Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O SUS e a bipolaridade no debate público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2022/01/26/o-sus-e-a-bipolaridade-no-debate-publico/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2022/01/26/o-sus-e-a-bipolaridade-no-debate-publico/#respond Wed, 26 Jan 2022 08:00:13 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2022/01/pronto-socorro-do-hospital-life-center_1_83070-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=639 Ricardo de Oliveira

 

A avaliação positiva que o Sistema Único de Saúde (SUS) alcançou no enfrentamento da pandemia de COVID-19 se contrapõe à sua imagem negativa anterior. O que explica a mudança radical na percepção sobre o SUS? Como aproveitar o momento para avançar na melhoria da prestação de serviços de saúde? Essas são reflexões importantes para todos que têm compromisso, ou responsabilidade institucional, na formulação e implantação das políticas públicas de saúde; ainda mais porque o debate é sobre o maior projeto coletivo de inclusão social realizado pela sociedade brasileira nas últimas três décadas e que agora parece ser percebido como tal pela população. 

A pandemia provocou insegurança geral sobre como enfrentar esse desafio de saúde pública. Era um vírus novo, que podia levar à morte; não existia conhecimento científico para orientar o tratamento ou a prevenção, e tampouco podia ser enfrentado apenas de forma individual. Nesse cenário, os olhares se voltaram para o SUS, à espera de uma solução. Desde então, a sociedade brasileira descobriu que dispunha de um instrumento de ação coletiva para proteger a sua saúde.

A mudança na forma de divulgação, pela mídia, da prestação dos serviços do SUS, também ajudou na formação de uma imagem mais positiva. Anteriormente, o noticiário focava maciçamente nos problemas do SUS, em detrimento dos seus acertos, o que contribuía para dificultar uma avaliação realista por parte da opinião pública sobre a eficácia dos serviços de saúde pública.  

Agora, é possível observar que o noticiário sobre o SUS destaca a importância da  prestação de serviços, ao criticar a competência dos seus gestores. O olhar passou a ser para a capacidade desse sistema acolher a todos, de forma ordenada e a partir de prioridades. Os usuários tiveram que esperar a sua vez de serem atendidos devido à pandemia, e isso não provocou uma campanha negativa na mídia, como usualmente acontecia; pelo contrário, se disseminou a percepção de que uma política pública de saúde, que atende 210 milhões de pessoas, precisa ser organizada e bem planejada, principalmente quando todos necessitam dela ao mesmo tempo.

A imagem positiva do SUS na proteção à saúde da população foi construída, ao longo de  quase dois anos de pandemia, devido à  enorme capacidade do sistema em atender à demanda coletiva de vacinação e oferecer serviços médicos/hospitalares. Isso ocorreu sobretudo, por três motivos: desde 1988, os governos têm investido na capacitação da prestação dos serviços do SUS (infraestrutura, equipamentos e tecnologias, formação e capacitação de pesquisadores, gestores e técnicos); a governança cooperativa e entre entes federativos (tripartite, no âmbito do governo federal e bipartite nos estados); a mobilização de parte da população em defesa do SUS, através dos conselhos de saúde espalhados pelos três níveis de governo.

Todavia, o debate atual sobre a prestação dos serviços do SUS enfatiza apenas os resultados positivos, minimizando problemas. Essa forma de divulgação, que oscila entre dois polos, (ou é ótimo, no enfrentamento da pandemia, ou é ruim, como anteriormente no atendimento do dia a dia), não permite um debate público equilibrado entre acertos e problemas ainda existentes. Não podemos esquecer que a imagem negativa foi construída em função da dificuldade de acesso a consultas, exames, internações e cirurgias, e que persistem até hoje. 

Se essa bipolaridade, fruto de uma visão de curto prazo, não for superada ao fim da pandemia, corremos o risco de voltar à situação anterior de imagem negativa. A pandemia  adiou vários serviços públicos de saúde, e o esperado é uma grande pressão de demanda, com potencial de prejudicar novamente a imagem do SUS, talvez até de pior forma do que antes da Covid-19.

A fim de evitar isso, é preciso, urgentemente, organizar um debate sério e transparente no Congresso Nacional, com todos interessados na construção de um entendimento político que faça avançar a prestação de serviços de saúde no país. O debate deve envolver o modelo de atenção, gestão e financiamento, a continuidade das políticas públicas de saúde, o desenvolvimento científico, tecnológico e industrial, a relação entre o sistema público e privado, e as práticas políticas patrimonialistas que dificultam a melhoria da gestão e do atendimento no setor público.

A falta desse entendimento tem levado a um enorme desperdício de recursos que poderiam ser melhor utilizados em benefício dos cidadãos, por exemplo em equipamentos de saúde sem escala de atendimento; imposição ao SUS de aquisição, via judicial, de serviços e insumos sem uma avaliação de custo/benefício realizada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC); a dificuldade de construir uma base única de dados sobre o histórico de saúde de cada cidadão, com informações advindas da rede pública e/ou privada; e a utilização do SUS para atender interesses políticos ou econômicos. 

A urgência na resolução da crise sanitária, para podermos retomar a normalidade no convívio social e nos mercados, e a atual imagem positiva do SUS criaram condições para a construção de um amplo entendimento em torno das políticas de saúde, com o objetivo de defender os interesses dos usuários do SUS.  

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde, FGV/ 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). Membro do comitê de filantropia da UMANE.

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Os riscos de ser negro no Brasil e o racismo que mata https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/24/os-riscos-de-ser-negro-no-brasil-e-o-racismo-que-mata/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/24/os-riscos-de-ser-negro-no-brasil-e-o-racismo-que-mata/#respond Wed, 24 Nov 2021 08:00:43 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/Reflexões-sobre-o-‘ser-racista’___-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=596 Beatriz Almeida, Jéssica Remédios, Maria Leticia Machado e Victor Nobre

 

“A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil”. Essa é uma frase que se popularizou a partir de uma campanha das Nações Unidas de 2017 e que chama a atenção para as mortes violentas por trás da desigualdade racial no país. É um problema histórico, mas ainda atual e que abre, ao mesmo tempo, uma janela de debate para as condições de vida e saúde da população negra no Brasil. Os brasileiros negros não só morrem violentamente mais do que os brancos, como têm, na maioria, acesso à educação, emprego e habitação precarizados. Esses fatores contribuem para piores desfechos de saúde e devem ser ponto de atenção para os formuladores de políticas públicas, sobretudo quando observados sob o ponto de vista demográfico, pelo fato de pretos e pardos corresponderem a mais da metade da população brasileira.

Vale fazer uma breve menção histórica que remonta ao Brasil Colonial. Além de ter sido um dos últimos países da América a abolir a escravidão, o Brasil foi um dos que mais sofreram os seus efeitos perversos. Em paralelo, as leis abolicionistas propostas, apesar de importantes para o processo de consolidação da abolição, configuraram-se de forma paliativa, denotando um processo inconclusivo. 

Inconclusivo não sob uma ótica jurídica, mas sim processual, levando em consideração que há uma construção de cidadania inacabada, seja pela ausência de políticas inclusivas de integração dos escravizados à sociedade, ou por meio da incipiente manutenção de uma lógica de discriminação racial, ainda presente nas relações sociais e econômicas. O resultado é o que o teórico Silvio Almeida define como “racismo estrutural”, caracterizado “tanto como uma ideologia, quanto como uma prática de naturalização da desigualdade”. 

Sob o ponto de vista das políticas de saúde, a relação com o racismo estrutural mostra-se ainda mais evidente, quando a população negra, principal usuária e dependente do SUS, respondendo por 67% do total de usuários, é o grupo social que possui os piores indicadores de saúde, com números assustadores de mortalidade. Pesquisas amostrais do IBGE revelaram que 65% dos óbitos maternos em 2018 foram de mulheres negras; entre 2011 e 2020 a população negra apresentou maior prevalência de casos de tuberculose; mulheres negras e jovens entre 20 a 29 anos representam a maior população afetada pela sífilis.  

