Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Panorama atual e desafios da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/#respond Fri, 12 Nov 2021 08:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/covid-negros-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=586 Ionara Magalhães

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) enumera um conjunto de lutas históricas dos movimentos sociais negros. No campo de disputas por um projeto de sociedade equânime e democrática, essa luta representa um importante marco político no enfrentamento do racismo estrutural. A PNSIPN é uma política transversal, contra-hegemônica, fundamentada no reconhecimento do racismo como determinante da precariedade das condições de saúde da população negra. A PNSIPN tem caráter específico e compensatório, pois as políticas universalistas não têm alcançado populações vulneráveis e acabam por reproduzir as iniquidades. A PNSIPN visa a assegurar os princípios antirracistas e não discriminatórios, correspondendo, portanto, a uma ação afirmativa no SUS.

Os dados de morbimortalidade (índice de pessoas mortas em decorrência de uma doença específica dentro de determinado grupo populacional) da população negra revelam a insuficiência e a ineficiência de ações governamentais para redução das iniquidades étnico-raciais. Não existe predisposição nata ao adoecimento e mortalidade precoce das pessoas negras. Com efeito, há um pequeno elenco de morbidades determinadas geneticamente. Todavia, prevalecem doenças e agravos sociais resultantes do racismo que estrutura as desigualdades sociais. 

Se a saúde é determinada por políticas macroeconômicas, por capital social e cultural, por condições de vida, ambiente e trabalho moldadas pela distribuição de dinheiro, por recursos e por relações de poder, as condições de saúde da população negra têm correspondência direta com as iniquidades sociais, e suscitam política específica. Nesse sentido, a institucionalização da saúde da população negra no SUS aponta para o cuidado preventivo, assistencial e promocional da saúde, previsto nos planos operativos da PNSIPN.

Após doze anos de instituição, a PNSIPN foi efetiva em apenas 57 dos 5.570 municípios brasileiros. Os problemas persistem: falta de financiamento, insuficiência de suporte técnico, falta de comitês técnicos estaduais e municipais de saúde da população negra, desconhecimento da população usuária do SUS sobre a PNSIPN e, sobretudo, a cultura do racismo institucional. Os comitês técnicos de saúde da população negra têm caráter deliberativo e executivo, representam a interlocução entre as comunidades negras e as instituições de governo, além de que visam a garantir a implementação da política. Todavia, em 2018, não havia 10% dos comitês técnicos de monitoramento em todos os municípios. Por certo, uma investigação atual revelaria dados ainda mais estarrecedores.

A gestão da PNSIPN deve ser compartilhada entre União, estados e municípios, e prevê o exercício e fortalecimento do controle social, da produção da informação, do conhecimento científico e tecnológico em saúde da população negra, e da valorização dos saberes e práticas populares de saúde, inclusive das religiões de matrizes africanas. Além disso, a política preconiza o monitoramento, a avaliação das ações referentes ao combate ao racismo nas distintas esferas de governo e a garantia do amplo acesso da população negra às ações e aos serviços de saúde.

No bojo da análise da implementação da PNSIPN, destaca-se que muitos sistemas de informação em saúde não dispõem do quesito “raça/cor da pele”. Tampouco há esforços da gestão em fazer o registro compulsório deste campo e sanções pelo não cumprimento do preenchimento, estabelecido pela Portaria 344/2017. Além disso, denota-se a necessidade de melhora da coleta, do processamento e da análise dos dados desagregados por raça/cor da pele/etnia para a produção, do monitoramento, da avaliação de indicadores e das metas destinadas à promoção da equidade étnico-racial na saúde.

Um grande entrave corresponde à inclusão da temática “relações étnico-raciais, racismo e saúde da população negra” na educação permanente voltada aos trabalhadores , gestores e usuários  nos currículos de formação dos cursos de saúde. Essas temáticas são ignoradas pelas instituições ou não reconhecidas como fundamentais pela sociedade brasileira. 

A implementação da PNSIPN implica o fortalecimento do SUS – o maior patrimônio público e maior política social do país. Entretanto, os ataques ao SUS, traduzidos pelo subfinanciamento crônico e desfinanciamento, pela destituição dos direitos sociais, civis e políticos, e pela adoção de políticas antidemocráticas e conservadoras, atingem diretamente a população negra e, consequentemente, fragiliza o processo de implementação da PNSIPN. 

É premente que, para além dos comitês técnicos, das organizações sociais e dos movimentos negros, o Estado estabeleça mecanismos institucionais de gerenciamento e monitoramento da implementação da PNSIPN. Logo, seria a implementação da PNSIPN uma questão técnica ou política? O maior desafio da PNSIPN é, incontestavelmente, a sua implementação, que esbarra na estrutura, disposição e política institucional desfavoráveis. Seguramente, sem a devida implementação e avaliação, o ciclo da política não se completa.

Portanto, no panorama atual de implementação da PNSIPN, observam-se ações descontínuas, isoladas, descoordenadas e o descompromisso governamental com  a sua implementação. O fracasso no processo de implementação da PNSIPN representa uma ameaça ao projeto civilizatório, Muitos avanços têm sido desconstituídos e prejudicado o exercício do direito à saúde da população negra. Nessa correlação de forças, segue em curso uma longa disputa pela democratização da saúde, pelo resgate da credibilidade institucional e pela efetivação de uma política de legitimidade histórica.

 

Ionara Magalhães é professora Adjunta da UFRB, membra do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra e do GT Racismo e Saúde da ABRASCO

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A privatização da formação em saúde no Brasil: tendências e desafios https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/a-privatizacao-da-formacao-em-saude-no-brasil-tendencias-e-desafios/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/a-privatizacao-da-formacao-em-saude-no-brasil-tendencias-e-desafios/#respond Wed, 29 Sep 2021 10:00:27 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/4bb6474b-8770-41fe-ae8d-8c6ec626fa89_1140x641-compressed-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=536 Mario Roberto Dal Poz e Leila Senna Maia

 

Nunca foi tão necessário e crítico refletir sobre os desafios do processo de formação e educação das profissões em saúde no Brasil, em especial na medicina, enfermagem e odontologia, dadas as recentes tendências de mudança verificadas nesse campo, e impulsionadas pela privatização do setor.

