Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Cuidados adequados e personalizados para o câncer de mama https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cancer_mama-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=558 Vilmar Marques de Oliveira

 

O preconceito e a desinformação ainda são obstáculos para as mulheres – e para toda a sociedade – em relação ao câncer de mama. O estigma em torno de uma doença que pode ser grave e afeta diretamente um dos maiores símbolos da feminilidade atrapalha de várias maneiras: desde o deixar para depois a realização de exames que deveriam ser periódicos até barreiras emocionais que, uma vez feito o diagnóstico, impedem que essa mulher seja protagonista no seu tratamento.

O agravante é que o câncer de mama é uma doença complexa. Existem diferentes perfis de tumor e momentos específicos, que envolvem diferentes decisões. Outra questão é o acesso às opções de tratamento e a própria adesão à conduta escolhida, considerando tratar-se de uma doença tempo-dependente e que não espera nada, nem ninguém, para progredir. Ela é mais rápida ou mais lenta a depender das características que se apresentam em cada caso.

Por isso é que se fala em jornada da paciente com câncer de mama. Uma mulher que é única e tem uma história só sua, mas que deve e pode buscar os cuidados mais adequados e personalizados para o seu perfil. É certo que, nesse caminho, desinformação e prejulgamento fragilizam. Mas diálogo, conhecimento, autocuidado e rede de apoio efetiva, seja de familiares, amigos, colegas de trabalho e mesmo da equipe de saúde, contribuem para a vida antes, durante e depois do câncer. Uma vida que pode ser plena.

Esse olhar coletivo sobre o câncer de mama como um tema de interesse de toda a sociedade é fundamental para a efetivação e o aprimoramento das políticas públicas relacionadas à linha de cuidado da patologia (rastreamento, diagnóstico e tratamento), bem como à navegação das pacientes no sistema de saúde. Embora tenhamos importantes leis aprovadas e um sistema público e universal, ainda há muito a avançar para salvar um número maior de mulheres.

O câncer de mama é o mais frequente entre as brasileiras, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), e ainda causa a morte de 20 mil mulheres todos os anos. A estimativa de novos casos para 2021 é de aproximadamente 66 mil. Embora seja rastreável desde o início a partir da mamografia de rastreamento, o diagnóstico precoce permanece ocorrendo bem menos vezes do que nos estágios avançados da doença.

A ciência vem fazendo a sua parte. O planejamento adequado logo após o diagnóstico, associado ao melhor tratamento para o perfil da paciente, permite gerenciar o câncer de mama com maior probabilidade de cura ou controle. Sendo ou não invasivo, as chances de cura são elevadas (aproximadamente 95%) quando a detecção ocorre em fase precoce. Cada vez mais a medicina entende as alterações genéticas nas células que originam e caracterizam os tipos de tumores, conhecimento este que possibilita tratamentos mais adequados e eficientes, que muitas vezes associam terapias antes e/ou após a cirurgia, a depender de cada caso.

Para ilustrar a relevância deste conhecimento, podemos citar as pacientes com um biomarcador específico, chamado HER2+. Mulheres cujos tumores apresentam esta mutação podem se beneficiar de terapias direcionadas a essa alteração em diferentes etapas da doença. Quando diagnosticado em estágio inicial, o tratamento correto, no momento mais adequado, pode, inclusive, resguardar pacientes com alto risco de recorrência da doença de evoluir para um estágio metastático, aproximando-as da cura.

Por exemplo, mulheres que precisam iniciar o tratamento antes da cirurgia, pelo fato de terem tumores maiores e/ou linfonodos comprometidos, com o intuito de aumentar suas chances de cura e possibilitar uma cirurgia conservadora, podem ainda apresentar células tumorais no momento da cirurgia, o que indica um risco maior de recorrência. Por isso, essas pacientes precisam de um tratamento de resgate após a cirurgia, para então reduzir as chances de progredir para cenários metastáticos. Todo esse planejamento terapêutico personalizado, feito pela equipe que acompanha a paciente, é essencial para garantir que cada pessoa receba o tratamento mais adequado de acordo com as características do seu tumor.

Não poderia finalizar este texto sem esclarecer, também, que qualquer mulher pode ter câncer de mama. A maioria dos tumores – 90% – não têm origem hereditária. São fatores de risco a alimentação de má qualidade, a ausência de atividade física regular, o excesso de peso, a exposição a hormônios (estrogênios), o tabagismo e o uso excessivo de bebidas alcoólicas, entre outros.

Contudo, não é possível precisar a causa da doença e, por isso, precisamos de uma nova mentalidade. Ao mesmo tempo em que é necessário adotar medidas preventivas que combatam esses fatores de risco – e quanto antes, melhor –, devemos evitar que essa mulher que apresenta o câncer de mama se sinta culpada.

Diante disso, são essenciais movimentos como o “Vem Falar de Vida”, que disseminam informações de qualidade sobre o tema, reverberam ações de múltiplos signatários unidos por esse propósito e fortalecem a mensagem de que o câncer de mama não precisa ser sinônimo de fracasso, de morte ou de mutilação. Existem meios para que cada vez mais histórias de mulheres sejam transformadas. Discutir o acesso a eles é responsabilidade de todos nós.

 

Dr. Vilmar Marques de Oliveira é Chefe de Clínica Adjunto do Hospital da Santa Casa, Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e atual presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.

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Cuidados Paliativos em debate: como organizar os sistemas de saúde para a realidade global https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/cuidados-paliativos-em-debate-como-organizar-os-sistemas-de-saude-para-a-realidade-global/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/cuidados-paliativos-em-debate-como-organizar-os-sistemas-de-saude-para-a-realidade-global/#respond Wed, 06 Oct 2021 10:00:55 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/sus_crise-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=543 Alessandra Pereira da Silva e Mario Dal Poz

 

Os cuidados paliativos ganharam repercussão na mídia devido a informações equivocadas sobre forma e conteúdo dessa área de conhecimento. Tomamos isso como uma oportunidade para esclarecer a relevância do papel de profissionais paliativistas no contexto nacional e internacional e afastar eventuais tentativas de nomear  os cuidados paliativos como práticas reprováveis do ponto de vista ético e científico.

Para enfrentamento do desafio global de ofertar serviços de saúde a uma população longeva, com doenças crônicas e comorbidades, se faz primordial a discussão sobre os Cuidados Paliativos. Segundo estimativa da Aliança Mundial de Cuidados Paliativos, há 20 milhões de pessoas que precisam desse tipo de assistência no mundo anualmente. Os adultos acima dos 60 anos representam 69% e as crianças 6% das pessoas que precisam do tratamento para diversas doenças. A maior proporção de adultos que demandam esse tipo de tratamento está em países de baixa e média renda, como o Brasil. Em 2014 a Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que somente 10% dos que precisam dos cuidados paliativos no mundo recebem o tratamento. A dimensão das doenças crônicas na saúde global e sua relação com o aumento da demanda para cuidados paliativos levam à necessidade de divulgar conceitos corretos para profissionais de saúde e para a sociedade, bem como  organizar os sistemas de saúde para essa realidade.