Os resultados provêm, em grande medida, das condições de insalubridade em que a vive população negra. De acordo com o último Censo (2010), 79% dos negros não possuíam banheiro em casa; 69% residiam em locais sem coleta de lixo e 62%  sem água encanada. As estatísticas mais atuais, de forma simultânea, apresentam cenários ainda mais preocupantes: no contexto da pandemia de Covid-19, a insegurança alimentar, aumentou significativamente, recaindo, em maior parte, sobre lares chefiados por pessoas negras (66,8%). Outro ponto é o fato de a população negra não conseguir cumprir o isolamento social e os devidos protocolos de higienização, uma vez que precisam trabalhar, e a natureza de suas atividades obriga-os a ficarem expostos constantemente

Complementarmente, a literatura evidencia o racismo estrutural não só em situações atípicas – como em uma pandemia – mas cotidianamente. Segundo estudo da pesquisadora Jurema Werneck, as (baixas) condições de saúde mais comuns na população negra podem ser divididas em: geneticamente determinadas, adquiridas (derivadas de condições socioeconômicas desfavoráveis), de evolução agravada ou condições fisiológicas alteradas por condições socioeconômicas. A diabetes mellitus, por exemplo, acomete 50% mais mulheres negras do que brancas, enquanto a tuberculose e a hipertensão arterial acometem 57,5% e 27%, respectivamente

Apesar dos inúmeros problemas vividos por negros e que se somam à ausência de políticas públicas para essa população, é necessário destacar as iniciativas que buscam mitigar esses problemas da saúde pública voltadas a categoria, como é o caso da  Política Integral de Saúde da População Negra (PNSIPN). Publicada em 2009 como fruto do Grupo de Trabalho Interministerial, a PNSIPN tem como base dois eixos fundamentais: I) definir objetivos, responsabilidade de gestão e estratégias voltadas para melhorias da saúde da população negra usuária do SUS e II) garantir maior grau de equidade em referência à efetivação do direito humano à saúde da população negra. A partir da publicação da PNSIPN,  avanços foram alcançados, entre eles a produção de conhecimento acadêmico na área, criação de áreas e comitês técnicos voltados para o segmento e a aprovação da Resolução 344/2017 sobre a questão do preenchimento do quesito raça/cor, incentivando a mensuração de dados epidemiológicos sobre a saúde da população negra. 

Apesar dos avanços, os desafios ainda se sobrepõem, associados, em grande medida, a aspectos estruturais e orçamentários. Desde sua criação, a PNSIPN só foi implementada em apenas 28% dos municípios brasileiros, indicando  baixa adesão em território nacional, ao passo que, destes 28%, menos de 10% possuem comitês de monitoramento para avaliar o impacto da Política sobre a saúde da população.  Do ponto de vista orçamentário, nota-se um total apagão no governo federal e no Ministério da Saúde dos programas voltados à melhoria da saúde da população negra e às pautas antirracistas. O último  foi em 2016, o Programa 2034, contido no Plano Plurianual (2016-2019). 

É, portanto, imprescindível fomentar debates que retomem o papel de relevância e protagonismo da PNSIPN no combate às desigualdades. Afinal, conforme apontado pelo Comitê Técnico de Saúde da População Negra, “reconhecer que as práticas racistas estão dentro dos modelos de atenção à saúde e buscar a transformação desse cenário devem ser objetivo de todos envolvidos com o cuidado em saúde e com as instâncias de gestão”. Os indicadores de saúde  reforçam a necessidade de implementação da PSNIPN para  estados e municípios e expansão do nível de monitoramento, tendo em vista que há instrumentos e metodologias estruturadas para esse processo.

O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), instituição voltada às políticas públicas em saúde, pautado por evidências e reconhecendo o seu papel como fomentador desse debate, reforça o  compromisso em  contribuir para um sistema público de saúde mais equânime, considerando a urgência da mitigação das mazelas e idiossincrasias que a população negra brasileira enfrenta, por meio da defesa de pautas fundamentais  como a PNSIPN.    

 

Beatriz Almeida é graduada em Políticas Públicas e assistente de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Jéssica Remédios é educadora física, mestre em Epidemiologia e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Victor Nobre é estudante de Economia e pesquisador de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Orçamento público para a saúde da população negra: uma tarefa por fazer https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/#respond Fri, 05 Nov 2021 08:00:16 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/0b6d7e87ff86e86f6dddbb12ef854e9f_1616619191805_2002334538-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=572 Clara Marinho Pereira e Julia Rodrigues

 

A maioria da população brasileira se declara negra: são 89,7 milhões de pardos e 19,2 milhões de pretos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o 3º trimestre de 2020. No entanto, em face das vulnerabilidades provocadas pelo racismo, os impactos da pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido desproporcionalmente maiores na saúde da população negra por, pelo menos, quatro motivos.

Primeiro, porque a população negra teve menores oportunidades de se isolar. Sem políticas públicas para conter a contaminação em comunidades e favelas, o vírus espalhou-se rapidamente entre os mais pobres. Cabe lembrar que 67% dos moradores das comunidades e favelas brasileiras são negros.

Segundo, porque a população negra é maioria nos segmentos econômicos considerados essenciais para a manutenção da vida coletiva, de natureza intensiva em mão-de-obra. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 mostram que, na limpeza urbana, 55,4% do total de vínculos eram compostos por negros; na segurança, 52,9%; e na construção civil, 50,2%, dentre tantos outros serviços. No  cotidiano, cada trabalhador(a) negro(a) se expõe ao contato com dezenas, até centenas de pessoas.

Terceiro, porque a população negra também é maioria na informalidade. Dados de 2019 do IBGE mostram que 47,4% dos trabalhadores negros do Brasil estão inseridos na informalidade, contra 34,5% da população branca.  Com a atividade econômica restringida ou afetada pela circulação do vírus, fragilizaram-se os circuitos de trabalho e de ganho diário, lançando rapidamente trabalhadores à pobreza, à miséria e à fome; uma situação que dificulta o isolamento e a capacidade das pessoas negras em ter uma resposta imunológica adequada quando contaminadas.

Quarto, quando contaminados, os negros demoram mais a ter acesso aos serviços de saúde. Muitas vezes impossibilitados de faltar ao trabalho, ou então sem dinheiro para pagar o transporte até o posto de saúde,  negros acabam por postergar a busca pela assistência médica. Quando o fazem, a situação já está agravada.

Não por acaso, negros morrem mais do que brancos. Conforme estudo realizado pelo Instituto Pólis, a taxa de mortalidade padronizada da doença para a população negra foi de 172 mortes para cada 100 mil habitantes entre março e julho de 2020 na cidade de São Paulo – município mais populoso do país. O número é 60% maior do que a taxa de mortalidade padronizada da população branca da cidade, que ficou em 115 mortes para cada 100 mil habitantes.

Em estudo mais recente, de setembro de 2021, e de caráter nacional, pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária mostram, a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, que homens negros morrem mais por Covid-19 do que homens brancos, independentemente da ocupação e mesmo quando estão no topo do mercado de trabalho. Já as mulheres negras morrem mais do que todos os outros grupos (mulheres branca, homens brancos e homens negros) na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação.

No entanto, a vacinação começou com pouca atenção a esses aspectos, partindo do centro para as periferias; dos grupos afluentes para os mais vulneráveis, o que mostra, mais uma vez, o uso seletivo das evidências para informar as políticas públicas. As “evidências”, muitas vezes, são mobilizadas para reforçar estruturas prévias de poder, e não questionar o melhor uso do recurso delas.

Com a Covid-19 ainda no horizonte, quais as chances de racionalizar o debate sobre o gasto em saúde daqui em diante? Aqui, propõe-se o exercício de olhar para trás, com o intuito de entender as possibilidades futuras.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, construída pela sociedade civil em parceria com o governo federal, estabelece um conjunto de diretrizes para que os serviços públicos de saúde acolham as especificidades da população negra na sua oferta, reconhecendo o racismo como uma determinante social das condições de saúde, ou seja, como o racismo impacta na ocorrência de problemas de saúde e amplifica seus fatores de risco.

A despeito dos imensos esforços colocados desde meados dos anos 1990 para a construção desse arcabouço de intervenção pública, o Estado brasileiro não tem sido diligente para dar visibilidade à sua atuação na garantia do bem-estar da população negra.

Um dos principais instrumentos para atuação do Estado é o orçamento público. É por meio dele que são comunicadas à sociedade as prioridades do governo e são alocados recursos para sua implementação.

O Plano Plurianual (PPA) para o ciclo 2016-2019 do governo federal possuía um programa específico para o enfrentamento das questões raciais: o Programa 2034 – Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, que tinha como uma das metas “Contribuir para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, incluindo a atualização do seu Plano Operativo” (Meta 4MC). Já no PPA para o ciclo 2020-2023, há um completo apagamento da questão racial, com nenhum programa, objetivo ou meta endereçados ao tema.

Do ponto de vista da Lei Orçamentária Anual (LOA), os recursos são, na maioria das vezes, alocados em ações genéricas, com o objetivo de facilitar o desembolso daqueles. No entanto, essa prática dificulta sobremaneira o controle social, pois impossibilita que sejam acompanhadas as despesas por recortes de gênero, raça, faixa etária e orientação sexual. No Ministério da Saúde, esse fenômeno (as ações genéricas) é recorrente, sendo difícil até mesmo obter a localização geográfica do gasto.

