física, sexual ou institucional, as soluções propostas devem abordar de forma assertiva o sofrimento psíquico decorrente dessas violências. É preciso, ainda, considerar as especificidades dos diversos adoecimentos e criar abordagens adequadas para diferentes públicos, pois as consequências de cada tipo de violência podem ser muito particulares e não se pode deixar de lado os olhares segmentados para esse debate.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Por que as linhas de cuidado de doenças crônicas não transmissíveis no Brasil ainda pertencem ao mundo da ficção? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/#respond Fri, 13 Aug 2021 10:00:34 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/111111111-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=478 Fernanda Leal

 

As Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs) matam 41 milhões de pessoas a cada ano, o equivalente a 71% de todas as mortes no mundo. É o que afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS). Desse total, 15 milhões morrem por alguma DCNT entre 30 e 69 anos, e mais de 85% dessas mortes “prematuras” ocorrem em países de baixa e média renda, como o Brasil.

Nos últimos anos, o Brasil passou por importantes transformações no seu padrão de mortalidade e morbidade, em função dos processos de transição epidemiológica, demográfica e nutricional da população. Assim como em nível mundial, aqui as DCNTs são altamente relevantes, tendo sido responsáveis, em 2016, por 74% do total de mortes, com destaque para doenças cardiovasculares (28%), neoplasias (18%), doenças respiratórias (6%) e diabetes (5%), de acordo com dados da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel). 

O que se sabe é que um pequeno conjunto de fatores de risco responde pela maior parte das mortes por DCNTs e por fração substancial da carga de doenças relacionadas a essas enfermidades. Entre esses fatores destacam-se o tabagismo, o consumo alimentar inadequado, a inatividade física e o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Pensando nisso, o Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS) e a Umane desenvolveram um extenso relatório, denominado Panorama IEPS, que busca entender os motivos que tornam as DCNTs gargalos sistêmicos dos nossos sistema de saúde e como enfrentar esse desafio por meio da implementação de linhas de cuidado de DCNTs nos municípios.

O documento identificou importante deficiência na implementação dessas linhas de cuidado e que isso  se deve a 7 causas principais:

  1. Gargalos de acesso impedem que usuárias e usuários realizem rastreio e tratamento de DCNTs. Rastrear adequadamente as DCNTs e tratá-las em tempo oportuno depende de acesso a uma Atenção Primária à Saúde (APS) capilarizada e efetiva. Nesse sentido, é preciso aumentar a cobertura e resolver barreiras de acesso em serviços já existentes. 
  2. Faltam profissionais e treinamento para a atuação em equipes multiprofissionais no Sistema Único de Saúde (SUS). Além da falta de profissionais qualificados para lidar com a APS, os modelos de treinamento têm muito espaço para melhora.
  3. As Linhas de Cuidado são operadas em total ou parcial segregação entre níveis de cuidado. Isso significa que a fragmentação compromete a integralidade. É preciso que serviços de saúde de diferentes complexidades atuem de forma coordenada e sinérgica para que cada usuária ou usuário do SUS tenha o tratamento de que necessita, em tempo oportuno.
  4. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está sendo acompanhada. O acompanhamento de usuários crônicos deixa a desejar. Os números do Previne Brasil mostram o baixo percentual de hipertensos e diabéticos com registro de pressão arterial e hemoglobina glicada, respectivamente, destacando que a longitudinalidade está longe de ser uma realidade.
  5. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está cadastrada. Pesquisas mostram que os brasileiros iniciam o cuidado a partir de um diagnóstico, sem prevenção. Para que o cuidado se inicie em momento oportuno, o cadastro dos usuários do território da unidade precisa ser realizado. Para isso, há diversos desafios, como equipes incompletas e desmotivadas, agentes comunitários de saúde como peças facultativas das equipes e territórios descobertos, caracterizando desertos sanitários.
  6. Lentidão do processo de informatização da Atenção Primária no Brasil. Falta de infraestrutura, de financiamento amplo, de profissionais de tecnologia com interseção em saúde e sensibilidade das gestões sobre os benefícios do uso de dados são os principais desafios contidos nessa causa.
  7. Por fim, a variável que impede a implantação adequada das Linhas de Cuidado de DCNTs é a baixa adesão ao tratamento por parte dos portadores de doenças crônicas. Profissionais têm dificuldades de sensibilizar os usuários para a importância do autocuidado e adesão às orientações, incluindo tomar medicações, seguir recomendações alimentares e/ou mudar comportamentos.

Esses pontos foram levados em uma democrática mesa de discussões no webinarDiálogos IEPS”, realizado no último dia 28 de julho e que uniu a visão de pesquisadores e de gestores que vivem na pele os desafios diários de tratar usuários crônicos. Apesar das diferentes vivências, a conclusão sobre o tema foi a mesma: as Linhas de Cuidado de doenças crônicas não transmissíveis ainda pertencem ao mundo da ficção. 

Isso significa que temos as Linhas de Cuidado de jure, expressas em normativas do Ministério da Saúde, nos planos de enfrentamento de DCNTs e nos Cadernos de Atenção Básica, pouco atentas aos desafios de implementação dos municípios, além de assumir hipóteses irrealistas como a ideia de que as cidades conhecem todos os seus portadores de DCNTs e que a informação está bem organizada localmente. No nível municipal, porém, é que são implementadas as Linhas de Cuidado de facto. Um conjunto de práticas e procedimentos, muitos dos quais tácitos e não normatizados, que uma rede de saúde utiliza para manejar as DCNTs e que são muito desconectadas do que é preconizado pelo Ministério da Saúde. As linhas de cuidado do mundo real são repletas de improvisos e até de  práticas inovadoras, porém com alguns gargalos recorrentes.