Em 1990 a OMS definiu um conceito para cuidados paliativos, atualizado em 2002: “Cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos”. Pela abrangência da oferta assistencial prestada, os cuidados paliativos são importantes desde o diagnóstico, tanto para a equipe manejar as indicações de forma assertiva como para pacientes e familiares se sentirem acolhidos e partícipes do tratamento. Porém, devido a fatores técnicos e subjetivos, tais como a formação de profissionais da saúde voltada majoritariamente para a cura e os tabus familiares, sociais e religiosos que envolvem a finitude, há vários obstáculos para reconhecer e aceitar o tratamento em questão. Isso pode ser percebido em expressões consagradas como “fora de possibilidade terapêutica” (FPT), que ainda hoje é largamente utilizada, negligenciando o fato de a paliação constituir uma terapêutica, embora sem um horizonte de cura.

Observa-se que nos dias atuais ainda há um descompasso entre conceitos e expressões, que atrelam os cuidados paliativos necessariamente à morte e não a uma possibilidade de cuidar do ser humano com respeito a sua dignidade até a finitude e para além dela, com atenção ao luto das famílias. Um exemplo é a expressão “prolongamento da vida” que vai de encontro ao consenso atual sobre cuidados paliativos e pode ser confundida com a utilização excessiva e desnecessária de recursos tecnológicos disponíveis sem benefício direto ou indireto, denominada “futilidade terapêutica”.  

O Conselho Federal de Medicina (CFM) na Resolução 1805/2006 permite ao médico limitar ou suspender tratamentos que prolonguem a vida na fase terminal de doenças graves e incuráveis, com garantia de uma assistência integral no alívio do sofrimento. Os cuidados paliativos oncológicos foram inseridos como componente do cuidado integral na Portaria nº 874 de 2013. A partir desse marco no Brasil, os cuidados paliativos foram finalmente consagrados como uma modalidade de tratamento. O diferencial é que a utilização de recursos terapêuticos com foco exclusivo para a cura foi ampliada para a oferta de tratamento digno quando não há possibilidade de recuperação da doença, visando o alívio do sofrimento, com protagonismo do paciente nas decisões e inclusão da família na oferta de assistência pela equipe.

Dentre os princípios dos cuidados paliativos, a Resolução do MS nº 41 de 2018 repudia as futilidades diagnósticas e terapêuticas, com ênfase à afirmação da vida, à aceitação da morte como um processo natural e ao respeito à evolução natural da doença, sem acelerar nem retardar a morte. Dessa forma, os cuidados paliativos constituem um suporte para que o paciente viva com autonomia, e o mais ativamente possível de acordo com as limitações impostas. O papel dos cuidados paliativos na atenção integral foi evidenciado na 67ª Assembleia da OMS, realizada em 2014, com a recomendação para o desenvolvimento, fortalecimento e implementação de políticas públicas para apoiar os sistemas de saúde, em todos os níveis.

Em comparação com o cenário internacional, os cuidados paliativos no Brasil são realizados com estrutura frágil, serviços numericamente insuficientes e sem a prática difusa de referência e contrarreferência desde a atenção primária, passando pelas emergências, hospitais especializados e assistência domiciliar. No âmbito da Rede de Atenção à Saúde (RAS), a proposta para organizar as diretrizes dos cuidados paliativos no SUS, no contexto de continuidade e integralidade da assistência, foi apresentada na Resolução nº 41 de 31 de outubro de 2018. Essa norma define pontos importantes do que essa modalidade de tratamento preconiza como:  multidisciplinaridade, prevenção e alívio do sofrimento, início da oferta dos cuidados paliativos a partir do diagnóstico e abordagem e sintomas de origem física, psicossocial e espiritual.

O objetivo é que os cuidados paliativos estejam integrados na RAS para melhorar a qualidade de vida dos pacientes e familiares, com assistência humanizada, abrangência de todas as linhas de cuidado e todos os níveis de atenção, baseada em evidências e com acesso equitativo. Dessa forma, há previsão de oferta de cuidados paliativos na atenção básica, na atenção domiciliar, em serviços ambulatoriais, urgências, emergências e atenção hospitalar com acompanhamento longitudinal, coordenação de cuidados e plano terapêutico ajustado à complexidade das necessidades e possibilidades do paciente e dos familiares.

 

Uma vez que a melhoria da qualidade de vida associada à longevidade deverá acarretar o aumento da incidência de doenças crônicas e constituirá um desafio para os sistemas de saúde, o dimensionamento do quadro de pessoal para o controle da doença ganha relevância. Por isso, a preocupação sobre suficiência ou insuficiência de profissionais para acolher e tratar pessoas com câncer deve estar na pauta do dia.

Os cuidados paliativos necessitam de uma equipe capacitada e dimensionada adequadamente para ofertar serviços de qualidade aos pacientes e familiares. Ao mesmo tempo, a concepção da paliação deve estar disseminada entre todos os profissionais, inclusive os que atuam nas linhas de tratamento com objetivo de cura. Uma diretriz política e de organização de serviços deve ser a atenção ao cuidado dos trabalhadores, com reconhecimento do impacto da rotina e da carga de trabalho em graus variados nas questões físicas, psicológicas e sociais dos profissionais de saúde. Equipes mal dimensionadas, distribuídas inadequadamente e com carga de trabalho elevada tendem a apresentar maior grau de sofrimento, adoecimento e absenteísmo, sobrecarregando as equipes e afetando a prestação de cuidado e os resultados de saúde.

Nas discussões sobre o acesso global aos cuidados paliativos há uma agenda de pesquisa que está avançando, com estudiosos que se dedicam a projetar a necessidade de cuidados paliativos até 2060, baseados no conceito e metodologia da Comissão de Acesso Global ao Cuidado Paliativo e Alívio da Dor. O foco do estudo é minimizar o sofrimento da população relacionado às doenças que acometem de forma mais expressiva idosos e pessoas com demência nos países de baixa renda.

 

Perspectivas

Acompanhando a tendência global, o sistema de saúde brasileiro precisará incluir, num futuro próximo, os cuidados paliativos como um tratamento que inicia com o diagnóstico de uma doença crônica e acompanha o paciente até a prestação de cuidados de fim de vida e suporte aos familiares no processo de luto. Para isso, é urgente consolidar e normatizar uma Política Nacional de Cuidados Paliativos, disseminar o tratamento como possível de ser iniciado em todos os níveis de atenção à saúde, promover ações educativas e conscientizar profissionais que lidam com quaisquer doenças crônico-degenerativas sobre a importância do tema. Além disso, a valorização dos profissionais que atuam na área pode ser traduzida pelo dimensionamento e pela distribuição adequada de equipes e pela melhoria das condições de trabalho tendo em vista a peculiaridade das atividades realizadas. Com o aprofundamento dos debates em instâncias científicas, a sociedade se beneficiará com profissionais preparados, cuidado tempestivo e um sistema de saúde capaz de ofertar atenção integral às doenças crônicas, considerando toda a complexidade envolvida.