Até o ano de 2020, contudo, era possível enxergar uma (mínima) preocupação do Ministério com a promoção da equidade, devido à existência da ação orçamentária 20YM – Implementação de Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, cujo objetivo era a promoção do direito à saúde para segmentos populacionais expostos a iniquidades em saúde, como ciganos, LGBT, populações do campo, da floresta e das águas, população negra, população em situação de rua, população albina e gestores do SUS. No ano de 2016, essa ação chegou a contar com R$46,5 milhões de reais, em 2018 caiu para R$8,8 milhões e, em 2020, chegou a R$28 milhões.

No entanto, em sintonia com o apagamento das questões raciais no PPA 2020-23, a ação 20YM deixou de constar do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2021, encaminhado pelo Poder Executivo. Foi transformada em uma classificação gerencial (chamada Plano Orçamentário e que pode ser modificada a qualquer instante) da ação 21CE – Implementação de Políticas de Atenção Primária à Saúde. Em 2021, foram previstos R$28 milhões e, para 2022, o valor foi repetido, indicando que, em termos reais, os montantes diminuem a cada ano.

Contraditoriamente, portanto, justo quando a questão racial na saúde está exacerbada pelos dados, pelos achados de pesquisas e pelas tragédias, é quando ela mais se ausenta de identificação e controle social no orçamento, bem como de vínculos com o planejamento público de médio prazo.

Qualquer tentativa de assegurar o direito à saúde da maior parte da população brasileira que não observe a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra conjugada à consignação de recursos no orçamento estará condenada ao questionamento de sempre: será mesmo que o Estado brasileiro está comprometido com o atendimento igualitário no Sistema Único de Saúde (SUS)?

Hoje, infelizmente parece que a resposta é “Não”. Fazer mais do mesmo apenas trará mais mortes e iniquidades.

 

Clara Marinho Pereira é Mestre em Desenvolvimento Econômico e Fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente.

Júlia Rodrigues é Economista, Doutoranda em Ciência Política e Consultora de Orçamento.

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SUS: hora de avançar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/#respond Wed, 03 Nov 2021 10:00:37 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/sus-agencia-brasil-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=564 Ricardo Oliveira

 

O adiamento de cerca de 1,6 bilhão de procedimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), segundo estimativas do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), em consequência da pandemia de Covid-19 acrescenta-se às dificuldades de acesso já existentes. Espera-se, portanto,  um cenário de maiores restrições para o atendimento das necessidades de saúde da população brasileira nos próximos anos. 

Por outro lado, a atual crise sanitária criou condições para avançar na qualidade e na eficiência do atendimento aos usuários do SUS, em função, pelo menos, das quatro questões a seguir:

1- A superação da pandemia passou a ser chave para o enfrentamento das crises social e econômica e para a retomada do crescimento econômico e dos empregos, elevando a prioridade das políticas públicas de saúde junto aos governantes.

2- A necessidade, o interesse e a valorização do SUS pela população levaram a mídia, os governantes e os líderes políticos a se mobilizar com mais ênfase no debate sobre as políticas de saúde. Isso pode ser constatado pela criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado e pelo  volume de horas dedicadas à cobertura da pandemia pela imprensa.

3- A crise sanitária teve o efeito de conscientizar a população em relação à importância do autocuidado. Higienizar as mãos com álcool gel ou sabão, usar máscaras e manter distanciamento social se incorporaram como hábitos no dia a dia, mostrando a necessidade de cada um cuidar da sua saúde e da coletividade. O autocuidado é um comportamento fundamental para ajudar o SUS a superar o desafio do atendimento aos seus usuários, porque reduz a demanda ao sistema.

4- A existência de um conjunto de propostas com ampla aceitação acerca da reorganização do modelo de atenção, gestão e financiamento do SUS, a saber: a) superar a fragmentação entre os níveis de atendimento, integrando a atenção primária, especializada e hospitalar; b) implantar um modelo de atenção adequado para tratar as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs); c) organizar as Redes de Atenção (RAS) a partir das regiões de saúde; d) considerar a Atenção Primária à Saúde (APS) como coordenadora da RAS; e) aumentar a informatização da gestão e da prestação dos serviços; f) fortalecer a gestão tripartite; g) aprimorar o controle social; h) prover financiamento adequado; i) fomentar o autocuidado; j) implantar a gestão por resultados, tendo em vista o aumento da qualidade e da eficiência na prestação de serviços.

Essas propostas são bastante complexas e demandam tempo para efetiva consolidação. Por isso, concomitante  a elas, medidas emergenciais  devem ser pensadas para suprir a demanda por serviços de saúde no curto prazo, como consultas, exames, internações e cirurgias.

A pandemia mostrou a necessidade de aumentar o investimento científico, tecnológico e industrial no setor da saúde para desenvolver conhecimento e capacidade de produção de bens e serviços no Brasil. A dependência externa da produção de insumos básicos e fármacos se provou ineficaz para atender as necessidades do SUS.

Para aproveitar a conjuntura favorável ao SUS, é necessário que a comunidade da saúde pública se mobilize, tendo em vista a busca por um consenso político em relação às propostas que melhorem a prestação de serviços, garantam sua implantação ao longo do tempo e contribuam com o debate junto ao Congresso Nacional.

Essa mobilização deve ser compreendida como uma obra coletiva, uma vez que depende da liderança e do comprometimento do Ministério da Saúde (MS), assim como de governadores e prefeitos, gestores e servidores do setor, órgãos públicos que fiscalizam e controlam a gestão e o exercício das profissões da área e, por fim, da fundamental participação da sociedade. 

Apenas o setor público não vai conseguir atender as demandas dos serviços agora e no futuro. Portanto, faz-se necessário reunir todos os parceiros que possam colaborar na superação desse desafio.

O MS, em função do seu papel de coordenador nacional das políticas de saúde, deveria tomar a iniciativa de convidar os representantes do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONSAD), do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e do Conselho Nacional de Saúde (CNS) para o debate sobre como superar o enorme desafio na prestação de serviços do SUS. Não há tempo a perder!

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo entre 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde, FGV 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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O cenário caótico x saúde mental = potência na resistência https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/20/o-cenario-caotico-x-saude-mental-potencia-na-resistencia/#respond Wed, 20 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/img20200615104721797-768x463-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=554 Magna Barboza Damasceno

 

O primeiro seminário “Saúde da População Negra” (pessoas autodeclaradas pretas e pardas), realizado no Estado de São Paulo em 2004, apontou que as mulheres negras tiveram uma inadequação do atendimento durante seu pré-natal. Além disso, aproximadamente 60% dessas mulheres entraram numa espécie de peregrinação em busca do atendimento — o que evidencia a dificuldade de acesso. 

Segundo o “Atlas da Violência 2019 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, a cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras; 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras; e as mulheres negras morrem mais de formas mais violentas

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2020 o alarmante crescimento de 11,5%, em 10 anos, dos assassinatos das pessoas negras. O Rio de Janeiro é o quarto estado com maior número de negros no Brasil –mais de 9 milhões, segundo dados da secretaria de saúde do estado contabilizados em 2020.

Esses dados apontam que, de toda a população atendida, as pessoas negras estão entre as 61% acometidas por doenças respiratórias e 64% por causas externas e lesões.

 Ao nos depararmos com os dados do período perinatal, verificamos que 67% das complicações foram em mulheres negras. De todos os atendidos, 62% das pessoas negras possuíam doenças infecciosas e parasitárias; e outras  62 foram atendidas por transtornos mentais.

Como estampou Fernanda Lopes no título do seu texto apresentado no seminário de 2004, “Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer….”. Para a população negra a desigualdade ao existir é um fato no Brasil, fato este que desde o primeiro seminário sobre a saúde da população negra vem sendo confirmado pelos dados apresentados ao longo dos anos pelo Instituto de Pesquisas e Estatística Aplicada (IPEA). Com o advento desses momentos pandêmicos peculiares, é de se perguntar como manter a saúde mental de uma população que parece historicamente destinada a experiências de nascer, viver, adoecer e morrer de maneira desigual e assustadoramente desumanizada?

Como manter a saúde mental da população negra num cenário como o atual, no qual nos deparamos com um processo de extermínio que nasce nos marcadores sociais que ocupamos, nas interseccionalidade que carregamos, na nossa essência e no nosso existir? Além do grande desafio para cessar o desaparecimento dos nossos corpos pretos e potentes, bem como de manter nossa subjetividade a prova de qualquer tentativa de aniquilamento. 