Assim, há um alerta: o Ministério da Saúde precisa ter planos mais condizentes com as diferentes realidades experimentadas no Brasil, adaptando normativas para as particularidades regionais e acompanhando mais de perto a implementação de redes estruturadas de cuidado para tratar o problema mais crítico e letal do nosso sistema de saúde.

O próximo evento “Diálogos IEPS”, dia 1º de setembro, retomará esse tema, mas dessa vez pensando em como endereçar todos os desafios identificados. As discussões se darão em torno de possíveis soluções para os problemas detectados e experiências exitosas que gestores de saúde e profissionais de saúde poderão implementar nos seus municípios.

 

Fernanda Leal, mestra em Ciência Política (UFPE) e assistente de políticas públicas do Instituto de Estudo Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Atuar na prevenção e tratamento em saúde mental de mulheres e adolescentes é prioridade https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/#respond Wed, 11 Aug 2021 10:00:39 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/istock-mulher-terapia_widelg-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=474 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) acaba de divulgar novas diretrizes sobre cuidados em saúde mental, priorizando a recuperação de comunidades e com orientações de combate às violações de direitos humanos. Promover saúde, na lógica dos direitos humanos, significa ir além da lógica estritamente sanitária, muitas vezes centrada na superação dos adoecimentos e não em sua prevenção, para assumir a lógica do bem-estar da saúde de forma integral.

Para o Instituto Cactus combater as violações de direitos humanos no campo da saúde mental requer compreender que não existe uma “receita de bolo” para trabalhar os sofrimentos psíquicos, tampouco existe um caminho que serve para todos ou uma solução que dê conta de toda a complexidade desse tema. Quando falamos em saúde mental, é preciso incorporar uma “lente de aumento” para viabilizar olhares segmentados e adequados para cada grupo, pois suas especificidades determinam como se deve atuar. 

Para criar esses olhares segmentados, pode-se adotar o uso de dados e indicadores na gestão pública, que funcionam como sinalizadores da realidade e podem orientar a tomada de decisões. Cruzar e interpretar essas informações ajuda a compreender as dinâmicas locais, características e necessidades de diferentes territórios e, em consequência, melhora a qualidade dos serviços oferecidos. Os grupos, por sua vez, têm que ser segmentados com base em perfis que incluem preferências, estilos de vida e condições sociais, o que se apoia em uma visão de indivíduo como ser biopsicossocial, integrando questões biológicas, psicológicas e sociais. Ao abordar o indivíduo como ser biopsicossocial e a sua associação com saúde mental como um estado de bem-estar, há que se atentar para não elevar para a saúde mental o nível de exigência que temos para a saúde biológica –já que conflito, inadequação e sofrimento fazem parte do cenário.

Na impossibilidade de atacar todos os problemas de uma única vez de forma efetiva e consistente, o Instituto Cactus elege as mulheres e os adolescentes como públicos prioritários para pavimentar o caminho no campo da saúde mental. O primeiro esforço nesse sentido foi a publicação do levantamento Caminhos em Saúde Mental, desenvolvido em parceria com o Instituto Veredas com o objetivo de oferecer um entendimento amplo e complexo a respeito do campo da saúde mental, considerando tanto os consensos produzidos pelos organismos internacionais quanto a própria experiência brasileira, e ouvindo especialistas das mais diversas áreas: sociologia, gestão pública, medicina e atores do campo.

A escolha desses públicos ilustra como um olhar cuidadoso, empático e direcionado pode ser feito quando se trata de olhar para públicos específicos em saúde mental.  Entendemos que esses públicos trazem questões relevantes que merecem ser priorizadas na compreensão e abordagem da saúde mental, como detalhado a seguir.

 

Adolescentes 

A adolescência é um período marcado por transformações psicossociais em que  acontece a construção da identidade e existem inúmeras mudanças na anatomia, fisiologia, no ambiente social, na relação com a sexualidade etc. Apesar disso, é um momento invisível e negligenciado, o que gera estigmas e impactos negativos na qualidade de vida dos adolescentes, e que serão carregados até a fase adulta. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, 50% das condições de saúde mental começam até os 14 anos de idade e afetam 3 a cada 4 pessoas até os 24 anos. Ainda, segundo a OMS, suicídio é segunda causa de morte entre jovens de 15 a 24 anos. Esse é o público que, no futuro, serão os líderes da sociedade, cidadãos e agentes de transformação do mundo. Mas como construir o futuro sem cuidar no presente da saúde mental de quem será responsável por ele? 

Aproximadamente 80% dos casos não são diagnosticados ou tratados adequadamente e, por isso, muitos dos quadros que poderiam ser prevenidos ou recebido intervenções precocemente se agravam e afetam não só o indivíduo, mas todo o seu entorno. Nesse sentido, a prevenção em saúde mental é extremamente necessária. Não podemos continuar sendo um país que apaga incêndios e não ataca a raiz dos problemas com ações sistemáticas para resolvê-los a longo prazo. Os estigmas e as consequências de transtornos não tratados impactam a qualidade de vida desses adolescentes por toda a vida, sua habilidade de convívio em comunidade, sua produtividade e suas relações sociais e com o meio ambiente. 

