Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Saúde mental: o que é, por que não falamos tanto sobre isso, e por que deveríamos falar mais? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/30/saude-mental-o-que-e-por-que-nao-falamos-tanto-sobre-isso-e-por-que-deveriamos-falar-mais/#respond Wed, 30 Jun 2021 10:00:29 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Colunas_PandemiaTerapia_060421_FatCameraGettyImages-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=432 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Uma infinidade de conceitos surge quando se fala em saúde mental. Eles nos remetem à presença ou à ausência de uma doença, ou então ao mais completo bem-estar. Podemos pensar, ainda, em saúde mental sob o ponto de vista do indivíduo, ou dando ênfase ao contexto coletivo, social e suas complexidades.

Essas definições às vezes se complementam, em outras se opõem, mas não refletem necessariamente a complexidade da saúde mental e sua profunda integração com outros temas sociais como educação, trabalho e sistemas de saúde. A saúde mental não é só inexistência de doença e também não deveria ser uma expressão para designar “vida perfeita”. Também não é apenas sinônimo de bem-estar, leveza e despreocupação, sob o risco de cairmos em uma situação de positividade tóxica, em que estaríamos rejeitando a tristeza e outras emoções entendidas como negativas. Saúde mental também não pode ser vista apenas sob a perspectiva do indivíduo e suas questões genéticas e biológicas, negligenciando os diversos componentes sociais, estruturais e de comunidade que a influenciam.

Saúde mental é parte fundamental da saúde do nosso organismo. Do nosso funcionamento biológico e psicológico. Do nosso corpo pessoal e também social. Nesse sentido, ela está relacionada à forma como cada pessoa lida com seu entorno, seus desafios cotidianos e as transformações da vida. É o resultado de uma complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva, a educação, as violências e o acesso ou falta de bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária.

 

Abordagens falhas e estigmas dificultam o debate sobre Saúde Mental

Muitas vezes por incompreensão do tema e falta de informação qualificada, a narrativa da saúde mental na nossa sociedade não faz jus à centralidade que ela efetivamente ocupa.

Atualmente, em média,  menos de 2% dos orçamentos públicos de saúde são alocados para a saúde mental globalmente, sendo que a situação é ainda pior em países de baixa e média renda, como o Brasil, em que se gasta menos de USD 2 per capita no tratamento e prevenção de transtornos mentais, comparado com um investimento de USD 50 per capita em países de alta renda.

Em termos de investimento social privado, apenas 4% do total de R$2,5 bilhões de investimento social privado no Brasil em 2019 foram destinados à saúde e esporte, bastante abaixo do que seria necessário para intervenções estruturais no campo.

Além da desinformação, barreiras culturais, financeiras e estruturais também são relevantes, como o estigma, a descrença no tratamento e o insuficiente treinamento das equipes de atenção básica para lidar com o assunto.

Outro fator de destaque é a falta de dados e indicadores atualizados sobre saúde mental –o último levantamento nacional abrangente do tema se deu em 2015, não tendo sido atualizado desde então, o que dificulta um entendimento robusto da situação. Estudos epidemiológicos são de fundamental importância para determinar um panorama assertivo da saúde mental, e para podermos compreender melhor os determinantes sociais da saúde mental, trabalhar abordagens preventivas, priorizar a alocação de recursos, e obter insumos importantes para o planejamento adequado das políticas públicas.

 

Por que é preciso falar mais sobre Saúde Mental?

Os impactos econômicos e sociais dos problemas de saúde mental estão associados a consequências negativas que afetam a sociedade como um todo, abrangendo a redução de mão de obra qualificada, o desemprego, a falta de moradia, a morte prematura, o impacto na educação, a oneração do sistema público de saúde, entre outros.

Recentemente, um levantamento colocou as doenças mentais –como os transtornos depressivos e os transtornos de ansiedade–  como a categoria com maior fardo global de doenças no que diz respeito aos anos vividos com incapacidade (YLD), representando 32,4% do total de anos. Já em termos de anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs), que consideram tanto os YLD quanto as mortes prematuras relacionadas à doença (YLL), as doenças mentais representam significativos 13% do total de anos, percentual equivalente às doenças cardiovasculares e circulatórias.