Esse esforço ainda parece ter importância apenas para uma parte da sociedade, daqueles que vão ao longo do caminho tentando estabelecer a resistência (leia-se aqui estratégias para a sobrevivência) que, numa toada paradoxal, ao mesmo tempo que resistem para o Existir, vão deixando pelo caminho o cuidado com os seus corpos concretos, feitos de carne e osso, veias e artérias, além de não perceber a instalação de algo bem mais perigoso, que é doença e o transtorno mental.

É comum mulheres negras serem naturalizadas como raivosas ou emocionalmente instáveis, sem direito a manifestação sentida e trazida pelo medo constante de não mais existir –e dos seus não mais existirem–, de não ter suas necessidades acolhidas por quem deveria cuidar como cuida de qualquer outro cidadão não-negro, de não ter seu reconhecimento enquanto pessoa legitimado.

Na nossa sociedade, uma mãe branca tem mais direitos e acolhimento ao denunciar a perda de um filho do que uma mãe negra que vê seu filho assassinado injustamente. Basta fazer uma breve pesquisa nos meios de comunicação e nos deparamos como a sociedade reage frente à dor de ambas as perdas.

Às mulheres e homens negros, de forma velada, não lhes é permitido o direito ao sentimento, muito menos a suas manifestações legítimas, mesmo diante de tantas opressões ao resistir para viver.

Faça uma pequena reflexão e revisite momentos em que você, pessoa negra, não pôde ter o direito à palavra, ao sentir, ao agir e até mesmo ao pensar, tendo que calcular meticulosamente quais os próximos passos para não ser taxado de brutal, raivoso, marginal e refém da manifestação da emoção devido ao afeto.

Permanentemente, o descaso perpetuado pelo Estado aos cuidados da saúde da população negra, com a dificuldade do acesso ou o acesso precário a políticas públicas, a descaracterização criada de suas emoções vivenciadas numa sociedade que deslegitima suas experiências e as taxa e nomeia de acordo com o que nos permite sentir ou não. Isso nos toma – pessoas negras –nosso modo de relacionar, de ver o mundo. E nas pequenas coisas vão sendo reafirmadas nas nossas interseccionalidades. Porém, esses efeitos psicossociais do racismo estrutural e sua interface violenta nos obriga a um estado mental permanente de alerta, o que impacta na interpretação por parte de terceiros sobre o nosso viver, e nos coloca em certa medida em um ciclo sem fim entre o gatilho mental gerado pela sobrevivência e a falta de percepção de si e do outro deste processo que gera adoecimento das relações, criando muitas vezes o famoso “cão raivoso”.

Contudo, no absurdo das contradições do nosso estado democrático de direito e no exercício da nossa cidadania integral, as pessoas negras não podem “se dar ao luxo” das doenças mentais, das crises existenciais, das dificuldades nos relacionamentos interpessoais causadas muitas vezes pelas violências produzidas pelo racismo estrutural e que geram desequilíbrios emocionais –nos quais nossa humanidade é constantemente testada.

Sem ter lançado sobre si um julgamento prévio sobre seu modo de adoecimento, as pessoas negras vão adoecendo assim como qualquer outra pessoa –sim e como adoecem!!

Se por um lado esse modo perverso e descompromissado com os afetos da população negra, gerado pela sociedade, reafirma o “grau de superioridade” das pessoas não-negras, dando a elas o “ticket” de quem será permitido sentir, pensar, agir, por outro lado produz na pessoa negra uma forma cruel de aniquilamento de sua subjetividade, pois a deslegitimação das suas emoções, das suas experiências e vivências vai se dando de forma sutil e naturalizada, que muitas vezes desemboca numa emoção pouco elaborada –como a raiva, por exemplo.

Essas questões já muito conhecidas e debatidas nos revelam um impacto devastador em nossa subjetividade. Alguns desses efeitos psicossociais vêm sendo discutidos a partir de categorias do viver –como gosto de referir–, a exemplo das discussões sobre a solidão de mulheres negras, a falta de perspectiva para o futuro, o direito à herança e ao envelhecimento da pessoa negra.

 Aos poucos, vamos nos deparando com reflexões necessárias para a manutenção da qualidade do nosso viver. E é justamente aí que encontramos o conceito ilógico das potencialidades que nascem justamente das injustiças geradas a partir dos marcadores sociais e suas interseccionalidades que nos interpõem.

Porque, ao mesmo tempo que as pessoas negras vão morrendo aos poucos, toda vez que as percepções em torno da sua origem, da sua classe social, da sua cor de pele, da sua orientação sexual chegam à frente de qualquer possibilidade de relacionar-se, elas também constroem e vão tecendo estratégias de resistência, denotando suas potencialidades e organizando o melhor viver. 

Se por um lado pessoas negras todos os dias enfrentam uma batalha por serem quem são, por outro exercitam a tarefa de continuar a ser, burlando toda a lógica posta e contrariando a velha máxima de que apenas recai sobre as pessoas negras a negatividade do existir.

Durante toda a história do povo negro há aqueles que não conseguiram resistir, mas há também aqueles que conseguiram utilizar-se de estratégias de resistência e sobrevivência desde os primórdios da escravidão. Trazendo isso para os tempos atuais, recentemente e durante a pandemia, acompanhamos essas potências de forma bem objetiva.

Verificamos que os estudos sobre a ancestralidade negra vão apontando essas formas de potências, considerando o que os antepassados construíram para que o presente fosse possível e, dessa forma, fortalecendo um futuro.

A pandemia é a prova disso! Apesar de terem sido as pessoas negras as mais atingidas pela Covid-19 em relação aos mortos, segundo o Relatório “Pesquisa Sem Parar”, da organização feminista Sempreviva, sobre o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, constatou-se que de modo geral aumentou o número de mulheres que passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém. Em relação às mulheres negras houve um aumento em 52%. Essa dimensão do cuidado nos remete a uma forma de atenção à saúde mental, já que estão atentas ao monitoramento das necessidades e da companhia umas das outras.

Outro dado curioso é que, apesar do aumento da precariedade da vida, trazida pelo isolamento social e a perda do trabalho formal, houve um aumento de 52% de mulheres negras desempregadas. Essas mulheres que tiveram dificuldade sobre como pagar em dia suas contas e como fazer a manutenção da vida, buscaram outras formas de sobrevivência –e os números evidenciaram que 61% das mulheres que estão na economia solidária, por exemplo, são negras. 

Pesquisas indicam que durante a pandemia as pessoas negras reuniram suas forças para ajudarem sua comunidade, o que demonstra uma alta capacidade criativa, organizando novas soluções para o bem viver, mesmo em um cenário caótico, assustador e desumanizante.

Como podemos constatar, falar da saúde mental da população negra não é uma tarefa fácil, diante de uma realidade que traz dados massacrantes de qualquer subjetividade. Porém, falar de saúde mental também é falar de vida, seja ela nascida da dor de não poder ser e existir, seja ela nascida da potência que é viver as contradições das minorias oprimidas.

Outras formas de potência que já estão aí há muito tempo e devem ser reconhecidas, veneradas e divulgadas, são os trabalhos como os que realizam os coletivos como o Criola –uma organização composta por mulheres negras que há quase 30 anos vem pensando estratégias de defesa e promoção dos direitos das mulheres negras. O instituto AMMA Psique e Negritude, uma organização cuja atuação está pautada no enfrentamento do racismo, da discriminação, do preconceito –que produzem efeitos psicossociais negativos na saúde mental da população negra. Outro bom exemplo é o Fundo Baobá para Equidade Racial, que vem disponibilizando acesso a diversos ciclos de vida da população negra, para o fortalecimento de lideranças com a perspectiva de aumentar a equidade racial.

São organizações formais e informais que nascem de pessoas negras, para pessoas negras e com pessoas negras, a partir da dor do aniquilamento da subjetividade de pessoas negras.

Falar de saúde mental da população negra é também falar deste trampolim para a potencialidade, que gera possibilidade do bem viver.

Pense nisso. 

O que você tem feito para dar qualidade à saúde mental da população negra?

 

Magna Barboza Damasceno é Mestre em Psicologia Social pela PUC SP, especialista em Gestão pública pela FESPSSP, em Impactos da Violência na Saúde pela (ENSP/FIOCRUZ) e em Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde, pelo Instituto Sírio-Libanês, é coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP). Liderança acelerada pelo Fundo de Equidade Racial Baobá e Ganhadora do prêmio viva promovido na parceria entre o Instituto Avon e a Revista Marie Claire.