O rótulo de “aborrescente”, que os define como inconsequentes e rebeldes sem causa, naturaliza os obstáculos dessa fase da vida e diminui o sofrimento decorrente de violências sexuais e domésticas, bullying etc.. Têm também repercussões drásticas na vida desses jovens, como o uso abusivo de substâncias, desenvolvimento de psicopatologias, reflexos negativos nas relações interpessoais e comportamentos de risco para aqueles que são tidos como o “futuro da nação”. 

 

Mulheres

A prevalência de condições de saúde mental é maior nas mulheres, quando comparadas aos homens, e isso vai muito além da perspectiva biológica. Segundo a OMS, o gênero implica diferentes suscetibilidades e exposições a riscos específicos para a saúde mental, por conta de diferentes processos biológicos e relações sociais. Nascer mulher perpassa papéis, comportamentos, atividades e oportunidades que determinam o que podemos experimentar ao longo da vida e, portanto, estabelece vivências estruturalmente diferentes daquelas experimentadas pelos homens. 

Uma em cada cinco mulheres apresenta transtornos mentais comuns e a taxa de depressão é, em média, o dobro da taxa de homens com o mesmo sofrimento, podendo ainda ser mais persistente nas mulheres. A sobrecarga física e mental de trabalho é apontada como um dos principais fatores que deixam as mulheres especialmente vulneráveis aos sofrimentos psicológicos: em mulheres com alta sobrecarga doméstica, por exemplo, o número de mulheres com transtornos mentais comuns vai de 1 a cada 5 mulheres para 1 a cada 2 mulheres. Esses dados impactam também os dados sobre tentativas de suicídio –mulheres são duas vezes mais propensas.

Nesse sentido, o acolhimento das mulheres com questões de saúde mental demanda um olhar ampliado para outras questões físicas, psicológicas e sociais relacionadas ao gênero. Os transtornos alimentares, por exemplo, são causas importantes de morbidade e mortalidade entre mulheres jovens e precisam ser considerados a partir de um debate sobre os padrões físicos impostos pela mídia e pela indústria da beleza. Além disso podemos vivenciar transtornos mentais associados à gestação, ao aborto, ao puerpério e à menopausa, inclusive como sequelas de violência médica e obstétrica. 

Que marcas a violência obstétrica, que tem como maiores vítimas as mulheres negras, deixa na vida de uma mulher que não é poupada da dor no momento de dar a luz e não recebe uma série de outros cuidados tão importantes nesse momento? Por isso precisamos olhar para esse público de forma segmentada e específica. Como um primeiro passo para avançar nesse desafio, além de consolidar dados e convocar mais olhares para o tema no “Caminhos em Saúde Mental”, o Instituto Cactus apoia um projeto de acolhimento psicológico de emergência para mulheres negras, pardas, indígenas e/ou periféricas da Casa de Marias, iniciativa focado em democratizar acesso a ferramentas de alívio emergencial de sofrimento mental para esse público. 

 

Porque priorizar a saúde mental de adolescentes e mulheres 

Adolescentes e mulheres são importantes vetores de mudança para a sociedade. Eles são os líderes dessa e das próximas gerações e elas, as principais responsáveis por práticas de cuidado, predominando em categorias como educadoras, enfermeiras, assistentes sociais etc., além de  referências em seus núcleos familiares. Ambos possuem uma grande importância e têm, no melhor dos casos, recebido uma atenção parcial no país. Por isso a decisão de focar as ações do Instituto Cactus, inicialmente, nesses públicos. 

Sabemos que esse recorte não é exclusivo ou exaustivo e que existem diversos outros grupos que merecem atenção e cuidado de forma emergencial, como a população negra, os povos indígenas e as populações que são submetidas a situações de emergência humanitária, mas nossa escolha pelos públicos de mulheres e adolescentes se baseia, em grande parte, no entendimento de que estes grupos não só mereciam mais atenção como multiplicadores de mudança, mas também como bastante negligenciados pelas políticas públicas e iniciativas atuais e, portanto, com uma grande oportunidade de atuação e impacto positivo.

O foco nesses públicos faz parte de um esforço vital para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Agenda 2030 da ONU. O ODS número 3 tem como meta boa saúde e bem-estar, o que requer a redução da carga de transtornos mentais e mortes por suicídio. O ODS 5 busca a igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres e meninas. Esses dois objetivos andam de mãos dadas, pois sabemos que meninas e mulheres sofrem desproporcionalmente as consequências negativas dos transtornos mentais comuns, que estão fortemente associados às experiências femininas de violência e oportunidades e compensação desiguais em termos de educação e oportunidades no mercado de trabalho. 

Construir olhares segmentados que deem conta da individualidade de cada um, com empatia, e que contribuam para a construção de práticas e intervenções mais efetivas é fundamental para um trabalho mais assertivo e sustentável para trabalhar a saúde mental.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Enfermagem brasileira e pertencimento étnico-racial: o que sabemos, e o que precisamos saber? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/#respond Wed, 28 Jul 2021 10:00:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/115376546_gettyimages-1253858296-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=463 Helena Maria Scherlowski Leal David, Gerson Luiz Marinho e Kênia Lara da Silva

 

Estudos sobre a distribuição dos profissionais de enfermagem brasileiros segundo variáveis sociais e demográficas mostram um retrato que necessita ser atualizado com urgência. Um cenário já reconhecido no mundo todo: é o que remonta à feminilização histórica da profissão. No caso brasileiro, isso se reflete em todos os níveis de divisão técnica: auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros de nível superior são majoritariamente mulheres. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), cerca de 90% do total de profissionais de enfermagem de todo o mundo são do sexo feminino. Para além das desigualdades impostas pelas diferenças de gênero, inclusive quanto à baixa remuneração e às escassas oportunidades de ascensão nas carreiras, um aspecto que necessita ser melhor compreendido é como se apresentam as diferenças étnico-raciais para essa profissão eminentemente feminina.

