Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Panorama atual e desafios da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/12/panorama-atual-e-desafios-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra/#respond Fri, 12 Nov 2021 08:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/covid-negros-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=586 Ionara Magalhães

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) enumera um conjunto de lutas históricas dos movimentos sociais negros. No campo de disputas por um projeto de sociedade equânime e democrática, essa luta representa um importante marco político no enfrentamento do racismo estrutural. A PNSIPN é uma política transversal, contra-hegemônica, fundamentada no reconhecimento do racismo como determinante da precariedade das condições de saúde da população negra. A PNSIPN tem caráter específico e compensatório, pois as políticas universalistas não têm alcançado populações vulneráveis e acabam por reproduzir as iniquidades. A PNSIPN visa a assegurar os princípios antirracistas e não discriminatórios, correspondendo, portanto, a uma ação afirmativa no SUS.

Os dados de morbimortalidade (índice de pessoas mortas em decorrência de uma doença específica dentro de determinado grupo populacional) da população negra revelam a insuficiência e a ineficiência de ações governamentais para redução das iniquidades étnico-raciais. Não existe predisposição nata ao adoecimento e mortalidade precoce das pessoas negras. Com efeito, há um pequeno elenco de morbidades determinadas geneticamente. Todavia, prevalecem doenças e agravos sociais resultantes do racismo que estrutura as desigualdades sociais. 

Se a saúde é determinada por políticas macroeconômicas, por capital social e cultural, por condições de vida, ambiente e trabalho moldadas pela distribuição de dinheiro, por recursos e por relações de poder, as condições de saúde da população negra têm correspondência direta com as iniquidades sociais, e suscitam política específica. Nesse sentido, a institucionalização da saúde da população negra no SUS aponta para o cuidado preventivo, assistencial e promocional da saúde, previsto nos planos operativos da PNSIPN.

Após doze anos de instituição, a PNSIPN foi efetiva em apenas 57 dos 5.570 municípios brasileiros. Os problemas persistem: falta de financiamento, insuficiência de suporte técnico, falta de comitês técnicos estaduais e municipais de saúde da população negra, desconhecimento da população usuária do SUS sobre a PNSIPN e, sobretudo, a cultura do racismo institucional. Os comitês técnicos de saúde da população negra têm caráter deliberativo e executivo, representam a interlocução entre as comunidades negras e as instituições de governo, além de que visam a garantir a implementação da política. Todavia, em 2018, não havia 10% dos comitês técnicos de monitoramento em todos os municípios. Por certo, uma investigação atual revelaria dados ainda mais estarrecedores.

A gestão da PNSIPN deve ser compartilhada entre União, estados e municípios, e prevê o exercício e fortalecimento do controle social, da produção da informação, do conhecimento científico e tecnológico em saúde da população negra, e da valorização dos saberes e práticas populares de saúde, inclusive das religiões de matrizes africanas. Além disso, a política preconiza o monitoramento, a avaliação das ações referentes ao combate ao racismo nas distintas esferas de governo e a garantia do amplo acesso da população negra às ações e aos serviços de saúde.

No bojo da análise da implementação da PNSIPN, destaca-se que muitos sistemas de informação em saúde não dispõem do quesito “raça/cor da pele”. Tampouco há esforços da gestão em fazer o registro compulsório deste campo e sanções pelo não cumprimento do preenchimento, estabelecido pela Portaria 344/2017. Além disso, denota-se a necessidade de melhora da coleta, do processamento e da análise dos dados desagregados por raça/cor da pele/etnia para a produção, do monitoramento, da avaliação de indicadores e das metas destinadas à promoção da equidade étnico-racial na saúde.

Um grande entrave corresponde à inclusão da temática “relações étnico-raciais, racismo e saúde da população negra” na educação permanente voltada aos trabalhadores , gestores e usuários  nos currículos de formação dos cursos de saúde. Essas temáticas são ignoradas pelas instituições ou não reconhecidas como fundamentais pela sociedade brasileira. 

A implementação da PNSIPN implica o fortalecimento do SUS – o maior patrimônio público e maior política social do país. Entretanto, os ataques ao SUS, traduzidos pelo subfinanciamento crônico e desfinanciamento, pela destituição dos direitos sociais, civis e políticos, e pela adoção de políticas antidemocráticas e conservadoras, atingem diretamente a população negra e, consequentemente, fragiliza o processo de implementação da PNSIPN. 

É premente que, para além dos comitês técnicos, das organizações sociais e dos movimentos negros, o Estado estabeleça mecanismos institucionais de gerenciamento e monitoramento da implementação da PNSIPN. Logo, seria a implementação da PNSIPN uma questão técnica ou política? O maior desafio da PNSIPN é, incontestavelmente, a sua implementação, que esbarra na estrutura, disposição e política institucional desfavoráveis. Seguramente, sem a devida implementação e avaliação, o ciclo da política não se completa.

Portanto, no panorama atual de implementação da PNSIPN, observam-se ações descontínuas, isoladas, descoordenadas e o descompromisso governamental com  a sua implementação. O fracasso no processo de implementação da PNSIPN representa uma ameaça ao projeto civilizatório, Muitos avanços têm sido desconstituídos e prejudicado o exercício do direito à saúde da população negra. Nessa correlação de forças, segue em curso uma longa disputa pela democratização da saúde, pelo resgate da credibilidade institucional e pela efetivação de uma política de legitimidade histórica.

 

Ionara Magalhães é professora Adjunta da UFRB, membra do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra e do GT Racismo e Saúde da ABRASCO

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SUS: hora de avançar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/#respond Wed, 03 Nov 2021 10:00:37 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/sus-agencia-brasil-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=564 Ricardo Oliveira

 

O adiamento de cerca de 1,6 bilhão de procedimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), segundo estimativas do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), em consequência da pandemia de Covid-19 acrescenta-se às dificuldades de acesso já existentes. Espera-se, portanto,  um cenário de maiores restrições para o atendimento das necessidades de saúde da população brasileira nos próximos anos. 

Por outro lado, a atual crise sanitária criou condições para avançar na qualidade e na eficiência do atendimento aos usuários do SUS, em função, pelo menos, das quatro questões a seguir:

1- A superação da pandemia passou a ser chave para o enfrentamento das crises social e econômica e para a retomada do crescimento econômico e dos empregos, elevando a prioridade das políticas públicas de saúde junto aos governantes.

2- A necessidade, o interesse e a valorização do SUS pela população levaram a mídia, os governantes e os líderes políticos a se mobilizar com mais ênfase no debate sobre as políticas de saúde. Isso pode ser constatado pela criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado e pelo  volume de horas dedicadas à cobertura da pandemia pela imprensa.

3- A crise sanitária teve o efeito de conscientizar a população em relação à importância do autocuidado. Higienizar as mãos com álcool gel ou sabão, usar máscaras e manter distanciamento social se incorporaram como hábitos no dia a dia, mostrando a necessidade de cada um cuidar da sua saúde e da coletividade. O autocuidado é um comportamento fundamental para ajudar o SUS a superar o desafio do atendimento aos seus usuários, porque reduz a demanda ao sistema.

4- A existência de um conjunto de propostas com ampla aceitação acerca da reorganização do modelo de atenção, gestão e financiamento do SUS, a saber: a) superar a fragmentação entre os níveis de atendimento, integrando a atenção primária, especializada e hospitalar; b) implantar um modelo de atenção adequado para tratar as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs); c) organizar as Redes de Atenção (RAS) a partir das regiões de saúde; d) considerar a Atenção Primária à Saúde (APS) como coordenadora da RAS; e) aumentar a informatização da gestão e da prestação dos serviços; f) fortalecer a gestão tripartite; g) aprimorar o controle social; h) prover financiamento adequado; i) fomentar o autocuidado; j) implantar a gestão por resultados, tendo em vista o aumento da qualidade e da eficiência na prestação de serviços.