Para além dos desafios existentes na vida dos indivíduos relacionados à carga global de doença, existe um crescente reconhecimento de que a falta de atenção dada à saúde mental reflete diretamente em custos financeiros relevantes. Dados do Fórum Econômico Mundial estimam que de 2010 até 2030 haverá perdas econômicas globais de USD 16 trilhões atribuíveis aos transtornos mentais, neurológicos e por uso de substâncias, o que representa mais de 10 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2020.  Estimativas da pesquisadora Sara Evans-Lacko, da London School of Economics, mostram que no ambiente de trabalho o Brasil perde USD 78 bilhões com a queda de produtividade. Além disso, o “burnout” é uma das maiores causas de absenteísmo e representa de 20% a 50% das causas de “turnover” nas empresas. No que diz respeito à educação, pesquisas das “national academies” de ciências, engenharia e medicina dos Estados Unidos revelaram que a evasão escolar de estudantes com problemas de saúde mental chegava a 43% a 86%, enquanto que um dos primeiros estudos a investigar a relação entre saúde mental e evasão escolar, feito por pesquisadores do Canadá, revelou que estudantes com depressão têm duas vezes mais chance de deixar a escola comparado com seus pares sem quadros depressivos.

Concluímos que é  imprescindível refletir na narrativa da saúde mental a mesma centralidade que ela já ocupa na nossa sociedade, nos nossos lares, corporações e vidas pessoais. Precisamos falar abertamente sobre isso,  de forma clara e articulada, e redirecionar investimentos públicos e privados para essa causa. Nessa encruzilhada, a promoção e a proteção da saúde mental devem estar em primeiro plano, sendo indispensável a avaliação contínua das políticas implementadas, de modo a adaptar a oferta e o cuidado com a saúde mental às demandas do momento e do contexto.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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Vacinação, voz e a impossibilidade de saída na pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/vacinacao-voz-e-a-impossibilidade-de-saida-na-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/vacinacao-voz-e-a-impossibilidade-de-saida-na-pandemia/#respond Wed, 09 Jun 2021 10:00:52 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/img20201218103533331-768x512-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=409 Agatha Eleone e Arthur Aguillar

 

A lentidão do processo de vacinação e a recente segunda onda da Covid-19 no Brasil tem criado uma série de questões sociais. Empresários buscam adquirir vacinas para si, suas famílias e seus empregados. Para esses últimos, o objetivo é possibilitar a retomada econômica o quanto antes. Uma parte considerável da elite já está voando para Miami, agora que o governo norte-americano anunciou a vacinação de turistas. Não é para menos: em um mundo com uma prevalência desigual da doença, a vacina funciona como um novo seguro de saúde que nos permitirá dormir em paz, sabendo que nem nós, nem os nossos perecerão. Para além disso, será também um passaporte para a realização de muitos desejos reprimidos: viagens, festas, idas a restaurantes e a casas noturnas voltam a ser uma possibilidade, já muito ansiada após quase um ano e meio dentro de casa – para aqueles que tiveram o privilégio de poder se proteger da doença através do isolamento. 

A possibilidade de buscar uma via privada para adquirir vacinas e proteger-se da Covid-19 é o que o falecido economista Albert Hirschman, um tipo de patrono dos economistas que se arriscam na interdisciplinaridade, chamaria de “saída”. Ao analisar a dinâmica entre a qualidade entre trens e rodovias na Nigéria, Hirschman criou uma tipologia para entender a dinâmica de qualidade e eficácia de serviços públicos. 

Diante de um serviço público considerado ruim, como o caso dos trens na Nigéria dos anos 1970, um beneficiário deste serviço (por exemplo, um grande produtor de biscoitos, como o pai da protagonista do livro Hibisco Roxo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie) tem, usualmente, duas opções. Ele pode simplesmente deixar de usar o serviço de trens (saída) e começar a usar caminhões para escoar sua produção. Alternativamente, ele pode também reclamar do serviço (voz), exercendo a ação coletiva através de reclamações formais e informais, protestos e ativação da mídia, criticando a qualidade dos serviços. Hirschman nos mostra em seu livro Saída, Voz e Lealdade que ainda que um produtor de biscoitos possa deixar de usar o trem (sair) para usar as rodovias, ele não pode optar por sair de ambos os serviços, pois afinal, ainda precisa de um meio para escoar a sua produção. Nesse exemplo, os empresários locais possuem, portanto, a opção de saída do serviço. A teoria levantada por Hirschman propõe que, quanto maior a possibilidade de saída do sistema público, menos provável que as elites locais utilizem sua voz e conexões políticas para exigir a melhora de um serviço.