Não há dados globais e tampouco informações comparáveis entre países que demonstrem as características da diversidade étnico-racial dos profissionais de enfermagem. No Brasil, os dados sobre essas variáveis podem ser obtidos a partir de bases censitárias. Mas é preciso lembrar que o último censo nacional ocorreu em 2010. Apesar dessa limitação, é relevante apontar resultados dos recenseamentos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): no ano 2000, 70% dos profissionais de enfermagem declararam ser de cor ou raça branca. Dez anos depois, o Censo 2010 contabilizou 54,4% nesse contingente –uma redução de 15,6% de enfermeiros classificados como de cor ou de raça branca. Além disso, o Censo de 2010 também registrou diferenças na autodeclaração entre enfermeiros de nível superior (62,7 % eram brancos) e profissionais de nível médio (49,1% eram brancos).  

Sabe-se que o critério de preenchimento da variável raça/cor é a autodeclaração, que sofre alterações em função da autopercepção. De modo especial, nos últimos anos há uma tendência de maior reconhecimento das pessoas acerca de seu pertencimento racial –o que pode justificar, em parte, o aumento do contingente de enfermeiros negros (compreendidos como o conjunto daqueles declarados de cor/raça preta e parda), bem como a redução dos percentuais de enfermeiros de cor/raça branca. No caso do acesso ao ensino superior, um importante marcador foi a política de cotas sociais e raciais para estudantes que se declaram pobres e negros, o que pode ter influenciado o aumento de enfermeiros graduados nas últimas décadas.

Esse cenário nos permite pensar que, na enfermagem, assim como na população brasileira em geral, há interseccionalidade entre gênero-raça-classe, com pessoas autodeclaradas brancas tendendo a ocupar os postos de trabalho de nível superior. Por outro lado, as ocupações que exigem nível médio e elementar de escolaridade absorvem contingentes proporcionalmente maiores de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. De acordo com dados de 2010, a renda de enfermeiros (nível superior) autodeclarados brancos superou em mais de um quarto àquela registrada para enfermeiros pardos e pretos; e entre os técnicos de enfermagem, brancos tiveram renda aproximadamente 11% maior àquela remetida para técnicos pardos e pretos.

Dentro da equipe profissional de enfermagem, nota-se com maior frequência que enfermeiras (nível superior) ocupam cargos de chefia e gestão, sendo responsáveis pela coordenação dos demais profissionais da equipe de enfermagem. Considerando desigualdades observadas através da pesquisa censitária quanto à distribuição da autodeclaração de raça-cor, é possível inferir que, na enfermagem, “uma minoria de mulheres brancas ocupam postos nos quais chefiam uma maioria de mulheres negras”. Estes dados refletem as condições históricas e a divisão do trabalho no interior da profissão de enfermagem com hierarquização social reproduzindo a hierarquização racial. 

Historicamente, mulheres negras tendem a ocupar espaços de menor status social, com base na hierarquia do mercado de trabalho (o que pode ser observado para técnicas e auxiliares de enfermagem). Por outro lado, imagem da “enfermeira padrão”, no topo da pirâmide, foi cristalizada pela elitização e branqueamento da profissão. A ruptura com os ciclos de desigualdades advindos dos pertencimentos de gênero, raça, e classe é necessária e urgente na sociedade brasileira, e terá de superar os séculos de uma história de reprodução de relações sociais de subordinação, violência, racismo e opressão. Na enfermagem, com seus mais de dois milhões de profissionais, será parte importante no processo de enfrentamento dessas questões. 

De que forma, exatamente, essas diferenças e desigualdades incidem sobre as oportunidades de emprego, condições de trabalho e renda e de desenvolvimento da enfermagem são perguntas a serem respondidas por meio de novos estudos que atualizem o debate e contribuam para o reconhecimento profissional e o trabalho digno do imenso contingente de mulheres que cuidam.

 

Helena Maria Scherlowski Leal David é professora Titular do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DESP/ENF/UERJ).

Gerson Luiz Marinho é professor Adjunto do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery (DESP EEAN UFRJ).

Kênia Lara da Silva é professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG).

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Saúde mental: indicadores e dados descomplicados são fundamentais para melhorar a efetividade dos serviços no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/#respond Wed, 21 Jul 2021 10:00:30 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/1d7dc5b1146b96618d440d3a8ddadd46_05-29-17_05-35-32-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=456 Maria Fernanda Quartiero, Luciana Barrancos, Daniela Krausz e Isabel Opice 

 

Uso de dados e indicadores na gestão de saúde potencializa a implementação de políticas públicas e a formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental

 

Como se mede a satisfação de usuários e o sucesso dos serviços de saúde mental? Para rever e ajustar estratégias de cuidado oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS), é necessário entender o que está funcionando, o que não está e porquê. Dados e indicadores são fundamentais para apoiar tomadas de decisão com base em evidências e avançar no seu uso na gestão pública é uma oportunidade para alavancar formas de avaliação e aprimoramento dos serviços de saúde mental no Brasil.  

Atualmente, não existe um conjunto de indicadores que seja aplicado de forma consensual e consistente, tendo como objetivo monitorar e medir a efetividade do sistema de saúde mental no nível no país. Sabemos que sete a cada 10 pessoas dependem exclusivamente do SUS, e também que saúde mental foi o sexto motivo mais frequente apontado como impedimento para a realização de atividades habituais –como mostrou o último levantamento sobre acesso e utilização dos serviços de saúde do IBGE em 2019.