Essas propostas são bastante complexas e demandam tempo para efetiva consolidação. Por isso, concomitante  a elas, medidas emergenciais  devem ser pensadas para suprir a demanda por serviços de saúde no curto prazo, como consultas, exames, internações e cirurgias.

A pandemia mostrou a necessidade de aumentar o investimento científico, tecnológico e industrial no setor da saúde para desenvolver conhecimento e capacidade de produção de bens e serviços no Brasil. A dependência externa da produção de insumos básicos e fármacos se provou ineficaz para atender as necessidades do SUS.

Para aproveitar a conjuntura favorável ao SUS, é necessário que a comunidade da saúde pública se mobilize, tendo em vista a busca por um consenso político em relação às propostas que melhorem a prestação de serviços, garantam sua implantação ao longo do tempo e contribuam com o debate junto ao Congresso Nacional.

Essa mobilização deve ser compreendida como uma obra coletiva, uma vez que depende da liderança e do comprometimento do Ministério da Saúde (MS), assim como de governadores e prefeitos, gestores e servidores do setor, órgãos públicos que fiscalizam e controlam a gestão e o exercício das profissões da área e, por fim, da fundamental participação da sociedade. 

Apenas o setor público não vai conseguir atender as demandas dos serviços agora e no futuro. Portanto, faz-se necessário reunir todos os parceiros que possam colaborar na superação desse desafio.

O MS, em função do seu papel de coordenador nacional das políticas de saúde, deveria tomar a iniciativa de convidar os representantes do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONSAD), do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e do Conselho Nacional de Saúde (CNS) para o debate sobre como superar o enorme desafio na prestação de serviços do SUS. Não há tempo a perder!

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo entre 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde, FGV 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Cuidados adequados e personalizados para o câncer de mama https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cancer_mama-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=558 Vilmar Marques de Oliveira

 

O preconceito e a desinformação ainda são obstáculos para as mulheres – e para toda a sociedade – em relação ao câncer de mama. O estigma em torno de uma doença que pode ser grave e afeta diretamente um dos maiores símbolos da feminilidade atrapalha de várias maneiras: desde o deixar para depois a realização de exames que deveriam ser periódicos até barreiras emocionais que, uma vez feito o diagnóstico, impedem que essa mulher seja protagonista no seu tratamento.

O agravante é que o câncer de mama é uma doença complexa. Existem diferentes perfis de tumor e momentos específicos, que envolvem diferentes decisões. Outra questão é o acesso às opções de tratamento e a própria adesão à conduta escolhida, considerando tratar-se de uma doença tempo-dependente e que não espera nada, nem ninguém, para progredir. Ela é mais rápida ou mais lenta a depender das características que se apresentam em cada caso.

Por isso é que se fala em jornada da paciente com câncer de mama. Uma mulher que é única e tem uma história só sua, mas que deve e pode buscar os cuidados mais adequados e personalizados para o seu perfil. É certo que, nesse caminho, desinformação e prejulgamento fragilizam. Mas diálogo, conhecimento, autocuidado e rede de apoio efetiva, seja de familiares, amigos, colegas de trabalho e mesmo da equipe de saúde, contribuem para a vida antes, durante e depois do câncer. Uma vida que pode ser plena.

Esse olhar coletivo sobre o câncer de mama como um tema de interesse de toda a sociedade é fundamental para a efetivação e o aprimoramento das políticas públicas relacionadas à linha de cuidado da patologia (rastreamento, diagnóstico e tratamento), bem como à navegação das pacientes no sistema de saúde. Embora tenhamos importantes leis aprovadas e um sistema público e universal, ainda há muito a avançar para salvar um número maior de mulheres.

O câncer de mama é o mais frequente entre as brasileiras, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), e ainda causa a morte de 20 mil mulheres todos os anos. A estimativa de novos casos para 2021 é de aproximadamente 66 mil. Embora seja rastreável desde o início a partir da mamografia de rastreamento, o diagnóstico precoce permanece ocorrendo bem menos vezes do que nos estágios avançados da doença.

A ciência vem fazendo a sua parte. O planejamento adequado logo após o diagnóstico, associado ao melhor tratamento para o perfil da paciente, permite gerenciar o câncer de mama com maior probabilidade de cura ou controle. Sendo ou não invasivo, as chances de cura são elevadas (aproximadamente 95%) quando a detecção ocorre em fase precoce. Cada vez mais a medicina entende as alterações genéticas nas células que originam e caracterizam os tipos de tumores, conhecimento este que possibilita tratamentos mais adequados e eficientes, que muitas vezes associam terapias antes e/ou após a cirurgia, a depender de cada caso.

Para ilustrar a relevância deste conhecimento, podemos citar as pacientes com um biomarcador específico, chamado HER2+. Mulheres cujos tumores apresentam esta mutação podem se beneficiar de terapias direcionadas a essa alteração em diferentes etapas da doença. Quando diagnosticado em estágio inicial, o tratamento correto, no momento mais adequado, pode, inclusive, resguardar pacientes com alto risco de recorrência da doença de evoluir para um estágio metastático, aproximando-as da cura.

Por exemplo, mulheres que precisam iniciar o tratamento antes da cirurgia, pelo fato de terem tumores maiores e/ou linfonodos comprometidos, com o intuito de aumentar suas chances de cura e possibilitar uma cirurgia conservadora, podem ainda apresentar células tumorais no momento da cirurgia, o que indica um risco maior de recorrência. Por isso, essas pacientes precisam de um tratamento de resgate após a cirurgia, para então reduzir as chances de progredir para cenários metastáticos. Todo esse planejamento terapêutico personalizado, feito pela equipe que acompanha a paciente, é essencial para garantir que cada pessoa receba o tratamento mais adequado de acordo com as características do seu tumor.

Não poderia finalizar este texto sem esclarecer, também, que qualquer mulher pode ter câncer de mama. A maioria dos tumores – 90% – não têm origem hereditária. São fatores de risco a alimentação de má qualidade, a ausência de atividade física regular, o excesso de peso, a exposição a hormônios (estrogênios), o tabagismo e o uso excessivo de bebidas alcoólicas, entre outros.

Contudo, não é possível precisar a causa da doença e, por isso, precisamos de uma nova mentalidade. Ao mesmo tempo em que é necessário adotar medidas preventivas que combatam esses fatores de risco – e quanto antes, melhor –, devemos evitar que essa mulher que apresenta o câncer de mama se sinta culpada.

Diante disso, são essenciais movimentos como o “Vem Falar de Vida”, que disseminam informações de qualidade sobre o tema, reverberam ações de múltiplos signatários unidos por esse propósito e fortalecem a mensagem de que o câncer de mama não precisa ser sinônimo de fracasso, de morte ou de mutilação. Existem meios para que cada vez mais histórias de mulheres sejam transformadas. Discutir o acesso a eles é responsabilidade de todos nós.

 

Dr. Vilmar Marques de Oliveira é Chefe de Clínica Adjunto do Hospital da Santa Casa, Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e atual presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.

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Cuidados Paliativos em debate: como organizar os sistemas de saúde para a realidade global https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/cuidados-paliativos-em-debate-como-organizar-os-sistemas-de-saude-para-a-realidade-global/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/06/cuidados-paliativos-em-debate-como-organizar-os-sistemas-de-saude-para-a-realidade-global/#respond Wed, 06 Oct 2021 10:00:55 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/sus_crise-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=543 Alessandra Pereira da Silva e Mario Dal Poz

 

Os cuidados paliativos ganharam repercussão na mídia devido a informações equivocadas sobre forma e conteúdo dessa área de conhecimento. Tomamos isso como uma oportunidade para esclarecer a relevância do papel de profissionais paliativistas no contexto nacional e internacional e afastar eventuais tentativas de nomear  os cuidados paliativos como práticas reprováveis do ponto de vista ético e científico.

