Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O que a saúde tem a ver com a crise climática? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/12/01/o-que-a-saude-tem-a-ver-com-a-crise-climatica/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/12/01/o-que-a-saude-tem-a-ver-com-a-crise-climatica/#respond Wed, 01 Dec 2021 08:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/irineu-junior-10-1-700x396-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=603 Daniel Kass

Hannah Arcuschin Machado

 

Durante as duas primeiras semanas de novembro, o mundo acompanhou com grandes expectativas a COP 26, o encontro mundial do clima. A reunião de lideranças de 196 países teve como objetivo estabelecer compromissos para limitar o aquecimento global a 1,5°C em relação à temperatura pré-industrial. O Brasil assumiu novos e relevantes compromissos para alcançar essa meta, como reduzir em 50% as emissões de gases de efeito estufa (incluindo a redução de 30% de gás metano), e zerar o desmatamento até 2030. Contudo, ainda não é o suficiente: precisamos de metas ainda mais ambiciosas e que sejam tratadas e implantadas com a urgência que o tema exige. Para isso, é preciso reconhecer os impactos da crise climática na saúde.

A mudança climática é uma preocupação urgente de saúde global e precisamos responder à altura. Doenças respiratórias, cardiovasculares e transtornos mentais são consequências das mudanças climáticas na saúde, por estarem atreladas à poluição do ar, às ondas de calor e a outros eventos climáticos extremos. 

O primeiro passo para tratar a mudança climática como uma crise de saúde pública é mudar a forma como olhamos para o verdadeiro custo do carbono. Se incluirmos na conta o impacto negativo das emissões de carbono na saúde e no bem-estar, algumas estimativas iriam mais do que triplicar.

Embora  a preocupação em torno da saúde pública tenha sido maior nesta COP do que em edições anteriores da cúpula, houve uma ênfase exagerada em debater a contribuição do setor de saúde para as emissões, ao invés de uma contabilização verdadeira dos custos que a inação climática causa na saúde. Se, por um lado, sensibiliza profissionais de saúde, é preciso destacar, por outro, que a influência real da saúde pública deve se concentrar em mostrar aos formuladores de políticas públicas e à opinião pública os impactos do aquecimento global na saúde. Esse é o foco que faz a Vital Strategies ser promotora da rede “Inspire Clean Air”, composta por médicos de todo o mundo contra a poluição do ar, e, nacionalmente, ser parceira do Instituto Saúde e Sustentabilidade na iniciativa “Médicos pelo Ar Limpo”.

Iniciativas dessa natureza são fundamentais para impulsionar e cobrar avanços, uma vez que os compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris são insuficientes para proteger a nossa saúde. Garantir a integração entre saúde, clima e proteção da população maximiza os benefícios econômicos e constrói apoio popular para políticas que são urgentemente necessárias. No Brasil, 61 mil pessoas morreram em 2019, em decorrência de infarto, AVC, doenças respiratórias, diabetes relacionadas à poluição do ar. Isso é equivalente à morte de 7 pessoas por hora no País. Tendo em vista que as principais fontes de emissão de poluentes nocivos à saúde são as mesmas dos gases de efeito estufa, há muitas sinergias nas medidas a serem adotadas.

O levantamento que acaba de ser publicado pela Vital Strategies  sobre as oportunidades perdidas de endereçar desafios relacionados à poluição do ar, ao clima e à saúde mostra que não podemos mais perder tempo. O documento se soma a outras iniciativas da organização, que também atua em parceria com governos subnacionais na Indonésia, na Índia e no Brasil, apoiando a formulação de políticas públicas e melhorando a qualidade do ar em cidades.

O próprio plano climático oficial do Brasil falha ao não mencionar as vastas disparidades sociais e geográficas quando aborda a vulnerabilidade às mudanças climáticas. Tampouco faz qualquer tentativa de prestar contas sobre as consequências das mudanças climáticas para a saúde ou os benefícios alcançados pela redução da poluição do ar como parte das estratégias do País de redução de emissões. Ao negligenciar essas questões, é menos provável que o Brasil aja rapidamente para salvar as dezenas de milhares de vidas dadas como perdidas para a poluição do ar e à perturbação climática.

A saúde tem que ser um elemento central da política climática e deve fazer parte da estrutura de responsabilidade para a ação sobre o clima. Os organismos de saúde pública devem alinhar-se com a agenda climática e trabalhar juntos para prevenir o desastre climático. É importante lembrar que as consequências para a saúde associadas à mudança climática e os potenciais custos econômicos podem ser muitas vezes maiores do que o que vivenciamos com a COVID-19. Não é algo que apenas um setor possa resolver. Para reconstruir melhor, temos que fazer muito mais – e precisamos fazer com urgência. A saúde coletiva é muito importante para ser deixada para depois.

 

Daniel Kass é Vice-presidente Sênior de Saúde Ambiental da Vital Strategies

Hannah Arcuschin Machado é Gerente Sênior de Programas da Vital Strategies

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Orçamento público para a saúde da população negra: uma tarefa por fazer https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/05/orcamento-publico-para-a-saude-da-populacao-negra-uma-tarefa-por-fazer/#respond Fri, 05 Nov 2021 08:00:16 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/0b6d7e87ff86e86f6dddbb12ef854e9f_1616619191805_2002334538-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=572 Clara Marinho Pereira e Julia Rodrigues

 

A maioria da população brasileira se declara negra: são 89,7 milhões de pardos e 19,2 milhões de pretos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o 3º trimestre de 2020. No entanto, em face das vulnerabilidades provocadas pelo racismo, os impactos da pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido desproporcionalmente maiores na saúde da população negra por, pelo menos, quatro motivos.

Primeiro, porque a população negra teve menores oportunidades de se isolar. Sem políticas públicas para conter a contaminação em comunidades e favelas, o vírus espalhou-se rapidamente entre os mais pobres. Cabe lembrar que 67% dos moradores das comunidades e favelas brasileiras são negros.

Segundo, porque a população negra é maioria nos segmentos econômicos considerados essenciais para a manutenção da vida coletiva, de natureza intensiva em mão-de-obra. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 mostram que, na limpeza urbana, 55,4% do total de vínculos eram compostos por negros; na segurança, 52,9%; e na construção civil, 50,2%, dentre tantos outros serviços. No  cotidiano, cada trabalhador(a) negro(a) se expõe ao contato com dezenas, até centenas de pessoas.

Terceiro, porque a população negra também é maioria na informalidade. Dados de 2019 do IBGE mostram que 47,4% dos trabalhadores negros do Brasil estão inseridos na informalidade, contra 34,5% da população branca.  Com a atividade econômica restringida ou afetada pela circulação do vírus, fragilizaram-se os circuitos de trabalho e de ganho diário, lançando rapidamente trabalhadores à pobreza, à miséria e à fome; uma situação que dificulta o isolamento e a capacidade das pessoas negras em ter uma resposta imunológica adequada quando contaminadas.

Quarto, quando contaminados, os negros demoram mais a ter acesso aos serviços de saúde. Muitas vezes impossibilitados de faltar ao trabalho, ou então sem dinheiro para pagar o transporte até o posto de saúde,  negros acabam por postergar a busca pela assistência médica. Quando o fazem, a situação já está agravada.

Não por acaso, negros morrem mais do que brancos. Conforme estudo realizado pelo Instituto Pólis, a taxa de mortalidade padronizada da doença para a população negra foi de 172 mortes para cada 100 mil habitantes entre março e julho de 2020 na cidade de São Paulo – município mais populoso do país. O número é 60% maior do que a taxa de mortalidade padronizada da população branca da cidade, que ficou em 115 mortes para cada 100 mil habitantes.

Em estudo mais recente, de setembro de 2021, e de caráter nacional, pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária mostram, a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, que homens negros morrem mais por Covid-19 do que homens brancos, independentemente da ocupação e mesmo quando estão no topo do mercado de trabalho. Já as mulheres negras morrem mais do que todos os outros grupos (mulheres branca, homens brancos e homens negros) na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação.

No entanto, a vacinação começou com pouca atenção a esses aspectos, partindo do centro para as periferias; dos grupos afluentes para os mais vulneráveis, o que mostra, mais uma vez, o uso seletivo das evidências para informar as políticas públicas. As “evidências”, muitas vezes, são mobilizadas para reforçar estruturas prévias de poder, e não questionar o melhor uso do recurso delas.