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Desigualdade social, pandemia e o Brasil que alimenta a fome e a insegurança alimentar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/#respond Wed, 08 Sep 2021 10:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/prato5-1200x675-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=522 Agatha Eleone, Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Além da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 trouxe aos holofotes um outro fenômeno que impacta diretamente a saúde dos brasileiros: a fome. Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, naquele ano o número de brasileiros em situação de fome voltou a atingir os patamares de 2004. A chegada da pandemia no país marcou também o aumento de 27,6% do número de brasileiros enfrentando a fome, em comparação com o ano de 2018, totalizando 19,1 milhões de pessoas –quase 9 milhões de pessoas a mais do que dois anos antes, o que corresponde a 9% da população brasileira.

O levantamento Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bioeconomy mostrou que, entre os meses de agosto e outubro de 2020, 13,6% dos brasileiros maiores de 18 anos passaram ao menos um dia inteiro sem comer ou com apenas uma refeição, e 125 milhões de brasileiros enfrentaram alguma forma de insegurança alimentar, ou seja, reduziram o número de refeições consumidas por dia ou a quantidade de comida consumida por refeição, motivados pela incerteza de conseguir alimentos posteriormente.

Entre as famílias que enfrentam a insegurança alimentar, a pesquisa também destacou que a fome no Brasil tem gênero e cor –73,8% dos lares chefiados por mulheres e 66,8% por pessoas pretas. A insegurança alimentar também é maior nas residências habitadas por crianças (70,6%) e adolescentes (66,4%) e mais frequente nos domicílios do Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) do país. Ainda, na maioria desses lares a renda familiar não passava dos R$500 mensais, em contraste com o preço médio da cesta básica que, em outubro de 2020, variou de R$ 436,76 em Natal a R$ 595,87 em São Paulo.

Como consequência da insegurança alimentar, a maior parcela da população que hoje não possui renda para custear uma alimentação balanceada  recorre aos ultraprocessados. Apesar de serem normalmente mais baratos, esses alimentos são também mais pobres em nutrientes e ricos em farinhas, açúcares, gorduras, e aditivos químicos, prejudiciais à saúde quando consumidos em grande quantidade. Com isso, outras facetas da insegurança alimentar podem ser a subnutrição e a obesidade da população.  

A situação atual, certamente agravada pela pandemia, evidencia a necessidade de políticas estatais robustas e de longo prazo para combate da miséria e da fome. No entanto, vemos o Governo Federal rumando em direção contrária. Flertando com o segmento de supermercados durante participação no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento no último mês de junho, o Ministro da Economia Paulo Guedes chegou a defender a ideia de que sobras de restaurantes de classe média poderiam ser destinadas a populações vulneráveis. No mesmo evento, a Ministra da Pecuária, Agricultura e Abastecimento, Tereza Cristina, confirmou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a flexibilização de regras sobre a validade dos alimentos como uma alternativa para combater a alta dos preços e o alto índice de insegurança alimentar no país.

Diante dessas falas, é importante pontuar: ignorar a crescente desigualdade e distribuir restos de alimentos ou alimentos vencidos a pessoas pobres não resolve o problema da fome e da insegurança alimentar dos brasileiros, uma vez que esses fenômenos não decorrem simplesmente da falta de alimentos disponíveis para consumo, mas sim da falta de acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para a sobrevivência. Em outras palavras, o problema existe por sucessivos erros na condução das políticas públicas voltadas para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Tanto a fome quanto a insegurança alimentar constituem violação de Direitos Humanos, sendo a alimentação um direito reconhecido pelo Pacto Internacional de Direitos e previsto na Constituição Brasileira.

Dentre as ações que evidenciam a negligência com a saúde e a segurança alimentar do país estão as inúmeras tentativas de reformulação do Guia Alimentar para a População Brasileira — só em 2020, foram dois pedidos enviados pelo Ministério da Agricultura ao Ministério da Saúde. O documento é referência internacional por apresentar recomendações para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando não apenas aspectos nutricionais, mas também o contexto cultural, social e ambiental em que os indivíduos se inserem. Além dos ataques ao Guia, a classificação NOVA, que agrupa e classifica os alimentos pelo grau de processamento, não foi mencionada pela Sociedade Brasileira de Pediatria no Manual de Atualidades em Nutrologia Pediátrica publicado em maio deste ano.

  Além disso, um dos principais alvos do lobby da indústria de ultraprocessados é a discussão sobre a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento da incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Baseados no argumento de que as DCNT são multifatoriais, surge a tentativa de desresponsabilizar o consumo de ultraprocessados como um potencial causador de agravos, distorcendo as crescentes evidências científicas que o associam significativamente a desfechos negativos tanto para a saúde das populações quanto para o meio ambiente. Não à toa a regra de ouro preconizada pelo Guia sugere que aqueles produtos  devam ser totalmente evitados pela população.

Há quem diga que a situação atual é uma consequência gerada exclusivamente pela pandemia de covid-19. Na contramão, evidências anteriores já apontavam para a piora da situação alimentar dos brasileiros. Na linha das ações necessárias para virar esse jogo, um dos primeiros passos seria a atualização da linha de pobreza do Programa Bolsa Família, uma vez que a política, apesar de precursora, hoje conta com uma extensa lista de espera e subestima o número de pessoas que deveriam ser enquadradas no critério de recebimento do benefício. Ainda, é importante garantir o aumento de gastos federais com políticas de desenvolvimento agrário e de estímulo à agricultura familiar; e, finalmente, admitir a fome e a insegurança alimentar como problemas de saúde pública e não apenas como emergência assistencial, fomentando a execução de ações intersetoriais, bem como pesquisa e a formulação de políticas públicas com base em evidência.

 

Agatha Eleone é nutricionista, especialista em saúde da família e em gestão da atenção básica, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). 

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos  para Políticas de Saúde (IEPS). 

Rebeca Freitas é cientista social, bacharel em Direito, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, e especialista em relações governamentais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Saúde mental não é pauta “pop”: precisamos institucionalizar o debate para além da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/#respond Wed, 01 Sep 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-mental-pandemia-covid-19-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=515 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Todos já sabemos que as medidas de isolamento social impostas pela pandemia de Covid-19 agravaram o processo de adoecimento da população, mas também sabemos que o exponencial aumento de adoecimentos mentais em todo mundo não é um fenômeno recente. Estamos diante de um problema antigo e precisamos assumir as consequências de anos de descuido no campo: o debate público sobre saúde mental era um problema de saúde pública. 

Mas não estamos falando de um desafio exclusivo da área da saúde, para reduzir os danos provocados pela pandemia e atuar de forma preventiva em saúde mental temos que considerar os aspectos transversais do tema e outras agendas sociais, afinal, saúde mental permeia toda a nossa vida. Saúde, educação, sistema de justiça e segurança pública, assistência social, cultura e lazer  são setores igualmente responsáveis por criar soluções para esse desafio, assim como famílias e comunidades são indispensáveis em qualquer ação, de cuidado ou prevenção. 

O desafio no pós-pandemia é maior, mas agora também temos a oportunidade de aproveitar a atenção que a saúde mental recebeu nos últimos tempos e prolongar esse olhar a longo prazo. Não podemos deixar que a luz posta neste tema se apague, precisamos institucionalizar o debate sobre saúde mental no Brasil em todos os setores sociais, de forma sustentável e estrutural, e colocá-lo em pauta em todos os lugares. 

Em relação a saúde mental no “pós-pandemia”, ainda é cedo para diferenciar o que são reações “esperadas” frente ao estresse causado pela pandemia e o que pode ser considerado um transtorno, por isso devemos ter cautela ao já querer pular para diagnósticos precipitados. Mas já sabemos que devemos a chamada “quarta onda de COVID”, durante 3 e 4 anos, que resulta dos efeitos colaterais deste período de isolamento social, que incluem aumento de ansiedade e depressão, de transtornos obsessivos compulsivos e obesidade, e outras consequências à saúde em decorrência da pandemia. 

Fonte: Tseng, 2000.

Nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, aponta que é possível estimar o agravamento no cenário da saúde mental no Brasil, após a pandemia. Até 80% da população poderá desenvolver sofrimento psíquico, automutilação, conflito interpessoal e tentativa de suicídio. Cerca de um quarto da população (entre 15% e 25%) poderá se encontrar em maior risco, com sua estrutura psíquica mais fragilizada, e precisar de suporte imediato para evitar colapsos maiores e entre 1% e 4% da população diz respeito a pessoas que poderão precisar de atenção especializada. 

 

Efeitos a longo prazo 

Além dos efeitos colaterais de curto prazo, teremos também que lidar com a sociabilidade e a solidão no pós-pandemia. Mal começamos a perceber os impactos deste longo período de isolamento social na nossa capacidade de nos relacionar e existem muitas questões em aberto: de que maneira as mudanças de comportamento adotadas vão impactar nosso contato físico e trocas de afeto? Nossas rotinas e redes de apoio? Ou ainda, que tipo de soluções serão criadas a partir da perspectiva de que é possível fazer tudo de forma remota? Não precisamos mais nos encontrar presencialmente, tudo pode ser mediado por tecnologia? Como lidaremos com o pertencimento, fator tão relevante para a proteção da nossa saúde mental?