Para enfrentamento do desafio global de ofertar serviços de saúde a uma população longeva, com doenças crônicas e comorbidades, se faz primordial a discussão sobre os Cuidados Paliativos. Segundo estimativa da Aliança Mundial de Cuidados Paliativos, há 20 milhões de pessoas que precisam desse tipo de assistência no mundo anualmente. Os adultos acima dos 60 anos representam 69% e as crianças 6% das pessoas que precisam do tratamento para diversas doenças. A maior proporção de adultos que demandam esse tipo de tratamento está em países de baixa e média renda, como o Brasil. Em 2014 a Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que somente 10% dos que precisam dos cuidados paliativos no mundo recebem o tratamento. A dimensão das doenças crônicas na saúde global e sua relação com o aumento da demanda para cuidados paliativos levam à necessidade de divulgar conceitos corretos para profissionais de saúde e para a sociedade, bem como  organizar os sistemas de saúde para essa realidade.

Em 1990 a OMS definiu um conceito para cuidados paliativos, atualizado em 2002: “Cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos”. Pela abrangência da oferta assistencial prestada, os cuidados paliativos são importantes desde o diagnóstico, tanto para a equipe manejar as indicações de forma assertiva como para pacientes e familiares se sentirem acolhidos e partícipes do tratamento. Porém, devido a fatores técnicos e subjetivos, tais como a formação de profissionais da saúde voltada majoritariamente para a cura e os tabus familiares, sociais e religiosos que envolvem a finitude, há vários obstáculos para reconhecer e aceitar o tratamento em questão. Isso pode ser percebido em expressões consagradas como “fora de possibilidade terapêutica” (FPT), que ainda hoje é largamente utilizada, negligenciando o fato de a paliação constituir uma terapêutica, embora sem um horizonte de cura.

Observa-se que nos dias atuais ainda há um descompasso entre conceitos e expressões, que atrelam os cuidados paliativos necessariamente à morte e não a uma possibilidade de cuidar do ser humano com respeito a sua dignidade até a finitude e para além dela, com atenção ao luto das famílias. Um exemplo é a expressão “prolongamento da vida” que vai de encontro ao consenso atual sobre cuidados paliativos e pode ser confundida com a utilização excessiva e desnecessária de recursos tecnológicos disponíveis sem benefício direto ou indireto, denominada “futilidade terapêutica”.  

O Conselho Federal de Medicina (CFM) na Resolução 1805/2006 permite ao médico limitar ou suspender tratamentos que prolonguem a vida na fase terminal de doenças graves e incuráveis, com garantia de uma assistência integral no alívio do sofrimento. Os cuidados paliativos oncológicos foram inseridos como componente do cuidado integral na Portaria nº 874 de 2013. A partir desse marco no Brasil, os cuidados paliativos foram finalmente consagrados como uma modalidade de tratamento. O diferencial é que a utilização de recursos terapêuticos com foco exclusivo para a cura foi ampliada para a oferta de tratamento digno quando não há possibilidade de recuperação da doença, visando o alívio do sofrimento, com protagonismo do paciente nas decisões e inclusão da família na oferta de assistência pela equipe.

Dentre os princípios dos cuidados paliativos, a Resolução do MS nº 41 de 2018 repudia as futilidades diagnósticas e terapêuticas, com ênfase à afirmação da vida, à aceitação da morte como um processo natural e ao respeito à evolução natural da doença, sem acelerar nem retardar a morte. Dessa forma, os cuidados paliativos constituem um suporte para que o paciente viva com autonomia, e o mais ativamente possível de acordo com as limitações impostas. O papel dos cuidados paliativos na atenção integral foi evidenciado na 67ª Assembleia da OMS, realizada em 2014, com a recomendação para o desenvolvimento, fortalecimento e implementação de políticas públicas para apoiar os sistemas de saúde, em todos os níveis.

Em comparação com o cenário internacional, os cuidados paliativos no Brasil são realizados com estrutura frágil, serviços numericamente insuficientes e sem a prática difusa de referência e contrarreferência desde a atenção primária, passando pelas emergências, hospitais especializados e assistência domiciliar. No âmbito da Rede de Atenção à Saúde (RAS), a proposta para organizar as diretrizes dos cuidados paliativos no SUS, no contexto de continuidade e integralidade da assistência, foi apresentada na Resolução nº 41 de 31 de outubro de 2018. Essa norma define pontos importantes do que essa modalidade de tratamento preconiza como:  multidisciplinaridade, prevenção e alívio do sofrimento, início da oferta dos cuidados paliativos a partir do diagnóstico e abordagem e sintomas de origem física, psicossocial e espiritual.

O objetivo é que os cuidados paliativos estejam integrados na RAS para melhorar a qualidade de vida dos pacientes e familiares, com assistência humanizada, abrangência de todas as linhas de cuidado e todos os níveis de atenção, baseada em evidências e com acesso equitativo. Dessa forma, há previsão de oferta de cuidados paliativos na atenção básica, na atenção domiciliar, em serviços ambulatoriais, urgências, emergências e atenção hospitalar com acompanhamento longitudinal, coordenação de cuidados e plano terapêutico ajustado à complexidade das necessidades e possibilidades do paciente e dos familiares.

 

Uma vez que a melhoria da qualidade de vida associada à longevidade deverá acarretar o aumento da incidência de doenças crônicas e constituirá um desafio para os sistemas de saúde, o dimensionamento do quadro de pessoal para o controle da doença ganha relevância. Por isso, a preocupação sobre suficiência ou insuficiência de profissionais para acolher e tratar pessoas com câncer deve estar na pauta do dia.

Os cuidados paliativos necessitam de uma equipe capacitada e dimensionada adequadamente para ofertar serviços de qualidade aos pacientes e familiares. Ao mesmo tempo, a concepção da paliação deve estar disseminada entre todos os profissionais, inclusive os que atuam nas linhas de tratamento com objetivo de cura. Uma diretriz política e de organização de serviços deve ser a atenção ao cuidado dos trabalhadores, com reconhecimento do impacto da rotina e da carga de trabalho em graus variados nas questões físicas, psicológicas e sociais dos profissionais de saúde. Equipes mal dimensionadas, distribuídas inadequadamente e com carga de trabalho elevada tendem a apresentar maior grau de sofrimento, adoecimento e absenteísmo, sobrecarregando as equipes e afetando a prestação de cuidado e os resultados de saúde.

Nas discussões sobre o acesso global aos cuidados paliativos há uma agenda de pesquisa que está avançando, com estudiosos que se dedicam a projetar a necessidade de cuidados paliativos até 2060, baseados no conceito e metodologia da Comissão de Acesso Global ao Cuidado Paliativo e Alívio da Dor. O foco do estudo é minimizar o sofrimento da população relacionado às doenças que acometem de forma mais expressiva idosos e pessoas com demência nos países de baixa renda.

 

Perspectivas

Acompanhando a tendência global, o sistema de saúde brasileiro precisará incluir, num futuro próximo, os cuidados paliativos como um tratamento que inicia com o diagnóstico de uma doença crônica e acompanha o paciente até a prestação de cuidados de fim de vida e suporte aos familiares no processo de luto. Para isso, é urgente consolidar e normatizar uma Política Nacional de Cuidados Paliativos, disseminar o tratamento como possível de ser iniciado em todos os níveis de atenção à saúde, promover ações educativas e conscientizar profissionais que lidam com quaisquer doenças crônico-degenerativas sobre a importância do tema. Além disso, a valorização dos profissionais que atuam na área pode ser traduzida pelo dimensionamento e pela distribuição adequada de equipes e pela melhoria das condições de trabalho tendo em vista a peculiaridade das atividades realizadas. Com o aprofundamento dos debates em instâncias científicas, a sociedade se beneficiará com profissionais preparados, cuidado tempestivo e um sistema de saúde capaz de ofertar atenção integral às doenças crônicas, considerando toda a complexidade envolvida.

 

Alessandra Pereira da Silva, enfermeira, Doutora em Saúde Coletiva (UERJ) e Analista de Ciência e Tecnologia do INCA.

Mario Dal Poz, Professor Titular no Instituto de Medicina Social.