 

Alessandra Pereira da Silva, enfermeira, Doutora em Saúde Coletiva (UERJ) e Analista de Ciência e Tecnologia do INCA.

Mario Dal Poz, Professor Titular no Instituto de Medicina Social.

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Saúde mental e violências: aprofundando a compreensão sobre algumas das origens e atravessamentos dos sofrimentos psíquicos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/#respond Fri, 27 Aug 2021 10:00:00 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/psychological-abuse-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=508 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O combate à violência contra as mulheres teve uma conquista importante com a sanção, no final de julho deste ano, da Lei de Criminalização da Violência Psicológica (14.188/2021). A nova legislação facilita o registro de boletim de ocorrência por violência psicológica e também a obtenção de medidas protetivas de urgência. A lei contempla mais aspectos da violência psicológica, já previstos na Lei Maria da Penha, mas que não categorizava um tipo penal para condutas como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância e isolamento. Assim, na imensa maioria dos casos, essas práticas só passaram a configurar crimes com a nova lei.

O números de adoecimentos mentais e de violência contra as mulheres aumentou durante a pandemia. Por isso, aprofundar o debate sobre violência psicológica torna-se importante para ampliar as práticas de cuidado da saúde mental das mulheres. Já no caso dos jovens, as múltiplas violências, como violência sexual e doméstica e bullying, são identificadas como as principais determinantes sociais para a sua saúde mental. 

Observar as interseccionalidades e as agendas compartilhadas é fundamental para compreender com mais profundidade como as dimensões do sofrimento psíquico se relacionam com questões estruturais. O adoecimento mental de mulheres em decorrência de violência obstétrica, por exemplo, não deveria ser visto como um problema de saúde pública? Não deveríamos falar do impacto na saúde mental e do sofrimento de mães de jovens negros que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, como uma consequência de problemas na segurança pública? A violência psicológica contra as mulheres, por exemplo, é uma das formas da violência de gênero e deve ser prevenida e tratada a partir do cruzamento com outras esferas desse problema. 

Existem outras formas de violência além da psicológica: institucional, sexual, física, patrimonial e moral. Há uma infinidade de manifestações de cada uma dessas categorias. Além disso, podemos pensar sobre as violências cotidianas, comum a todas as pessoas, como por exemplo a constante minimização de nossos sofrimentos para continuar a fazer o que é preciso (trabalhar, estudar, cuidar da família) ou ainda as violências institucionais. 

A falta de acesso a tratamentos adequados de saúde mental no sistema público, a exposição à violência urbana generalizada e as condições precárias de transporte, educação e cultura a que a maior parte da população é submetida, podem ser vistas como violências institucionais que impactam a nossa saúde mental. Nesse contexto, as minorias sociais são particularmente afetadas: mulheres, crianças e adolescentes negligenciados, pessoas negras e LGBTQIA+ são alguns exemplos de grupos que se tornam mais suscetíveis ao adoecimento mental quando pensamos nesse tipo de violência. 

 

Exercitando olhares segmentados: violências contra adolescentes e mulheres  

Consciente de que é preciso estabelecer prioridades para uma atuação estratégica, o Instituto Cactus fez a aposta institucional de olhar, especialmente, para adolescentes e mulheres, públicos prioritários para pavimentar o caminho de transformação do cenário da saúde mental no Brasil. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, entre 2011 e 2018, enquanto para os adolescentes (de 15 a 19 anos) a violência física representou 59% dos atendimentos registrados, no caso dos pré-adolescentes (de 10 a 14 anos) o percentual foi de 36% do total. Quando se analisam os dados de violência autoprovocada no Brasil, conseguimos ver uma outra ponta desse desafio: são mais de trezentas mil notificações, das quais 45% dos episódios foram realizados por jovens entre 15 e 29 anos –entre os quais 67% são mulheres. Indo ao extremo do problema, dados mostram que o suicídio é  a segunda causa mais frequente de mortes de jovens de 15 a 29 anos no mundo todo –e 7 a cada 10 casos acontecem em países de baixa e média renda. 

No caso de meninas adolescentes, é necessário considerar que a violência de gênero começa, muitas vezes, ainda na infância, atravessa a transição para a juventude e se estende por toda a vida. Mulheres que foram expostas a violências na infância apresentam maior risco para revitimização na vida adulta, para episódios depressivos, de ansiedade, de estresse ou relações prejudiciais com a alimentação, a bebida alcoólica ou outras drogas. Dados de 2003 e 2010 mostram que 62% das vítimas de violência sexual e 82% das ocorrências de exploração sexual eram do sexo feminino. 

Nesse ponto do debate, nos deparamos com um desafio importante para os cuidados da saúde das mulheres: a falta de compreensão e a fragmentação nos serviços de saúde. Os profissionais admitem que nos atendimentos, no geral, as mulheres se calam sobre a violência de gênero, ao mesmo tempo em que intensificam a procura por serviços de saúde, sendo estereotipadas como “poliqueixosas”. Esse arquétipo, além de prejudicar as estratégias de tratamento, pode ser também uma forma de violência institucional e representa uma violência psicológica contra mulheres, que muitas vezes enfrentam o estigma no próprio processo de tratamento. 

A Lei de Criminalização da Violência Psicológica é um grande passo para coibir a violência contra as mulheres, mas é necessário ir além e atacar todas as formas de violência para avançar promoção e prevenção em saúde mental. Refinar a análise sobre a violência psicológica e institucional requer a produção de estudos sobre os efeitos e abordagens para trabalhar as  violência de instituições, como, por exemplo, asilos, abrigos, instituições de tratamento para usuários de drogas e também no sistema penitenciário. 

As diversas formas de violências são um fenômeno social que não pode ser reduzido aos estados psíquicos relacionados ao sofrimento mental, por isso a convergência com os debates sobre saúde mental tem muito a contribuir. Sejam impactos relacionados a situações de violência psicológica, física, sexual ou institucional, as soluções propostas devem abordar de forma assertiva o sofrimento psíquico decorrente dessas violências. É preciso, ainda, considerar as especificidades dos diversos adoecimentos e criar abordagens adequadas para diferentes públicos, pois as consequências de cada tipo de violência podem ser muito particulares e não se pode deixar de lado os olhares segmentados para esse debate.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Agosto Laranja: Falta de informação dificulta diagnóstico e tratamento de Esclerose Múltipla https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/agosto-laranja-falta-de-informacao-dificulta-diagnostico-e-tratamento-de-esclerose-multipla/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/agosto-laranja-falta-de-informacao-dificulta-diagnostico-e-tratamento-de-esclerose-multipla/#respond Fri, 20 Aug 2021 10:00:57 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Agosto-laranja-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=491 Herval Ribeiro Soares Neto

 

Agosto é um mês marcado pela cor laranja, simbolismo para conscientizar a sociedade sobre a Esclerose Múltipla (EM), doença que afeta cerca de 35 mil pessoas no Brasil, na maioria mulheres jovens entre 20 e 40 anos, embora homens também apresentem a doença. É comum os pacientes enfrentarem um cenário desafiador antes e depois do diagnóstico, não apenas pelas características da patologia, mas por terem que lidar adicionalmente com a falta de informação e o preconceito.