Mas apesar de a saúde mental ser um tema cada vez mais presente na agenda do dia, por que razão os governos ainda têm pouco acesso a informações de qualidade e não usam indicadores para direcionar esforços e recursos em direção às necessidades da população?

São três os principais desafios identificados para o uso de indicadores no desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental no Brasil.

O primeiro desafio refere-se à subjetividade do diagnóstico. Diferentemente de indicadores relativos a doenças como hipertensão e diabetes, muitas vezes binários e mais objetivos (há ou não há determinado quadro), o diagnóstico na saúde mental é mais subjetivo. Definir um distúrbio depende de observações e de um entendimento amplo e integral do usuário, razão pela qual se recomenda que os diagnósticos sejam feitos dentro de um espectro –desde casos mais leves a casos mais graves. A complexidade do diagnóstico no nível individual dificulta o entendimento mais amplo e a construção de indicadores no nível das redes de saúde.  

Como segundo elemento, destaca-se a  falta de uma visão completa do usuário e de sua trajetória dentro da  rede de atenção psicossocial. Para utilizar dados e indicadores, é crucial entender a trajetória de uma pessoa dentro do sistema, oferecendo informações sobre a continuidade de tratamentos iniciados dentro do equipamento e apontando caminhos para melhorias nas práticas de cuidado. Hoje, as principais informações registradas sobre cidadãos no sistemas de saúde –como quantidade de atendimentos realizados, por exemplo– não são suficientes para desenvolver indicadores que permitam o entendimento de onde esse fluxo não está funcionando. A multiplicidade de sistemas existentes também contribui para esse desafio, com a gestão pública se deparando com problemas na trajetória do usuário, mas não dispondo de métricas para entender o tamanho do problema ou o ponto exato onde o fluxo está disfuncional.

Por fim, há o obstáculo relativo ao  baixo uso de indicadores de sucesso e de resultado dos serviços de saúde mental. Não há, de forma consistente no Brasil, métricas de resultado e sucesso que ajudem gestores a entender deficiências dos serviços e a rever as estratégias para ajustar o que for necessário, com base em dados concretos. Por exemplo, o que leva uma pessoa a abandonar um tratamento em saúde mental? Qual é o impacto de um serviço na qualidade de vida das pessoas que passam por ele? Quais são os serviços capazes de potencializar a autonomia de pessoas com transtornos de saúde mental? No Canadá, mede-se a taxa de repetição de hospitalizações para pessoas com doença mental em um ano, já que uma taxa alta pode indicar uma deficiência do atendimento. 

Em função desses desafios, dada a importância da saúde mental para a qualidade de vida dos brasileiros, o Instituto Cactus e a ImpulsoGov estão desenvolvendo projeto piloto, em parceria com governos municipais, com o objetivo de consolidar indicadores de saúde mental que forneçam informações-chave ao gestor público, e que ajudem a melhorar a qualidade dos atendimentos e possam ser utilizados em outras cidades do Brasil. 

Para isso, envolver o ecossistema de saúde mental do Brasil no uso de indicadores é fundamental. Acreditamos que todo esse processo precisa ser feito de maneira integrada ao dia a dia da gestão e ao funcionamento dos equipamentos de saúde pública. Criar indicadores de saúde mental, gerando informação de qualidade e descomplicada, é um passo-chave que terá impacto positivo a cuidadores e usuários do sistema de saúde, permitindo que a alocação e uso do orçamento de recursos públicos sejam otimizados, e que os processos decisórios, a qualidade e a efetividade dos serviços públicos de saúde mental sejam aprimorados no Brasil, impactando milhões de brasileiros.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício.

Daniela Krausz é Gerente Sênior de Projetos na ImpulsoGov, uma organização brasileira de saúde pública que tem como objetivo impulsionar o uso de dados e tecnologia no setor público para assegurar o direito a uma vida saudável a todas as brasileiras e brasileiros, sem exceção.

Isabel Opice é Co-fundadora e Diretora de Operações da ImpulsoGov e Mestre em Desenvolvimento Internacional pela Universidade de Harvard, com experiência no Governo do Estado de São Paulo e no Instituto Ayrton Senna.

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O enfrentamento à pandemia pela transformação digital no Recife https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/#respond Wed, 07 Jul 2021 10:00:11 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/e622b8ea-ac89-47d8-b60e-c6cb46ade602-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=442 Agatha Eleone, Gustavo Godoy e Rafael Figueiredo

 

De todos os problemas de saúde, cerca de 85% podem ser resolvidos por meio da Atenção Primária, nome que se dá ao modelo de acolhimento que comprovadamente reduz custos em saúde. O motivo é um instrumento que contempla ações individuais e coletivas voltadas para promoção, proteção da saúde e prevenção de doenças, e para além da abrangência do diagnóstico, do tratamento e da reabilitação.

Apesar do seu inegável e histórico avanço, o modelo ainda é insuficiente em diversos âmbitos, principalmente no que diz respeito à infraestrutura e à disponibilidade de recursos humanos. No intuito de ordenar esforços para melhorar cuidados em saúde e dada a necessidade premente (e impulsionada pela pandemia) de medidas para contenção do colapso dos sistemas de saúde, o uso de tecnologias resolutivas e de ações de inovação se faz ainda mais necessário para superar esses desafios. Experiências internacionais de combate à covid-19 destacam, por exemplo, a oferta à população de aplicativos para identificação de casos leves e graves da doença, além da oferta de teleconsultas, serviços de apoio a pessoas em sofrimento psíquico  e monitoramento de casos em isolamento domiciliar. 