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A privatização da formação em saúde no Brasil: tendências e desafios https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/a-privatizacao-da-formacao-em-saude-no-brasil-tendencias-e-desafios/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/29/a-privatizacao-da-formacao-em-saude-no-brasil-tendencias-e-desafios/#respond Wed, 29 Sep 2021 10:00:27 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/4bb6474b-8770-41fe-ae8d-8c6ec626fa89_1140x641-compressed-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=536 Mario Roberto Dal Poz e Leila Senna Maia

 

Nunca foi tão necessário e crítico refletir sobre os desafios do processo de formação e educação das profissões em saúde no Brasil, em especial na medicina, enfermagem e odontologia, dadas as recentes tendências de mudança verificadas nesse campo, e impulsionadas pela privatização do setor.

Nas últimas décadas, o crescimento global das Instituições de Ensino Superior Privadas (IESP), sobretudo aquelas com fins lucrativos, ampliou o debate sobre a natureza dos bens públicos e privados na educação superior, especialmente sobre o papel do setor privado e o seu impacto na formação acadêmica. O sistema educacional responde tanto às exigências do sistema de saúde quanto à dinâmica do mercado de trabalho, cruciais na transformação do sistema de saúde e no desenvolvimento econômico e social.

No Brasil, os cursos da área da saúde acompanharam de forma geral a tendência do ensino superior, tanto em relação ao aumento de matrículas quanto no crescimento da participação das instituições privadas na oferta de cursos e de matrículas efetivas. Entre os anos de 1991 e 2014, a proporção de cursos privados na área da saúde passou de 51% para 72% e o número de vagas foi de 61% para 91%.

O fenômeno da privatização na educação superior em saúde tem se caracterizado pelo crescimento dinâmico e acelerado. Suas tendências de expansão estão relacionadas, especialmente, às políticas públicas, que influenciam, e mesmo favorecem, o aumento dessas instituições. 

A expansão do ensino superior privado no Brasil, em número de instituições, vagas e cursos, foi justificada pela ampliação e democratização do acesso ao ensino superior e fortalecida pelo arcabouço político, jurídico e institucional. Somaram-se ao cenário incentivos, imunidades e isenções fiscais; repasses estatais ao setor privado, com a implantação de políticas de financiamento e bolsas estudantis e linhas de crédito, a exemplo dos Programas de Melhoria Institucional implementados pelo BNDES.

Políticas e programas governamentais contribuíram, a partir de 1999, para o crescimento do setor privado de ensino por meio de aporte de recursos governamentais, isenção fiscal e redução de até 90% do valor da dívida ativa com a União em troca da oferta de bolsas parciais ou integrais a estudantes das instituições participantes. 

Os principais programas e políticas que auxiliaram na retenção de estudantes, na redução de vagas ociosas e das taxas de evasão e de inadimplência foram o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) instituído pela Lei nº 10.260/01 27; o Programa Universidade para Todos (PROUNI), instituído pela Lei n° 11.096/2005 28, e o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (PROIES), instituído pela Lei no. 12.688/2012, 29.

No caso específico das escolas médicas, além do Programa de Financiamento Estudantil (FIES) e o Programa Universidade para Todos (PROUNI), o governo federal disponibilizou ainda o FIESmed, um programa específico instituído por meio da Lei n° 12.202/2010, para abatimento mensal de 1% do saldo devedor, incluídos os juros devidos no período, da dívida dos médicos que financiaram seu curso pelo Fies. A condição é que estes passassem a atuar em Estratégia de Saúde da Família (ESF) em municípios definidos como prioritários pelo Ministério da Saúde (MS) ou que fossem médicos residentes matriculados em programa credenciado pela Comissão Nacional de Residência Médica e  cursando uma das 19 especialidades prioritárias para o SUS. O FIESmed previa ainda a extensão da carência de pagamento.

Em 2013 foi instituído o Programa Mais Médicos (PMM) que, além do recrutamento emergencial de médicos para atenção assistencial em regiões prioritárias do país por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), autorizou a expansão da oferta de cursos e vagas de medicina em instituições de ensino superior (IES) públicas e privadas. Dois anos após a promulgação dessa Lei foram criadas 5.300 novas vagas para a graduação em medicina — 68% em instituições privadas. O aumento no número de cursos privados de medicina de 2000 a 2017 foi de 200%.

No entanto, o número limitado de estudos e evidências sobre a dinâmica dos mercados educacional e de trabalho em saúde nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento dificulta compreender as suas relações com os sistemas de saúde. Recentemente, o grupo de pesquisadores sobre saúde global e força de trabalho em saúde publicou três estudos buscando demonstrar a pertinência e a abrangência do processo de privatização das escolas de medicina , odontologia e enfermagem, fazendo uma reflexão sobre as implicações desse processo no atendimento das demandas do sistema de saúde no Brasil.

Em agosto de 2021, o Brasil dispunha de 372 cursos de medicina públicos e privados que, juntos, ofertam 39.636 vagas. Destes, 228 cursos foram oferecidos por instituições privadas responsáveis por 27.785 (70%) do total das vagas disponíveis. No mesmo período, o país contava com um total de 579 cursos de odontologia que juntos dispunham de 79.737 vagas anuais das quais 93% (74.434) eram de responsabilidade de 511 IESP.  No caso da enfermagem, foram oferecidas 211.466 vagas presenciais por meio de 178 cursos públicos e 1.193 privados. Estes últimos responsáveis por 94% (199.682) da oferta anual deste tipo de vagas. Na modalidade a distância 12 cursos privados de enfermagem disponibilizaram um total de 112.860 vagas distribuídas nacionalmente em 1.557 polos educacionais.

Em relação ao total de vagas há claramente uma tendência à concentração do setor educacional brasileiro para a formação em saúde em alguns grupos educacionais, e mais especificamente das IESP com cursos de medicina.

A expansão global dos cursos privados de medicina representa um grande desafio: como expandir o número de vagas e ao mesmo tempo garantir qualidade e acesso democrático a essa forma de educação. Por isso é relevante a constituição de uma agenda de pesquisa em âmbitos nacional e internacional que permita acompanhar os processos de reconfiguração empresarial do setor, além de  investigar as relações entre os mercados público e privado de formação, assim como a empregabilidade dos profissionais médicos pelos sistemas nacionais de saúde, correlacionando esses fatores com as necessidades assistenciais das populações. 

Como os indicadores de qualidade e desempenho do setor privado tem ficado aquém daqueles do  ensino público, é necessário realizar mais estudos sobre as avaliações realizadas pelo Ministério da Educação, bem como implantar novos procedimentos e mecanismos de avaliação, como testes de progresso aplicados pelas próprias instituições, avaliações externas para estudantes de graduação  ou credenciamento de escolas e métodos de avaliação de estudantes mais adequados às mudanças no currículo dos cursos de graduação.

Pesquisas avaliativas poderiam monitorar ou medir a implementação das propostas educacionais formuladas pela primeira vez quando as escolas são credenciadas, para verificar se as escolas e faculdades possuem a infra-estrutura mínima necessária, incluindo laboratórios e biblioteca, se estão de fato integradas ao sistema de saúde local e regional, se trabalham em conjunto com hospitais de ensino ou unidades públicas de saúde capazes de fornecer residências e experiência prática para os estudantes, e se existe um corpo docente estabelecido, com professores experientes e qualificados trabalhando exclusivamente ou prioritariamente na escola.  

Há necessidade de analisar quaisquer obstáculos para identificar novos mecanismos de democratização do acesso ao ensino superior. No caso da medicina, mesmo com os novos cursos e as novas vagas oferecidas, os procedimentos de admissão –que para as universidades públicas envolvem exames extremamente competitivos — e as altas taxas cobradas pelos cursos particulares, tendem a fomentar a desigualdade de acesso, pois favorecem os estudantes de origens mais abastadas. Como os cursos de medicina são mais competitivos e caros, poucos estudantes receberam incentivos do programa Universidade para Todos (Prouni), do Fundo de Empréstimos para Estudantes de Ensino Superior (Fies), e de programas específicos de inclusão, cotas e ações afirmativas.  