Com a Covid-19 ainda no horizonte, quais as chances de racionalizar o debate sobre o gasto em saúde daqui em diante? Aqui, propõe-se o exercício de olhar para trás, com o intuito de entender as possibilidades futuras.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, construída pela sociedade civil em parceria com o governo federal, estabelece um conjunto de diretrizes para que os serviços públicos de saúde acolham as especificidades da população negra na sua oferta, reconhecendo o racismo como uma determinante social das condições de saúde, ou seja, como o racismo impacta na ocorrência de problemas de saúde e amplifica seus fatores de risco.

A despeito dos imensos esforços colocados desde meados dos anos 1990 para a construção desse arcabouço de intervenção pública, o Estado brasileiro não tem sido diligente para dar visibilidade à sua atuação na garantia do bem-estar da população negra.

Um dos principais instrumentos para atuação do Estado é o orçamento público. É por meio dele que são comunicadas à sociedade as prioridades do governo e são alocados recursos para sua implementação.

O Plano Plurianual (PPA) para o ciclo 2016-2019 do governo federal possuía um programa específico para o enfrentamento das questões raciais: o Programa 2034 – Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, que tinha como uma das metas “Contribuir para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, incluindo a atualização do seu Plano Operativo” (Meta 4MC). Já no PPA para o ciclo 2020-2023, há um completo apagamento da questão racial, com nenhum programa, objetivo ou meta endereçados ao tema.

Do ponto de vista da Lei Orçamentária Anual (LOA), os recursos são, na maioria das vezes, alocados em ações genéricas, com o objetivo de facilitar o desembolso daqueles. No entanto, essa prática dificulta sobremaneira o controle social, pois impossibilita que sejam acompanhadas as despesas por recortes de gênero, raça, faixa etária e orientação sexual. No Ministério da Saúde, esse fenômeno (as ações genéricas) é recorrente, sendo difícil até mesmo obter a localização geográfica do gasto.

Até o ano de 2020, contudo, era possível enxergar uma (mínima) preocupação do Ministério com a promoção da equidade, devido à existência da ação orçamentária 20YM – Implementação de Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, cujo objetivo era a promoção do direito à saúde para segmentos populacionais expostos a iniquidades em saúde, como ciganos, LGBT, populações do campo, da floresta e das águas, população negra, população em situação de rua, população albina e gestores do SUS. No ano de 2016, essa ação chegou a contar com R$46,5 milhões de reais, em 2018 caiu para R$8,8 milhões e, em 2020, chegou a R$28 milhões.

No entanto, em sintonia com o apagamento das questões raciais no PPA 2020-23, a ação 20YM deixou de constar do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2021, encaminhado pelo Poder Executivo. Foi transformada em uma classificação gerencial (chamada Plano Orçamentário e que pode ser modificada a qualquer instante) da ação 21CE – Implementação de Políticas de Atenção Primária à Saúde. Em 2021, foram previstos R$28 milhões e, para 2022, o valor foi repetido, indicando que, em termos reais, os montantes diminuem a cada ano.

Contraditoriamente, portanto, justo quando a questão racial na saúde está exacerbada pelos dados, pelos achados de pesquisas e pelas tragédias, é quando ela mais se ausenta de identificação e controle social no orçamento, bem como de vínculos com o planejamento público de médio prazo.

Qualquer tentativa de assegurar o direito à saúde da maior parte da população brasileira que não observe a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra conjugada à consignação de recursos no orçamento estará condenada ao questionamento de sempre: será mesmo que o Estado brasileiro está comprometido com o atendimento igualitário no Sistema Único de Saúde (SUS)?

Hoje, infelizmente parece que a resposta é “Não”. Fazer mais do mesmo apenas trará mais mortes e iniquidades.

 

Clara Marinho Pereira é Mestre em Desenvolvimento Econômico e Fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente.

Júlia Rodrigues é Economista, Doutoranda em Ciência Política e Consultora de Orçamento.

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Cuidados adequados e personalizados para o câncer de mama https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cancer_mama-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=558 Vilmar Marques de Oliveira

 

O preconceito e a desinformação ainda são obstáculos para as mulheres – e para toda a sociedade – em relação ao câncer de mama. O estigma em torno de uma doença que pode ser grave e afeta diretamente um dos maiores símbolos da feminilidade atrapalha de várias maneiras: desde o deixar para depois a realização de exames que deveriam ser periódicos até barreiras emocionais que, uma vez feito o diagnóstico, impedem que essa mulher seja protagonista no seu tratamento.

O agravante é que o câncer de mama é uma doença complexa. Existem diferentes perfis de tumor e momentos específicos, que envolvem diferentes decisões. Outra questão é o acesso às opções de tratamento e a própria adesão à conduta escolhida, considerando tratar-se de uma doença tempo-dependente e que não espera nada, nem ninguém, para progredir. Ela é mais rápida ou mais lenta a depender das características que se apresentam em cada caso.

Por isso é que se fala em jornada da paciente com câncer de mama. Uma mulher que é única e tem uma história só sua, mas que deve e pode buscar os cuidados mais adequados e personalizados para o seu perfil. É certo que, nesse caminho, desinformação e prejulgamento fragilizam. Mas diálogo, conhecimento, autocuidado e rede de apoio efetiva, seja de familiares, amigos, colegas de trabalho e mesmo da equipe de saúde, contribuem para a vida antes, durante e depois do câncer. Uma vida que pode ser plena.

Esse olhar coletivo sobre o câncer de mama como um tema de interesse de toda a sociedade é fundamental para a efetivação e o aprimoramento das políticas públicas relacionadas à linha de cuidado da patologia (rastreamento, diagnóstico e tratamento), bem como à navegação das pacientes no sistema de saúde. Embora tenhamos importantes leis aprovadas e um sistema público e universal, ainda há muito a avançar para salvar um número maior de mulheres.

O câncer de mama é o mais frequente entre as brasileiras, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), e ainda causa a morte de 20 mil mulheres todos os anos. A estimativa de novos casos para 2021 é de aproximadamente 66 mil. Embora seja rastreável desde o início a partir da mamografia de rastreamento, o diagnóstico precoce permanece ocorrendo bem menos vezes do que nos estágios avançados da doença.

A ciência vem fazendo a sua parte. O planejamento adequado logo após o diagnóstico, associado ao melhor tratamento para o perfil da paciente, permite gerenciar o câncer de mama com maior probabilidade de cura ou controle. Sendo ou não invasivo, as chances de cura são elevadas (aproximadamente 95%) quando a detecção ocorre em fase precoce. Cada vez mais a medicina entende as alterações genéticas nas células que originam e caracterizam os tipos de tumores, conhecimento este que possibilita tratamentos mais adequados e eficientes, que muitas vezes associam terapias antes e/ou após a cirurgia, a depender de cada caso.

Para ilustrar a relevância deste conhecimento, podemos citar as pacientes com um biomarcador específico, chamado HER2+. Mulheres cujos tumores apresentam esta mutação podem se beneficiar de terapias direcionadas a essa alteração em diferentes etapas da doença. Quando diagnosticado em estágio inicial, o tratamento correto, no momento mais adequado, pode, inclusive, resguardar pacientes com alto risco de recorrência da doença de evoluir para um estágio metastático, aproximando-as da cura.

Por exemplo, mulheres que precisam iniciar o tratamento antes da cirurgia, pelo fato de terem tumores maiores e/ou linfonodos comprometidos, com o intuito de aumentar suas chances de cura e possibilitar uma cirurgia conservadora, podem ainda apresentar células tumorais no momento da cirurgia, o que indica um risco maior de recorrência. Por isso, essas pacientes precisam de um tratamento de resgate após a cirurgia, para então reduzir as chances de progredir para cenários metastáticos. Todo esse planejamento terapêutico personalizado, feito pela equipe que acompanha a paciente, é essencial para garantir que cada pessoa receba o tratamento mais adequado de acordo com as características do seu tumor.

Não poderia finalizar este texto sem esclarecer, também, que qualquer mulher pode ter câncer de mama. A maioria dos tumores – 90% – não têm origem hereditária. São fatores de risco a alimentação de má qualidade, a ausência de atividade física regular, o excesso de peso, a exposição a hormônios (estrogênios), o tabagismo e o uso excessivo de bebidas alcoólicas, entre outros.