Especialmente com relação aos adolescentes, que propostas estamos criando para lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) já percebida antes da pandemia mais profundamente agrava com o isolamento social? Que tipo de lugar eles ocuparão no futuro da sociedade, em um contexto de precarização do acesso à sua educação e de redução das oportunidades de emprego? Dados do relatório Caminhos em Saúde Mental apontam o afastamento e a evasão de crianças e adolescentes, assim como o aumento do trabalho infantil e doméstico e as violências domésticas, como desafios agravados pela pandemia. 

Para além de “apagar incêndios”, pensando um pouco mais no futuro, precisamos, antes de tudo, afinar nossa compreensão coletiva sobre o que é saúde mental e como podemos incorporá-la ao nosso cotidiano de forma mais consistente. Independentemente da definição que se adote, é indispensável afirmar que a saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é o resultado da complexa interação entre esses aspectos individuais e as condições de vida das pessoas, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva e o acesso a bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária. 

Por isso não tem como melhorar os índices de educação, trabalho, alimentação, moradia, entre tantos outros,sem olhar de forma permanente para a saúde mental, o que nos leva de volta ao começo: precisamos urgentemente atuar na prevenção em saúde mental. Se não começarmos a prevenir os adoecimentos do futuro agora, chegaremos nele apagando incêndios tanto quanto hoje, sempre respondendo às demandas e não atuando de forma estrutural. 

E ainda teremos que continuar lidando com os velhos estigmas e preconceitos acerca do tema, que persistem em aparecer, mesmo com o crescimento do debate sobre saúde mental. Apenas citando alguns, a relutância em procurar ajuda ou tratamento, a falta de compreensão por parte da família, amigos e comunidade e, muitas vezes, a falta de preparo dos próprios cuidadores e profissionais “porta de entrada” da saúde para lidar com saúde mental são os questões que irão persistir no debate da saúde mental, mesmo no pós-pandemia. 

Devemos ressaltar que atuar em saúde mental não é um projeto individual com começo, meio e fim, é um projeto coletivo para vida toda. Precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de trabalhar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. A saúde mental de cada um de nós depende da articulação permanente entre os indivíduos, a comunidade e todos os setores sociais, trabalhando juntos para criar condições para uma vida digna e uma realidade social mais justa para todas as pessoas.  Como podemos fazer este debate tão central perdurar nos nossos lares, trabalhos e relações sociais?

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

 

 

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Atuar na prevenção e tratamento em saúde mental de mulheres e adolescentes é prioridade https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/11/atuar-na-prevencao-e-tratamento-em-saude-mental-de-mulheres-e-adolescentes-e-prioridade/#respond Wed, 11 Aug 2021 10:00:39 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/istock-mulher-terapia_widelg-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=474 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) acaba de divulgar novas diretrizes sobre cuidados em saúde mental, priorizando a recuperação de comunidades e com orientações de combate às violações de direitos humanos. Promover saúde, na lógica dos direitos humanos, significa ir além da lógica estritamente sanitária, muitas vezes centrada na superação dos adoecimentos e não em sua prevenção, para assumir a lógica do bem-estar da saúde de forma integral.

Para o Instituto Cactus combater as violações de direitos humanos no campo da saúde mental requer compreender que não existe uma “receita de bolo” para trabalhar os sofrimentos psíquicos, tampouco existe um caminho que serve para todos ou uma solução que dê conta de toda a complexidade desse tema. Quando falamos em saúde mental, é preciso incorporar uma “lente de aumento” para viabilizar olhares segmentados e adequados para cada grupo, pois suas especificidades determinam como se deve atuar. 

Para criar esses olhares segmentados, pode-se adotar o uso de dados e indicadores na gestão pública, que funcionam como sinalizadores da realidade e podem orientar a tomada de decisões. Cruzar e interpretar essas informações ajuda a compreender as dinâmicas locais, características e necessidades de diferentes territórios e, em consequência, melhora a qualidade dos serviços oferecidos. Os grupos, por sua vez, têm que ser segmentados com base em perfis que incluem preferências, estilos de vida e condições sociais, o que se apoia em uma visão de indivíduo como ser biopsicossocial, integrando questões biológicas, psicológicas e sociais. Ao abordar o indivíduo como ser biopsicossocial e a sua associação com saúde mental como um estado de bem-estar, há que se atentar para não elevar para a saúde mental o nível de exigência que temos para a saúde biológica –já que conflito, inadequação e sofrimento fazem parte do cenário.

Na impossibilidade de atacar todos os problemas de uma única vez de forma efetiva e consistente, o Instituto Cactus elege as mulheres e os adolescentes como públicos prioritários para pavimentar o caminho no campo da saúde mental. O primeiro esforço nesse sentido foi a publicação do levantamento Caminhos em Saúde Mental, desenvolvido em parceria com o Instituto Veredas com o objetivo de oferecer um entendimento amplo e complexo a respeito do campo da saúde mental, considerando tanto os consensos produzidos pelos organismos internacionais quanto a própria experiência brasileira, e ouvindo especialistas das mais diversas áreas: sociologia, gestão pública, medicina e atores do campo.

A escolha desses públicos ilustra como um olhar cuidadoso, empático e direcionado pode ser feito quando se trata de olhar para públicos específicos em saúde mental.  Entendemos que esses públicos trazem questões relevantes que merecem ser priorizadas na compreensão e abordagem da saúde mental, como detalhado a seguir.

 

Adolescentes 

A adolescência é um período marcado por transformações psicossociais em que  acontece a construção da identidade e existem inúmeras mudanças na anatomia, fisiologia, no ambiente social, na relação com a sexualidade etc. Apesar disso, é um momento invisível e negligenciado, o que gera estigmas e impactos negativos na qualidade de vida dos adolescentes, e que serão carregados até a fase adulta. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, 50% das condições de saúde mental começam até os 14 anos de idade e afetam 3 a cada 4 pessoas até os 24 anos. Ainda, segundo a OMS, suicídio é segunda causa de morte entre jovens de 15 a 24 anos. Esse é o público que, no futuro, serão os líderes da sociedade, cidadãos e agentes de transformação do mundo. Mas como construir o futuro sem cuidar no presente da saúde mental de quem será responsável por ele? 

Aproximadamente 80% dos casos não são diagnosticados ou tratados adequadamente e, por isso, muitos dos quadros que poderiam ser prevenidos ou recebido intervenções precocemente se agravam e afetam não só o indivíduo, mas todo o seu entorno. Nesse sentido, a prevenção em saúde mental é extremamente necessária. Não podemos continuar sendo um país que apaga incêndios e não ataca a raiz dos problemas com ações sistemáticas para resolvê-los a longo prazo. Os estigmas e as consequências de transtornos não tratados impactam a qualidade de vida desses adolescentes por toda a vida, sua habilidade de convívio em comunidade, sua produtividade e suas relações sociais e com o meio ambiente. 

O rótulo de “aborrescente”, que os define como inconsequentes e rebeldes sem causa, naturaliza os obstáculos dessa fase da vida e diminui o sofrimento decorrente de violências sexuais e domésticas, bullying etc.. Têm também repercussões drásticas na vida desses jovens, como o uso abusivo de substâncias, desenvolvimento de psicopatologias, reflexos negativos nas relações interpessoais e comportamentos de risco para aqueles que são tidos como o “futuro da nação”. 

 

Mulheres

A prevalência de condições de saúde mental é maior nas mulheres, quando comparadas aos homens, e isso vai muito além da perspectiva biológica. Segundo a OMS, o gênero implica diferentes suscetibilidades e exposições a riscos específicos para a saúde mental, por conta de diferentes processos biológicos e relações sociais. Nascer mulher perpassa papéis, comportamentos, atividades e oportunidades que determinam o que podemos experimentar ao longo da vida e, portanto, estabelece vivências estruturalmente diferentes daquelas experimentadas pelos homens. 

Uma em cada cinco mulheres apresenta transtornos mentais comuns e a taxa de depressão é, em média, o dobro da taxa de homens com o mesmo sofrimento, podendo ainda ser mais persistente nas mulheres. A sobrecarga física e mental de trabalho é apontada como um dos principais fatores que deixam as mulheres especialmente vulneráveis aos sofrimentos psicológicos: em mulheres com alta sobrecarga doméstica, por exemplo, o número de mulheres com transtornos mentais comuns vai de 1 a cada 5 mulheres para 1 a cada 2 mulheres. Esses dados impactam também os dados sobre tentativas de suicídio –mulheres são duas vezes mais propensas.