 

Mario Roberto Dal Poz é professor titular no Instituto de Medicina Social da UERJ.

Leila Senna Maia é pesquisadora no Instituto de Medicina Social da UERJ.

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Possíveis caminhos para solucionar os gargalos de implementação das Linhas de Cuidado de DCNTs na APS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/#respond Wed, 22 Sep 2021 10:00:04 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/eccbfb94-6a3c-4a17-a605-ca23957ed714-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Fernanda Leal e Helyn Thami

 

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) respondem por 3 de cada 4 mortes de brasileiros e brasileiras, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O envelhecimento da população e o aumento da prevalência de fatores de risco comportamentais — como inatividade física e alimentação inadequada —, tende a elevar, nos próximos anos, a incidência de DCNTs na população brasileira, pressionando a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma pesquisa desenvolvida pelo IEPS em parceria com a Umane (Panorama IEPS n. 2) mostrou que as Linhas de Cuidado (LC) para DCNTs — conjunto de fluxos assistenciais que manejam as múltiplas necessidades dos portadores dessas doenças — não estão plenamente implementadas nos municípios brasileiros. As Linhas de Cuidado devem atender às diversas demandas dos usuários, em diferentes níveis de complexidade, garantindo a promoção e a restauração da saúde.

Para os principais desafios encontrados são apontados os possíveis caminhos para…

1. Reduzir barreiras de acesso

A baixa cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) em alguns locais faz com que uma parte importante da população brasileira não tenha acesso a serviços essenciais. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, 40% dos domicílios não estão cadastrados na APS. É preciso eliminar barreiras de acesso aos serviços já existentes. Para ampliar a cobertura da Atenção Primária, alguns passos são cruciais: 

  • Mapear a mancha de cobertura de equipes da APS e identificar vazios sanitários; 
  • Identificar e hierarquizar vulnerabilidades, dando ênfase às áreas mais críticas; 
  • Planejar a expansão da APS, estimando necessidade de pessoal e equipamentos; 
  • Implantar uma estrutura física; 
  • Recrutar e selecionar os profissionais para integrar as novas equipes.

Para operacionalizar isso, pode-se, por exemplo:

  • Buscar financiamento para extensão de horários de atendimento (por exemplo, pelo programa Saúde na Hora, do governo Federal) e diversificar modelos de assistência (atendimento em horários estendidos e intervenções em vias públicas e demais pontos de circulação e socialização); 
  • Apostar no treinamento de profissionais, envolvendo também usuários, para redução de barreiras de acesso ligados a comportamentos dos membros das equipes.

2. Garantir profissionais com treinamento apropriado e em número adequado

O cuidado de qualidade às pessoas portadoras de DCNTs passa pela atuação de profissionais de diferentes áreas, mas na realidade dos municípios há ausência de treinamento apropriado e efetivo para atender às demandas dos usuários crônicos. Para resolver isso, é possível:

  • Atuar, junto a instituições de ensino e pesquisa, na criação de programas específicos para provisão de novos profissionais para esse nível de atenção;
  • Elaborar um plano de valorização e carreira para os profissionais atuantes na APS, visando a fixação de equipes.

Quanto aos modelos de treinamento e difusão do conhecimento, poderíamos:

  • Garantir que se apliquem protocolos baseados na melhor evidência disponível; 
  • Ter materiais simples e de consulta rápida para que os profissionais usem; 
  • Apostar em metodologias mais ativas para apoio de construção e implementação de protocolos.

3. Integrar melhor os níveis de cuidado

Integrar serviços de saúde está entre um dos maiores desafios do SUS.  No cuidado às pessoas com doenças crônicas, essa integração é absolutamente crucial para que haja bom uso de recursos e se consigam melhores resultados de saúde. Para promover essa interlocução, indicamos:

  • Garantir o compartilhamento de informações clínicas entre serviços em toda a rede; 
  • Realização de planejamento conjunto entre serviços envolvidos nas Linhas de Cuidado; 
  • Compartilhar recursos e metas entre serviços; 
  • Investir em posições de liderança para a integração.

4. Ampliar e melhorar o acompanhamento dos usuários

Uma vez que não se tem Linhas de Cuidado plenamente estruturadas, o acompanhamento de quem tem doenças crônicas fica comprometido. Acompanhar adequadamente esses usuários significa ter um calendário de ações de cuidado que contemple desde a promoção da saúde e a prevenção até a recuperação da saúde e limitação de danos. Para que isso seja efetivado, vale a pena:

  • Levantar lista de usuários diagnosticados com DCNTs nos territórios; 
  • Verificar a rotina de consultas e exames destes, além de apontar aqueles que ainda não estão dentro do padrão de cuidado preconizado; 
  • Entrar em contato com usuários para agendar consultas e atividades de acompanhamento; 
  • Realizar busca ativa daqueles que forem difíceis de contactar ou que tenham faltas às atividades.

5. Ampliar os cadastros de usuários

O cadastramento é uma função primordial da APS. A não realização dos cadastros dos usuários do território implica que estes não são rotineiramente acompanhados pelas equipes e, quando o são, são atendidos em condições de demandas mais urgentes, quando, em geral, houve um quadro de agudização que poderia ter sido evitado. Para cadastrar adequadamente os usuários orienta-se seguir dois caminhos, que devem ser implementados de modo simultâneo: cadastrar por meio de visitas dos Agentes Comunitários de Saúde às residências; e ações de mobilização que ajudem as populações mais facilmente ignoradas a obter o acesso aos serviços. 

No primeiro caso, é necessário:

  • Elaborar, junto aos ACS, um cronograma para realização de cadastros e recadastros no território, através de visitas; 
  • Monitorar a execução desse calendário; 
  • Identificar barreiras para realização de cadastros e formulação de planos de ação para mitigá-los. 

No segundo caso, é recomendado: 

  • Planejar ações para mobilizar/buscar ativamente grupos populacionais invisibilizados nos serviços; 
  • Criar estratégias de busca ativa com apoio de lideranças comunitárias; 
  • Acompanhar o aumento de cadastros e cuidado ofertado aos novos usuários.

6. Acelerar a informatização da Atenção Primária à Saúde

Informatizar é uma forma de qualificar a gestão da saúde. A informatização permite compilar e analisar informações, o que pode não só agilizar, mas melhorar a tomada de decisão. No Brasil, persistem alguns gargalos de implementação relacionados aos equipamentos e infraestrutura de conectividade. Contudo, municípios podem tentar financiamento federal por meio do Programa Informatiza APS. Ajudariam muito os seguintes  passos: 

  • Estudar o mapa de infraestrutura e hierarquizar as unidades que podem ou não imediatamente receber recursos de informatização; 
  • Inscrever-se nos programas de financiamento disponíveis; 
  • Planejar as compras de equipamentos; 
  • Estabelecer programas de treinamento para as equipes, de modo a garantir o preenchimento correto das ferramentas de gestão informatizadas e o uso das informações para tomada de decisão no nível local.

7. Aumentar a adesão ao tratamento

As doenças crônicas pressupõem tratamentos e acompanhamento de longo prazo. Por vezes, o tratamento exige mudança profunda de comportamento e impõe graus variados de efeitos colaterais. A falha de adesão ao tratamento configura, portanto, um grave problema a endereçar. Apontamos como caminhos: 

  • Diversificar estratégias de desenvolvimento de vínculo e garantia de acesso. Por exemplo, por meio de atividades coletivas e atuação em espaços de socialização dos usuários; 
  • Organização do trabalho da equipe com ênfase no protagonismo da enfermagem, que é capaz de melhorar adesão; 
  • Desenvolver habilidades de ciência comportamental nas equipes, qualificando a abordagem às mudanças de comportamento necessárias para o melhor controle das doenças. 

