Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Panorama atual e desafios da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/#respond Fri, 12 Nov 2021 08:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/covid-negros-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=586 Ionara Magalhães

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) enumera um conjunto de lutas históricas dos movimentos sociais negros. No campo de disputas por um projeto de sociedade equânime e democrática, essa luta representa um importante marco político no enfrentamento do racismo estrutural. A PNSIPN é uma política transversal, contra-hegemônica, fundamentada no reconhecimento do racismo como determinante da precariedade das condições de saúde da população negra. A PNSIPN tem caráter específico e compensatório, pois as políticas universalistas não têm alcançado populações vulneráveis e acabam por reproduzir as iniquidades. A PNSIPN visa a assegurar os princípios antirracistas e não discriminatórios, correspondendo, portanto, a uma ação afirmativa no SUS.

Os dados de morbimortalidade (índice de pessoas mortas em decorrência de uma doença específica dentro de determinado grupo populacional) da população negra revelam a insuficiência e a ineficiência de ações governamentais para redução das iniquidades étnico-raciais. Não existe predisposição nata ao adoecimento e mortalidade precoce das pessoas negras. Com efeito, há um pequeno elenco de morbidades determinadas geneticamente. Todavia, prevalecem doenças e agravos sociais resultantes do racismo que estrutura as desigualdades sociais. 

Se a saúde é determinada por políticas macroeconômicas, por capital social e cultural, por condições de vida, ambiente e trabalho moldadas pela distribuição de dinheiro, por recursos e por relações de poder, as condições de saúde da população negra têm correspondência direta com as iniquidades sociais, e suscitam política específica. Nesse sentido, a institucionalização da saúde da população negra no SUS aponta para o cuidado preventivo, assistencial e promocional da saúde, previsto nos planos operativos da PNSIPN.

Após doze anos de instituição, a PNSIPN foi efetiva em apenas 57 dos 5.570 municípios brasileiros. Os problemas persistem: falta de financiamento, insuficiência de suporte técnico, falta de comitês técnicos estaduais e municipais de saúde da população negra, desconhecimento da população usuária do SUS sobre a PNSIPN e, sobretudo, a cultura do racismo institucional. Os comitês técnicos de saúde da população negra têm caráter deliberativo e executivo, representam a interlocução entre as comunidades negras e as instituições de governo, além de que visam a garantir a implementação da política. Todavia, em 2018, não havia 10% dos comitês técnicos de monitoramento em todos os municípios. Por certo, uma investigação atual revelaria dados ainda mais estarrecedores.

A gestão da PNSIPN deve ser compartilhada entre União, estados e municípios, e prevê o exercício e fortalecimento do controle social, da produção da informação, do conhecimento científico e tecnológico em saúde da população negra, e da valorização dos saberes e práticas populares de saúde, inclusive das religiões de matrizes africanas. Além disso, a política preconiza o monitoramento, a avaliação das ações referentes ao combate ao racismo nas distintas esferas de governo e a garantia do amplo acesso da população negra às ações e aos serviços de saúde.

No bojo da análise da implementação da PNSIPN, destaca-se que muitos sistemas de informação em saúde não dispõem do quesito “raça/cor da pele”. Tampouco há esforços da gestão em fazer o registro compulsório deste campo e sanções pelo não cumprimento do preenchimento, estabelecido pela Portaria 344/2017. Além disso, denota-se a necessidade de melhora da coleta, do processamento e da análise dos dados desagregados por raça/cor da pele/etnia para a produção, do monitoramento, da avaliação de indicadores e das metas destinadas à promoção da equidade étnico-racial na saúde.

Um grande entrave corresponde à inclusão da temática “relações étnico-raciais, racismo e saúde da população negra” na educação permanente voltada aos trabalhadores , gestores e usuários  nos currículos de formação dos cursos de saúde. Essas temáticas são ignoradas pelas instituições ou não reconhecidas como fundamentais pela sociedade brasileira. 

A implementação da PNSIPN implica o fortalecimento do SUS – o maior patrimônio público e maior política social do país. Entretanto, os ataques ao SUS, traduzidos pelo subfinanciamento crônico e desfinanciamento, pela destituição dos direitos sociais, civis e políticos, e pela adoção de políticas antidemocráticas e conservadoras, atingem diretamente a população negra e, consequentemente, fragiliza o processo de implementação da PNSIPN. 