Nesse sentido, o acolhimento das mulheres com questões de saúde mental demanda um olhar ampliado para outras questões físicas, psicológicas e sociais relacionadas ao gênero. Os transtornos alimentares, por exemplo, são causas importantes de morbidade e mortalidade entre mulheres jovens e precisam ser considerados a partir de um debate sobre os padrões físicos impostos pela mídia e pela indústria da beleza. Além disso podemos vivenciar transtornos mentais associados à gestação, ao aborto, ao puerpério e à menopausa, inclusive como sequelas de violência médica e obstétrica. 

Que marcas a violência obstétrica, que tem como maiores vítimas as mulheres negras, deixa na vida de uma mulher que não é poupada da dor no momento de dar a luz e não recebe uma série de outros cuidados tão importantes nesse momento? Por isso precisamos olhar para esse público de forma segmentada e específica. Como um primeiro passo para avançar nesse desafio, além de consolidar dados e convocar mais olhares para o tema no “Caminhos em Saúde Mental”, o Instituto Cactus apoia um projeto de acolhimento psicológico de emergência para mulheres negras, pardas, indígenas e/ou periféricas da Casa de Marias, iniciativa focado em democratizar acesso a ferramentas de alívio emergencial de sofrimento mental para esse público. 

 

Porque priorizar a saúde mental de adolescentes e mulheres 

Adolescentes e mulheres são importantes vetores de mudança para a sociedade. Eles são os líderes dessa e das próximas gerações e elas, as principais responsáveis por práticas de cuidado, predominando em categorias como educadoras, enfermeiras, assistentes sociais etc., além de  referências em seus núcleos familiares. Ambos possuem uma grande importância e têm, no melhor dos casos, recebido uma atenção parcial no país. Por isso a decisão de focar as ações do Instituto Cactus, inicialmente, nesses públicos. 

Sabemos que esse recorte não é exclusivo ou exaustivo e que existem diversos outros grupos que merecem atenção e cuidado de forma emergencial, como a população negra, os povos indígenas e as populações que são submetidas a situações de emergência humanitária, mas nossa escolha pelos públicos de mulheres e adolescentes se baseia, em grande parte, no entendimento de que estes grupos não só mereciam mais atenção como multiplicadores de mudança, mas também como bastante negligenciados pelas políticas públicas e iniciativas atuais e, portanto, com uma grande oportunidade de atuação e impacto positivo.

O foco nesses públicos faz parte de um esforço vital para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Agenda 2030 da ONU. O ODS número 3 tem como meta boa saúde e bem-estar, o que requer a redução da carga de transtornos mentais e mortes por suicídio. O ODS 5 busca a igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres e meninas. Esses dois objetivos andam de mãos dadas, pois sabemos que meninas e mulheres sofrem desproporcionalmente as consequências negativas dos transtornos mentais comuns, que estão fortemente associados às experiências femininas de violência e oportunidades e compensação desiguais em termos de educação e oportunidades no mercado de trabalho. 

Construir olhares segmentados que deem conta da individualidade de cada um, com empatia, e que contribuam para a construção de práticas e intervenções mais efetivas é fundamental para um trabalho mais assertivo e sustentável para trabalhar a saúde mental.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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Enfermagem brasileira e pertencimento étnico-racial: o que sabemos, e o que precisamos saber? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/#respond Wed, 28 Jul 2021 10:00:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/115376546_gettyimages-1253858296-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=463 Helena Maria Scherlowski Leal David, Gerson Luiz Marinho e Kênia Lara da Silva

 

Estudos sobre a distribuição dos profissionais de enfermagem brasileiros segundo variáveis sociais e demográficas mostram um retrato que necessita ser atualizado com urgência. Um cenário já reconhecido no mundo todo: é o que remonta à feminilização histórica da profissão. No caso brasileiro, isso se reflete em todos os níveis de divisão técnica: auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros de nível superior são majoritariamente mulheres. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), cerca de 90% do total de profissionais de enfermagem de todo o mundo são do sexo feminino. Para além das desigualdades impostas pelas diferenças de gênero, inclusive quanto à baixa remuneração e às escassas oportunidades de ascensão nas carreiras, um aspecto que necessita ser melhor compreendido é como se apresentam as diferenças étnico-raciais para essa profissão eminentemente feminina.

Não há dados globais e tampouco informações comparáveis entre países que demonstrem as características da diversidade étnico-racial dos profissionais de enfermagem. No Brasil, os dados sobre essas variáveis podem ser obtidos a partir de bases censitárias. Mas é preciso lembrar que o último censo nacional ocorreu em 2010. Apesar dessa limitação, é relevante apontar resultados dos recenseamentos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): no ano 2000, 70% dos profissionais de enfermagem declararam ser de cor ou raça branca. Dez anos depois, o Censo 2010 contabilizou 54,4% nesse contingente –uma redução de 15,6% de enfermeiros classificados como de cor ou de raça branca. Além disso, o Censo de 2010 também registrou diferenças na autodeclaração entre enfermeiros de nível superior (62,7 % eram brancos) e profissionais de nível médio (49,1% eram brancos).  

Sabe-se que o critério de preenchimento da variável raça/cor é a autodeclaração, que sofre alterações em função da autopercepção. De modo especial, nos últimos anos há uma tendência de maior reconhecimento das pessoas acerca de seu pertencimento racial –o que pode justificar, em parte, o aumento do contingente de enfermeiros negros (compreendidos como o conjunto daqueles declarados de cor/raça preta e parda), bem como a redução dos percentuais de enfermeiros de cor/raça branca. No caso do acesso ao ensino superior, um importante marcador foi a política de cotas sociais e raciais para estudantes que se declaram pobres e negros, o que pode ter influenciado o aumento de enfermeiros graduados nas últimas décadas.

Esse cenário nos permite pensar que, na enfermagem, assim como na população brasileira em geral, há interseccionalidade entre gênero-raça-classe, com pessoas autodeclaradas brancas tendendo a ocupar os postos de trabalho de nível superior. Por outro lado, as ocupações que exigem nível médio e elementar de escolaridade absorvem contingentes proporcionalmente maiores de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. De acordo com dados de 2010, a renda de enfermeiros (nível superior) autodeclarados brancos superou em mais de um quarto àquela registrada para enfermeiros pardos e pretos; e entre os técnicos de enfermagem, brancos tiveram renda aproximadamente 11% maior àquela remetida para técnicos pardos e pretos.

Dentro da equipe profissional de enfermagem, nota-se com maior frequência que enfermeiras (nível superior) ocupam cargos de chefia e gestão, sendo responsáveis pela coordenação dos demais profissionais da equipe de enfermagem. Considerando desigualdades observadas através da pesquisa censitária quanto à distribuição da autodeclaração de raça-cor, é possível inferir que, na enfermagem, “uma minoria de mulheres brancas ocupam postos nos quais chefiam uma maioria de mulheres negras”. Estes dados refletem as condições históricas e a divisão do trabalho no interior da profissão de enfermagem com hierarquização social reproduzindo a hierarquização racial. 

Historicamente, mulheres negras tendem a ocupar espaços de menor status social, com base na hierarquia do mercado de trabalho (o que pode ser observado para técnicas e auxiliares de enfermagem). Por outro lado, imagem da “enfermeira padrão”, no topo da pirâmide, foi cristalizada pela elitização e branqueamento da profissão. A ruptura com os ciclos de desigualdades advindos dos pertencimentos de gênero, raça, e classe é necessária e urgente na sociedade brasileira, e terá de superar os séculos de uma história de reprodução de relações sociais de subordinação, violência, racismo e opressão. Na enfermagem, com seus mais de dois milhões de profissionais, será parte importante no processo de enfrentamento dessas questões. 

De que forma, exatamente, essas diferenças e desigualdades incidem sobre as oportunidades de emprego, condições de trabalho e renda e de desenvolvimento da enfermagem são perguntas a serem respondidas por meio de novos estudos que atualizem o debate e contribuam para o reconhecimento profissional e o trabalho digno do imenso contingente de mulheres que cuidam.

 

Helena Maria Scherlowski Leal David é professora Titular do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DESP/ENF/UERJ).

Gerson Luiz Marinho é professor Adjunto do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery (DESP EEAN UFRJ).

Kênia Lara da Silva é professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG).

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Não é efeito pandemia: saúde mental já era um problema de saúde pública e a conta é de todos nós https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/14/nao-e-efeito-pandemia-saude-mental-ja-era-um-problema-de-saude-publica-e-a-conta-e-de-todos-nos/#respond Wed, 14 Jul 2021 10:00:41 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terapia-de-casal-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=450 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O debate público sobre sofrimento psicológico pode ser recente, mas os dados alarmantes sobre o tema não são, e precisamos assumir a responsabilidade coletiva desse problema.