Esses pontos estão sumarizados no Olhar IEPS, policy brief que condensa estudos científicos e endereça recomendações para gestores de saúde. O conteúdo desse material também foi discutido no Diálogos IEPS, série de webinários temáticos do IEPS, em uma mesa composta por Michael Duncan (Médico de Família e Comunidade e assessor técnico da Superintendência de APS do município do Rio de Janeiro), Patrícia Jaime (Pesquisadora do Departamento de Nutrição da USP e vice coordenadora do NUPENS), Evelyn Santos (Coordenadora de Projetos da Umane), Arthur Aguillar (Coordenador de Políticas Públicas do IEPS) e Ricardo Gandour (jornalista e mediador).

 

Fernanda Leal, Analista de Políticas Públicas do IEPS.

Helyn Thami, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

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Desigualdade social, pandemia e o Brasil que alimenta a fome e a insegurança alimentar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/#respond Wed, 08 Sep 2021 10:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/prato5-1200x675-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=522 Agatha Eleone, Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Além da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 trouxe aos holofotes um outro fenômeno que impacta diretamente a saúde dos brasileiros: a fome. Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, naquele ano o número de brasileiros em situação de fome voltou a atingir os patamares de 2004. A chegada da pandemia no país marcou também o aumento de 27,6% do número de brasileiros enfrentando a fome, em comparação com o ano de 2018, totalizando 19,1 milhões de pessoas –quase 9 milhões de pessoas a mais do que dois anos antes, o que corresponde a 9% da população brasileira.

O levantamento Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bioeconomy mostrou que, entre os meses de agosto e outubro de 2020, 13,6% dos brasileiros maiores de 18 anos passaram ao menos um dia inteiro sem comer ou com apenas uma refeição, e 125 milhões de brasileiros enfrentaram alguma forma de insegurança alimentar, ou seja, reduziram o número de refeições consumidas por dia ou a quantidade de comida consumida por refeição, motivados pela incerteza de conseguir alimentos posteriormente.

Entre as famílias que enfrentam a insegurança alimentar, a pesquisa também destacou que a fome no Brasil tem gênero e cor –73,8% dos lares chefiados por mulheres e 66,8% por pessoas pretas. A insegurança alimentar também é maior nas residências habitadas por crianças (70,6%) e adolescentes (66,4%) e mais frequente nos domicílios do Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) do país. Ainda, na maioria desses lares a renda familiar não passava dos R$500 mensais, em contraste com o preço médio da cesta básica que, em outubro de 2020, variou de R$ 436,76 em Natal a R$ 595,87 em São Paulo.

Como consequência da insegurança alimentar, a maior parcela da população que hoje não possui renda para custear uma alimentação balanceada  recorre aos ultraprocessados. Apesar de serem normalmente mais baratos, esses alimentos são também mais pobres em nutrientes e ricos em farinhas, açúcares, gorduras, e aditivos químicos, prejudiciais à saúde quando consumidos em grande quantidade. Com isso, outras facetas da insegurança alimentar podem ser a subnutrição e a obesidade da população.  

A situação atual, certamente agravada pela pandemia, evidencia a necessidade de políticas estatais robustas e de longo prazo para combate da miséria e da fome. No entanto, vemos o Governo Federal rumando em direção contrária. Flertando com o segmento de supermercados durante participação no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento no último mês de junho, o Ministro da Economia Paulo Guedes chegou a defender a ideia de que sobras de restaurantes de classe média poderiam ser destinadas a populações vulneráveis. No mesmo evento, a Ministra da Pecuária, Agricultura e Abastecimento, Tereza Cristina, confirmou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a flexibilização de regras sobre a validade dos alimentos como uma alternativa para combater a alta dos preços e o alto índice de insegurança alimentar no país.

Diante dessas falas, é importante pontuar: ignorar a crescente desigualdade e distribuir restos de alimentos ou alimentos vencidos a pessoas pobres não resolve o problema da fome e da insegurança alimentar dos brasileiros, uma vez que esses fenômenos não decorrem simplesmente da falta de alimentos disponíveis para consumo, mas sim da falta de acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para a sobrevivência. Em outras palavras, o problema existe por sucessivos erros na condução das políticas públicas voltadas para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Tanto a fome quanto a insegurança alimentar constituem violação de Direitos Humanos, sendo a alimentação um direito reconhecido pelo Pacto Internacional de Direitos e previsto na Constituição Brasileira.

Dentre as ações que evidenciam a negligência com a saúde e a segurança alimentar do país estão as inúmeras tentativas de reformulação do Guia Alimentar para a População Brasileira — só em 2020, foram dois pedidos enviados pelo Ministério da Agricultura ao Ministério da Saúde. O documento é referência internacional por apresentar recomendações para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando não apenas aspectos nutricionais, mas também o contexto cultural, social e ambiental em que os indivíduos se inserem. Além dos ataques ao Guia, a classificação NOVA, que agrupa e classifica os alimentos pelo grau de processamento, não foi mencionada pela Sociedade Brasileira de Pediatria no Manual de Atualidades em Nutrologia Pediátrica publicado em maio deste ano.

  Além disso, um dos principais alvos do lobby da indústria de ultraprocessados é a discussão sobre a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento da incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Baseados no argumento de que as DCNT são multifatoriais, surge a tentativa de desresponsabilizar o consumo de ultraprocessados como um potencial causador de agravos, distorcendo as crescentes evidências científicas que o associam significativamente a desfechos negativos tanto para a saúde das populações quanto para o meio ambiente. Não à toa a regra de ouro preconizada pelo Guia sugere que aqueles produtos  devam ser totalmente evitados pela população.

Há quem diga que a situação atual é uma consequência gerada exclusivamente pela pandemia de covid-19. Na contramão, evidências anteriores já apontavam para a piora da situação alimentar dos brasileiros. Na linha das ações necessárias para virar esse jogo, um dos primeiros passos seria a atualização da linha de pobreza do Programa Bolsa Família, uma vez que a política, apesar de precursora, hoje conta com uma extensa lista de espera e subestima o número de pessoas que deveriam ser enquadradas no critério de recebimento do benefício. Ainda, é importante garantir o aumento de gastos federais com políticas de desenvolvimento agrário e de estímulo à agricultura familiar; e, finalmente, admitir a fome e a insegurança alimentar como problemas de saúde pública e não apenas como emergência assistencial, fomentando a execução de ações intersetoriais, bem como pesquisa e a formulação de políticas públicas com base em evidência.

 

Agatha Eleone é nutricionista, especialista em saúde da família e em gestão da atenção básica, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). 

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos  para Políticas de Saúde (IEPS). 

Rebeca Freitas é cientista social, bacharel em Direito, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, e especialista em relações governamentais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Saúde mental não é pauta “pop”: precisamos institucionalizar o debate para além da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/#respond Wed, 01 Sep 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-mental-pandemia-covid-19-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=515 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Todos já sabemos que as medidas de isolamento social impostas pela pandemia de Covid-19 agravaram o processo de adoecimento da população, mas também sabemos que o exponencial aumento de adoecimentos mentais em todo mundo não é um fenômeno recente. Estamos diante de um problema antigo e precisamos assumir as consequências de anos de descuido no campo: o debate público sobre saúde mental era um problema de saúde pública. 

Mas não estamos falando de um desafio exclusivo da área da saúde, para reduzir os danos provocados pela pandemia e atuar de forma preventiva em saúde mental temos que considerar os aspectos transversais do tema e outras agendas sociais, afinal, saúde mental permeia toda a nossa vida. Saúde, educação, sistema de justiça e segurança pública, assistência social, cultura e lazer  são setores igualmente responsáveis por criar soluções para esse desafio, assim como famílias e comunidades são indispensáveis em qualquer ação, de cuidado ou prevenção. 

O desafio no pós-pandemia é maior, mas agora também temos a oportunidade de aproveitar a atenção que a saúde mental recebeu nos últimos tempos e prolongar esse olhar a longo prazo. Não podemos deixar que a luz posta neste tema se apague, precisamos institucionalizar o debate sobre saúde mental no Brasil em todos os setores sociais, de forma sustentável e estrutural, e colocá-lo em pauta em todos os lugares. 