Hirschman, um cidadão do mundo que sempre esteve em contato com os maiores desafios do seu tempo, seja ajudando judeus a fugirem da Europa ocupada pelos nazistas, contribuindo como economista no Plano Marshall ou mesmo enquanto participante da primeira missão do Banco Mundial em um país em desenvolvimento, certamente se interessaria pela dinâmica entre voz e saída dos sistemas públicos de saúde em face da pandemia de Covid-19.

A primeira conclusão a que chegamos a partir do arcabouço de Saída, Voz e Lealdade é que o processo de contornar o SUS para se vacinar contra a Covid-19 encarna um desejo humano natural que só pode ser exercido pelas camadas mais ricas da população diante de um serviço público de qualidade insatisfatória: se possível, sair. O exercício deste desejo, no entanto, tem consequências sociais óbvias, já que os mais ricos são justamente o grupo social com a maior capacidade de ação coletiva e mobilização (voz). Quando aqueles capazes de cobrar a gestão pública (seja por doarem grandes somas às campanhas eleitorais, possuírem espaço na mídia ou qualquer outra forma de influência) deixam de fazê-lo em função da opção de saída, todos os beneficiários do serviço perdem.

A segunda conclusão é que no caso da pandemia da Covid-19 — e de maneira geral, na maioria dos desafios de saúde coletiva –, a saída, na verdade, é uma impossibilidade lógica. Isso acontece porque em um evento desse tipo, a saúde do indivíduo não depende apenas de suas ações individuais, mas possui uma relação de interdependência com as ações de todos os outros indivíduos que compõem uma sociedade: mesmo que um empresário consiga tomar a vacina, isso não altera de maneira significativa a transmissibilidade e a vulnerabilidade associada à Covid-19: grande parte da força de trabalho ainda estará impedida de realizar suas atividades; medidas restritivas de ordem coletiva ainda serão necessárias para frear a doença; e a vulnerabilidade social e insegurança alimentar que decorrem da paralisação econômica continuarão a demandar um papel ativo do estado no fortalecimento das redes de proteção social.

Se estamos convencidos que a saída é uma impossibilidade lógica, resta exercer a voz. Aqui, temos muito o que fazer: é possível propor parcerias eficazes entre entidades privadas e serviço público. No nível da opinião pública existe um longo caminho a ser percorrido na comunicação de risco com a população, na disseminação de informações confiáveis sobre a pandemia e no combate às fake news. No nível da gestão pública, nossos municípios precisam de ajuda com a aquisição de insumos, transporte e armazenamento de vacinas, assim como na vigilância epidemiológica, tarefa complexa que muitas cidades pequenas não têm escala para executar. E no nível macro, é necessário responsabilizar o governo federal por sua omissão e negligência tanto na tomada de medidas restritivas quanto no processo de compra e aquisição de vacinas.

Hirschman, um economista que gostava de palíndromos e outros jogos de palavras (chegando a partir deles a importantes hipóteses sobre a inter-relação de forças políticas e forças econômicas), possivelmente notaria a ironia intrínseca ao momento presente. A pandemia trouxe à tona o que há muito não víamos no contexto da saúde brasileira: “obrigou os produtores de biscoitos a usar o trem”. É possível voar para os EUA para vacinar a si e os mais chegados gastando 450 mil reais (o suficiente para comprar 45 mil doses de Coronavac), como fez recentemente um empresário. Mas não dá pra levar a empresa no bagageiro do avião. Para aqueles que não têm acesso à saída (hoje, o conjunto total de pessoas que vivem no Brasil), resta apenas a voz.

 

Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Arthur Aguillar, Coordenador de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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