 

Não dá mais pra fugir do assunto: saúde mental entrou em pauta de forma irreversível e em caráter de urgência devido à crise desencadeada pela pandemia de Covid-19. As taxas de ansiedade, depressão, insônia, síndromes de esgotamento mental e outros sintomas de sofrimentos psíquicos aumentaram drasticamente e a saúde mental virou assunto cada vez mais comum em nossas conversas no trabalho, com a família e amigos, em instituições de ensino e na internet. 

É inegável que as medidas de isolamento social intensificaram o processo de adoecimento da população, mas é um equívoco tratar o colapso na saúde mental como um fenômeno recente.  Estamos arcando com as consequências de anos de desatenção nesse campo. O debate público sobre a saúde mental pode até ser atual, mas os dados alarmantes sobre sofrimentos psíquicos não são. Para enfrentar essa questão, agora emergencial, precisamos antes de tudo reconhecer que esse é um desafio antigo, que já afetava milhões de brasileiros havia muito tempo –e admiti-lo como um problema de saúde pública

Antes do novo coronavírus já vivíamos uma pandemia de violência e uma crise socioeconômica que afetava a saúde mental de todos os brasileiros. Ainda em 2019 o Brasil foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o país mais ansioso do mundo, com mais de 18 milhões de pessoas acometidas, o que representa mais do que toda a população da região norte. Também já éramos o quinto país mais depressivo, um salto de 34% em relação aos dados de 2013. Esses dados nos levam à compreensão de que saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é também resultado da complexa interação entre aspectos individuais e as condições de vida das pessoas. Por isso é fundamental trabalhar essa pauta em interface com outras agendas sociais, considerando as interseccionalidades do tema. 

Até hoje, as políticas públicas de promoção e prevenção em saúde mental foram tímidas e limitadas para enfrentar um problema dessa dimensão, e atravessado por questões estruturais e com muitas especificidades. O direito à alimentação saudável e adequada, à moradia, saneamento básico, trabalho, educação, transporte, lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais são fatores determinantes e condicionantes para a efetivação do direito à saúde. Por isso, não podemos optar por soluções isoladas, que não considerem as abordagens mais adequadas para cada pessoa.

 

Interseccionalidades e soluções individualizadas 

Como um problema de saúde pública, o cuidado com a saúde mental é uma tarefa coletiva, que precisa direcionar esforços do poder público, sociedade civil e ciência. Por esse motivo o debate não pode ficar restrito aos profissionais que atuam diretamente nos serviços de atendimento. É preciso fortalecer a perspectiva de saúde integral para que o sistema seja mais efetivo na oferta de tratamentos de saúde mental que sejam associados a outras especialidades da saúde integral e que considerem questões estruturais nos diagnósticos –analisar os adoecimentos físicos e mentais  em conjunto para, então, cuidar de forma integral. 

A dimensão do sofrimento é comum a todas as pessoas e não é mensurável em nível individual. Em uma sociedade extremamente desigual, os sofrimentos psíquicos podem até ser os mesmos (ansiedade, angústia, solidão), mas afetam cada indivíduo com base na introjeção da realidade material de cada um –por isso precisamos considerar questões estruturais. Nesse cenário, as minorias sociais são particularmente afetadas, como por exemplo as mulheres com alta sobrecarga doméstica —48% delas apresentam prevalência de transtornos mentais comuns. Em mulheres com baixa sobrecarga essa taxa cai para 22,5%, o que indica que aspectos referentes ao trabalho doméstico devem ser considerados e incorporados à avaliação da saúde mental das mulheres

Na prática, pessoas em situação de vulnerabilidade social são ainda mais suscetíveis ao adoecimento mental, pois têm muito mais restrições no acesso aos serviços de saúde — tanto os de prevenção como os de tratamento–, além da negação e da violação de outros direitos básicos. Nesse sentido, compreendemos que o sofrimento é uma condição da natureza humana. O sofrimento é “democrático”, mas o acesso aos cuidados desses sofrimentos não –é socialmente determinado.

Por isso precisamos atuar não só no tratamento dos sintomas, mas também criar soluções individualizadas de cuidado com base na reflexão sobre as questões estruturais que intensificam o processo de sofrimento a alguns grupos sociais. E fazer isto promovendo o acesso aos meios de elaboração do sofrimento psíquico, aos serviços de saúde integral e a outras condições necessárias para a saúde mental de todas as pessoas. Individualizar, porém, não significa personalizar atendimentos caso a caso, mas sim propor alternativas adaptadas que considerem as diferenças individuais. As soluções de saúde mental têm que ser consistentes e segmentadas em seus públicos. 

 

Então de quem é a responsabilidade pela saúde mental? 

São muitos os desafios no campo da saúde mental e só poderemos superá-los em rede e articulando diferentes setores. Especialmente em idades precoces, os sofrimentos psíquicos têm consequências que podem se estender ao longo do ciclo vital, comprometendo também a vida adulta ativa e saudável e gerando fragilidades tanto para o indivíduo quanto para famílias e comunidades. 

Crianças e adolescentes não se informam sobre saúde mental, mas leem os cuidadores e espelham seu comportamento em outros espaços sociais, então quanto mais ansiosa nossa sociedade estiver, mais as futuras gerações estarão. Como será o desenvolvimento e o futuro de uma criança ou adolescente para os quais não abordamos preventivamente a saúde mental? Como iremos lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) profundamente agravada entre adolescentes devido à pandemia? 

Por isso é fundamental que gestores, educadores, orientadores e assistentes sociais, em interface com profissionais de saúde, tenham à disposição ferramentas e recursos para lidar com a saúde mental em ambientes escolares e também que recebam acompanhamento terapêutico para terem condições de exercer essas atividades de cuidado. As pessoas não passam a se cuidar só porque alguém está dizendo que é preciso, nem mesmo aquelas que trabalham cuidando dos outros – é um processo de médio e longo prazo em práticas de cuidado em saúde mental, um investimento que dá trabalho e tem que ser sistêmico. 

 

Saúde mental: esse desafio deve ser compartilhado em rede

A epidemia vai passar, mas deixará traumas e sintomas de estresse pós-traumático para gerações inteiras, que terão que aprender a arcar com a conta da saúde mental a longo prazo. Ao dar luz aos sofrimentos psíquicos e falar sobre isso em ambientes públicos e privados, vamos descobrindo estratégias individuais e coletivas para promoção e prevenção em saúde mental, com a criação de autonomia, de oportunidades que capacitem cada pessoa a fazer escolhas e que permitam a sua participação como protagonista do seu cuidado.

Podemos fazer desse desafio uma oportunidade de enfrentar um problema antigo e urgente, além de melhorar nossa capacidade de articulação e colaboração trabalhando de forma coordenada em prol da saúde mental. Precisamos nos articular em rede, envolver mais atores estratégicos e acionar outros serviços e setores para que o direito à saúde mental seja efetivado e essa discussão ultrapasse os muros dos órgãos de saúde. Para isso, precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de tratar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. 

A essa altura é fundamental destacar que, apesar de a responsabilidade ser compartilhada, não podemos criar barreiras de ação na tentativa de encaixar as estratégias nesse campo em “caixinhas”, de forma setorizada, ministerial ou mesmo temática. Precisamos coordenar nossos esforços e entender que olhar para a saúde mental das mulheres, por exemplo, não é responsabilidade exclusiva dos órgãos e projetos de saúde, nem apenas das relacionadas à saúde mental, tampouco unicamente de entidades de direitos das mulheres. Se ficarmos nessa perspectiva podemos deixar vácuos de atuação justamente nos públicos mais vulneráveis, atravessados por uma série de questões interseccionais, como educação, trabalho, moradia etc. 

No Instituto Cactus, organização com atuação focada em saúde mental, especialmente de mulheres e adolescentes, trabalhamos para contribuir com esse imenso desafio de reunir esforços e para traçar caminhos de atuação em saúde mental no Brasil. Em nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, publicado em maio em parceria com o Instituto Veredas, destacamos a necessidade de priorização de políticas públicas de saúde mental, que devem ser monitoradas por meio de iniciativas como análise da situação, avaliação de serviços com indicadores, formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental, além da integração de dados e prontuários em sistemas digitais de regulação e referenciamento e elaboração de estudos de implementação, com apoio e orientação para análise de cenários.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, organização filantrópica que promove ações de advocacy e grant making, ampliando as informações e os cuidados com a Saúde Mental.

Luciana Barrancos é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford e Gerente Executiva do Instituto Cactus.

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