No Brasil o município do Recife, em parceria com o estado de Pernambuco, desenvolveu o aplicativo Atende em Casa. Por meio de um contact center composto por médicos, enfermeiros, operadores de teleatendimento e com o apoio da SUSi – chatbot do aplicativo com mais de 40 perguntas e respostas frequentes –, o aplicativo oferta atendimento através de chamada de vídeo, telefone ou via chat para pessoas com suspeita de covid-19, além de prover orientação sobre as medidas de distanciamento social e isolamento domiciliar. A ferramenta oferece, ainda, teleorientação com profissionais de saúde em casos de risco de agravamento da doença e, se necessário, encaminha o usuário ao serviço de saúde mais próximo e adequado à gravidade, amparando o monitoramento sistemático durante o período de isolamento domiciliar (telemonitoramento) e oferecendo suporte à saúde mental de pessoas em sofrimento psíquico (teleacolhimento). Com o avanço da vacinação contra a Covid-19, o aplicativo também passou a servir como apoio antes, durante e após a vacinação. Por consequência, continua prevenindo aglomerações e filas nas unidades de saúde.

A expansão do uso do Atende em Casa pela população recifense, associada às normativas vigentes de distanciamento no ambiente de trabalho, culminou no investimento em tecnologia VoIP (sigla para Voice Over IP, telefonia baseada na internet) para o contato telefônico, permitindo que parte da equipe de profissionais que o opera pudesse atuar em regime de trabalho remoto. Para o atendimento, são criadas salas digitais (webconferência) de colaboração em tempo real entre teleorientadores e profissionais referência de coordenação, que distribuem informações e atualizações para toda a equipe de saúde. A limitação de acesso à internet no Recife e no Brasil é um fator que, em muitos casos, impossibilita a condução de videochamadas e dificulta o processo de transformação digital. Por essa razão, boa parte dos atendimentos são realizados por telefone. Ainda assim, ambos os recursos (a videochamada e o atendimento telefônico) possibilitaram que profissionais do grupo de risco para covid-19 pudessem continuar a exercer suas atividades de forma segura.

O data analytics acessado pela equipe de monitoramento dos indicadores avalia que mais de 240 mil pessoas no estado estão cadastradas no aplicativo. Foram realizados, até agora, mais de 200 mil atendimentos por médicos e enfermeiros, em chamadas de vídeo ou telefone, e avaliadas mais de 117 mil pessoas com sintomas de risco para formas graves da doença. O impacto do teleatendimento e do telemonitoramento é notório. Apenas 14,7% do total de pessoas atendidas precisaram ser encaminhadas para consulta presencial. Todo o restante da população que recebeu atendimento pôde ser acolhida e orientada a manter o isolamento domiciliar, evitando o deslocamento desnecessário de milhares de pessoas com quadros leves de covid-19. A SUSi, assistente virtual do Atende em Casa, resolveu 67% dos mais de 250 mil atendimentos via chat no “Posso ajudar”. Com relação ao teleacolhimento, a iniciativa garantiu o apoio emocional por profissionais da Rede de Atenção Psicossocial do Recife em quase 5 mil atendimentos.

A ferramenta tecnológica permitiu a ampliação do acesso e a melhoria contínua da qualidade de atenção para a população. A autoavaliação de sintomas com classificação de risco, teleorientação e telemonitoramento com profissionais de saúde pode ajudar pessoas a cuidar melhor da hipertensão arterial, da diabetes, apoiar o acompanhamento das gestantes durante o pré-natal, melhorar a adesão ao tratamento de pessoas com tuberculose e hanseníase e apoiar emocionalmente pessoas em tratamento para depressão e ansiedade, entre outros benefícios já relatados por inúmeras pesquisas ao redor do mundo. A telessaúde do Recife não tem a proposta de substituir o cuidado presencial, mas vem rompendo barreiras de acesso aos serviços de saúde e ocupando lacunas de monitoramento sem competir com serviços de saúde já implantados.

O caráter dinâmico e transitório da pandemia, apesar de intensificar as fragilidades dos serviços públicos de saúde, proporcionou ao Recife a criação de um projeto que pode ser expandido tanto para diversas linhas de cuidado quanto para outros serviços do sistema de saúde, além de desafiar o planejamento e a mobilização de recursos humanos para responder à alta demanda de atendimentos. Os resultados consolidados pela experiência do Atende em Casa evidenciam a necessidade de firmar bases para sua continuidade sustentável e servem como ponto de partida para diversas outras iniciativas inovadoras.

 

Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

Gustavo Godoy, Coordenador do Núcleo Municipal de Telessaúde do Recife.

Rafael Figueiredo, Secretário Executivo de Transformação Digital do Recife.

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Saúde mental: o que é, por que não falamos tanto sobre isso, e por que deveríamos falar mais? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/#respond Wed, 30 Jun 2021 10:00:29 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Colunas_PandemiaTerapia_060421_FatCameraGettyImages-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Uma infinidade de conceitos surge quando se fala em saúde mental. Eles nos remetem à presença ou à ausência de uma doença, ou então ao mais completo bem-estar. Podemos pensar, ainda, em saúde mental sob o ponto de vista do indivíduo, ou dando ênfase ao contexto coletivo, social e suas complexidades.