Nas últimas décadas, o crescimento global das Instituições de Ensino Superior Privadas (IESP), sobretudo aquelas com fins lucrativos, ampliou o debate sobre a natureza dos bens públicos e privados na educação superior, especialmente sobre o papel do setor privado e o seu impacto na formação acadêmica. O sistema educacional responde tanto às exigências do sistema de saúde quanto à dinâmica do mercado de trabalho, cruciais na transformação do sistema de saúde e no desenvolvimento econômico e social.

No Brasil, os cursos da área da saúde acompanharam de forma geral a tendência do ensino superior, tanto em relação ao aumento de matrículas quanto no crescimento da participação das instituições privadas na oferta de cursos e de matrículas efetivas. Entre os anos de 1991 e 2014, a proporção de cursos privados na área da saúde passou de 51% para 72% e o número de vagas foi de 61% para 91%.

O fenômeno da privatização na educação superior em saúde tem se caracterizado pelo crescimento dinâmico e acelerado. Suas tendências de expansão estão relacionadas, especialmente, às políticas públicas, que influenciam, e mesmo favorecem, o aumento dessas instituições. 

A expansão do ensino superior privado no Brasil, em número de instituições, vagas e cursos, foi justificada pela ampliação e democratização do acesso ao ensino superior e fortalecida pelo arcabouço político, jurídico e institucional. Somaram-se ao cenário incentivos, imunidades e isenções fiscais; repasses estatais ao setor privado, com a implantação de políticas de financiamento e bolsas estudantis e linhas de crédito, a exemplo dos Programas de Melhoria Institucional implementados pelo BNDES.

Políticas e programas governamentais contribuíram, a partir de 1999, para o crescimento do setor privado de ensino por meio de aporte de recursos governamentais, isenção fiscal e redução de até 90% do valor da dívida ativa com a União em troca da oferta de bolsas parciais ou integrais a estudantes das instituições participantes. 

Os principais programas e políticas que auxiliaram na retenção de estudantes, na redução de vagas ociosas e das taxas de evasão e de inadimplência foram o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) instituído pela Lei nº 10.260/01 27; o Programa Universidade para Todos (PROUNI), instituído pela Lei n° 11.096/2005 28, e o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (PROIES), instituído pela Lei no. 12.688/2012, 29.

No caso específico das escolas médicas, além do Programa de Financiamento Estudantil (FIES) e o Programa Universidade para Todos (PROUNI), o governo federal disponibilizou ainda o FIESmed, um programa específico instituído por meio da Lei n° 12.202/2010, para abatimento mensal de 1% do saldo devedor, incluídos os juros devidos no período, da dívida dos médicos que financiaram seu curso pelo Fies. A condição é que estes passassem a atuar em Estratégia de Saúde da Família (ESF) em municípios definidos como prioritários pelo Ministério da Saúde (MS) ou que fossem médicos residentes matriculados em programa credenciado pela Comissão Nacional de Residência Médica e  cursando uma das 19 especialidades prioritárias para o SUS. O FIESmed previa ainda a extensão da carência de pagamento.

Em 2013 foi instituído o Programa Mais Médicos (PMM) que, além do recrutamento emergencial de médicos para atenção assistencial em regiões prioritárias do país por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), autorizou a expansão da oferta de cursos e vagas de medicina em instituições de ensino superior (IES) públicas e privadas. Dois anos após a promulgação dessa Lei foram criadas 5.300 novas vagas para a graduação em medicina — 68% em instituições privadas. O aumento no número de cursos privados de medicina de 2000 a 2017 foi de 200%.

No entanto, o número limitado de estudos e evidências sobre a dinâmica dos mercados educacional e de trabalho em saúde nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento dificulta compreender as suas relações com os sistemas de saúde. Recentemente, o grupo de pesquisadores sobre saúde global e força de trabalho em saúde publicou três estudos buscando demonstrar a pertinência e a abrangência do processo de privatização das escolas de medicina , odontologia e enfermagem, fazendo uma reflexão sobre as implicações desse processo no atendimento das demandas do sistema de saúde no Brasil.

Em agosto de 2021, o Brasil dispunha de 372 cursos de medicina públicos e privados que, juntos, ofertam 39.636 vagas. Destes, 228 cursos foram oferecidos por instituições privadas responsáveis por 27.785 (70%) do total das vagas disponíveis. No mesmo período, o país contava com um total de 579 cursos de odontologia que juntos dispunham de 79.737 vagas anuais das quais 93% (74.434) eram de responsabilidade de 511 IESP.  No caso da enfermagem, foram oferecidas 211.466 vagas presenciais por meio de 178 cursos públicos e 1.193 privados. Estes últimos responsáveis por 94% (199.682) da oferta anual deste tipo de vagas. Na modalidade a distância 12 cursos privados de enfermagem disponibilizaram um total de 112.860 vagas distribuídas nacionalmente em 1.557 polos educacionais.

Em relação ao total de vagas há claramente uma tendência à concentração do setor educacional brasileiro para a formação em saúde em alguns grupos educacionais, e mais especificamente das IESP com cursos de medicina.

A expansão global dos cursos privados de medicina representa um grande desafio: como expandir o número de vagas e ao mesmo tempo garantir qualidade e acesso democrático a essa forma de educação. Por isso é relevante a constituição de uma agenda de pesquisa em âmbitos nacional e internacional que permita acompanhar os processos de reconfiguração empresarial do setor, além de  investigar as relações entre os mercados público e privado de formação, assim como a empregabilidade dos profissionais médicos pelos sistemas nacionais de saúde, correlacionando esses fatores com as necessidades assistenciais das populações. 

Como os indicadores de qualidade e desempenho do setor privado tem ficado aquém daqueles do  ensino público, é necessário realizar mais estudos sobre as avaliações realizadas pelo Ministério da Educação, bem como implantar novos procedimentos e mecanismos de avaliação, como testes de progresso aplicados pelas próprias instituições, avaliações externas para estudantes de graduação  ou credenciamento de escolas e métodos de avaliação de estudantes mais adequados às mudanças no currículo dos cursos de graduação.