Contudo, não é possível precisar a causa da doença e, por isso, precisamos de uma nova mentalidade. Ao mesmo tempo em que é necessário adotar medidas preventivas que combatam esses fatores de risco – e quanto antes, melhor –, devemos evitar que essa mulher que apresenta o câncer de mama se sinta culpada.

Diante disso, são essenciais movimentos como o “Vem Falar de Vida”, que disseminam informações de qualidade sobre o tema, reverberam ações de múltiplos signatários unidos por esse propósito e fortalecem a mensagem de que o câncer de mama não precisa ser sinônimo de fracasso, de morte ou de mutilação. Existem meios para que cada vez mais histórias de mulheres sejam transformadas. Discutir o acesso a eles é responsabilidade de todos nós.

 

Dr. Vilmar Marques de Oliveira é Chefe de Clínica Adjunto do Hospital da Santa Casa, Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e atual presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.

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Possíveis caminhos para solucionar os gargalos de implementação das Linhas de Cuidado de DCNTs na APS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/#respond Wed, 22 Sep 2021 10:00:04 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/eccbfb94-6a3c-4a17-a605-ca23957ed714-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Fernanda Leal e Helyn Thami

 

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) respondem por 3 de cada 4 mortes de brasileiros e brasileiras, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O envelhecimento da população e o aumento da prevalência de fatores de risco comportamentais — como inatividade física e alimentação inadequada —, tende a elevar, nos próximos anos, a incidência de DCNTs na população brasileira, pressionando a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma pesquisa desenvolvida pelo IEPS em parceria com a Umane (Panorama IEPS n. 2) mostrou que as Linhas de Cuidado (LC) para DCNTs — conjunto de fluxos assistenciais que manejam as múltiplas necessidades dos portadores dessas doenças — não estão plenamente implementadas nos municípios brasileiros. As Linhas de Cuidado devem atender às diversas demandas dos usuários, em diferentes níveis de complexidade, garantindo a promoção e a restauração da saúde.

Para os principais desafios encontrados são apontados os possíveis caminhos para…

1. Reduzir barreiras de acesso

A baixa cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) em alguns locais faz com que uma parte importante da população brasileira não tenha acesso a serviços essenciais. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, 40% dos domicílios não estão cadastrados na APS. É preciso eliminar barreiras de acesso aos serviços já existentes. Para ampliar a cobertura da Atenção Primária, alguns passos são cruciais: 

  • Mapear a mancha de cobertura de equipes da APS e identificar vazios sanitários; 
  • Identificar e hierarquizar vulnerabilidades, dando ênfase às áreas mais críticas; 
  • Planejar a expansão da APS, estimando necessidade de pessoal e equipamentos; 
  • Implantar uma estrutura física; 
  • Recrutar e selecionar os profissionais para integrar as novas equipes.

Para operacionalizar isso, pode-se, por exemplo:

  • Buscar financiamento para extensão de horários de atendimento (por exemplo, pelo programa Saúde na Hora, do governo Federal) e diversificar modelos de assistência (atendimento em horários estendidos e intervenções em vias públicas e demais pontos de circulação e socialização); 
  • Apostar no treinamento de profissionais, envolvendo também usuários, para redução de barreiras de acesso ligados a comportamentos dos membros das equipes.

2. Garantir profissionais com treinamento apropriado e em número adequado

O cuidado de qualidade às pessoas portadoras de DCNTs passa pela atuação de profissionais de diferentes áreas, mas na realidade dos municípios há ausência de treinamento apropriado e efetivo para atender às demandas dos usuários crônicos. Para resolver isso, é possível:

  • Atuar, junto a instituições de ensino e pesquisa, na criação de programas específicos para provisão de novos profissionais para esse nível de atenção;
  • Elaborar um plano de valorização e carreira para os profissionais atuantes na APS, visando a fixação de equipes.

Quanto aos modelos de treinamento e difusão do conhecimento, poderíamos:

  • Garantir que se apliquem protocolos baseados na melhor evidência disponível; 
  • Ter materiais simples e de consulta rápida para que os profissionais usem; 
  • Apostar em metodologias mais ativas para apoio de construção e implementação de protocolos.

3. Integrar melhor os níveis de cuidado

Integrar serviços de saúde está entre um dos maiores desafios do SUS.  No cuidado às pessoas com doenças crônicas, essa integração é absolutamente crucial para que haja bom uso de recursos e se consigam melhores resultados de saúde. Para promover essa interlocução, indicamos:

  • Garantir o compartilhamento de informações clínicas entre serviços em toda a rede; 
  • Realização de planejamento conjunto entre serviços envolvidos nas Linhas de Cuidado; 
  • Compartilhar recursos e metas entre serviços; 
  • Investir em posições de liderança para a integração.

4. Ampliar e melhorar o acompanhamento dos usuários

Uma vez que não se tem Linhas de Cuidado plenamente estruturadas, o acompanhamento de quem tem doenças crônicas fica comprometido. Acompanhar adequadamente esses usuários significa ter um calendário de ações de cuidado que contemple desde a promoção da saúde e a prevenção até a recuperação da saúde e limitação de danos. Para que isso seja efetivado, vale a pena:

  • Levantar lista de usuários diagnosticados com DCNTs nos territórios; 
  • Verificar a rotina de consultas e exames destes, além de apontar aqueles que ainda não estão dentro do padrão de cuidado preconizado; 
  • Entrar em contato com usuários para agendar consultas e atividades de acompanhamento; 
  • Realizar busca ativa daqueles que forem difíceis de contactar ou que tenham faltas às atividades.

5. Ampliar os cadastros de usuários

O cadastramento é uma função primordial da APS. A não realização dos cadastros dos usuários do território implica que estes não são rotineiramente acompanhados pelas equipes e, quando o são, são atendidos em condições de demandas mais urgentes, quando, em geral, houve um quadro de agudização que poderia ter sido evitado. Para cadastrar adequadamente os usuários orienta-se seguir dois caminhos, que devem ser implementados de modo simultâneo: cadastrar por meio de visitas dos Agentes Comunitários de Saúde às residências; e ações de mobilização que ajudem as populações mais facilmente ignoradas a obter o acesso aos serviços. 

No primeiro caso, é necessário:

  • Elaborar, junto aos ACS, um cronograma para realização de cadastros e recadastros no território, através de visitas; 
  • Monitorar a execução desse calendário; 
  • Identificar barreiras para realização de cadastros e formulação de planos de ação para mitigá-los. 

No segundo caso, é recomendado: 

  • Planejar ações para mobilizar/buscar ativamente grupos populacionais invisibilizados nos serviços; 
  • Criar estratégias de busca ativa com apoio de lideranças comunitárias; 
  • Acompanhar o aumento de cadastros e cuidado ofertado aos novos usuários.

6. Acelerar a informatização da Atenção Primária à Saúde

Informatizar é uma forma de qualificar a gestão da saúde. A informatização permite compilar e analisar informações, o que pode não só agilizar, mas melhorar a tomada de decisão. No Brasil, persistem alguns gargalos de implementação relacionados aos equipamentos e infraestrutura de conectividade. Contudo, municípios podem tentar financiamento federal por meio do Programa Informatiza APS. Ajudariam muito os seguintes  passos: 

  • Estudar o mapa de infraestrutura e hierarquizar as unidades que podem ou não imediatamente receber recursos de informatização; 
  • Inscrever-se nos programas de financiamento disponíveis; 
  • Planejar as compras de equipamentos; 
  • Estabelecer programas de treinamento para as equipes, de modo a garantir o preenchimento correto das ferramentas de gestão informatizadas e o uso das informações para tomada de decisão no nível local.

7. Aumentar a adesão ao tratamento

As doenças crônicas pressupõem tratamentos e acompanhamento de longo prazo. Por vezes, o tratamento exige mudança profunda de comportamento e impõe graus variados de efeitos colaterais. A falha de adesão ao tratamento configura, portanto, um grave problema a endereçar. Apontamos como caminhos: 

  • Diversificar estratégias de desenvolvimento de vínculo e garantia de acesso. Por exemplo, por meio de atividades coletivas e atuação em espaços de socialização dos usuários; 
  • Organização do trabalho da equipe com ênfase no protagonismo da enfermagem, que é capaz de melhorar adesão; 
  • Desenvolver habilidades de ciência comportamental nas equipes, qualificando a abordagem às mudanças de comportamento necessárias para o melhor controle das doenças. 