Essas definições às vezes se complementam, em outras se opõem, mas não refletem necessariamente a complexidade da saúde mental e sua profunda integração com outros temas sociais como educação, trabalho e sistemas de saúde. A saúde mental não é só inexistência de doença e também não deveria ser uma expressão para designar “vida perfeita”. Também não é apenas sinônimo de bem-estar, leveza e despreocupação, sob o risco de cairmos em uma situação de positividade tóxica, em que estaríamos rejeitando a tristeza e outras emoções entendidas como negativas. Saúde mental também não pode ser vista apenas sob a perspectiva do indivíduo e suas questões genéticas e biológicas, negligenciando os diversos componentes sociais, estruturais e de comunidade que a influenciam.

Saúde mental é parte fundamental da saúde do nosso organismo. Do nosso funcionamento biológico e psicológico. Do nosso corpo pessoal e também social. Nesse sentido, ela está relacionada à forma como cada pessoa lida com seu entorno, seus desafios cotidianos e as transformações da vida. É o resultado de uma complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva, a educação, as violências e o acesso ou falta de bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária.

 

Abordagens falhas e estigmas dificultam o debate sobre Saúde Mental

Muitas vezes por incompreensão do tema e falta de informação qualificada, a narrativa da saúde mental na nossa sociedade não faz jus à centralidade que ela efetivamente ocupa.

Atualmente, em média,  menos de 2% dos orçamentos públicos de saúde são alocados para a saúde mental globalmente, sendo que a situação é ainda pior em países de baixa e média renda, como o Brasil, em que se gasta menos de USD 2 per capita no tratamento e prevenção de transtornos mentais, comparado com um investimento de USD 50 per capita em países de alta renda.

Em termos de investimento social privado, apenas 4% do total de R$2,5 bilhões de investimento social privado no Brasil em 2019 foram destinados à saúde e esporte, bastante abaixo do que seria necessário para intervenções estruturais no campo.

Além da desinformação, barreiras culturais, financeiras e estruturais também são relevantes, como o estigma, a descrença no tratamento e o insuficiente treinamento das equipes de atenção básica para lidar com o assunto.

Outro fator de destaque é a falta de dados e indicadores atualizados sobre saúde mental –o último levantamento nacional abrangente do tema se deu em 2015, não tendo sido atualizado desde então, o que dificulta um entendimento robusto da situação. Estudos epidemiológicos são de fundamental importância para determinar um panorama assertivo da saúde mental, e para podermos compreender melhor os determinantes sociais da saúde mental, trabalhar abordagens preventivas, priorizar a alocação de recursos, e obter insumos importantes para o planejamento adequado das políticas públicas.

 

Por que é preciso falar mais sobre Saúde Mental?

Os impactos econômicos e sociais dos problemas de saúde mental estão associados a consequências negativas que afetam a sociedade como um todo, abrangendo a redução de mão de obra qualificada, o desemprego, a falta de moradia, a morte prematura, o impacto na educação, a oneração do sistema público de saúde, entre outros.

Recentemente, um levantamento colocou as doenças mentais –como os transtornos depressivos e os transtornos de ansiedade–  como a categoria com maior fardo global de doenças no que diz respeito aos anos vividos com incapacidade (YLD), representando 32,4% do total de anos. Já em termos de anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs), que consideram tanto os YLD quanto as mortes prematuras relacionadas à doença (YLL), as doenças mentais representam significativos 13% do total de anos, percentual equivalente às doenças cardiovasculares e circulatórias.

Para além dos desafios existentes na vida dos indivíduos relacionados à carga global de doença, existe um crescente reconhecimento de que a falta de atenção dada à saúde mental reflete diretamente em custos financeiros relevantes. Dados do Fórum Econômico Mundial estimam que de 2010 até 2030 haverá perdas econômicas globais de USD 16 trilhões atribuíveis aos transtornos mentais, neurológicos e por uso de substâncias, o que representa mais de 10 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2020.  Estimativas da pesquisadora Sara Evans-Lacko, da London School of Economics, mostram que no ambiente de trabalho o Brasil perde USD 78 bilhões com a queda de produtividade. Além disso, o “burnout” é uma das maiores causas de absenteísmo e representa de 20% a 50% das causas de “turnover” nas empresas. No que diz respeito à educação, pesquisas das “national academies” de ciências, engenharia e medicina dos Estados Unidos revelaram que a evasão escolar de estudantes com problemas de saúde mental chegava a 43% a 86%, enquanto que um dos primeiros estudos a investigar a relação entre saúde mental e evasão escolar, feito por pesquisadores do Canadá, revelou que estudantes com depressão têm duas vezes mais chance de deixar a escola comparado com seus pares sem quadros depressivos.

Concluímos que é  imprescindível refletir na narrativa da saúde mental a mesma centralidade que ela já ocupa na nossa sociedade, nos nossos lares, corporações e vidas pessoais. Precisamos falar abertamente sobre isso,  de forma clara e articulada, e redirecionar investimentos públicos e privados para essa causa. Nessa encruzilhada, a promoção e a proteção da saúde mental devem estar em primeiro plano, sendo indispensável a avaliação contínua das políticas implementadas, de modo a adaptar a oferta e o cuidado com a saúde mental às demandas do momento e do contexto.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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Recursos humanos e doenças crônicas no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/#respond Tue, 22 Jun 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/20200826185253802642o-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=426 Agatha Eleone e Helyn Thami

 

É em países de renda baixa ou média, caso do Brasil, que ocorrem 80% das mortes por doenças crônicas, segundo a Organização Panamericana de Saúde.  Nesses países, 30% das mortes ocorrem prematuramente –abaixo dos 60 anos de idade. As doenças crônicas são um grande fator de estresse para os sistemas de saúde e para o desenvolvimento econômico. A literatura é contundente ao mostrar, também, a importância das áreas de recursos humanos (RH) no desempenho do cuidado oferecido aos portadores de doenças crônicas.