Pesquisas avaliativas poderiam monitorar ou medir a implementação das propostas educacionais formuladas pela primeira vez quando as escolas são credenciadas, para verificar se as escolas e faculdades possuem a infra-estrutura mínima necessária, incluindo laboratórios e biblioteca, se estão de fato integradas ao sistema de saúde local e regional, se trabalham em conjunto com hospitais de ensino ou unidades públicas de saúde capazes de fornecer residências e experiência prática para os estudantes, e se existe um corpo docente estabelecido, com professores experientes e qualificados trabalhando exclusivamente ou prioritariamente na escola.  

Há necessidade de analisar quaisquer obstáculos para identificar novos mecanismos de democratização do acesso ao ensino superior. No caso da medicina, mesmo com os novos cursos e as novas vagas oferecidas, os procedimentos de admissão –que para as universidades públicas envolvem exames extremamente competitivos — e as altas taxas cobradas pelos cursos particulares, tendem a fomentar a desigualdade de acesso, pois favorecem os estudantes de origens mais abastadas. Como os cursos de medicina são mais competitivos e caros, poucos estudantes receberam incentivos do programa Universidade para Todos (Prouni), do Fundo de Empréstimos para Estudantes de Ensino Superior (Fies), e de programas específicos de inclusão, cotas e ações afirmativas.  

 

Mario Roberto Dal Poz é professor titular no Instituto de Medicina Social da UERJ.

Leila Senna Maia é pesquisadora no Instituto de Medicina Social da UERJ.

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O cenário das doenças crônicas no Brasil e as pressões orçamentárias sobre o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/#respond Wed, 25 Aug 2021 10:00:42 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-dinheiro-800x533-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=496 Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Um dos aprendizados de 2020 é que o enfrentamento à pandemia poderia ter tido maior sucesso se a estrutura da atenção primária tivesse sido melhor utilizada. Em um contexto de emergência sanitária, testemunhamos a despriorização das ações de vigilância comunitária e epidemiológica, cruciais no rastreamento e contenção do contágio pelo vírus. Muito se noticiou sobre a ausência de testes de Covid-19 e a insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para minimizar a contaminação de profissionais de saúde. No entanto, um assunto que recebeu menos holofotes, mas que exerce grande impacto sobre o sistema de saúde foram os efeitos da pandemia sobre o represamento de serviços, como o cuidado longitudinal de doentes crônicos.

As Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), classificação em que se encontram doenças cardiovasculares, cânceres, doenças respiratórias crônicas e diabetes, são tipos de disfunções que possuem fatores de risco comuns e evitáveis, como colesterol alto e hipertensão, e que necessitam de acompanhamento constante. Uma vez que se desenvolve uma  DCNT, a qualidade de vida também se torna condicionada a um processo de cuidado contínuo. 

Dentro da estrutura do sistema de saúde brasileiro, a Atenção Primária atua de forma estratégica para proporcionar o acompanhamento dos usuários crônicos. Está dentro das atribuições da Estratégia Saúde da Família, por meio do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a identificação de demandas de saúde, a circulação de informações e a orientação sobre cuidados. As visitas domiciliares dos ACS, em especial, permitem um cuidado à saúde mais humanizado, estabelecendo laços de confiança entre os profissionais de saúde e a população.

No entanto, com a chegada do coronavírus no Brasil, tornou-se mais difícil tanto detectar precocemente quanto acompanhar sistematicamente as condições crônicas de saúde na população e a função de “porta de entrada”dos usuários no Sistema Único de Saúde (SUS) exercida pela Atenção Básica foi prejudicada. No que se refere à rotina das unidades básicas de saúde, em algumas localidades, procedimentos foram descaracterizados, como o trabalho de rua dos ACS, e atendimentos precisaram ser paralisados para o redirecionamento da força de trabalho para ações de combate a Covid-19. Também a necessidade de adoção do isolamento social fez com que muitos usuários ficassem receosos de se deslocar até os estabelecimentos de saúde. 

Em números, o reflexo dessa quebra do vínculo entre os usuários e as unidades de saúde durante a pandemia se traduz na queda brusca da quantidade de consultas da atenção básica, reduzidas em quase 50% no ano de 2020. Dados de um estudo recente realizado pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e por pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV-Saúde) demonstram a interrupção de procedimentos preventivos e de detecção precoce. Em comparação com 2019, o estudo evidenciou uma queda generalizada em 2020 na produção ambulatorial, que inclui procedimentos diagnósticos (-21,7%), de rastreio (-32,9%) e consultas médicas (-32,1%). 

Somado à queda nos demais níveis de atenção, em serviços como os de cirurgias e transplantes, o número de procedimentos totais realizados caiu, no mesmo ano, 19,2%. Em termos econômicos, essa contração significou uma redução de transferências federais para o SUS de aproximadamente R$ 3,6 bilhões em 2020. Os resultados do estudo apontam para um cenário preocupante de aumento de demanda dos serviços de atenção à saúde no país e, na sua contramão, o agravamento da insustentabilidade financeira do sistema.
No segundo semestre de 2021, a pandemia continua demandando intensamente dos profissionais e serviços de saúde e a Covid-19 tem deixado sequelas nos casos mais graves dos acometidos pela doença, o que pode vir a exigir cuidados de médio a longo prazo. Não bastasse esse cenário desolador, tudo indica que a atual pressão orçamentária deve ainda ser acrescida da demanda reprimida de doentes crônicos.  

Em 2019, no Brasil pré-pandemia, as DCNTs foram responsáveis pela morte de 1.025.708 brasileiros em idade inferior a 70 anos, número equivalente a 77,86% do total de mortes no ano — percentual calculado a partir do total de mortos em 2019 em idade inferior a 70 anos informado pelo IBGE. No Brasil da Covid-19, presenciamos o agravamento da insegurança alimentar no país, com 9% da população brasileira enfrentando a fome e o aumento no consumo de tabaco e álcool, fenômenos que sabidamente contribuem para o desenvolvimento de doenças crônicas.