A esclerose múltipla é uma doença neurológica crônica, sem causa determinada e sem cura, em que as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, provocando a perda de mielina, uma substância cuja função é fazer com que o impulso nervoso percorra os neurônios de forma rápida. Por isso, quanto antes diagnosticada, mais chances de vida sem limitações importantes têm o paciente.

Apesar de não ter cura, a esclerose múltipla possui tratamento, por meio do controle dos sintomas e da diminuição da progressão da doença. No entanto, mesmo com os significativos avanços da ciência nesta área, o diagnóstico precoce é um dos grandes entraves para que portadores consigam iniciar o tratamento o quanto antes. A demora é causada principalmente pela falta de informação sobre a esclerose múltipla e seus sintomas, que podem ser confundidos com os de diversas outras doenças –mesmo pelos profissionais de saúde que fazem os primeiros atendimentos.

Dentre os sintomas mais comuns estão fadiga imprevisível ou desproporcional à atividade realizada; alterações fonoaudiológicas, como fala lenta, palavras arrastadas, voz trêmula e dificuldade para engolir; visão dupla ou embaçada; problemas de equilíbrio e coordenação; sensação de queimação ou formigamento em alguma parte do corpo e de aparecimento espontâneo; perda de memória e raciocínio; transtornos emocionais; e problemas vesicais e sexuais, como perda de libido e sensibilidade.

A EM pode se manifestar de duas principais formas, a recorrente e a primária progressiva. A forma recorrente é a predominante, ocorrendo em torno de 85% dos casos. Caracteriza-se por crises ou surtos, seguidos ou não por melhora total ou parcial dos sintomas, e que pode gerar incapacidade permanente. Em 50% dos pacientes com a forma recorrente, ocorre após 10 anos uma evolução do quadro para a forma de esclerose múltipla secundária progressiva.

Já a forma primária progressiva progride independentemente de surtos e é considerada a mais agressiva. Até poucos anos atrás não havia tratamentos medicamentosos comprovadamente efetivos e aprovados para essa forma da doença. Hoje, felizmente, já existem terapias para os dois tipos de EM.

A Esclerose Múltipla é uma doença progressiva desde o início, independentemente de como se manifesta e, com o tratamento adequado e antecipado, os pacientes podem apresentar uma diminuição na incapacidade e na progressão. O impacto na qualidade de vida é transformador. É com este objetivo que novas terapias vêm sendo estudadas como oportunidade para essas pessoas escreverem novas histórias na esclerose múltipla, com mais conquistas e menos sequelas.

O caminho para a aprovação de medicamentos para doenças raras, como a EM, é longo no Brasil. Portanto, a mobilização e a participação da sociedade são imprescindíveis para fomentar o tema junto aos atores envolvidos e fazer com que as novas tecnologias para o tratamento da doença cheguem, de fato, a quem precisa delas.

 

Herval Ribeiro Soares Neto é médico neurologista e especialista em Esclerose Múltipla.

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Quem está na porta de entrada dos serviços de saúde mental? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/#respond Wed, 18 Aug 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/GettyImages-1266600929-web-conferência-SUS-800-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Helyn Thami e Maria Fernanda Quartiero

 

Precisamos focar no treinamento, provisão e capacitação de trabalhadores da atenção primária e de outros níveis de atenção para oferecer cuidados na perspectiva da saúde integral

 

Imagine a seguinte situação: uma pessoa vai a um serviço público de saúde se queixando de dor no peito e é encaminhada ao cardiologista sem que sequer tenha sido questionada sobre seu estado de saúde mental. Não é difícil de imaginar, certo? 

Um dos desafios no campo da saúde mental no Brasil é integrar os cuidados em saúde psíquica à perspectiva da saúde integral. Sabemos que muitas manifestações físicas, como na situação imaginada, podem estar relacionadas à ansiedade, depressão e outros sintomas de sofrimento mental. Pode ser, por exemplo, diante da atual crise, fruto de angústia relacionada a processos de luto ou ao desemprego. Acolher e encaminhar usuários sem levar em conta a sua saúde mental, apesar de ser prática rotineira, é prejudicial à perspectiva de cuidados integrais, como preconizado no sistema de saúde brasileiro. 

A hipótese descrita acima é apenas um dos exemplos possíveis de práticas de cuidado que invisibilizam e negligenciam a saúde mental como parte indissociável da saúde como um todo. Somos um só: ou, como se diz popularmente, “corpo e mente estão sempre conectados”. Por isso, os serviços de atendimento devem incluir os aspectos físicos e mentais na avaliação e no tratamento, e desenvolver soluções adequadas para cada indivíduo. 

Para tal, há que se reformular os currículos de formação de todas as categorias profissionais da saúde para incluir abordagens humanizadas e que levem em conta questões estruturais que ajudam a produzir o adoecimento –emprego, renda, acesso a serviços básicos e outros. Essas abordagens precisam dialogar, fazer parte de uma estratégia geral de cuidado que o potencialize –nas ações preventivas e curativas. É importante que diagnósticos e soluções sejam elaborados a partir da análise interdisciplinar dos profissionais envolvidos, desde a assistência social até as especialidades biomédicas. Para isso, o processo de escuta qualificada também é imprescindível: os profissionais de saúde precisam ouvir para entender a trajetória dos usuários e absorver as especificidades de cada um. 

Outra reflexão importante é o quanto a rede de saúde e a formação profissional ainda privilegiam o atendimento a pessoas com condições psicossociais agravadas, negligenciando a promoção da saúde, a prevenção e o acolhimento das primeiras manifestações de sofrimento, que muitas vezes poderiam ser tratadas sem o uso de medicação e sem necessidade de cuidados especializados, por exemplo.

Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) entre 2012 e 2013, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. Mas quando falamos de saúde mental não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, especialidades comumente associadas à ela: precisamos exercitar um olhar mais ampliado para entender quem é o “Recurso Humano” da saúde mental. 

Por exemplo, uma revisão de literatura mostra que um grande desafio que se descortina para a consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil é a integração entre a atenção primária e a rede de atenção psicossocial. Isso significa que os recursos humanos para uma adequada provisão de cuidado em saúde mental não estão confinados a poucas categorias profissionais, mas dizem, sim, respeito a toda uma gama de pessoas que compõem o sistema de saúde. 

A melhor prática para consolidar essa integração é por meio do matriciamento: os profissionais especializados devem estabelecer espaços de troca e trabalho compartilhado com as equipes da atenção primária, aumentando a resolutividade desta e garantindo o ganho de capacidades desse nível de atenção a médio e longo prazos. Essa prática, inovadora e desafiadora, pode ser considerada contra hegemônica e ainda incipiente nos programas de formação de profissionais de saúde.