Esses pontos estão sumarizados no Olhar IEPS, policy brief que condensa estudos científicos e endereça recomendações para gestores de saúde. O conteúdo desse material também foi discutido no Diálogos IEPS, série de webinários temáticos do IEPS, em uma mesa composta por Michael Duncan (Médico de Família e Comunidade e assessor técnico da Superintendência de APS do município do Rio de Janeiro), Patrícia Jaime (Pesquisadora do Departamento de Nutrição da USP e vice coordenadora do NUPENS), Evelyn Santos (Coordenadora de Projetos da Umane), Arthur Aguillar (Coordenador de Políticas Públicas do IEPS) e Ricardo Gandour (jornalista e mediador).

 

Fernanda Leal, Analista de Políticas Públicas do IEPS.

Helyn Thami, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

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Desigualdade social, pandemia e o Brasil que alimenta a fome e a insegurança alimentar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/08/desigualdade-social-pandemia-e-o-brasil-que-alimenta-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar/#respond Wed, 08 Sep 2021 10:00:58 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/prato5-1200x675-300x215.jpeg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=522 Agatha Eleone, Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Além da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 trouxe aos holofotes um outro fenômeno que impacta diretamente a saúde dos brasileiros: a fome. Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, naquele ano o número de brasileiros em situação de fome voltou a atingir os patamares de 2004. A chegada da pandemia no país marcou também o aumento de 27,6% do número de brasileiros enfrentando a fome, em comparação com o ano de 2018, totalizando 19,1 milhões de pessoas –quase 9 milhões de pessoas a mais do que dois anos antes, o que corresponde a 9% da população brasileira.

O levantamento Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bioeconomy mostrou que, entre os meses de agosto e outubro de 2020, 13,6% dos brasileiros maiores de 18 anos passaram ao menos um dia inteiro sem comer ou com apenas uma refeição, e 125 milhões de brasileiros enfrentaram alguma forma de insegurança alimentar, ou seja, reduziram o número de refeições consumidas por dia ou a quantidade de comida consumida por refeição, motivados pela incerteza de conseguir alimentos posteriormente.

Entre as famílias que enfrentam a insegurança alimentar, a pesquisa também destacou que a fome no Brasil tem gênero e cor –73,8% dos lares chefiados por mulheres e 66,8% por pessoas pretas. A insegurança alimentar também é maior nas residências habitadas por crianças (70,6%) e adolescentes (66,4%) e mais frequente nos domicílios do Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) do país. Ainda, na maioria desses lares a renda familiar não passava dos R$500 mensais, em contraste com o preço médio da cesta básica que, em outubro de 2020, variou de R$ 436,76 em Natal a R$ 595,87 em São Paulo.

Como consequência da insegurança alimentar, a maior parcela da população que hoje não possui renda para custear uma alimentação balanceada  recorre aos ultraprocessados. Apesar de serem normalmente mais baratos, esses alimentos são também mais pobres em nutrientes e ricos em farinhas, açúcares, gorduras, e aditivos químicos, prejudiciais à saúde quando consumidos em grande quantidade. Com isso, outras facetas da insegurança alimentar podem ser a subnutrição e a obesidade da população.  

A situação atual, certamente agravada pela pandemia, evidencia a necessidade de políticas estatais robustas e de longo prazo para combate da miséria e da fome. No entanto, vemos o Governo Federal rumando em direção contrária. Flertando com o segmento de supermercados durante participação no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento no último mês de junho, o Ministro da Economia Paulo Guedes chegou a defender a ideia de que sobras de restaurantes de classe média poderiam ser destinadas a populações vulneráveis. No mesmo evento, a Ministra da Pecuária, Agricultura e Abastecimento, Tereza Cristina, confirmou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a flexibilização de regras sobre a validade dos alimentos como uma alternativa para combater a alta dos preços e o alto índice de insegurança alimentar no país.

Diante dessas falas, é importante pontuar: ignorar a crescente desigualdade e distribuir restos de alimentos ou alimentos vencidos a pessoas pobres não resolve o problema da fome e da insegurança alimentar dos brasileiros, uma vez que esses fenômenos não decorrem simplesmente da falta de alimentos disponíveis para consumo, mas sim da falta de acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para a sobrevivência. Em outras palavras, o problema existe por sucessivos erros na condução das políticas públicas voltadas para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Tanto a fome quanto a insegurança alimentar constituem violação de Direitos Humanos, sendo a alimentação um direito reconhecido pelo Pacto Internacional de Direitos e previsto na Constituição Brasileira.

Dentre as ações que evidenciam a negligência com a saúde e a segurança alimentar do país estão as inúmeras tentativas de reformulação do Guia Alimentar para a População Brasileira — só em 2020, foram dois pedidos enviados pelo Ministério da Agricultura ao Ministério da Saúde. O documento é referência internacional por apresentar recomendações para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando não apenas aspectos nutricionais, mas também o contexto cultural, social e ambiental em que os indivíduos se inserem. Além dos ataques ao Guia, a classificação NOVA, que agrupa e classifica os alimentos pelo grau de processamento, não foi mencionada pela Sociedade Brasileira de Pediatria no Manual de Atualidades em Nutrologia Pediátrica publicado em maio deste ano.

  Além disso, um dos principais alvos do lobby da indústria de ultraprocessados é a discussão sobre a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento da incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Baseados no argumento de que as DCNT são multifatoriais, surge a tentativa de desresponsabilizar o consumo de ultraprocessados como um potencial causador de agravos, distorcendo as crescentes evidências científicas que o associam significativamente a desfechos negativos tanto para a saúde das populações quanto para o meio ambiente. Não à toa a regra de ouro preconizada pelo Guia sugere que aqueles produtos  devam ser totalmente evitados pela população.

Há quem diga que a situação atual é uma consequência gerada exclusivamente pela pandemia de covid-19. Na contramão, evidências anteriores já apontavam para a piora da situação alimentar dos brasileiros. Na linha das ações necessárias para virar esse jogo, um dos primeiros passos seria a atualização da linha de pobreza do Programa Bolsa Família, uma vez que a política, apesar de precursora, hoje conta com uma extensa lista de espera e subestima o número de pessoas que deveriam ser enquadradas no critério de recebimento do benefício. Ainda, é importante garantir o aumento de gastos federais com políticas de desenvolvimento agrário e de estímulo à agricultura familiar; e, finalmente, admitir a fome e a insegurança alimentar como problemas de saúde pública e não apenas como emergência assistencial, fomentando a execução de ações intersetoriais, bem como pesquisa e a formulação de políticas públicas com base em evidência.

 

Agatha Eleone é nutricionista, especialista em saúde da família e em gestão da atenção básica, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). 

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos  para Políticas de Saúde (IEPS). 

Rebeca Freitas é cientista social, bacharel em Direito, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, e especialista em relações governamentais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Quem está na porta de entrada dos serviços de saúde mental? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/#respond Wed, 18 Aug 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/GettyImages-1266600929-web-conferência-SUS-800-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Helyn Thami e Maria Fernanda Quartiero

 

Precisamos focar no treinamento, provisão e capacitação de trabalhadores da atenção primária e de outros níveis de atenção para oferecer cuidados na perspectiva da saúde integral

 

Imagine a seguinte situação: uma pessoa vai a um serviço público de saúde se queixando de dor no peito e é encaminhada ao cardiologista sem que sequer tenha sido questionada sobre seu estado de saúde mental. Não é difícil de imaginar, certo? 

Um dos desafios no campo da saúde mental no Brasil é integrar os cuidados em saúde psíquica à perspectiva da saúde integral. Sabemos que muitas manifestações físicas, como na situação imaginada, podem estar relacionadas à ansiedade, depressão e outros sintomas de sofrimento mental. Pode ser, por exemplo, diante da atual crise, fruto de angústia relacionada a processos de luto ou ao desemprego. Acolher e encaminhar usuários sem levar em conta a sua saúde mental, apesar de ser prática rotineira, é prejudicial à perspectiva de cuidados integrais, como preconizado no sistema de saúde brasileiro. 

