Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os riscos de ser negro no Brasil e o racismo que mata https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/24/os-riscos-de-ser-negro-no-brasil-e-o-racismo-que-mata/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/24/os-riscos-de-ser-negro-no-brasil-e-o-racismo-que-mata/#respond Wed, 24 Nov 2021 08:00:43 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Reflexões-sobre-o-‘ser-racista’___-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=596 Beatriz Almeida, Jéssica Remédios, Maria Leticia Machado e Victor Nobre

 

“A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil”. Essa é uma frase que se popularizou a partir de uma campanha das Nações Unidas de 2017 e que chama a atenção para as mortes violentas por trás da desigualdade racial no país. É um problema histórico, mas ainda atual e que abre, ao mesmo tempo, uma janela de debate para as condições de vida e saúde da população negra no Brasil. Os brasileiros negros não só morrem violentamente mais do que os brancos, como têm, na maioria, acesso à educação, emprego e habitação precarizados. Esses fatores contribuem para piores desfechos de saúde e devem ser ponto de atenção para os formuladores de políticas públicas, sobretudo quando observados sob o ponto de vista demográfico, pelo fato de pretos e pardos corresponderem a mais da metade da população brasileira.

Vale fazer uma breve menção histórica que remonta ao Brasil Colonial. Além de ter sido um dos últimos países da América a abolir a escravidão, o Brasil foi um dos que mais sofreram os seus efeitos perversos. Em paralelo, as leis abolicionistas propostas, apesar de importantes para o processo de consolidação da abolição, configuraram-se de forma paliativa, denotando um processo inconclusivo. 

Inconclusivo não sob uma ótica jurídica, mas sim processual, levando em consideração que há uma construção de cidadania inacabada, seja pela ausência de políticas inclusivas de integração dos escravizados à sociedade, ou por meio da incipiente manutenção de uma lógica de discriminação racial, ainda presente nas relações sociais e econômicas. O resultado é o que o teórico Silvio Almeida define como “racismo estrutural”, caracterizado “tanto como uma ideologia, quanto como uma prática de naturalização da desigualdade”. 

Sob o ponto de vista das políticas de saúde, a relação com o racismo estrutural mostra-se ainda mais evidente, quando a população negra, principal usuária e dependente do SUS, respondendo por 67% do total de usuários, é o grupo social que possui os piores indicadores de saúde, com números assustadores de mortalidade. Pesquisas amostrais do IBGE revelaram que 65% dos óbitos maternos em 2018 foram de mulheres negras; entre 2011 e 2020 a população negra apresentou maior prevalência de casos de tuberculose; mulheres negras e jovens entre 20 a 29 anos representam a maior população afetada pela sífilis.  

Os resultados provêm, em grande medida, das condições de insalubridade em que a vive população negra. De acordo com o último Censo (2010), 79% dos negros não possuíam banheiro em casa; 69% residiam em locais sem coleta de lixo e 62%  sem água encanada. As estatísticas mais atuais, de forma simultânea, apresentam cenários ainda mais preocupantes: no contexto da pandemia de Covid-19, a insegurança alimentar, aumentou significativamente, recaindo, em maior parte, sobre lares chefiados por pessoas negras (66,8%). Outro ponto é o fato de a população negra não conseguir cumprir o isolamento social e os devidos protocolos de higienização, uma vez que precisam trabalhar, e a natureza de suas atividades obriga-os a ficarem expostos constantemente

Complementarmente, a literatura evidencia o racismo estrutural não só em situações atípicas – como em uma pandemia – mas cotidianamente. Segundo estudo da pesquisadora Jurema Werneck, as (baixas) condições de saúde mais comuns na população negra podem ser divididas em: geneticamente determinadas, adquiridas (derivadas de condições socioeconômicas desfavoráveis), de evolução agravada ou condições fisiológicas alteradas por condições socioeconômicas. A diabetes mellitus, por exemplo, acomete 50% mais mulheres negras do que brancas, enquanto a tuberculose e a hipertensão arterial acometem 57,5% e 27%, respectivamente