Se é preciso entender as transversalidades do tema para criar soluções adequadas para os usuários, é necessário levar isso em conta também nos processos de formação de profissionais de outras áreas da saúde e, inclusive, de outros setores, como educação, cultura, segurança pública e sistema de justiça. Afinal, a saúde mental permeia toda a nossa vida. Família e comunidade também são peça chave para trabalhar essa perspectiva de escuta ampliada, engajar atores fundamentais no processo terapêutico e capilarizar ainda mais o cuidado com a saúde mental. Um bom exemplo de como oferecer atenção em saúde mental na comunidade é o Banco da Amizade no Zimbabwe.

Não podemos esquecer a supervisão e o acompanhamento desses profissionais. As práticas e cuidados em saúde mental não são estáticas, elas se renovam e se aperfeiçoam junto com  necessidades do público atendido. Por isso a capacitação em saúde mental não se esgota em nível de formação ou cursos pontuais. Ela precisa ser contínua e promover a perspectiva de empoderamento de cada pessoa – inclusive dentro do próprio mundo do trabalho. 

O cuidado não-multiprofissional na saúde mental –que não considera a interface entre as áreas de cuidado– impede o uso eficiente dos recursos públicos disponíveis no sistema de saúde. Por isso, o investimento em mais capacitação em saúde mental para uma gama mais vasta de profissionais pode ser uma solução custo-efetiva para avançar nesse campo, considerando a estrutura que o Brasil já tem. Por meio delas seria possível um olhar mais atento a sinais precoces e fatores de risco para o sofrimento mental.

Nesse ponto, um desafio adicional é a desigualdade de investimento e de provisão de profissionais entre as áreas da saúde, especialmente considerando as categorias mais especializadas. Dados do estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil mostram que o nível da assistência prestada regionalmente não tem como ser a mesma em um contexto em que o número de psicólogos por habitante do Pará (estado com menor oferta) é 4 vezes menor do que o mesmo parâmetro no Distrito Federal (estado com maior oferta) –isso considerando serviços do SUS e da saúde suplementar. Se a proporção de psicólogos fosse balanceada em todo o território nacional, o processo assistencial e matricial poderia ser mais efetivo. 

Além disso, há uma concentração muito grande nas capitais quando comparadas a outros municípios no país: 3 a cada 10 psicólogos estão nas capitais; já entre os psiquiatras essa proporção é de 4 a cada 10. A referência para psiquiatria no Brasil é de 5,8 psiquiatras a cada 100 mil habitantes e essa distribuição é bastante desigual no território, conforme se vê no quadro abaixo:

 Região

Psiquiatras

Psicólogos

Norte 1,09 18,44
Nordeste 2,59 25,02
Sudeste 5,81 41,61
Sul 6,13 48,88
Centro-Oeste 3,97 40,26

Assim, percebemos que existem desafios importantes a serem superados para efetivar uma atenção em saúde mental que seja concreta  e integrada. Primeiro, é preciso entender a saúde mental como parte da saúde geral, sem fragmentação. Segundo, é preciso entender que, para que coloquemos em prática as melhores ações de cuidado, a formação profissional precisa mudar. Terceiro, temos que potencializar os recursos já disponíveis e fortalecer o aprendizado contínuo, mesmo (e talvez principalmente) dentro dos próprios serviços. Não menos importante, é preciso combater as desigualdades de provisão de profissionais no território nacional.

Tudo isso se conecta para organizar o processo de cuidado de acordo com cada necessidade e aproveitar os recursos humanos do sistema para ampliar o acesso a um cuidado em saúde adequado, incluindo a saúde mental, sempre respeitando a lógica da integralidade, que é um princípio fundante do Sistema Único de Saúde (SUS). 

No caso da pessoa da nossa situação hipotética com dores no peito, tem-se uma demanda para psiquiatra, psicólogo, médico da família ou ambos? Como outras áreas, caso da assistência social ou da comunidade escolar, no caso de crianças e adolescentes, poderiam ajudar nesse processo? A distribuição e o compartilhamento dessa responsabilidade de forma estratégica  é fundamental para o sucesso dos cuidados em saúde mental. Considerando as desigualdades e a defasagem de recursos humanos e financeiros no SUS, a qualificação contínua, mudança de paradigma de formação e a consolidação do matriciamento podem ser um bom caminho para melhorar o sistema.

 

Helyn Thami é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

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Enfermagem brasileira e pertencimento étnico-racial: o que sabemos, e o que precisamos saber? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/#respond Wed, 28 Jul 2021 10:00:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/115376546_gettyimages-1253858296-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=463 Helena Maria Scherlowski Leal David, Gerson Luiz Marinho e Kênia Lara da Silva

 

Estudos sobre a distribuição dos profissionais de enfermagem brasileiros segundo variáveis sociais e demográficas mostram um retrato que necessita ser atualizado com urgência. Um cenário já reconhecido no mundo todo: é o que remonta à feminilização histórica da profissão. No caso brasileiro, isso se reflete em todos os níveis de divisão técnica: auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros de nível superior são majoritariamente mulheres. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), cerca de 90% do total de profissionais de enfermagem de todo o mundo são do sexo feminino. Para além das desigualdades impostas pelas diferenças de gênero, inclusive quanto à baixa remuneração e às escassas oportunidades de ascensão nas carreiras, um aspecto que necessita ser melhor compreendido é como se apresentam as diferenças étnico-raciais para essa profissão eminentemente feminina.

Não há dados globais e tampouco informações comparáveis entre países que demonstrem as características da diversidade étnico-racial dos profissionais de enfermagem. No Brasil, os dados sobre essas variáveis podem ser obtidos a partir de bases censitárias. Mas é preciso lembrar que o último censo nacional ocorreu em 2010. Apesar dessa limitação, é relevante apontar resultados dos recenseamentos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): no ano 2000, 70% dos profissionais de enfermagem declararam ser de cor ou raça branca. Dez anos depois, o Censo 2010 contabilizou 54,4% nesse contingente –uma redução de 15,6% de enfermeiros classificados como de cor ou de raça branca. Além disso, o Censo de 2010 também registrou diferenças na autodeclaração entre enfermeiros de nível superior (62,7 % eram brancos) e profissionais de nível médio (49,1% eram brancos).  

Sabe-se que o critério de preenchimento da variável raça/cor é a autodeclaração, que sofre alterações em função da autopercepção. De modo especial, nos últimos anos há uma tendência de maior reconhecimento das pessoas acerca de seu pertencimento racial –o que pode justificar, em parte, o aumento do contingente de enfermeiros negros (compreendidos como o conjunto daqueles declarados de cor/raça preta e parda), bem como a redução dos percentuais de enfermeiros de cor/raça branca. No caso do acesso ao ensino superior, um importante marcador foi a política de cotas sociais e raciais para estudantes que se declaram pobres e negros, o que pode ter influenciado o aumento de enfermeiros graduados nas últimas décadas.