A hipótese descrita acima é apenas um dos exemplos possíveis de práticas de cuidado que invisibilizam e negligenciam a saúde mental como parte indissociável da saúde como um todo. Somos um só: ou, como se diz popularmente, “corpo e mente estão sempre conectados”. Por isso, os serviços de atendimento devem incluir os aspectos físicos e mentais na avaliação e no tratamento, e desenvolver soluções adequadas para cada indivíduo. 

Para tal, há que se reformular os currículos de formação de todas as categorias profissionais da saúde para incluir abordagens humanizadas e que levem em conta questões estruturais que ajudam a produzir o adoecimento –emprego, renda, acesso a serviços básicos e outros. Essas abordagens precisam dialogar, fazer parte de uma estratégia geral de cuidado que o potencialize –nas ações preventivas e curativas. É importante que diagnósticos e soluções sejam elaborados a partir da análise interdisciplinar dos profissionais envolvidos, desde a assistência social até as especialidades biomédicas. Para isso, o processo de escuta qualificada também é imprescindível: os profissionais de saúde precisam ouvir para entender a trajetória dos usuários e absorver as especificidades de cada um. 

Outra reflexão importante é o quanto a rede de saúde e a formação profissional ainda privilegiam o atendimento a pessoas com condições psicossociais agravadas, negligenciando a promoção da saúde, a prevenção e o acolhimento das primeiras manifestações de sofrimento, que muitas vezes poderiam ser tratadas sem o uso de medicação e sem necessidade de cuidados especializados, por exemplo.

Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) entre 2012 e 2013, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. Mas quando falamos de saúde mental não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, especialidades comumente associadas à ela: precisamos exercitar um olhar mais ampliado para entender quem é o “Recurso Humano” da saúde mental. 

Por exemplo, uma revisão de literatura mostra que um grande desafio que se descortina para a consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil é a integração entre a atenção primária e a rede de atenção psicossocial. Isso significa que os recursos humanos para uma adequada provisão de cuidado em saúde mental não estão confinados a poucas categorias profissionais, mas dizem, sim, respeito a toda uma gama de pessoas que compõem o sistema de saúde. 

A melhor prática para consolidar essa integração é por meio do matriciamento: os profissionais especializados devem estabelecer espaços de troca e trabalho compartilhado com as equipes da atenção primária, aumentando a resolutividade desta e garantindo o ganho de capacidades desse nível de atenção a médio e longo prazos. Essa prática, inovadora e desafiadora, pode ser considerada contra hegemônica e ainda incipiente nos programas de formação de profissionais de saúde.

Se é preciso entender as transversalidades do tema para criar soluções adequadas para os usuários, é necessário levar isso em conta também nos processos de formação de profissionais de outras áreas da saúde e, inclusive, de outros setores, como educação, cultura, segurança pública e sistema de justiça. Afinal, a saúde mental permeia toda a nossa vida. Família e comunidade também são peça chave para trabalhar essa perspectiva de escuta ampliada, engajar atores fundamentais no processo terapêutico e capilarizar ainda mais o cuidado com a saúde mental. Um bom exemplo de como oferecer atenção em saúde mental na comunidade é o Banco da Amizade no Zimbabwe.

Não podemos esquecer a supervisão e o acompanhamento desses profissionais. As práticas e cuidados em saúde mental não são estáticas, elas se renovam e se aperfeiçoam junto com  necessidades do público atendido. Por isso a capacitação em saúde mental não se esgota em nível de formação ou cursos pontuais. Ela precisa ser contínua e promover a perspectiva de empoderamento de cada pessoa – inclusive dentro do próprio mundo do trabalho. 

O cuidado não-multiprofissional na saúde mental –que não considera a interface entre as áreas de cuidado– impede o uso eficiente dos recursos públicos disponíveis no sistema de saúde. Por isso, o investimento em mais capacitação em saúde mental para uma gama mais vasta de profissionais pode ser uma solução custo-efetiva para avançar nesse campo, considerando a estrutura que o Brasil já tem. Por meio delas seria possível um olhar mais atento a sinais precoces e fatores de risco para o sofrimento mental.

Nesse ponto, um desafio adicional é a desigualdade de investimento e de provisão de profissionais entre as áreas da saúde, especialmente considerando as categorias mais especializadas. Dados do estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil mostram que o nível da assistência prestada regionalmente não tem como ser a mesma em um contexto em que o número de psicólogos por habitante do Pará (estado com menor oferta) é 4 vezes menor do que o mesmo parâmetro no Distrito Federal (estado com maior oferta) –isso considerando serviços do SUS e da saúde suplementar. Se a proporção de psicólogos fosse balanceada em todo o território nacional, o processo assistencial e matricial poderia ser mais efetivo. 

Além disso, há uma concentração muito grande nas capitais quando comparadas a outros municípios no país: 3 a cada 10 psicólogos estão nas capitais; já entre os psiquiatras essa proporção é de 4 a cada 10. A referência para psiquiatria no Brasil é de 5,8 psiquiatras a cada 100 mil habitantes e essa distribuição é bastante desigual no território, conforme se vê no quadro abaixo:

 Região

Psiquiatras

Psicólogos

Norte 1,09 18,44
Nordeste 2,59 25,02
Sudeste 5,81 41,61
Sul 6,13 48,88
Centro-Oeste 3,97 40,26

Assim, percebemos que existem desafios importantes a serem superados para efetivar uma atenção em saúde mental que seja concreta  e integrada. Primeiro, é preciso entender a saúde mental como parte da saúde geral, sem fragmentação. Segundo, é preciso entender que, para que coloquemos em prática as melhores ações de cuidado, a formação profissional precisa mudar. Terceiro, temos que potencializar os recursos já disponíveis e fortalecer o aprendizado contínuo, mesmo (e talvez principalmente) dentro dos próprios serviços. Não menos importante, é preciso combater as desigualdades de provisão de profissionais no território nacional.

Tudo isso se conecta para organizar o processo de cuidado de acordo com cada necessidade e aproveitar os recursos humanos do sistema para ampliar o acesso a um cuidado em saúde adequado, incluindo a saúde mental, sempre respeitando a lógica da integralidade, que é um princípio fundante do Sistema Único de Saúde (SUS). 

No caso da pessoa da nossa situação hipotética com dores no peito, tem-se uma demanda para psiquiatra, psicólogo, médico da família ou ambos? Como outras áreas, caso da assistência social ou da comunidade escolar, no caso de crianças e adolescentes, poderiam ajudar nesse processo? A distribuição e o compartilhamento dessa responsabilidade de forma estratégica  é fundamental para o sucesso dos cuidados em saúde mental. Considerando as desigualdades e a defasagem de recursos humanos e financeiros no SUS, a qualificação contínua, mudança de paradigma de formação e a consolidação do matriciamento podem ser um bom caminho para melhorar o sistema.

 

Helyn Thami é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

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Por que as linhas de cuidado de doenças crônicas não transmissíveis no Brasil ainda pertencem ao mundo da ficção? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/13/por-que-as-linhas-de-cuidado-de-doencas-cronicas-nao-transmissiveis-no-brasil-ainda-pertencem-ao-mundo-da-ficcao/#respond Fri, 13 Aug 2021 10:00:34 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/111111111-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=478 Fernanda Leal

 

As Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs) matam 41 milhões de pessoas a cada ano, o equivalente a 71% de todas as mortes no mundo. É o que afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS). Desse total, 15 milhões morrem por alguma DCNT entre 30 e 69 anos, e mais de 85% dessas mortes “prematuras” ocorrem em países de baixa e média renda, como o Brasil.

Nos últimos anos, o Brasil passou por importantes transformações no seu padrão de mortalidade e morbidade, em função dos processos de transição epidemiológica, demográfica e nutricional da população. Assim como em nível mundial, aqui as DCNTs são altamente relevantes, tendo sido responsáveis, em 2016, por 74% do total de mortes, com destaque para doenças cardiovasculares (28%), neoplasias (18%), doenças respiratórias (6%) e diabetes (5%), de acordo com dados da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel). 

O que se sabe é que um pequeno conjunto de fatores de risco responde pela maior parte das mortes por DCNTs e por fração substancial da carga de doenças relacionadas a essas enfermidades. Entre esses fatores destacam-se o tabagismo, o consumo alimentar inadequado, a inatividade física e o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Pensando nisso, o Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS) e a Umane desenvolveram um extenso relatório, denominado Panorama IEPS, que busca entender os motivos que tornam as DCNTs gargalos sistêmicos dos nossos sistema de saúde e como enfrentar esse desafio por meio da implementação de linhas de cuidado de DCNTs nos municípios.