Para enfrentar esse horizonte nada animador seriam necessários investimentos e planejamento estatal robusto e baseado em evidências, que permitisse preparar o sistema de saúde para atender simultaneamente às vítimas da Covid-19 e aos novos e antigos doentes crônicos. Na contramão disso, o que vemos é uma espécie de apagão estatístico sobre a saúde da população durante a pandemia e a não publicação do relatório de 2020 da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), principal instrumento de acompanhamento de fatores de risco para DCNT. Para agravar a situação, até o momento corremos o risco da não realização da pesquisa em 2021

O fato é que a Atenção Básica brasileira, uma das grandes referências para o resto do mundo, vem sofrendo fragilizações sistemáticas e o cenário das doenças crônicas no país é um gigante debaixo de um tapete que não pode mais ser ignorado. A “conta” que ficará para a população só cresce e, caso o orçamento público federal para a saúde não seja reavaliado, a consequência direta será o aumento do número de mortes evitáveis no país. 

 

Maria Letícia Machado é pesquisadora de políticas públicas no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Rebeca Freitas é especialista em relações governamentais no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Por que as linhas de cuidado de doenças crônicas não transmissíveis no Brasil ainda pertencem ao mundo da ficção? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/#respond Fri, 13 Aug 2021 10:00:34 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/111111111-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=478 Fernanda Leal

 

As Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs) matam 41 milhões de pessoas a cada ano, o equivalente a 71% de todas as mortes no mundo. É o que afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS). Desse total, 15 milhões morrem por alguma DCNT entre 30 e 69 anos, e mais de 85% dessas mortes “prematuras” ocorrem em países de baixa e média renda, como o Brasil.

Nos últimos anos, o Brasil passou por importantes transformações no seu padrão de mortalidade e morbidade, em função dos processos de transição epidemiológica, demográfica e nutricional da população. Assim como em nível mundial, aqui as DCNTs são altamente relevantes, tendo sido responsáveis, em 2016, por 74% do total de mortes, com destaque para doenças cardiovasculares (28%), neoplasias (18%), doenças respiratórias (6%) e diabetes (5%), de acordo com dados da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel). 

O que se sabe é que um pequeno conjunto de fatores de risco responde pela maior parte das mortes por DCNTs e por fração substancial da carga de doenças relacionadas a essas enfermidades. Entre esses fatores destacam-se o tabagismo, o consumo alimentar inadequado, a inatividade física e o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Pensando nisso, o Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS) e a Umane desenvolveram um extenso relatório, denominado Panorama IEPS, que busca entender os motivos que tornam as DCNTs gargalos sistêmicos dos nossos sistema de saúde e como enfrentar esse desafio por meio da implementação de linhas de cuidado de DCNTs nos municípios.

O documento identificou importante deficiência na implementação dessas linhas de cuidado e que isso  se deve a 7 causas principais:

  1. Gargalos de acesso impedem que usuárias e usuários realizem rastreio e tratamento de DCNTs. Rastrear adequadamente as DCNTs e tratá-las em tempo oportuno depende de acesso a uma Atenção Primária à Saúde (APS) capilarizada e efetiva. Nesse sentido, é preciso aumentar a cobertura e resolver barreiras de acesso em serviços já existentes. 
  2. Faltam profissionais e treinamento para a atuação em equipes multiprofissionais no Sistema Único de Saúde (SUS). Além da falta de profissionais qualificados para lidar com a APS, os modelos de treinamento têm muito espaço para melhora.
  3. As Linhas de Cuidado são operadas em total ou parcial segregação entre níveis de cuidado. Isso significa que a fragmentação compromete a integralidade. É preciso que serviços de saúde de diferentes complexidades atuem de forma coordenada e sinérgica para que cada usuária ou usuário do SUS tenha o tratamento de que necessita, em tempo oportuno.
  4. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está sendo acompanhada. O acompanhamento de usuários crônicos deixa a desejar. Os números do Previne Brasil mostram o baixo percentual de hipertensos e diabéticos com registro de pressão arterial e hemoglobina glicada, respectivamente, destacando que a longitudinalidade está longe de ser uma realidade.
  5. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está cadastrada. Pesquisas mostram que os brasileiros iniciam o cuidado a partir de um diagnóstico, sem prevenção. Para que o cuidado se inicie em momento oportuno, o cadastro dos usuários do território da unidade precisa ser realizado. Para isso, há diversos desafios, como equipes incompletas e desmotivadas, agentes comunitários de saúde como peças facultativas das equipes e territórios descobertos, caracterizando desertos sanitários.
  6. Lentidão do processo de informatização da Atenção Primária no Brasil. Falta de infraestrutura, de financiamento amplo, de profissionais de tecnologia com interseção em saúde e sensibilidade das gestões sobre os benefícios do uso de dados são os principais desafios contidos nessa causa.
  7. Por fim, a variável que impede a implantação adequada das Linhas de Cuidado de DCNTs é a baixa adesão ao tratamento por parte dos portadores de doenças crônicas. Profissionais têm dificuldades de sensibilizar os usuários para a importância do autocuidado e adesão às orientações, incluindo tomar medicações, seguir recomendações alimentares e/ou mudar comportamentos.

Esses pontos foram levados em uma democrática mesa de discussões no webinarDiálogos IEPS”, realizado no último dia 28 de julho e que uniu a visão de pesquisadores e de gestores que vivem na pele os desafios diários de tratar usuários crônicos. Apesar das diferentes vivências, a conclusão sobre o tema foi a mesma: as Linhas de Cuidado de doenças crônicas não transmissíveis ainda pertencem ao mundo da ficção. 

Isso significa que temos as Linhas de Cuidado de jure, expressas em normativas do Ministério da Saúde, nos planos de enfrentamento de DCNTs e nos Cadernos de Atenção Básica, pouco atentas aos desafios de implementação dos municípios, além de assumir hipóteses irrealistas como a ideia de que as cidades conhecem todos os seus portadores de DCNTs e que a informação está bem organizada localmente. No nível municipal, porém, é que são implementadas as Linhas de Cuidado de facto. Um conjunto de práticas e procedimentos, muitos dos quais tácitos e não normatizados, que uma rede de saúde utiliza para manejar as DCNTs e que são muito desconectadas do que é preconizado pelo Ministério da Saúde. As linhas de cuidado do mundo real são repletas de improvisos e até de  práticas inovadoras, porém com alguns gargalos recorrentes.