Esse cenário nos permite pensar que, na enfermagem, assim como na população brasileira em geral, há interseccionalidade entre gênero-raça-classe, com pessoas autodeclaradas brancas tendendo a ocupar os postos de trabalho de nível superior. Por outro lado, as ocupações que exigem nível médio e elementar de escolaridade absorvem contingentes proporcionalmente maiores de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. De acordo com dados de 2010, a renda de enfermeiros (nível superior) autodeclarados brancos superou em mais de um quarto àquela registrada para enfermeiros pardos e pretos; e entre os técnicos de enfermagem, brancos tiveram renda aproximadamente 11% maior àquela remetida para técnicos pardos e pretos.

Dentro da equipe profissional de enfermagem, nota-se com maior frequência que enfermeiras (nível superior) ocupam cargos de chefia e gestão, sendo responsáveis pela coordenação dos demais profissionais da equipe de enfermagem. Considerando desigualdades observadas através da pesquisa censitária quanto à distribuição da autodeclaração de raça-cor, é possível inferir que, na enfermagem, “uma minoria de mulheres brancas ocupam postos nos quais chefiam uma maioria de mulheres negras”. Estes dados refletem as condições históricas e a divisão do trabalho no interior da profissão de enfermagem com hierarquização social reproduzindo a hierarquização racial. 

Historicamente, mulheres negras tendem a ocupar espaços de menor status social, com base na hierarquia do mercado de trabalho (o que pode ser observado para técnicas e auxiliares de enfermagem). Por outro lado, imagem da “enfermeira padrão”, no topo da pirâmide, foi cristalizada pela elitização e branqueamento da profissão. A ruptura com os ciclos de desigualdades advindos dos pertencimentos de gênero, raça, e classe é necessária e urgente na sociedade brasileira, e terá de superar os séculos de uma história de reprodução de relações sociais de subordinação, violência, racismo e opressão. Na enfermagem, com seus mais de dois milhões de profissionais, será parte importante no processo de enfrentamento dessas questões. 

De que forma, exatamente, essas diferenças e desigualdades incidem sobre as oportunidades de emprego, condições de trabalho e renda e de desenvolvimento da enfermagem são perguntas a serem respondidas por meio de novos estudos que atualizem o debate e contribuam para o reconhecimento profissional e o trabalho digno do imenso contingente de mulheres que cuidam.

 

Helena Maria Scherlowski Leal David é professora Titular do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DESP/ENF/UERJ).

Gerson Luiz Marinho é professor Adjunto do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery (DESP EEAN UFRJ).

Kênia Lara da Silva é professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG).

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O enfrentamento à pandemia pela transformação digital no Recife https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/07/o-enfrentamento-a-pandemia-pela-transformacao-digital-no-recife/#respond Wed, 07 Jul 2021 10:00:11 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/e622b8ea-ac89-47d8-b60e-c6cb46ade602-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=442 Agatha Eleone, Gustavo Godoy e Rafael Figueiredo

 

De todos os problemas de saúde, cerca de 85% podem ser resolvidos por meio da Atenção Primária, nome que se dá ao modelo de acolhimento que comprovadamente reduz custos em saúde. O motivo é um instrumento que contempla ações individuais e coletivas voltadas para promoção, proteção da saúde e prevenção de doenças, e para além da abrangência do diagnóstico, do tratamento e da reabilitação.

Apesar do seu inegável e histórico avanço, o modelo ainda é insuficiente em diversos âmbitos, principalmente no que diz respeito à infraestrutura e à disponibilidade de recursos humanos. No intuito de ordenar esforços para melhorar cuidados em saúde e dada a necessidade premente (e impulsionada pela pandemia) de medidas para contenção do colapso dos sistemas de saúde, o uso de tecnologias resolutivas e de ações de inovação se faz ainda mais necessário para superar esses desafios. Experiências internacionais de combate à covid-19 destacam, por exemplo, a oferta à população de aplicativos para identificação de casos leves e graves da doença, além da oferta de teleconsultas, serviços de apoio a pessoas em sofrimento psíquico  e monitoramento de casos em isolamento domiciliar. 

No Brasil o município do Recife, em parceria com o estado de Pernambuco, desenvolveu o aplicativo Atende em Casa. Por meio de um contact center composto por médicos, enfermeiros, operadores de teleatendimento e com o apoio da SUSi – chatbot do aplicativo com mais de 40 perguntas e respostas frequentes –, o aplicativo oferta atendimento através de chamada de vídeo, telefone ou via chat para pessoas com suspeita de covid-19, além de prover orientação sobre as medidas de distanciamento social e isolamento domiciliar. A ferramenta oferece, ainda, teleorientação com profissionais de saúde em casos de risco de agravamento da doença e, se necessário, encaminha o usuário ao serviço de saúde mais próximo e adequado à gravidade, amparando o monitoramento sistemático durante o período de isolamento domiciliar (telemonitoramento) e oferecendo suporte à saúde mental de pessoas em sofrimento psíquico (teleacolhimento). Com o avanço da vacinação contra a Covid-19, o aplicativo também passou a servir como apoio antes, durante e após a vacinação. Por consequência, continua prevenindo aglomerações e filas nas unidades de saúde.

A expansão do uso do Atende em Casa pela população recifense, associada às normativas vigentes de distanciamento no ambiente de trabalho, culminou no investimento em tecnologia VoIP (sigla para Voice Over IP, telefonia baseada na internet) para o contato telefônico, permitindo que parte da equipe de profissionais que o opera pudesse atuar em regime de trabalho remoto. Para o atendimento, são criadas salas digitais (webconferência) de colaboração em tempo real entre teleorientadores e profissionais referência de coordenação, que distribuem informações e atualizações para toda a equipe de saúde. A limitação de acesso à internet no Recife e no Brasil é um fator que, em muitos casos, impossibilita a condução de videochamadas e dificulta o processo de transformação digital. Por essa razão, boa parte dos atendimentos são realizados por telefone. Ainda assim, ambos os recursos (a videochamada e o atendimento telefônico) possibilitaram que profissionais do grupo de risco para covid-19 pudessem continuar a exercer suas atividades de forma segura.

O data analytics acessado pela equipe de monitoramento dos indicadores avalia que mais de 240 mil pessoas no estado estão cadastradas no aplicativo. Foram realizados, até agora, mais de 200 mil atendimentos por médicos e enfermeiros, em chamadas de vídeo ou telefone, e avaliadas mais de 117 mil pessoas com sintomas de risco para formas graves da doença. O impacto do teleatendimento e do telemonitoramento é notório. Apenas 14,7% do total de pessoas atendidas precisaram ser encaminhadas para consulta presencial. Todo o restante da população que recebeu atendimento pôde ser acolhida e orientada a manter o isolamento domiciliar, evitando o deslocamento desnecessário de milhares de pessoas com quadros leves de covid-19. A SUSi, assistente virtual do Atende em Casa, resolveu 67% dos mais de 250 mil atendimentos via chat no “Posso ajudar”. Com relação ao teleacolhimento, a iniciativa garantiu o apoio emocional por profissionais da Rede de Atenção Psicossocial do Recife em quase 5 mil atendimentos.