O documento identificou importante deficiência na implementação dessas linhas de cuidado e que isso  se deve a 7 causas principais:

  1. Gargalos de acesso impedem que usuárias e usuários realizem rastreio e tratamento de DCNTs. Rastrear adequadamente as DCNTs e tratá-las em tempo oportuno depende de acesso a uma Atenção Primária à Saúde (APS) capilarizada e efetiva. Nesse sentido, é preciso aumentar a cobertura e resolver barreiras de acesso em serviços já existentes. 
  2. Faltam profissionais e treinamento para a atuação em equipes multiprofissionais no Sistema Único de Saúde (SUS). Além da falta de profissionais qualificados para lidar com a APS, os modelos de treinamento têm muito espaço para melhora.
  3. As Linhas de Cuidado são operadas em total ou parcial segregação entre níveis de cuidado. Isso significa que a fragmentação compromete a integralidade. É preciso que serviços de saúde de diferentes complexidades atuem de forma coordenada e sinérgica para que cada usuária ou usuário do SUS tenha o tratamento de que necessita, em tempo oportuno.
  4. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está sendo acompanhada. O acompanhamento de usuários crônicos deixa a desejar. Os números do Previne Brasil mostram o baixo percentual de hipertensos e diabéticos com registro de pressão arterial e hemoglobina glicada, respectivamente, destacando que a longitudinalidade está longe de ser uma realidade.
  5. A maioria dos portadores de doenças crônicas não está cadastrada. Pesquisas mostram que os brasileiros iniciam o cuidado a partir de um diagnóstico, sem prevenção. Para que o cuidado se inicie em momento oportuno, o cadastro dos usuários do território da unidade precisa ser realizado. Para isso, há diversos desafios, como equipes incompletas e desmotivadas, agentes comunitários de saúde como peças facultativas das equipes e territórios descobertos, caracterizando desertos sanitários.
  6. Lentidão do processo de informatização da Atenção Primária no Brasil. Falta de infraestrutura, de financiamento amplo, de profissionais de tecnologia com interseção em saúde e sensibilidade das gestões sobre os benefícios do uso de dados são os principais desafios contidos nessa causa.
  7. Por fim, a variável que impede a implantação adequada das Linhas de Cuidado de DCNTs é a baixa adesão ao tratamento por parte dos portadores de doenças crônicas. Profissionais têm dificuldades de sensibilizar os usuários para a importância do autocuidado e adesão às orientações, incluindo tomar medicações, seguir recomendações alimentares e/ou mudar comportamentos.

Esses pontos foram levados em uma democrática mesa de discussões no webinarDiálogos IEPS”, realizado no último dia 28 de julho e que uniu a visão de pesquisadores e de gestores que vivem na pele os desafios diários de tratar usuários crônicos. Apesar das diferentes vivências, a conclusão sobre o tema foi a mesma: as Linhas de Cuidado de doenças crônicas não transmissíveis ainda pertencem ao mundo da ficção. 

Isso significa que temos as Linhas de Cuidado de jure, expressas em normativas do Ministério da Saúde, nos planos de enfrentamento de DCNTs e nos Cadernos de Atenção Básica, pouco atentas aos desafios de implementação dos municípios, além de assumir hipóteses irrealistas como a ideia de que as cidades conhecem todos os seus portadores de DCNTs e que a informação está bem organizada localmente. No nível municipal, porém, é que são implementadas as Linhas de Cuidado de facto. Um conjunto de práticas e procedimentos, muitos dos quais tácitos e não normatizados, que uma rede de saúde utiliza para manejar as DCNTs e que são muito desconectadas do que é preconizado pelo Ministério da Saúde. As linhas de cuidado do mundo real são repletas de improvisos e até de  práticas inovadoras, porém com alguns gargalos recorrentes.

Assim, há um alerta: o Ministério da Saúde precisa ter planos mais condizentes com as diferentes realidades experimentadas no Brasil, adaptando normativas para as particularidades regionais e acompanhando mais de perto a implementação de redes estruturadas de cuidado para tratar o problema mais crítico e letal do nosso sistema de saúde.

O próximo evento “Diálogos IEPS”, dia 1º de setembro, retomará esse tema, mas dessa vez pensando em como endereçar todos os desafios identificados. As discussões se darão em torno de possíveis soluções para os problemas detectados e experiências exitosas que gestores de saúde e profissionais de saúde poderão implementar nos seus municípios.

 

Fernanda Leal, mestra em Ciência Política (UFPE) e assistente de políticas públicas do Instituto de Estudo Para Políticas de Saúde (IEPS).

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A gestão de contratos de saúde e o impacto para o usuário do SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/04/a-gestao-de-contratos-de-saude-e-o-impacto-para-o-usuario-do-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/04/a-gestao-de-contratos-de-saude-e-o-impacto-para-o-usuario-do-sus/#respond Wed, 04 Aug 2021 10:00:11 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=468 Maria Luiza Gutierrez de Andrade Seixas, Mario Peterlevitz Frigerio, Uara Buschermohle e Juliana Viana Fiusa Moro

 

Grandes filas de espera para realização de cirurgias eletivas são a realidade de milhares de brasileiros dependentes do SUS, o Sistema Único de Saúde. Todos nós temos um conhecido nessa situação. Muito se fala em resolver essa dor, mas diante de um universo tão complexo e gigantesco como o SUS, uma única solução genérica dificilmente sanaria o problema. Você já se perguntou o por quê disso ? O que está em jogo quando falamos sobre esse assunto? O que falta para que alguma mudança realmente seja efetiva ou atenue parte do problema?

Inicialmente, para compreender a amplitude dessa questão, é necessário entender o que a causa. Nesse sentido, precisamos identificar as raízes do sistema SUS, em que contexto ele surgiu e em que cenário se encontra. 

O SUS foi criado em 1988, no âmbito da nova Constituição Federal Brasileira. Sua criação se deu num momento em que boa parte da sociedade brasileira ansiava por um grande protagonista e prestador de serviços de saúde para a população como um todo: o Estado. Ao mesmo tempo, uma outra parcela dos cidadãos brasileiros buscava a concorrência da iniciativa privada, associada a um bônus a ser emitido pelo Estado para aqueles que não pudessem pagar. Nem tanto ao mar nem tanto à terra, os interesses acabaram por se mesclar, gerando a criação de duas vertentes de atendimento: privada e pública. 

Dentro da esfera pública, o sistema SUS tornou-se um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde do mundo, abrangendo desde os simples atendimentos para avaliação de sinais vitais, por meio da Atenção Primária, até as neurocirurgias, inseridas na Atenção Terciária, de alta complexidade. O SUS é, hoje, responsável pela assistência de quase 80% da população brasileira, aproximadamente 160 milhões de pessoas. Sete em cada 10 brasileiros dependem exclusivamente do SUS para tratamento, atendimento hospitalar e outros serviços de saúde. Além disso, o SUS também atua em favor da vigilância sanitária no Brasil, ao fiscalizar todos os estabelecimentos alimentícios, de saúde, de medicamentos e de cosméticos. É ainda atribuída ao SUS a criação do Programa Nacional de Imunizações(PNI), referência internacional de política pública de saúde, que fornece à população acesso gratuito a todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Dentre essas e inúmeras outras atuações do SUS, fica clara a essencialidade do sistema para o Brasil. 

Entretanto, essa vertente pública de saúde, o SUS, encontra-se hoje sobrecarregada, e com um agravante: os procedimentos eletivos, represados durante a pandemia do COVID-19, estão na iminência de pressionar ainda mais o sistema, com o avanço da vacinação. 

Dentro desse cenário de sobrecarga, é nítido que, no SUS, a demanda supera consideravelmente a oferta –princípio básico de formação de qualquer fila, por menor que seja a diferença entre demanda e oferta. Frente a essa situação, é necessário levar em conta a disponibilidade de recursos para o SUS, a fim de preservar sua sobrevivência. Sabe-se que os recursos direcionados não são infinitos. Portanto, utilizar-se apenas do que se tem disponível e, ao mesmo tempo, promover uma melhora do sistema acaba passando necessariamente por tornar tudo mais eficiente. Aspectos básicos como medir, gerir e otimizar apresentam-se como excelentes alternativas viáveis para aumentar a entrega de procedimentos, por exemplo. 