Em relação a saúde mental no “pós-pandemia”, ainda é cedo para diferenciar o que são reações “esperadas” frente ao estresse causado pela pandemia e o que pode ser considerado um transtorno, por isso devemos ter cautela ao já querer pular para diagnósticos precipitados. Mas já sabemos que devemos a chamada “quarta onda de COVID”, durante 3 e 4 anos, que resulta dos efeitos colaterais deste período de isolamento social, que incluem aumento de ansiedade e depressão, de transtornos obsessivos compulsivos e obesidade, e outras consequências à saúde em decorrência da pandemia. 

Fonte: Tseng, 2000.

Nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, aponta que é possível estimar o agravamento no cenário da saúde mental no Brasil, após a pandemia. Até 80% da população poderá desenvolver sofrimento psíquico, automutilação, conflito interpessoal e tentativa de suicídio. Cerca de um quarto da população (entre 15% e 25%) poderá se encontrar em maior risco, com sua estrutura psíquica mais fragilizada, e precisar de suporte imediato para evitar colapsos maiores e entre 1% e 4% da população diz respeito a pessoas que poderão precisar de atenção especializada. 

 

Efeitos a longo prazo 

Além dos efeitos colaterais de curto prazo, teremos também que lidar com a sociabilidade e a solidão no pós-pandemia. Mal começamos a perceber os impactos deste longo período de isolamento social na nossa capacidade de nos relacionar e existem muitas questões em aberto: de que maneira as mudanças de comportamento adotadas vão impactar nosso contato físico e trocas de afeto? Nossas rotinas e redes de apoio? Ou ainda, que tipo de soluções serão criadas a partir da perspectiva de que é possível fazer tudo de forma remota? Não precisamos mais nos encontrar presencialmente, tudo pode ser mediado por tecnologia? Como lidaremos com o pertencimento, fator tão relevante para a proteção da nossa saúde mental?

Especialmente com relação aos adolescentes, que propostas estamos criando para lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) já percebida antes da pandemia mais profundamente agrava com o isolamento social? Que tipo de lugar eles ocuparão no futuro da sociedade, em um contexto de precarização do acesso à sua educação e de redução das oportunidades de emprego? Dados do relatório Caminhos em Saúde Mental apontam o afastamento e a evasão de crianças e adolescentes, assim como o aumento do trabalho infantil e doméstico e as violências domésticas, como desafios agravados pela pandemia. 

Para além de “apagar incêndios”, pensando um pouco mais no futuro, precisamos, antes de tudo, afinar nossa compreensão coletiva sobre o que é saúde mental e como podemos incorporá-la ao nosso cotidiano de forma mais consistente. Independentemente da definição que se adote, é indispensável afirmar que a saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é o resultado da complexa interação entre esses aspectos individuais e as condições de vida das pessoas, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva e o acesso a bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária. 

Por isso não tem como melhorar os índices de educação, trabalho, alimentação, moradia, entre tantos outros,sem olhar de forma permanente para a saúde mental, o que nos leva de volta ao começo: precisamos urgentemente atuar na prevenção em saúde mental. Se não começarmos a prevenir os adoecimentos do futuro agora, chegaremos nele apagando incêndios tanto quanto hoje, sempre respondendo às demandas e não atuando de forma estrutural. 

E ainda teremos que continuar lidando com os velhos estigmas e preconceitos acerca do tema, que persistem em aparecer, mesmo com o crescimento do debate sobre saúde mental. Apenas citando alguns, a relutância em procurar ajuda ou tratamento, a falta de compreensão por parte da família, amigos e comunidade e, muitas vezes, a falta de preparo dos próprios cuidadores e profissionais “porta de entrada” da saúde para lidar com saúde mental são os questões que irão persistir no debate da saúde mental, mesmo no pós-pandemia. 

Devemos ressaltar que atuar em saúde mental não é um projeto individual com começo, meio e fim, é um projeto coletivo para vida toda. Precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de trabalhar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. A saúde mental de cada um de nós depende da articulação permanente entre os indivíduos, a comunidade e todos os setores sociais, trabalhando juntos para criar condições para uma vida digna e uma realidade social mais justa para todas as pessoas.  Como podemos fazer este debate tão central perdurar nos nossos lares, trabalhos e relações sociais?

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

 

 

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Saúde mental e violências: aprofundando a compreensão sobre algumas das origens e atravessamentos dos sofrimentos psíquicos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/#respond Fri, 27 Aug 2021 10:00:00 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/psychological-abuse-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=508 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O combate à violência contra as mulheres teve uma conquista importante com a sanção, no final de julho deste ano, da Lei de Criminalização da Violência Psicológica (14.188/2021). A nova legislação facilita o registro de boletim de ocorrência por violência psicológica e também a obtenção de medidas protetivas de urgência. A lei contempla mais aspectos da violência psicológica, já previstos na Lei Maria da Penha, mas que não categorizava um tipo penal para condutas como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância e isolamento. Assim, na imensa maioria dos casos, essas práticas só passaram a configurar crimes com a nova lei.

O números de adoecimentos mentais e de violência contra as mulheres aumentou durante a pandemia. Por isso, aprofundar o debate sobre violência psicológica torna-se importante para ampliar as práticas de cuidado da saúde mental das mulheres. Já no caso dos jovens, as múltiplas violências, como violência sexual e doméstica e bullying, são identificadas como as principais determinantes sociais para a sua saúde mental. 

Observar as interseccionalidades e as agendas compartilhadas é fundamental para compreender com mais profundidade como as dimensões do sofrimento psíquico se relacionam com questões estruturais. O adoecimento mental de mulheres em decorrência de violência obstétrica, por exemplo, não deveria ser visto como um problema de saúde pública? Não deveríamos falar do impacto na saúde mental e do sofrimento de mães de jovens negros que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, como uma consequência de problemas na segurança pública? A violência psicológica contra as mulheres, por exemplo, é uma das formas da violência de gênero e deve ser prevenida e tratada a partir do cruzamento com outras esferas desse problema. 

Existem outras formas de violência além da psicológica: institucional, sexual, física, patrimonial e moral. Há uma infinidade de manifestações de cada uma dessas categorias. Além disso, podemos pensar sobre as violências cotidianas, comum a todas as pessoas, como por exemplo a constante minimização de nossos sofrimentos para continuar a fazer o que é preciso (trabalhar, estudar, cuidar da família) ou ainda as violências institucionais. 

A falta de acesso a tratamentos adequados de saúde mental no sistema público, a exposição à violência urbana generalizada e as condições precárias de transporte, educação e cultura a que a maior parte da população é submetida, podem ser vistas como violências institucionais que impactam a nossa saúde mental. Nesse contexto, as minorias sociais são particularmente afetadas: mulheres, crianças e adolescentes negligenciados, pessoas negras e LGBTQIA+ são alguns exemplos de grupos que se tornam mais suscetíveis ao adoecimento mental quando pensamos nesse tipo de violência. 

 

Exercitando olhares segmentados: violências contra adolescentes e mulheres  

Consciente de que é preciso estabelecer prioridades para uma atuação estratégica, o Instituto Cactus fez a aposta institucional de olhar, especialmente, para adolescentes e mulheres, públicos prioritários para pavimentar o caminho de transformação do cenário da saúde mental no Brasil. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, entre 2011 e 2018, enquanto para os adolescentes (de 15 a 19 anos) a violência física representou 59% dos atendimentos registrados, no caso dos pré-adolescentes (de 10 a 14 anos) o percentual foi de 36% do total. Quando se analisam os dados de violência autoprovocada no Brasil, conseguimos ver uma outra ponta desse desafio: são mais de trezentas mil notificações, das quais 45% dos episódios foram realizados por jovens entre 15 e 29 anos –entre os quais 67% são mulheres. Indo ao extremo do problema, dados mostram que o suicídio é  a segunda causa mais frequente de mortes de jovens de 15 a 29 anos no mundo todo –e 7 a cada 10 casos acontecem em países de baixa e média renda. 