A ferramenta tecnológica permitiu a ampliação do acesso e a melhoria contínua da qualidade de atenção para a população. A autoavaliação de sintomas com classificação de risco, teleorientação e telemonitoramento com profissionais de saúde pode ajudar pessoas a cuidar melhor da hipertensão arterial, da diabetes, apoiar o acompanhamento das gestantes durante o pré-natal, melhorar a adesão ao tratamento de pessoas com tuberculose e hanseníase e apoiar emocionalmente pessoas em tratamento para depressão e ansiedade, entre outros benefícios já relatados por inúmeras pesquisas ao redor do mundo. A telessaúde do Recife não tem a proposta de substituir o cuidado presencial, mas vem rompendo barreiras de acesso aos serviços de saúde e ocupando lacunas de monitoramento sem competir com serviços de saúde já implantados.

O caráter dinâmico e transitório da pandemia, apesar de intensificar as fragilidades dos serviços públicos de saúde, proporcionou ao Recife a criação de um projeto que pode ser expandido tanto para diversas linhas de cuidado quanto para outros serviços do sistema de saúde, além de desafiar o planejamento e a mobilização de recursos humanos para responder à alta demanda de atendimentos. Os resultados consolidados pela experiência do Atende em Casa evidenciam a necessidade de firmar bases para sua continuidade sustentável e servem como ponto de partida para diversas outras iniciativas inovadoras.

 

Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

Gustavo Godoy, Coordenador do Núcleo Municipal de Telessaúde do Recife.

Rafael Figueiredo, Secretário Executivo de Transformação Digital do Recife.

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Recursos humanos e doenças crônicas no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/#respond Tue, 22 Jun 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/20200826185253802642o-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=426 Agatha Eleone e Helyn Thami

 

É em países de renda baixa ou média, caso do Brasil, que ocorrem 80% das mortes por doenças crônicas, segundo a Organização Panamericana de Saúde.  Nesses países, 30% das mortes ocorrem prematuramente –abaixo dos 60 anos de idade. As doenças crônicas são um grande fator de estresse para os sistemas de saúde e para o desenvolvimento econômico. A literatura é contundente ao mostrar, também, a importância das áreas de recursos humanos (RH) no desempenho do cuidado oferecido aos portadores de doenças crônicas.

Apesar da relevância do tema, o Brasil parece caminhar na contramão dos fatos. Recentemente, com o lançamento do Previne Brasil, o novo modelo de financiamento da APS (Atenção Primária em Saúde), o Nasf-AB (Núcleo Ampliado de Saúde da Família), e que complementava as equipes da Atenção Primária com profissionais de diversas categorias, teve seu financiamento suspenso. Assim, municípios e estados que quiserem manter o provimento dessas equipes multidisciplinares terão de custeá-las com recursos próprios, uma opção complexa em meio à crise vivida pelos entes subnacionais. 

Se existe espaço para se discutir os desafios de gestão e provisão dessas equipes multidisciplinares no contexto brasileiro, é um risco não termos direcionamento e coordenação nacionais para garantir que categorias profissionais diversas integrem permanentemente o sistema. O cuidado não-multiprofissional para as condições crônicas é um cuidado falho –e esse último impede o uso eficiente dos recursos disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde). 

Ademais, há um outro desafio: o manejo adequado das doenças crônicas no sistema público requer conhecimento sobre as diretrizes, princípios, protocolos e políticas setoriais do tema do próprio SUS, o que ainda é um gargalo no Brasil. Os modelos predominantes de disseminação de novos protocolos parecem não levar em conta a complexidade de se alterar comportamentos de profissionais de saúde de modo eficaz. O compartilhamento de novos guias clínicos por e-mail ou aplicativos de mensagens instantâneas, por exemplo, não é suficiente para garantir adesão aos procedimentos-padrão. 

Estudos mostram que os verdadeiros fatores que determinam a consolidação de diretrizes clínicas são experiência clínica pessoal e preferências pessoais (no nível individual) e participação no desenho do protocolo, treinamento e existência de mecanismos de controle (no nível organizacional). Considerando o exposto, é crucial que municípios desenvolvam metodologias mais ativas, bem como mecanismos de controle, para garantir a correta adesão aos protocolos preconizados. 

Em relação à dificuldade dos entes públicos em garantir implantação e permanência de profissionais (principalmente médicos) nos serviços, pode-se dizer que os principais motivos de desinteresse pelas áreas de Saúde da Família e Atenção Primária — que são de suma importância na prevenção a fatores de risco e doenças crônicas — têm sido relacionados frequentemente à baixa remuneração e às oportunidades de carreira e de formação oferecidas. Há uma intensa desmotivação e “desprestígio” vinculados a essa área de atuação, que resultam do modelo de atuação que enaltece o acompanhamento de doenças isoladas ao invés de sujeitos complexos. 

Tal modelo opera na lógica da chamada ‘queixa-conduta’, preconizando a execução de procedimentos, diagnósticos e prescrições, em detrimento do acolhimento e do cuidado para a promoção da saúde. Ainda, leva profissionais da saúde à percepção (equivocada) de que o perfil técnico científico de outras especialidades é maior ou superior que o da APS e retarda o aprimoramento dos currículos dos cursos nas áreas da saúde do brasil, que até hoje pouco estimulam o interesse e conhecimento nas áreas de saúde pública e saúde coletiva.

Outro gargalo para o bom cuidado aos portadores(as) de condições crônicas é a atuação integrada de uma rede variada de serviços de saúde. Para que essa rede opere em harmonia, existem fatores ligados aos Recursos Humanos que não podem ser ignorados. Um exemplo é o desenvolvimento de “lideranças de integração” — figuras que estudam liderança na perspectiva de unir e pactuar conjuntamente metas de resultados para um conjunto de serviços diferentes –, que recebe pouca ênfase no contexto brasileiro, mas que se provou relevante em sistemas de saúde mundo afora.

As condições crônicas permanecem sem resposta adequada pelo fato de os sistemas de saúde operarem de modo fragmentado e voltado para as condições agudas ou agudizadas de condições crônicas, isto é, para doenças já em estágio de agravamento ocasionados por ausência ou falha no cuidado preventivo. Atrelados a isso, existem problemas estruturais de interlocução da rede que contribuem ainda mais para essa fragmentação e que, se executada da forma adequada, favoreceria o trânsito do usuário dos serviços de saúde e garantiria a continuidade das ações e serviços. Na prática, um cidadão adequadamente referenciado ou que foi buscado ativamente por atores dos serviços estaria menos propenso a padecer por condições crônicas de saúde.

A disponibilidade de equipes de saúde que contem com profissionais de formação adequada para atuar na APS é um dos principais fatores para garantir o cumprimento das diretrizes do SUS. Dessa maneira, é preciso que o setor público se planeje para lidar com os desafios de um mundo onde a longevidade aumenta, juntamente com a prevalência desse tipo de condição, e isso passa por repensar diversos pontos da gestão de RH. É necessário, portanto, formular estratégias inovadoras para captação e capacitação, executando um plano robusto e sustentável de formação voltada para a APS, além de pensar em ações que possibilitem maior interesse pela área e a consequente implantação de profissionais em territórios vulnerabilizados, reduzindo as barreiras de acesso aos serviços de saúde.