Nossa população já passa dos 200 milhões, dentre os quais aproximadamente 160 milhões dependem unicamente do SUS. São muitos pacientes, muitas internações e muitos procedimentos para poucos médicos e hospitais. As filas de espera começam a ser formadas. As agendas de procedimentos, principalmente as ambulatoriais e de centros cirúrgicos,  encontram-se lotadas. Hoje, o tempo médio de espera para atendimento pelo SUS já ultrapassa um ano. Em casos extremos, principalmente na área da ortopedia, chega-se a sete  anos de espera. Muitos pacientes, diante da demora para serem atendidos, acabam tendo seu quadro clínico agravado, o que não raramente leva a doença à irreversibilidade, quadro que acarreta, comumente, em óbito. E a situação vem se agravando com o passar do tempo. 

Entender os mais relevantes aspectos que dão cadência à capacidade de realização de procedimentos é um grande desafio em um sistema extremamente complexo como o SUS. Entre tantos desses aspectos, destacam-se a dificuldade de gestão, a falta de profissionais, o absenteísmo por parte dos pacientes, as dificuldades e características regionais de um país continental como o Brasil e a tabela SUS de remuneração por procedimento –que, por se encontrar defasada, acaba promovendo um estrangulamento financeiro dos hospitais. 


Mergulhando um pouco mais nesse sistema, deve-se entender que o SUS é um grande prestador de serviços, cuja execução se dá por meio de hospitais contratados. Quando se fala em contratação hospitalar, começa-se a compreender um novo espectro de abordagem do problema: a gestão de contratos no sistema SUS, um dos principais fatores contribuintes para a perpetuação das filas.

Para entender os pormenores que envolvem essa questão, precisamos compreender o processo de contratação das instituições prestadoras de serviço de saúde pelo setor público. Em sua maioria, as principais entidades contratadas são instituições filantrópicas, regidas por extensos contratos, que determinam uma série de obrigações entre o hospital e o sistema SUS. Nesses documentos, estabelecem-se uma série de metas, chamadas de “metas físicas”, que dizem respeito ao número total de procedimentos que a instituição realizará –como as cirurgias e as consultas médicas dos mais variados tipos e especialidades. Essas metas determinadas em contrato devem ser atingidas pela instituição para que o repasse financeiro do sistema SUS ao hospital seja realizado de maneira integral. Em caso de cumprimento apenas parcial dessas metas, são aplicados descontos sobre o montante total a ser repassado ao hospital. 

O desafio de gestão está em atender essas metas por completo, a fim de evitar cortes financeiros sobre o valor cheio de contrato. Mesmo diante de um cenário em que se ultrapassam algumas metas, mas não se atingem outras, a instituição não é recompensada e acaba sofrendo uma redução significativa no recebimento. Nesse sentido, a sustentabilidade do hospital é fortemente afetada, o que prejudica sua continuidade dentro do sistema de saúde. 

Considerando-se que os hospitais filantrópicos são responsáveis por 32% do total de leitos públicos do Brasil e por quase 60% de todas as internações de alta complexidade do SUS, fica claro que o comprometimento da continuidade dos filantrópicos no Brasil tem o potencial de promover um efeito catastrófico, capaz de sobrecarregar ainda mais o sistema público, contribuindo para a formação das filas no SUS, devido, principalmente, à redução da oferta no que diz respeito a procedimentos hospitalares.

Nesse contexto específico, entra em jogo uma peça fundamental: o gestor hospitalar, que aloca os recursos, redireciona as equipes e monta os planos de procedimentos hospitalares. É ele o responsável por garantir uma administração hospitalar justa e eficiente aos pacientes, independentemente do valor financeiro disponível à instituição.

Entretanto, a eficácia desse processo de administração hospitalar tem sido altamente comprometida, uma vez que, em sua maioria, os gestores hospitalares das instituições que trabalham com o SUS no Brasil não têm acesso a uma visão holística do processo de desempenho. Não há suficiente visibilidade de dados e de informações acerca dos atendimentos, procedimentos, internações e outros processos realizados no hospital ao longo do tempo. 

Sem essas informações, formular um plano de procedimentos com antecedência, a fim de coincidir a oferta dos serviços em saúde com os recursos financeiros disponíveis e a capacidade física da instituição, torna-se uma tarefa de difícil execução. O gestor encontra-se, portanto, parcialmente desprovido do conhecimento necessário para tomar decisões direcionadas à sustentabilidade da instituição. Dessa forma, assegurar a mesma quantidade e qualidade de atendimentos aos usuários SUS torna-se muito mais complicado.  

Entende-se, desse modo, que a dificuldade do gestor em gerir os contratos permeia o sistema como um todo, afetando, por último, aqueles que se encontram na ponta de toda essa cadeia: os usuários. 

Dentre os vários tipos de problema que se relacionam com a fila do SUS, um deles é a gestão de contratos. Se adequadamente equacionada, tem a capacidade de contribuir para a otimização do acesso à saúde no Brasil. 

 

Maria Luiza Gutierrez de Andrade Seixas é estudante de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Mario Peterlevitz Frigerio é bacharel em Ciência da Computação pela UNICAMP e desenvolvedor de software & hardware.

Uara Buschermohle é médica pela Faculdade Santa Marcelina(FASM) com atuação em UTI.
Juliana Viana Fiusa Moro é enfermeira pela PUC-SP, especialista em gestão de Redes Atenção à Saúde pela Fiocruz e em gestão de enfermagem pela UNIFESP.
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Enfermagem brasileira e pertencimento étnico-racial: o que sabemos, e o que precisamos saber? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/enfermagem-brasileira-e-pertencimento-etnico-racial-o-que-sabemos-e-o-que-precisamos-saber/#respond Wed, 28 Jul 2021 10:00:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/115376546_gettyimages-1253858296-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=463 Helena Maria Scherlowski Leal David, Gerson Luiz Marinho e Kênia Lara da Silva

 

Estudos sobre a distribuição dos profissionais de enfermagem brasileiros segundo variáveis sociais e demográficas mostram um retrato que necessita ser atualizado com urgência. Um cenário já reconhecido no mundo todo: é o que remonta à feminilização histórica da profissão. No caso brasileiro, isso se reflete em todos os níveis de divisão técnica: auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros de nível superior são majoritariamente mulheres. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), cerca de 90% do total de profissionais de enfermagem de todo o mundo são do sexo feminino. Para além das desigualdades impostas pelas diferenças de gênero, inclusive quanto à baixa remuneração e às escassas oportunidades de ascensão nas carreiras, um aspecto que necessita ser melhor compreendido é como se apresentam as diferenças étnico-raciais para essa profissão eminentemente feminina.

Não há dados globais e tampouco informações comparáveis entre países que demonstrem as características da diversidade étnico-racial dos profissionais de enfermagem. No Brasil, os dados sobre essas variáveis podem ser obtidos a partir de bases censitárias. Mas é preciso lembrar que o último censo nacional ocorreu em 2010. Apesar dessa limitação, é relevante apontar resultados dos recenseamentos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): no ano 2000, 70% dos profissionais de enfermagem declararam ser de cor ou raça branca. Dez anos depois, o Censo 2010 contabilizou 54,4% nesse contingente –uma redução de 15,6% de enfermeiros classificados como de cor ou de raça branca. Além disso, o Censo de 2010 também registrou diferenças na autodeclaração entre enfermeiros de nível superior (62,7 % eram brancos) e profissionais de nível médio (49,1% eram brancos).  

Sabe-se que o critério de preenchimento da variável raça/cor é a autodeclaração, que sofre alterações em função da autopercepção. De modo especial, nos últimos anos há uma tendência de maior reconhecimento das pessoas acerca de seu pertencimento racial –o que pode justificar, em parte, o aumento do contingente de enfermeiros negros (compreendidos como o conjunto daqueles declarados de cor/raça preta e parda), bem como a redução dos percentuais de enfermeiros de cor/raça branca. No caso do acesso ao ensino superior, um importante marcador foi a política de cotas sociais e raciais para estudantes que se declaram pobres e negros, o que pode ter influenciado o aumento de enfermeiros graduados nas últimas décadas.