Apesar dos inúmeros problemas vividos por negros e que se somam à ausência de políticas públicas para essa população, é necessário destacar as iniciativas que buscam mitigar esses problemas da saúde pública voltadas a categoria, como é o caso da  Política Integral de Saúde da População Negra (PNSIPN). Publicada em 2009 como fruto do Grupo de Trabalho Interministerial, a PNSIPN tem como base dois eixos fundamentais: I) definir objetivos, responsabilidade de gestão e estratégias voltadas para melhorias da saúde da população negra usuária do SUS e II) garantir maior grau de equidade em referência à efetivação do direito humano à saúde da população negra. A partir da publicação da PNSIPN,  avanços foram alcançados, entre eles a produção de conhecimento acadêmico na área, criação de áreas e comitês técnicos voltados para o segmento e a aprovação da Resolução 344/2017 sobre a questão do preenchimento do quesito raça/cor, incentivando a mensuração de dados epidemiológicos sobre a saúde da população negra. 

Apesar dos avanços, os desafios ainda se sobrepõem, associados, em grande medida, a aspectos estruturais e orçamentários. Desde sua criação, a PNSIPN só foi implementada em apenas 28% dos municípios brasileiros, indicando  baixa adesão em território nacional, ao passo que, destes 28%, menos de 10% possuem comitês de monitoramento para avaliar o impacto da Política sobre a saúde da população.  Do ponto de vista orçamentário, nota-se um total apagão no governo federal e no Ministério da Saúde dos programas voltados à melhoria da saúde da população negra e às pautas antirracistas. O último  foi em 2016, o Programa 2034, contido no Plano Plurianual (2016-2019). 

É, portanto, imprescindível fomentar debates que retomem o papel de relevância e protagonismo da PNSIPN no combate às desigualdades. Afinal, conforme apontado pelo Comitê Técnico de Saúde da População Negra, “reconhecer que as práticas racistas estão dentro dos modelos de atenção à saúde e buscar a transformação desse cenário devem ser objetivo de todos envolvidos com o cuidado em saúde e com as instâncias de gestão”. Os indicadores de saúde  reforçam a necessidade de implementação da PSNIPN para  estados e municípios e expansão do nível de monitoramento, tendo em vista que há instrumentos e metodologias estruturadas para esse processo.

O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), instituição voltada às políticas públicas em saúde, pautado por evidências e reconhecendo o seu papel como fomentador desse debate, reforça o  compromisso em  contribuir para um sistema público de saúde mais equânime, considerando a urgência da mitigação das mazelas e idiossincrasias que a população negra brasileira enfrenta, por meio da defesa de pautas fundamentais  como a PNSIPN.    

 

Beatriz Almeida é graduada em Políticas Públicas e assistente de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Jéssica Remédios é educadora física, mestre em Epidemiologia e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Victor Nobre é estudante de Economia e pesquisador de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Panorama atual e desafios da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/#respond Fri, 12 Nov 2021 08:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/covid-negros-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=586 Ionara Magalhães

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) enumera um conjunto de lutas históricas dos movimentos sociais negros. No campo de disputas por um projeto de sociedade equânime e democrática, essa luta representa um importante marco político no enfrentamento do racismo estrutural. A PNSIPN é uma política transversal, contra-hegemônica, fundamentada no reconhecimento do racismo como determinante da precariedade das condições de saúde da população negra. A PNSIPN tem caráter específico e compensatório, pois as políticas universalistas não têm alcançado populações vulneráveis e acabam por reproduzir as iniquidades. A PNSIPN visa a assegurar os princípios antirracistas e não discriminatórios, correspondendo, portanto, a uma ação afirmativa no SUS.

Os dados de morbimortalidade (índice de pessoas mortas em decorrência de uma doença específica dentro de determinado grupo populacional) da população negra revelam a insuficiência e a ineficiência de ações governamentais para redução das iniquidades étnico-raciais. Não existe predisposição nata ao adoecimento e mortalidade precoce das pessoas negras. Com efeito, há um pequeno elenco de morbidades determinadas geneticamente. Todavia, prevalecem doenças e agravos sociais resultantes do racismo que estrutura as desigualdades sociais. 