É premente que, para além dos comitês técnicos, das organizações sociais e dos movimentos negros, o Estado estabeleça mecanismos institucionais de gerenciamento e monitoramento da implementação da PNSIPN. Logo, seria a implementação da PNSIPN uma questão técnica ou política? O maior desafio da PNSIPN é, incontestavelmente, a sua implementação, que esbarra na estrutura, disposição e política institucional desfavoráveis. Seguramente, sem a devida implementação e avaliação, o ciclo da política não se completa.

Portanto, no panorama atual de implementação da PNSIPN, observam-se ações descontínuas, isoladas, descoordenadas e o descompromisso governamental com  a sua implementação. O fracasso no processo de implementação da PNSIPN representa uma ameaça ao projeto civilizatório, Muitos avanços têm sido desconstituídos e prejudicado o exercício do direito à saúde da população negra. Nessa correlação de forças, segue em curso uma longa disputa pela democratização da saúde, pelo resgate da credibilidade institucional e pela efetivação de uma política de legitimidade histórica.

 

Ionara Magalhães é professora Adjunta da UFRB, membra do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra e do GT Racismo e Saúde da ABRASCO

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Orçamento público para a saúde da população negra: uma tarefa por fazer https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/#respond Fri, 05 Nov 2021 08:00:16 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/0b6d7e87ff86e86f6dddbb12ef854e9f_1616619191805_2002334538-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=572 Clara Marinho Pereira e Julia Rodrigues

 

A maioria da população brasileira se declara negra: são 89,7 milhões de pardos e 19,2 milhões de pretos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o 3º trimestre de 2020. No entanto, em face das vulnerabilidades provocadas pelo racismo, os impactos da pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido desproporcionalmente maiores na saúde da população negra por, pelo menos, quatro motivos.

Primeiro, porque a população negra teve menores oportunidades de se isolar. Sem políticas públicas para conter a contaminação em comunidades e favelas, o vírus espalhou-se rapidamente entre os mais pobres. Cabe lembrar que 67% dos moradores das comunidades e favelas brasileiras são negros.

Segundo, porque a população negra é maioria nos segmentos econômicos considerados essenciais para a manutenção da vida coletiva, de natureza intensiva em mão-de-obra. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 mostram que, na limpeza urbana, 55,4% do total de vínculos eram compostos por negros; na segurança, 52,9%; e na construção civil, 50,2%, dentre tantos outros serviços. No  cotidiano, cada trabalhador(a) negro(a) se expõe ao contato com dezenas, até centenas de pessoas.

Terceiro, porque a população negra também é maioria na informalidade. Dados de 2019 do IBGE mostram que 47,4% dos trabalhadores negros do Brasil estão inseridos na informalidade, contra 34,5% da população branca.  Com a atividade econômica restringida ou afetada pela circulação do vírus, fragilizaram-se os circuitos de trabalho e de ganho diário, lançando rapidamente trabalhadores à pobreza, à miséria e à fome; uma situação que dificulta o isolamento e a capacidade das pessoas negras em ter uma resposta imunológica adequada quando contaminadas.

Quarto, quando contaminados, os negros demoram mais a ter acesso aos serviços de saúde. Muitas vezes impossibilitados de faltar ao trabalho, ou então sem dinheiro para pagar o transporte até o posto de saúde,  negros acabam por postergar a busca pela assistência médica. Quando o fazem, a situação já está agravada.

Não por acaso, negros morrem mais do que brancos. Conforme estudo realizado pelo Instituto Pólis, a taxa de mortalidade padronizada da doença para a população negra foi de 172 mortes para cada 100 mil habitantes entre março e julho de 2020 na cidade de São Paulo – município mais populoso do país. O número é 60% maior do que a taxa de mortalidade padronizada da população branca da cidade, que ficou em 115 mortes para cada 100 mil habitantes.

Em estudo mais recente, de setembro de 2021, e de caráter nacional, pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária mostram, a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, que homens negros morrem mais por Covid-19 do que homens brancos, independentemente da ocupação e mesmo quando estão no topo do mercado de trabalho. Já as mulheres negras morrem mais do que todos os outros grupos (mulheres branca, homens brancos e homens negros) na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação.