Assim, há um alerta: o Ministério da Saúde precisa ter planos mais condizentes com as diferentes realidades experimentadas no Brasil, adaptando normativas para as particularidades regionais e acompanhando mais de perto a implementação de redes estruturadas de cuidado para tratar o problema mais crítico e letal do nosso sistema de saúde.

O próximo evento “Diálogos IEPS”, dia 1º de setembro, retomará esse tema, mas dessa vez pensando em como endereçar todos os desafios identificados. As discussões se darão em torno de possíveis soluções para os problemas detectados e experiências exitosas que gestores de saúde e profissionais de saúde poderão implementar nos seus municípios.

 

Fernanda Leal, mestra em Ciência Política (UFPE) e assistente de políticas públicas do Instituto de Estudo Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Enfermagem brasileira e pertencimento étnico-racial: o que sabemos, e o que precisamos saber? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/#respond Wed, 28 Jul 2021 10:00:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/115376546_gettyimages-1253858296-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=463 Helena Maria Scherlowski Leal David, Gerson Luiz Marinho e Kênia Lara da Silva

 

Estudos sobre a distribuição dos profissionais de enfermagem brasileiros segundo variáveis sociais e demográficas mostram um retrato que necessita ser atualizado com urgência. Um cenário já reconhecido no mundo todo: é o que remonta à feminilização histórica da profissão. No caso brasileiro, isso se reflete em todos os níveis de divisão técnica: auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros de nível superior são majoritariamente mulheres. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), cerca de 90% do total de profissionais de enfermagem de todo o mundo são do sexo feminino. Para além das desigualdades impostas pelas diferenças de gênero, inclusive quanto à baixa remuneração e às escassas oportunidades de ascensão nas carreiras, um aspecto que necessita ser melhor compreendido é como se apresentam as diferenças étnico-raciais para essa profissão eminentemente feminina.

Não há dados globais e tampouco informações comparáveis entre países que demonstrem as características da diversidade étnico-racial dos profissionais de enfermagem. No Brasil, os dados sobre essas variáveis podem ser obtidos a partir de bases censitárias. Mas é preciso lembrar que o último censo nacional ocorreu em 2010. Apesar dessa limitação, é relevante apontar resultados dos recenseamentos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): no ano 2000, 70% dos profissionais de enfermagem declararam ser de cor ou raça branca. Dez anos depois, o Censo 2010 contabilizou 54,4% nesse contingente –uma redução de 15,6% de enfermeiros classificados como de cor ou de raça branca. Além disso, o Censo de 2010 também registrou diferenças na autodeclaração entre enfermeiros de nível superior (62,7 % eram brancos) e profissionais de nível médio (49,1% eram brancos).  

Sabe-se que o critério de preenchimento da variável raça/cor é a autodeclaração, que sofre alterações em função da autopercepção. De modo especial, nos últimos anos há uma tendência de maior reconhecimento das pessoas acerca de seu pertencimento racial –o que pode justificar, em parte, o aumento do contingente de enfermeiros negros (compreendidos como o conjunto daqueles declarados de cor/raça preta e parda), bem como a redução dos percentuais de enfermeiros de cor/raça branca. No caso do acesso ao ensino superior, um importante marcador foi a política de cotas sociais e raciais para estudantes que se declaram pobres e negros, o que pode ter influenciado o aumento de enfermeiros graduados nas últimas décadas.

Esse cenário nos permite pensar que, na enfermagem, assim como na população brasileira em geral, há interseccionalidade entre gênero-raça-classe, com pessoas autodeclaradas brancas tendendo a ocupar os postos de trabalho de nível superior. Por outro lado, as ocupações que exigem nível médio e elementar de escolaridade absorvem contingentes proporcionalmente maiores de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. De acordo com dados de 2010, a renda de enfermeiros (nível superior) autodeclarados brancos superou em mais de um quarto àquela registrada para enfermeiros pardos e pretos; e entre os técnicos de enfermagem, brancos tiveram renda aproximadamente 11% maior àquela remetida para técnicos pardos e pretos.

Dentro da equipe profissional de enfermagem, nota-se com maior frequência que enfermeiras (nível superior) ocupam cargos de chefia e gestão, sendo responsáveis pela coordenação dos demais profissionais da equipe de enfermagem. Considerando desigualdades observadas através da pesquisa censitária quanto à distribuição da autodeclaração de raça-cor, é possível inferir que, na enfermagem, “uma minoria de mulheres brancas ocupam postos nos quais chefiam uma maioria de mulheres negras”. Estes dados refletem as condições históricas e a divisão do trabalho no interior da profissão de enfermagem com hierarquização social reproduzindo a hierarquização racial. 

Historicamente, mulheres negras tendem a ocupar espaços de menor status social, com base na hierarquia do mercado de trabalho (o que pode ser observado para técnicas e auxiliares de enfermagem). Por outro lado, imagem da “enfermeira padrão”, no topo da pirâmide, foi cristalizada pela elitização e branqueamento da profissão. A ruptura com os ciclos de desigualdades advindos dos pertencimentos de gênero, raça, e classe é necessária e urgente na sociedade brasileira, e terá de superar os séculos de uma história de reprodução de relações sociais de subordinação, violência, racismo e opressão. Na enfermagem, com seus mais de dois milhões de profissionais, será parte importante no processo de enfrentamento dessas questões. 

De que forma, exatamente, essas diferenças e desigualdades incidem sobre as oportunidades de emprego, condições de trabalho e renda e de desenvolvimento da enfermagem são perguntas a serem respondidas por meio de novos estudos que atualizem o debate e contribuam para o reconhecimento profissional e o trabalho digno do imenso contingente de mulheres que cuidam.

 

Helena Maria Scherlowski Leal David é professora Titular do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DESP/ENF/UERJ).

Gerson Luiz Marinho é professor Adjunto do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery (DESP EEAN UFRJ).

Kênia Lara da Silva é professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG).