 

Agatha Eleone e Helyn Thami são pesquisadoras de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

 

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Baixos salários e sobrecarga de trabalho da enfermagem https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/baixos-salarios-e-sobrecarga-de-trabalho-da-enfermagem/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/baixos-salarios-e-sobrecarga-de-trabalho-da-enfermagem/#respond Wed, 16 Jun 2021 10:00:20 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/saude-do-trabalhador-enfermagem-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=420 Alice Mariz, Kênia Lara da Silva, Márcia Caúla e Mario Dal Poz

 

Os profissionais da saúde têm enfrentado dramas, originados por problemas crônicos,  desde que a pandemia da Covid-19 se instalou, em especial os que atuam no campo da enfermagem.

Diversos estudos vêm apontando fragilidades e precarizações nas condições de trabalho de enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem no país. Há cerca de 20 anos esses profissionais vêm pleiteando a adoção de medidas que revertam esse cenário, especialmente por meio da regularização da jornada de 30 horas semanais e da fixação de um piso salarial compatível com o trabalho realizado. Essa busca se alinha com as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que indica, para a área de saúde, a jornada de 30 horas como a mais adequada, tendo em vista os desgastes sofridos pelos trabalhadores nesse setor. Somem-se a isso as condições específicas do trabalho da enfermagem –com baixos salários, sobrecarga, dupla jornada, contratos frágeis, assédios, dentre tantos outros problemas. Essas condições repercutem em maiores índices de adoecimento das trabalhadoras e comprometimento da segurança e da qualidade do cuidado prestado. 

Podemos exemplificar essa situação no contexto da pandemia da Covid-19. Segundo  dados do Ministério da Saúde, por meio dos boletins epidemiológicos, nota-se que dentre os profissionais de saúde, os técnicos e auxiliares de enfermagem, seguido dos enfermeiros, ocupam os primeiros lugares em número de casos e óbitos.

Acontece que, atualmente, não existem políticas que fixam, em nível nacional, jornada de trabalho de 30 horas e piso salarial, o que leva grande parte dos profissionais a se submeterem a múltiplos vínculos trabalhistas em busca dos rendimentos necessários a seu sustento e de sua família. Devemos ressaltar que a enfermagem é composta majoritariamente por mulheres, muitas das quais assumem sozinhas ou com grande parcela de contribuição, os orçamentos familiares. Em função disso, são submetidas a cargas excessivas de trabalho, somadas a períodos de recuperação e descanso insuficientes, levando-as à exaustão física, mental e emocional.

Com o intuito de enfrentar essa situação, foi proposto o Projeto de Lei (PL) n° 2564, de 2020, que pretende instituir o piso salarial nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira.  O PL está no Senado para ser avaliado e votado. Porém, embora em pesquisa realizada pelo próprio site do Senado, haja aproximadamente 984.227 pessoas favoráveis à proposta e somente 5.035 contrários, o PL tem encontrado obstáculos para sua aprovação, em especial de dirigentes de corporações e empregadores do setor privado. Entre as justificativas para esse posicionamento contrário está o argumento de que a redução da carga horária das trabalhadoras de enfermagem leva a impactos financeiros nas instituições. As entidades que defendem o PL 2564 demonstram que esse argumento é frágil, pois os impactos advindos dos adoecimentos, de uma assistência insegura, em função das jornadas exaustivas, com condições precárias que induzem a erros e danos no processo de trabalho, representam gastos maiores para instituições públicas e privadas do setor.

Ademais, há um componente de custos imensuráveis no debate sobre a jornada de trabalho e o piso salarial que se refere à dimensão subjetiva do trabalho que, quando realizado sob condições que representam reconhecimento social e financeiro, repercutem em maior satisfação, maior identificação e maior comprometimento com o que se faz. Em consequência há maior preocupação e entrega ao exercício profissional repercutindo numa assistência mais segura e de qualidade para pacientes e trabalhadoras.

A proposta de regulamentação da jornada de trabalho e do piso salarial é um processo que se arrasta há décadas. Contudo a categoria parece possuir hoje maior capacidade de articulação e convergência dada a visibilidade alcançada com os movimentos de valorização da profissão exibidas em vários países durante o ano de 2020. Deve-se lembrar que, em outras épocas, foi sinalizado o aceite desta proposta, mas apenas para os enfermeiros graduados, excluindo os técnicos e auxiliares, o que a categoria nunca aceitou.

A ausência de políticas que garantam condições dignas de atuação à categoria pode também estar relacionada a fatores como misoginia, racismo, classismo e à LGBTQIA+fobia. Pesquisas apontam que cerca de 85,6% do total de profissionais da enfermagem são mulheres e mais da metade são negras (pretas e pardas), principalmente entre técnicos e auxiliares de enfermagem. 

Investir no desenvolvimento das condições de trabalho da enfermagem, incluindo boas remunerações, planos de cargos e salários e de aperfeiçoamento profissional, significa enfrentar diretamente as disparidades sociais e as opressões às quais determinados grupos estão expostos no Brasil, pois o mercado de trabalho envolve múltiplos aspectos e norteia as condições às quais os profissionais são submetidos. 

A Pesquisa Perfil da Enfermagem (Cofen/Fiocruz), publicada em 2013, apresentou um diagnóstico da situação da enfermagem no Brasil que permitiu compreender as diversas realidades locais que se apresentam num país com dimensões continentais como o Brasil. O cenário mostrado pelo estudo gerou dados que têm subsidiado a discussão de propostas políticas para mudanças nessa profissão tão necessária, mas tão negligenciada. Observa-se hoje um contingente de profissionais mais politizado, ainda que com poucos avanços do ponto de vista das políticas públicas e de recursos humanos para a categoria.

Assim, na luta por melhores condições de vida para a população, incluindo a redução das disparidades e o acesso a assistência de saúde de qualidade, cabe planejar e adotar ações que tragam impacto efetivo para a maior força de trabalho em saúde no Brasil. Um instrumento para isso é a produção de informações relevantes, em estudos sobre demografia e mercado de trabalho em saúde em enfermagem que possibilite e  disponibilize informações confiáveis e acessíveis que poderão nortear e embasar a construção de estratégias assertivas que trarão benefícios não só aos profissionais de enfermagem, mas a toda população brasileira.

 

Alice Mariz, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da UERJ.

Kênia Lara da Silva, Professora Associada da Escola de Enfermagem da UFMG.

Márcia do Carmo Bizerra Caúla, Enfermeira Especialista em Saúde Pública,  Coordenadora da Câmara Técnica e Unidade de Processo Ético do COREN-MG. 

Mario Dal Poz, Professor Titular do Instituto de Medicina Social da UERJ.

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