No entanto, a vacinação começou com pouca atenção a esses aspectos, partindo do centro para as periferias; dos grupos afluentes para os mais vulneráveis, o que mostra, mais uma vez, o uso seletivo das evidências para informar as políticas públicas. As “evidências”, muitas vezes, são mobilizadas para reforçar estruturas prévias de poder, e não questionar o melhor uso do recurso delas.

Com a Covid-19 ainda no horizonte, quais as chances de racionalizar o debate sobre o gasto em saúde daqui em diante? Aqui, propõe-se o exercício de olhar para trás, com o intuito de entender as possibilidades futuras.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, construída pela sociedade civil em parceria com o governo federal, estabelece um conjunto de diretrizes para que os serviços públicos de saúde acolham as especificidades da população negra na sua oferta, reconhecendo o racismo como uma determinante social das condições de saúde, ou seja, como o racismo impacta na ocorrência de problemas de saúde e amplifica seus fatores de risco.

A despeito dos imensos esforços colocados desde meados dos anos 1990 para a construção desse arcabouço de intervenção pública, o Estado brasileiro não tem sido diligente para dar visibilidade à sua atuação na garantia do bem-estar da população negra.

Um dos principais instrumentos para atuação do Estado é o orçamento público. É por meio dele que são comunicadas à sociedade as prioridades do governo e são alocados recursos para sua implementação.

O Plano Plurianual (PPA) para o ciclo 2016-2019 do governo federal possuía um programa específico para o enfrentamento das questões raciais: o Programa 2034 – Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, que tinha como uma das metas “Contribuir para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, incluindo a atualização do seu Plano Operativo” (Meta 4MC). Já no PPA para o ciclo 2020-2023, há um completo apagamento da questão racial, com nenhum programa, objetivo ou meta endereçados ao tema.

Do ponto de vista da Lei Orçamentária Anual (LOA), os recursos são, na maioria das vezes, alocados em ações genéricas, com o objetivo de facilitar o desembolso daqueles. No entanto, essa prática dificulta sobremaneira o controle social, pois impossibilita que sejam acompanhadas as despesas por recortes de gênero, raça, faixa etária e orientação sexual. No Ministério da Saúde, esse fenômeno (as ações genéricas) é recorrente, sendo difícil até mesmo obter a localização geográfica do gasto.

Até o ano de 2020, contudo, era possível enxergar uma (mínima) preocupação do Ministério com a promoção da equidade, devido à existência da ação orçamentária 20YM – Implementação de Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, cujo objetivo era a promoção do direito à saúde para segmentos populacionais expostos a iniquidades em saúde, como ciganos, LGBT, populações do campo, da floresta e das águas, população negra, população em situação de rua, população albina e gestores do SUS. No ano de 2016, essa ação chegou a contar com R$46,5 milhões de reais, em 2018 caiu para R$8,8 milhões e, em 2020, chegou a R$28 milhões.

No entanto, em sintonia com o apagamento das questões raciais no PPA 2020-23, a ação 20YM deixou de constar do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2021, encaminhado pelo Poder Executivo. Foi transformada em uma classificação gerencial (chamada Plano Orçamentário e que pode ser modificada a qualquer instante) da ação 21CE – Implementação de Políticas de Atenção Primária à Saúde. Em 2021, foram previstos R$28 milhões e, para 2022, o valor foi repetido, indicando que, em termos reais, os montantes diminuem a cada ano.

Contraditoriamente, portanto, justo quando a questão racial na saúde está exacerbada pelos dados, pelos achados de pesquisas e pelas tragédias, é quando ela mais se ausenta de identificação e controle social no orçamento, bem como de vínculos com o planejamento público de médio prazo.

Qualquer tentativa de assegurar o direito à saúde da maior parte da população brasileira que não observe a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra conjugada à consignação de recursos no orçamento estará condenada ao questionamento de sempre: será mesmo que o Estado brasileiro está comprometido com o atendimento igualitário no Sistema Único de Saúde (SUS)?

Hoje, infelizmente parece que a resposta é “Não”. Fazer mais do mesmo apenas trará mais mortes e iniquidades.

 

Clara Marinho Pereira é Mestre em Desenvolvimento Econômico e Fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente.

Júlia Rodrigues é Economista, Doutoranda em Ciência Política e Consultora de Orçamento.

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