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Recursos humanos e doenças crônicas no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/#respond Tue, 22 Jun 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/20200826185253802642o-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=426 Agatha Eleone e Helyn Thami

 

É em países de renda baixa ou média, caso do Brasil, que ocorrem 80% das mortes por doenças crônicas, segundo a Organização Panamericana de Saúde.  Nesses países, 30% das mortes ocorrem prematuramente –abaixo dos 60 anos de idade. As doenças crônicas são um grande fator de estresse para os sistemas de saúde e para o desenvolvimento econômico. A literatura é contundente ao mostrar, também, a importância das áreas de recursos humanos (RH) no desempenho do cuidado oferecido aos portadores de doenças crônicas.

Apesar da relevância do tema, o Brasil parece caminhar na contramão dos fatos. Recentemente, com o lançamento do Previne Brasil, o novo modelo de financiamento da APS (Atenção Primária em Saúde), o Nasf-AB (Núcleo Ampliado de Saúde da Família), e que complementava as equipes da Atenção Primária com profissionais de diversas categorias, teve seu financiamento suspenso. Assim, municípios e estados que quiserem manter o provimento dessas equipes multidisciplinares terão de custeá-las com recursos próprios, uma opção complexa em meio à crise vivida pelos entes subnacionais. 

Se existe espaço para se discutir os desafios de gestão e provisão dessas equipes multidisciplinares no contexto brasileiro, é um risco não termos direcionamento e coordenação nacionais para garantir que categorias profissionais diversas integrem permanentemente o sistema. O cuidado não-multiprofissional para as condições crônicas é um cuidado falho –e esse último impede o uso eficiente dos recursos disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde). 

Ademais, há um outro desafio: o manejo adequado das doenças crônicas no sistema público requer conhecimento sobre as diretrizes, princípios, protocolos e políticas setoriais do tema do próprio SUS, o que ainda é um gargalo no Brasil. Os modelos predominantes de disseminação de novos protocolos parecem não levar em conta a complexidade de se alterar comportamentos de profissionais de saúde de modo eficaz. O compartilhamento de novos guias clínicos por e-mail ou aplicativos de mensagens instantâneas, por exemplo, não é suficiente para garantir adesão aos procedimentos-padrão. 

Estudos mostram que os verdadeiros fatores que determinam a consolidação de diretrizes clínicas são experiência clínica pessoal e preferências pessoais (no nível individual) e participação no desenho do protocolo, treinamento e existência de mecanismos de controle (no nível organizacional). Considerando o exposto, é crucial que municípios desenvolvam metodologias mais ativas, bem como mecanismos de controle, para garantir a correta adesão aos protocolos preconizados. 

Em relação à dificuldade dos entes públicos em garantir implantação e permanência de profissionais (principalmente médicos) nos serviços, pode-se dizer que os principais motivos de desinteresse pelas áreas de Saúde da Família e Atenção Primária — que são de suma importância na prevenção a fatores de risco e doenças crônicas — têm sido relacionados frequentemente à baixa remuneração e às oportunidades de carreira e de formação oferecidas. Há uma intensa desmotivação e “desprestígio” vinculados a essa área de atuação, que resultam do modelo de atuação que enaltece o acompanhamento de doenças isoladas ao invés de sujeitos complexos. 

Tal modelo opera na lógica da chamada ‘queixa-conduta’, preconizando a execução de procedimentos, diagnósticos e prescrições, em detrimento do acolhimento e do cuidado para a promoção da saúde. Ainda, leva profissionais da saúde à percepção (equivocada) de que o perfil técnico científico de outras especialidades é maior ou superior que o da APS e retarda o aprimoramento dos currículos dos cursos nas áreas da saúde do brasil, que até hoje pouco estimulam o interesse e conhecimento nas áreas de saúde pública e saúde coletiva.

Outro gargalo para o bom cuidado aos portadores(as) de condições crônicas é a atuação integrada de uma rede variada de serviços de saúde. Para que essa rede opere em harmonia, existem fatores ligados aos Recursos Humanos que não podem ser ignorados. Um exemplo é o desenvolvimento de “lideranças de integração” — figuras que estudam liderança na perspectiva de unir e pactuar conjuntamente metas de resultados para um conjunto de serviços diferentes –, que recebe pouca ênfase no contexto brasileiro, mas que se provou relevante em sistemas de saúde mundo afora.

As condições crônicas permanecem sem resposta adequada pelo fato de os sistemas de saúde operarem de modo fragmentado e voltado para as condições agudas ou agudizadas de condições crônicas, isto é, para doenças já em estágio de agravamento ocasionados por ausência ou falha no cuidado preventivo. Atrelados a isso, existem problemas estruturais de interlocução da rede que contribuem ainda mais para essa fragmentação e que, se executada da forma adequada, favoreceria o trânsito do usuário dos serviços de saúde e garantiria a continuidade das ações e serviços. Na prática, um cidadão adequadamente referenciado ou que foi buscado ativamente por atores dos serviços estaria menos propenso a padecer por condições crônicas de saúde.

A disponibilidade de equipes de saúde que contem com profissionais de formação adequada para atuar na APS é um dos principais fatores para garantir o cumprimento das diretrizes do SUS. Dessa maneira, é preciso que o setor público se planeje para lidar com os desafios de um mundo onde a longevidade aumenta, juntamente com a prevalência desse tipo de condição, e isso passa por repensar diversos pontos da gestão de RH. É necessário, portanto, formular estratégias inovadoras para captação e capacitação, executando um plano robusto e sustentável de formação voltada para a APS, além de pensar em ações que possibilitem maior interesse pela área e a consequente implantação de profissionais em territórios vulnerabilizados, reduzindo as barreiras de acesso aos serviços de saúde.

 

Agatha Eleone e Helyn Thami são pesquisadoras de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

 

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Baixos salários e sobrecarga de trabalho da enfermagem https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/baixos-salarios-e-sobrecarga-de-trabalho-da-enfermagem/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/16/baixos-salarios-e-sobrecarga-de-trabalho-da-enfermagem/#respond Wed, 16 Jun 2021 10:00:20 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/saude-do-trabalhador-enfermagem-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=420 Alice Mariz, Kênia Lara da Silva, Márcia Caúla e Mario Dal Poz

 

Os profissionais da saúde têm enfrentado dramas, originados por problemas crônicos,  desde que a pandemia da Covid-19 se instalou, em especial os que atuam no campo da enfermagem.