Esse cenário nos permite pensar que, na enfermagem, assim como na população brasileira em geral, há interseccionalidade entre gênero-raça-classe, com pessoas autodeclaradas brancas tendendo a ocupar os postos de trabalho de nível superior. Por outro lado, as ocupações que exigem nível médio e elementar de escolaridade absorvem contingentes proporcionalmente maiores de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. De acordo com dados de 2010, a renda de enfermeiros (nível superior) autodeclarados brancos superou em mais de um quarto àquela registrada para enfermeiros pardos e pretos; e entre os técnicos de enfermagem, brancos tiveram renda aproximadamente 11% maior àquela remetida para técnicos pardos e pretos.

Dentro da equipe profissional de enfermagem, nota-se com maior frequência que enfermeiras (nível superior) ocupam cargos de chefia e gestão, sendo responsáveis pela coordenação dos demais profissionais da equipe de enfermagem. Considerando desigualdades observadas através da pesquisa censitária quanto à distribuição da autodeclaração de raça-cor, é possível inferir que, na enfermagem, “uma minoria de mulheres brancas ocupam postos nos quais chefiam uma maioria de mulheres negras”. Estes dados refletem as condições históricas e a divisão do trabalho no interior da profissão de enfermagem com hierarquização social reproduzindo a hierarquização racial. 

Historicamente, mulheres negras tendem a ocupar espaços de menor status social, com base na hierarquia do mercado de trabalho (o que pode ser observado para técnicas e auxiliares de enfermagem). Por outro lado, imagem da “enfermeira padrão”, no topo da pirâmide, foi cristalizada pela elitização e branqueamento da profissão. A ruptura com os ciclos de desigualdades advindos dos pertencimentos de gênero, raça, e classe é necessária e urgente na sociedade brasileira, e terá de superar os séculos de uma história de reprodução de relações sociais de subordinação, violência, racismo e opressão. Na enfermagem, com seus mais de dois milhões de profissionais, será parte importante no processo de enfrentamento dessas questões. 

De que forma, exatamente, essas diferenças e desigualdades incidem sobre as oportunidades de emprego, condições de trabalho e renda e de desenvolvimento da enfermagem são perguntas a serem respondidas por meio de novos estudos que atualizem o debate e contribuam para o reconhecimento profissional e o trabalho digno do imenso contingente de mulheres que cuidam.

 

Helena Maria Scherlowski Leal David é professora Titular do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DESP/ENF/UERJ).

Gerson Luiz Marinho é professor Adjunto do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery (DESP EEAN UFRJ).

Kênia Lara da Silva é professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG).

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Saúde mental: indicadores e dados descomplicados são fundamentais para melhorar a efetividade dos serviços no Brasil https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/07/21/saude-mental-indicadores-e-dados-descomplicados-sao-fundamentais-para-melhorar-a-efetividade-dos-servicos-no-brasil/#respond Wed, 21 Jul 2021 10:00:30 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/1d7dc5b1146b96618d440d3a8ddadd46_05-29-17_05-35-32-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=456 Maria Fernanda Quartiero, Luciana Barrancos, Daniela Krausz e Isabel Opice 

 

Uso de dados e indicadores na gestão de saúde potencializa a implementação de políticas públicas e a formulação de metas de cuidado relacionadas à saúde mental

 

Como se mede a satisfação de usuários e o sucesso dos serviços de saúde mental? Para rever e ajustar estratégias de cuidado oferecidas no Sistema Único de Saúde (SUS), é necessário entender o que está funcionando, o que não está e porquê. Dados e indicadores são fundamentais para apoiar tomadas de decisão com base em evidências e avançar no seu uso na gestão pública é uma oportunidade para alavancar formas de avaliação e aprimoramento dos serviços de saúde mental no Brasil.  

Atualmente, não existe um conjunto de indicadores que seja aplicado de forma consensual e consistente, tendo como objetivo monitorar e medir a efetividade do sistema de saúde mental no nível no país. Sabemos que sete a cada 10 pessoas dependem exclusivamente do SUS, e também que saúde mental foi o sexto motivo mais frequente apontado como impedimento para a realização de atividades habituais –como mostrou o último levantamento sobre acesso e utilização dos serviços de saúde do IBGE em 2019.

Mas apesar de a saúde mental ser um tema cada vez mais presente na agenda do dia, por que razão os governos ainda têm pouco acesso a informações de qualidade e não usam indicadores para direcionar esforços e recursos em direção às necessidades da população?

São três os principais desafios identificados para o uso de indicadores no desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental no Brasil.

O primeiro desafio refere-se à subjetividade do diagnóstico. Diferentemente de indicadores relativos a doenças como hipertensão e diabetes, muitas vezes binários e mais objetivos (há ou não há determinado quadro), o diagnóstico na saúde mental é mais subjetivo. Definir um distúrbio depende de observações e de um entendimento amplo e integral do usuário, razão pela qual se recomenda que os diagnósticos sejam feitos dentro de um espectro –desde casos mais leves a casos mais graves. A complexidade do diagnóstico no nível individual dificulta o entendimento mais amplo e a construção de indicadores no nível das redes de saúde.  

Como segundo elemento, destaca-se a  falta de uma visão completa do usuário e de sua trajetória dentro da  rede de atenção psicossocial. Para utilizar dados e indicadores, é crucial entender a trajetória de uma pessoa dentro do sistema, oferecendo informações sobre a continuidade de tratamentos iniciados dentro do equipamento e apontando caminhos para melhorias nas práticas de cuidado. Hoje, as principais informações registradas sobre cidadãos no sistemas de saúde –como quantidade de atendimentos realizados, por exemplo– não são suficientes para desenvolver indicadores que permitam o entendimento de onde esse fluxo não está funcionando. A multiplicidade de sistemas existentes também contribui para esse desafio, com a gestão pública se deparando com problemas na trajetória do usuário, mas não dispondo de métricas para entender o tamanho do problema ou o ponto exato onde o fluxo está disfuncional.

Por fim, há o obstáculo relativo ao  baixo uso de indicadores de sucesso e de resultado dos serviços de saúde mental. Não há, de forma consistente no Brasil, métricas de resultado e sucesso que ajudem gestores a entender deficiências dos serviços e a rever as estratégias para ajustar o que for necessário, com base em dados concretos. Por exemplo, o que leva uma pessoa a abandonar um tratamento em saúde mental? Qual é o impacto de um serviço na qualidade de vida das pessoas que passam por ele? Quais são os serviços capazes de potencializar a autonomia de pessoas com transtornos de saúde mental? No Canadá, mede-se a taxa de repetição de hospitalizações para pessoas com doença mental em um ano, já que uma taxa alta pode indicar uma deficiência do atendimento. 

Em função desses desafios, dada a importância da saúde mental para a qualidade de vida dos brasileiros, o Instituto Cactus e a ImpulsoGov estão desenvolvendo projeto piloto, em parceria com governos municipais, com o objetivo de consolidar indicadores de saúde mental que forneçam informações-chave ao gestor público, e que ajudem a melhorar a qualidade dos atendimentos e possam ser utilizados em outras cidades do Brasil. 

Para isso, envolver o ecossistema de saúde mental do Brasil no uso de indicadores é fundamental. Acreditamos que todo esse processo precisa ser feito de maneira integrada ao dia a dia da gestão e ao funcionamento dos equipamentos de saúde pública. Criar indicadores de saúde mental, gerando informação de qualidade e descomplicada, é um passo-chave que terá impacto positivo a cuidadores e usuários do sistema de saúde, permitindo que a alocação e uso do orçamento de recursos públicos sejam otimizados, e que os processos decisórios, a qualidade e a efetividade dos serviços públicos de saúde mental sejam aprimorados no Brasil, impactando milhões de brasileiros.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício.

Daniela Krausz é Gerente Sênior de Projetos na ImpulsoGov, uma organização brasileira de saúde pública que tem como objetivo impulsionar o uso de dados e tecnologia no setor público para assegurar o direito a uma vida saudável a todas as brasileiras e brasileiros, sem exceção.

Isabel Opice é Co-fundadora e Diretora de Operações da ImpulsoGov e Mestre em Desenvolvimento Internacional pela Universidade de Harvard, com experiência no Governo do Estado de São Paulo e no Instituto Ayrton Senna.

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