No caso de meninas adolescentes, é necessário considerar que a violência de gênero começa, muitas vezes, ainda na infância, atravessa a transição para a juventude e se estende por toda a vida. Mulheres que foram expostas a violências na infância apresentam maior risco para revitimização na vida adulta, para episódios depressivos, de ansiedade, de estresse ou relações prejudiciais com a alimentação, a bebida alcoólica ou outras drogas. Dados de 2003 e 2010 mostram que 62% das vítimas de violência sexual e 82% das ocorrências de exploração sexual eram do sexo feminino. 

Nesse ponto do debate, nos deparamos com um desafio importante para os cuidados da saúde das mulheres: a falta de compreensão e a fragmentação nos serviços de saúde. Os profissionais admitem que nos atendimentos, no geral, as mulheres se calam sobre a violência de gênero, ao mesmo tempo em que intensificam a procura por serviços de saúde, sendo estereotipadas como “poliqueixosas”. Esse arquétipo, além de prejudicar as estratégias de tratamento, pode ser também uma forma de violência institucional e representa uma violência psicológica contra mulheres, que muitas vezes enfrentam o estigma no próprio processo de tratamento. 

A Lei de Criminalização da Violência Psicológica é um grande passo para coibir a violência contra as mulheres, mas é necessário ir além e atacar todas as formas de violência para avançar promoção e prevenção em saúde mental. Refinar a análise sobre a violência psicológica e institucional requer a produção de estudos sobre os efeitos e abordagens para trabalhar as  violência de instituições, como, por exemplo, asilos, abrigos, instituições de tratamento para usuários de drogas e também no sistema penitenciário. 

As diversas formas de violências são um fenômeno social que não pode ser reduzido aos estados psíquicos relacionados ao sofrimento mental, por isso a convergência com os debates sobre saúde mental tem muito a contribuir. Sejam impactos relacionados a situações de violência psicológica, física, sexual ou institucional, as soluções propostas devem abordar de forma assertiva o sofrimento psíquico decorrente dessas violências. É preciso, ainda, considerar as especificidades dos diversos adoecimentos e criar abordagens adequadas para diferentes públicos, pois as consequências de cada tipo de violência podem ser muito particulares e não se pode deixar de lado os olhares segmentados para esse debate.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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O cenário das doenças crônicas no Brasil e as pressões orçamentárias sobre o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/#respond Wed, 25 Aug 2021 10:00:42 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-dinheiro-800x533-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=496 Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Um dos aprendizados de 2020 é que o enfrentamento à pandemia poderia ter tido maior sucesso se a estrutura da atenção primária tivesse sido melhor utilizada. Em um contexto de emergência sanitária, testemunhamos a despriorização das ações de vigilância comunitária e epidemiológica, cruciais no rastreamento e contenção do contágio pelo vírus. Muito se noticiou sobre a ausência de testes de Covid-19 e a insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para minimizar a contaminação de profissionais de saúde. No entanto, um assunto que recebeu menos holofotes, mas que exerce grande impacto sobre o sistema de saúde foram os efeitos da pandemia sobre o represamento de serviços, como o cuidado longitudinal de doentes crônicos.

As Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), classificação em que se encontram doenças cardiovasculares, cânceres, doenças respiratórias crônicas e diabetes, são tipos de disfunções que possuem fatores de risco comuns e evitáveis, como colesterol alto e hipertensão, e que necessitam de acompanhamento constante. Uma vez que se desenvolve uma  DCNT, a qualidade de vida também se torna condicionada a um processo de cuidado contínuo. 

Dentro da estrutura do sistema de saúde brasileiro, a Atenção Primária atua de forma estratégica para proporcionar o acompanhamento dos usuários crônicos. Está dentro das atribuições da Estratégia Saúde da Família, por meio do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a identificação de demandas de saúde, a circulação de informações e a orientação sobre cuidados. As visitas domiciliares dos ACS, em especial, permitem um cuidado à saúde mais humanizado, estabelecendo laços de confiança entre os profissionais de saúde e a população.

No entanto, com a chegada do coronavírus no Brasil, tornou-se mais difícil tanto detectar precocemente quanto acompanhar sistematicamente as condições crônicas de saúde na população e a função de “porta de entrada”dos usuários no Sistema Único de Saúde (SUS) exercida pela Atenção Básica foi prejudicada. No que se refere à rotina das unidades básicas de saúde, em algumas localidades, procedimentos foram descaracterizados, como o trabalho de rua dos ACS, e atendimentos precisaram ser paralisados para o redirecionamento da força de trabalho para ações de combate a Covid-19. Também a necessidade de adoção do isolamento social fez com que muitos usuários ficassem receosos de se deslocar até os estabelecimentos de saúde. 

Em números, o reflexo dessa quebra do vínculo entre os usuários e as unidades de saúde durante a pandemia se traduz na queda brusca da quantidade de consultas da atenção básica, reduzidas em quase 50% no ano de 2020. Dados de um estudo recente realizado pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e por pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV-Saúde) demonstram a interrupção de procedimentos preventivos e de detecção precoce. Em comparação com 2019, o estudo evidenciou uma queda generalizada em 2020 na produção ambulatorial, que inclui procedimentos diagnósticos (-21,7%), de rastreio (-32,9%) e consultas médicas (-32,1%). 

Somado à queda nos demais níveis de atenção, em serviços como os de cirurgias e transplantes, o número de procedimentos totais realizados caiu, no mesmo ano, 19,2%. Em termos econômicos, essa contração significou uma redução de transferências federais para o SUS de aproximadamente R$ 3,6 bilhões em 2020. Os resultados do estudo apontam para um cenário preocupante de aumento de demanda dos serviços de atenção à saúde no país e, na sua contramão, o agravamento da insustentabilidade financeira do sistema.
No segundo semestre de 2021, a pandemia continua demandando intensamente dos profissionais e serviços de saúde e a Covid-19 tem deixado sequelas nos casos mais graves dos acometidos pela doença, o que pode vir a exigir cuidados de médio a longo prazo. Não bastasse esse cenário desolador, tudo indica que a atual pressão orçamentária deve ainda ser acrescida da demanda reprimida de doentes crônicos.  

Em 2019, no Brasil pré-pandemia, as DCNTs foram responsáveis pela morte de 1.025.708 brasileiros em idade inferior a 70 anos, número equivalente a 77,86% do total de mortes no ano — percentual calculado a partir do total de mortos em 2019 em idade inferior a 70 anos informado pelo IBGE. No Brasil da Covid-19, presenciamos o agravamento da insegurança alimentar no país, com 9% da população brasileira enfrentando a fome e o aumento no consumo de tabaco e álcool, fenômenos que sabidamente contribuem para o desenvolvimento de doenças crônicas.

Para enfrentar esse horizonte nada animador seriam necessários investimentos e planejamento estatal robusto e baseado em evidências, que permitisse preparar o sistema de saúde para atender simultaneamente às vítimas da Covid-19 e aos novos e antigos doentes crônicos. Na contramão disso, o que vemos é uma espécie de apagão estatístico sobre a saúde da população durante a pandemia e a não publicação do relatório de 2020 da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), principal instrumento de acompanhamento de fatores de risco para DCNT. Para agravar a situação, até o momento corremos o risco da não realização da pesquisa em 2021

O fato é que a Atenção Básica brasileira, uma das grandes referências para o resto do mundo, vem sofrendo fragilizações sistemáticas e o cenário das doenças crônicas no país é um gigante debaixo de um tapete que não pode mais ser ignorado. A “conta” que ficará para a população só cresce e, caso o orçamento público federal para a saúde não seja reavaliado, a consequência direta será o aumento do número de mortes evitáveis no país. 

 

Maria Letícia Machado é pesquisadora de políticas públicas no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Rebeca Freitas é especialista em relações governamentais no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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