Se a saúde é determinada por políticas macroeconômicas, por capital social e cultural, por condições de vida, ambiente e trabalho moldadas pela distribuição de dinheiro, por recursos e por relações de poder, as condições de saúde da população negra têm correspondência direta com as iniquidades sociais, e suscitam política específica. Nesse sentido, a institucionalização da saúde da população negra no SUS aponta para o cuidado preventivo, assistencial e promocional da saúde, previsto nos planos operativos da PNSIPN.

Após doze anos de instituição, a PNSIPN foi efetiva em apenas 57 dos 5.570 municípios brasileiros. Os problemas persistem: falta de financiamento, insuficiência de suporte técnico, falta de comitês técnicos estaduais e municipais de saúde da população negra, desconhecimento da população usuária do SUS sobre a PNSIPN e, sobretudo, a cultura do racismo institucional. Os comitês técnicos de saúde da população negra têm caráter deliberativo e executivo, representam a interlocução entre as comunidades negras e as instituições de governo, além de que visam a garantir a implementação da política. Todavia, em 2018, não havia 10% dos comitês técnicos de monitoramento em todos os municípios. Por certo, uma investigação atual revelaria dados ainda mais estarrecedores.

A gestão da PNSIPN deve ser compartilhada entre União, estados e municípios, e prevê o exercício e fortalecimento do controle social, da produção da informação, do conhecimento científico e tecnológico em saúde da população negra, e da valorização dos saberes e práticas populares de saúde, inclusive das religiões de matrizes africanas. Além disso, a política preconiza o monitoramento, a avaliação das ações referentes ao combate ao racismo nas distintas esferas de governo e a garantia do amplo acesso da população negra às ações e aos serviços de saúde.

No bojo da análise da implementação da PNSIPN, destaca-se que muitos sistemas de informação em saúde não dispõem do quesito “raça/cor da pele”. Tampouco há esforços da gestão em fazer o registro compulsório deste campo e sanções pelo não cumprimento do preenchimento, estabelecido pela Portaria 344/2017. Além disso, denota-se a necessidade de melhora da coleta, do processamento e da análise dos dados desagregados por raça/cor da pele/etnia para a produção, do monitoramento, da avaliação de indicadores e das metas destinadas à promoção da equidade étnico-racial na saúde.

Um grande entrave corresponde à inclusão da temática “relações étnico-raciais, racismo e saúde da população negra” na educação permanente voltada aos trabalhadores , gestores e usuários  nos currículos de formação dos cursos de saúde. Essas temáticas são ignoradas pelas instituições ou não reconhecidas como fundamentais pela sociedade brasileira. 

A implementação da PNSIPN implica o fortalecimento do SUS – o maior patrimônio público e maior política social do país. Entretanto, os ataques ao SUS, traduzidos pelo subfinanciamento crônico e desfinanciamento, pela destituição dos direitos sociais, civis e políticos, e pela adoção de políticas antidemocráticas e conservadoras, atingem diretamente a população negra e, consequentemente, fragiliza o processo de implementação da PNSIPN. 

É premente que, para além dos comitês técnicos, das organizações sociais e dos movimentos negros, o Estado estabeleça mecanismos institucionais de gerenciamento e monitoramento da implementação da PNSIPN. Logo, seria a implementação da PNSIPN uma questão técnica ou política? O maior desafio da PNSIPN é, incontestavelmente, a sua implementação, que esbarra na estrutura, disposição e política institucional desfavoráveis. Seguramente, sem a devida implementação e avaliação, o ciclo da política não se completa.

Portanto, no panorama atual de implementação da PNSIPN, observam-se ações descontínuas, isoladas, descoordenadas e o descompromisso governamental com  a sua implementação. O fracasso no processo de implementação da PNSIPN representa uma ameaça ao projeto civilizatório, Muitos avanços têm sido desconstituídos e prejudicado o exercício do direito à saúde da população negra. Nessa correlação de forças, segue em curso uma longa disputa pela democratização da saúde, pelo resgate da credibilidade institucional e pela efetivação de uma política de legitimidade histórica.

 

Ionara Magalhães é professora Adjunta da UFRB, membra do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra e do GT Racismo e Saúde da ABRASCO

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