Diversos estudos vêm apontando fragilidades e precarizações nas condições de trabalho de enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem no país. Há cerca de 20 anos esses profissionais vêm pleiteando a adoção de medidas que revertam esse cenário, especialmente por meio da regularização da jornada de 30 horas semanais e da fixação de um piso salarial compatível com o trabalho realizado. Essa busca se alinha com as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que indica, para a área de saúde, a jornada de 30 horas como a mais adequada, tendo em vista os desgastes sofridos pelos trabalhadores nesse setor. Somem-se a isso as condições específicas do trabalho da enfermagem –com baixos salários, sobrecarga, dupla jornada, contratos frágeis, assédios, dentre tantos outros problemas. Essas condições repercutem em maiores índices de adoecimento das trabalhadoras e comprometimento da segurança e da qualidade do cuidado prestado. 

Podemos exemplificar essa situação no contexto da pandemia da Covid-19. Segundo  dados do Ministério da Saúde, por meio dos boletins epidemiológicos, nota-se que dentre os profissionais de saúde, os técnicos e auxiliares de enfermagem, seguido dos enfermeiros, ocupam os primeiros lugares em número de casos e óbitos.

Acontece que, atualmente, não existem políticas que fixam, em nível nacional, jornada de trabalho de 30 horas e piso salarial, o que leva grande parte dos profissionais a se submeterem a múltiplos vínculos trabalhistas em busca dos rendimentos necessários a seu sustento e de sua família. Devemos ressaltar que a enfermagem é composta majoritariamente por mulheres, muitas das quais assumem sozinhas ou com grande parcela de contribuição, os orçamentos familiares. Em função disso, são submetidas a cargas excessivas de trabalho, somadas a períodos de recuperação e descanso insuficientes, levando-as à exaustão física, mental e emocional.

Com o intuito de enfrentar essa situação, foi proposto o Projeto de Lei (PL) n° 2564, de 2020, que pretende instituir o piso salarial nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira.  O PL está no Senado para ser avaliado e votado. Porém, embora em pesquisa realizada pelo próprio site do Senado, haja aproximadamente 984.227 pessoas favoráveis à proposta e somente 5.035 contrários, o PL tem encontrado obstáculos para sua aprovação, em especial de dirigentes de corporações e empregadores do setor privado. Entre as justificativas para esse posicionamento contrário está o argumento de que a redução da carga horária das trabalhadoras de enfermagem leva a impactos financeiros nas instituições. As entidades que defendem o PL 2564 demonstram que esse argumento é frágil, pois os impactos advindos dos adoecimentos, de uma assistência insegura, em função das jornadas exaustivas, com condições precárias que induzem a erros e danos no processo de trabalho, representam gastos maiores para instituições públicas e privadas do setor.

Ademais, há um componente de custos imensuráveis no debate sobre a jornada de trabalho e o piso salarial que se refere à dimensão subjetiva do trabalho que, quando realizado sob condições que representam reconhecimento social e financeiro, repercutem em maior satisfação, maior identificação e maior comprometimento com o que se faz. Em consequência há maior preocupação e entrega ao exercício profissional repercutindo numa assistência mais segura e de qualidade para pacientes e trabalhadoras.

A proposta de regulamentação da jornada de trabalho e do piso salarial é um processo que se arrasta há décadas. Contudo a categoria parece possuir hoje maior capacidade de articulação e convergência dada a visibilidade alcançada com os movimentos de valorização da profissão exibidas em vários países durante o ano de 2020. Deve-se lembrar que, em outras épocas, foi sinalizado o aceite desta proposta, mas apenas para os enfermeiros graduados, excluindo os técnicos e auxiliares, o que a categoria nunca aceitou.

A ausência de políticas que garantam condições dignas de atuação à categoria pode também estar relacionada a fatores como misoginia, racismo, classismo e à LGBTQIA+fobia. Pesquisas apontam que cerca de 85,6% do total de profissionais da enfermagem são mulheres e mais da metade são negras (pretas e pardas), principalmente entre técnicos e auxiliares de enfermagem. 

Investir no desenvolvimento das condições de trabalho da enfermagem, incluindo boas remunerações, planos de cargos e salários e de aperfeiçoamento profissional, significa enfrentar diretamente as disparidades sociais e as opressões às quais determinados grupos estão expostos no Brasil, pois o mercado de trabalho envolve múltiplos aspectos e norteia as condições às quais os profissionais são submetidos. 

A Pesquisa Perfil da Enfermagem (Cofen/Fiocruz), publicada em 2013, apresentou um diagnóstico da situação da enfermagem no Brasil que permitiu compreender as diversas realidades locais que se apresentam num país com dimensões continentais como o Brasil. O cenário mostrado pelo estudo gerou dados que têm subsidiado a discussão de propostas políticas para mudanças nessa profissão tão necessária, mas tão negligenciada. Observa-se hoje um contingente de profissionais mais politizado, ainda que com poucos avanços do ponto de vista das políticas públicas e de recursos humanos para a categoria.

Assim, na luta por melhores condições de vida para a população, incluindo a redução das disparidades e o acesso a assistência de saúde de qualidade, cabe planejar e adotar ações que tragam impacto efetivo para a maior força de trabalho em saúde no Brasil. Um instrumento para isso é a produção de informações relevantes, em estudos sobre demografia e mercado de trabalho em saúde em enfermagem que possibilite e  disponibilize informações confiáveis e acessíveis que poderão nortear e embasar a construção de estratégias assertivas que trarão benefícios não só aos profissionais de enfermagem, mas a toda população brasileira.

 

Alice Mariz, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da UERJ.

Kênia Lara da Silva, Professora Associada da Escola de Enfermagem da UFMG.

Márcia do Carmo Bizerra Caúla, Enfermeira Especialista em Saúde Pública,  Coordenadora da Câmara Técnica e Unidade de Processo Ético do COREN-MG. 