Apesar da relevância do tema, o Brasil parece caminhar na contramão dos fatos. Recentemente, com o lançamento do Previne Brasil, o novo modelo de financiamento da APS (Atenção Primária em Saúde), o Nasf-AB (Núcleo Ampliado de Saúde da Família), e que complementava as equipes da Atenção Primária com profissionais de diversas categorias, teve seu financiamento suspenso. Assim, municípios e estados que quiserem manter o provimento dessas equipes multidisciplinares terão de custeá-las com recursos próprios, uma opção complexa em meio à crise vivida pelos entes subnacionais. 

Se existe espaço para se discutir os desafios de gestão e provisão dessas equipes multidisciplinares no contexto brasileiro, é um risco não termos direcionamento e coordenação nacionais para garantir que categorias profissionais diversas integrem permanentemente o sistema. O cuidado não-multiprofissional para as condições crônicas é um cuidado falho –e esse último impede o uso eficiente dos recursos disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde). 

Ademais, há um outro desafio: o manejo adequado das doenças crônicas no sistema público requer conhecimento sobre as diretrizes, princípios, protocolos e políticas setoriais do tema do próprio SUS, o que ainda é um gargalo no Brasil. Os modelos predominantes de disseminação de novos protocolos parecem não levar em conta a complexidade de se alterar comportamentos de profissionais de saúde de modo eficaz. O compartilhamento de novos guias clínicos por e-mail ou aplicativos de mensagens instantâneas, por exemplo, não é suficiente para garantir adesão aos procedimentos-padrão. 

Estudos mostram que os verdadeiros fatores que determinam a consolidação de diretrizes clínicas são experiência clínica pessoal e preferências pessoais (no nível individual) e participação no desenho do protocolo, treinamento e existência de mecanismos de controle (no nível organizacional). Considerando o exposto, é crucial que municípios desenvolvam metodologias mais ativas, bem como mecanismos de controle, para garantir a correta adesão aos protocolos preconizados. 

Em relação à dificuldade dos entes públicos em garantir implantação e permanência de profissionais (principalmente médicos) nos serviços, pode-se dizer que os principais motivos de desinteresse pelas áreas de Saúde da Família e Atenção Primária — que são de suma importância na prevenção a fatores de risco e doenças crônicas — têm sido relacionados frequentemente à baixa remuneração e às oportunidades de carreira e de formação oferecidas. Há uma intensa desmotivação e “desprestígio” vinculados a essa área de atuação, que resultam do modelo de atuação que enaltece o acompanhamento de doenças isoladas ao invés de sujeitos complexos. 

Tal modelo opera na lógica da chamada ‘queixa-conduta’, preconizando a execução de procedimentos, diagnósticos e prescrições, em detrimento do acolhimento e do cuidado para a promoção da saúde. Ainda, leva profissionais da saúde à percepção (equivocada) de que o perfil técnico científico de outras especialidades é maior ou superior que o da APS e retarda o aprimoramento dos currículos dos cursos nas áreas da saúde do brasil, que até hoje pouco estimulam o interesse e conhecimento nas áreas de saúde pública e saúde coletiva.

Outro gargalo para o bom cuidado aos portadores(as) de condições crônicas é a atuação integrada de uma rede variada de serviços de saúde. Para que essa rede opere em harmonia, existem fatores ligados aos Recursos Humanos que não podem ser ignorados. Um exemplo é o desenvolvimento de “lideranças de integração” — figuras que estudam liderança na perspectiva de unir e pactuar conjuntamente metas de resultados para um conjunto de serviços diferentes –, que recebe pouca ênfase no contexto brasileiro, mas que se provou relevante em sistemas de saúde mundo afora.

As condições crônicas permanecem sem resposta adequada pelo fato de os sistemas de saúde operarem de modo fragmentado e voltado para as condições agudas ou agudizadas de condições crônicas, isto é, para doenças já em estágio de agravamento ocasionados por ausência ou falha no cuidado preventivo. Atrelados a isso, existem problemas estruturais de interlocução da rede que contribuem ainda mais para essa fragmentação e que, se executada da forma adequada, favoreceria o trânsito do usuário dos serviços de saúde e garantiria a continuidade das ações e serviços. Na prática, um cidadão adequadamente referenciado ou que foi buscado ativamente por atores dos serviços estaria menos propenso a padecer por condições crônicas de saúde.

A disponibilidade de equipes de saúde que contem com profissionais de formação adequada para atuar na APS é um dos principais fatores para garantir o cumprimento das diretrizes do SUS. Dessa maneira, é preciso que o setor público se planeje para lidar com os desafios de um mundo onde a longevidade aumenta, juntamente com a prevalência desse tipo de condição, e isso passa por repensar diversos pontos da gestão de RH. É necessário, portanto, formular estratégias inovadoras para captação e capacitação, executando um plano robusto e sustentável de formação voltada para a APS, além de pensar em ações que possibilitem maior interesse pela área e a consequente implantação de profissionais em territórios vulnerabilizados, reduzindo as barreiras de acesso aos serviços de saúde.

 

Agatha Eleone e Helyn Thami são pesquisadoras de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

 

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