Mario Dal Poz, Professor Titular do Instituto de Medicina Social da UERJ.

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Profissionais de Enfermagem: a força de trabalho que sustenta a saúde no país https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/#respond Fri, 28 May 2021 10:00:03 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/download-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=401 Lidiane Toledo, Helena Maria Scherlowski Leal David, Alice Mariz e Mario Dal Poz

 

A enfermagem corresponde a 70% da força de trabalho em saúde (FTS) no Brasil e é composta, em sua maioria, por profissionais técnicos e auxiliares (75%). Entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020, o Brasil contava com 1,3 enfermeiros e 3,3 técnicos e auxiliares de enfermagem por mil habitantes, respectivamente. A enfermagem é reconhecida mundialmente como pilar importante para que os estados-nação possam alcançar o acesso e a cobertura universal de saúde. Em 2020, a crise sanitária e humanitária da Covid-19, colocou em destaque a importância da enfermagem na resposta à pandemia. Enfermeiros, técnicos e auxiliares têm estado na linha de frente da resposta à crise, seja ocupando cargos de gestão, pesquisa, vigilância epidemiológica, seja na assistência aos casos de Covid-19 leves, moderados, graves e mais recentemente liderando as campanhas de vacinação.  A atuação na linha de frente da pandemia tem trazido consequências de morbimortalidade para os profissionais de enfermagem. Até o dia 21 de maio de 2021, foram informados mais de 55 mil casos confirmados de Covid-19 e mais de 700 mortes entre esses profissionais no Brasil.

Apesar de sua notória importância e da enfermagem ser a categoria da saúde mais afetada pela pandemia no Brasil, na prática, são poucas as iniciativas que se traduzem em mudanças e valorização efetiva da profissão. Por décadas, a categoria tem sofrido com condições de trabalho inadequadas, baixa remuneração, vínculos contratuais frágeis, múltiplos vínculos empregatícios, sobrecarga e alta rotatividade, o que por vezes culminam no êxodo da profissão.

O Relatório o Estado da Enfermagem no Mundo, publicado durante a pandemia da Covid-19, apontou que há lacunas significativas de dados primários e secundários sobre a demografia e o mercado de trabalho em enfermagem em todo o mundo, o que dificulta que sejam realizadas análises epidemiológicas que informem políticas públicas e decisões de investimento público/privado na área. No Brasil, esta realidade não é diferente. Quando a pandemia se iniciou no Brasil, a maioria das evidências científicas sobre a demografia e o mercado de trabalho da enfermagem estavam desatualizadas e/ou restritas a contextos locais (estados e/ou municípios).

Em relação a dados secundários, apesar de o Brasil contar com uma ampla gama de bases de registros administrativos sobre demografia, mercado de trabalho, previdência social, educação, referentes à população em geral, tais bases são poucos exploradas no que tange os profissionais de enfermagem, além de, muitas vezes, apresentarem preenchimento inconsistente e frequentemente estarem desatualizadas. Em relação a estudos com coleta de dados primários na área de enfermagem, ampla maioria destes tem sido descritivos, com amostras de conveniência, locais, sendo necessário a realização de estudos de base populacional que possam realizar estimativas representativas dos profissionais de enfermagem não somente a nível nacional mas também em outros estratos geográficos como estados, municípios rurais, faixa de fronteira etc.

Avaliar as dinâmicas do mercado de trabalho (estoque de profissionais ativos, as áreas de atuação, condições de trabalho, vínculo empregatício), formação (superior e técnica), especialização (latu e stricto sensu), remuneração e distribuição geográfica, são essenciais para o desenvolvimento, planejamento e gestão das políticas de saúde e da enfermagem. O aprimoramento das informações científicas acerca da demografia e mercado de trabalho da enfermagem é urgente para que possamos conhecer de forma mais abrangente esta classe trabalhadora, que é maioria no SUS e no setor privado, além de apoiar gestores públicos e privados na tomada de decisão baseada em evidências e fomentar as pautas que são caras aos trabalhadores da enfermagem.

Como resultado de dois seminários realizados em 2020 pelo República.org, Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi organizada uma agenda de prioridades de pesquisa sobre políticas e gestão na área de enfermagem no Brasil. No âmbito desta agenda, está em curso a organização de um amplo estudo sobre a Demografia e o Mercado de Trabalho da Enfermagem Brasileira, que tem por objetivo avaliar indicadores relacionados à questões sobre características sociodemográficas, formação e trabalho das profissões de enfermagem. A pesquisa pretende responder questionamentos como: Como tem sido os fluxos de mercado de trabalho? Quais são as características de emprego? Quais são as condições de trabalho? Qual é a densidade e o estoque ativo da força de trabalho da enfermagem no Brasil? Quais são as características no estoque inativo (proporção de desistências/cancelamento, aposentadoria, mortalidade)? A força de trabalho de enfermagem é adequada às necessidades dos sistemas de saúde do Brasil? A sua capacidade é aproveitada? Quantos enfermeiros ocupam cargos de gestão? Quantos estão em posição de liderança na mesa de negociação das estratégias em saúde?

A pesquisa pretende ser um espaço acadêmico coletivo e colaborativo, coordenado pela Faculdade de Enfermagem e o Instituto de Medicina Social da UERJ. O projeto conta com apoio da OMS, OPAS, e do Instituto República, e no momento está em fase de construção de parceria estratégica para sua execução com o COFEN e alguns Conselhos Regionais de Enfermagem (CORENs). Já manifestaram apoio ao projeto, a ABEn Nacional, e diversas Escolas e Faculdades de Enfermagem, além de Institutos de apoio à pesquisa. A ideia é desenvolver um estudo-piloto em três Estados da Região Sudeste – RJ, SP e MG, com a participação das Faculdades de Enfermagem da USP-SP e Ribeirão Preto e da UFMG, as quais vêm colaborando desde as discussões iniciais.

 

Lidiane Toledo, Doutora em epidemiologia.

Helena Maria Scherlowski Leal David, Professora Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Alice Mariz, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Mario Dal Poz, Professor Titular do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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