Saúde em Público https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br Políticas de saúde no Brasil em debate Wed, 02 Feb 2022 14:49:03 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Desenvolvimento em saúde depende do desafio da inovação https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/10/desenvolvimento-em-saude-depende-do-desafio-da-inovacao/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/10/desenvolvimento-em-saude-depende-do-desafio-da-inovacao/#respond Wed, 10 Nov 2021 08:00:51 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/8508-scaled-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=580 Suellen Pereira de Carvalho

 

Cresce o número de iniciativas governamentais para impulsionar startups e GovTechs (startups focadas em gerar inovação para o setor público). Inovação, novas tecnologias e digitalização são elementos importantes de ganho de escala e da qualidade nos serviços públicos, ao mesmo tempo que exigem investimento em recursos financeiros e humanos. 

No campo da política pública, a questão da inovação é tratada sob dois aspectos centrais: o desenvolvimento econômico proporcionado pelo aquecimento do ecossistema, pelo investimento e pela geração de negócios; e a resolução de problemas complexos com o uso de inovação, aprimorando tanto a qualidade dos serviços prestados ao cidadão, quanto as condições de trabalho do agente público.

Antes mesmo da pandemia de Covid-19, a inovação em saúde era um desafio no setor público. Em 2017, os gastos em saúde somaram 9,2% do PIB do país. A pandemia mobilizou governos, empresas e sociedade civil na busca por soluções para o combate ao vírus e às consequências econômicas e sociais. As instituições públicas e privadas precisaram ser rápidas na adoção de tecnologias, para continuar produtivas. 

Na saúde, foi emblemática a velocidade com a qual a telemedicina foi aprovada no Brasil. Na carona do que ocorreu no mundo, o uso de inteligência artificial para apoiar médicos no diagnóstico da Covid-19 também foi adotado no país. As parcerias entre governos e empresas farmacêuticas, via ICTs (Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação), permitiram o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde. 

O legado dessa mobilização de agentes públicos e privados para viabilizar soluções inovadoras em escala nacional já existe. Há uma sucessão de instrumentos legais aprovados recentemente, que propiciam maior segurança jurídica ao agente público e viabilizam acordos para o desenvolvimento da inovação. Como exemplos, a Política Nacional de Inovação (outubro 2020), a Nova Lei de Licitações (abril 2021) e o Marco Legal da Startups (junho 2021). 

Apesar dos avanços no período pandêmico, barreiras significativas para a inovação em saúde ainda precisam ser superadas:

  • Altos investimentos e de risco: inovação de base científica e tecnológica necessita de alto investimento. O governo deve compartilhar os riscos do desenvolvimento dessas soluções, como ocorreu no desenvolvimento das vacinas, além de criar incentivos para um ambiente propício ao desenvolvimento de soluções tecnológicas;
  • Maturidade das soluções: identificar potencial, selecionar soluções cujo grau de maturidade não esteja avançado e desenhar fluxos de apoio ao desenvolvimento, com ambiente de teste das soluções;
  • Adesão às tecnologias pela ponta – a ponta, que vai receber e implementar a inovação, pode não ter a infraestrutura necessária. Questões corriqueiras em grandes centros urbanos, como o acesso à internet, podem inviabilizar a adoção de soluções digitais na periferia do país;
  • Interconexão e fluxo de comunicação entre as redes primária, secundária e terciária, para adoção de soluções;
  • Startups devem atender o desafio da escala em esfera governamental, tanto do ponto de vista da solução quanto do modelo de negócios;
  • Construir cases de uso dos instrumentos legais para compra e adoção de inovação em saúde, e que possam ser referência para gestores públicos de diferentes esferas governamentais.

Tendo em vista o tamanho dos desafios, as instituições governamentais brasileiras têm diferentes papéis a empenhar: fomentar o ecossistema de inovação em saúde com políticas públicas, linhas de crédito específicas e legislação que crie um ambiente propício à inovação; adotar soluções em saúde que melhorem a qualidade dos serviços prestados ao cidadão; e apoiar o desenvolvimento de soluções com conhecimento científico, infraestrutura e ambiente de testes existentes nas ICTs. 

As startups e GovTechs, do lado da oferta, têm o desafio de direcionar esforços para o desenvolvimento de soluções que considerem as necessidades da saúde pública, além de serem agentes transformadores no apoio à adoção dessas soluções pelos agentes públicos na ponta, como parte do modelo de negócios. 

 

Suellen Pereira de Carvalho é Diretora de Inovação e Design no Instituto Tellus. Administradora pública pela Unesp, pós graduada em Gestão de Projetos pela FGV e Gestão da Inovação Social pelo Instituto Amani – Quênia.

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SUS: hora de avançar https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/03/564/#respond Wed, 03 Nov 2021 10:00:37 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/sus-agencia-brasil-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=564 Ricardo Oliveira

 

O adiamento de cerca de 1,6 bilhão de procedimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), segundo estimativas do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), em consequência da pandemia de Covid-19 acrescenta-se às dificuldades de acesso já existentes. Espera-se, portanto,  um cenário de maiores restrições para o atendimento das necessidades de saúde da população brasileira nos próximos anos. 

Por outro lado, a atual crise sanitária criou condições para avançar na qualidade e na eficiência do atendimento aos usuários do SUS, em função, pelo menos, das quatro questões a seguir:

1- A superação da pandemia passou a ser chave para o enfrentamento das crises social e econômica e para a retomada do crescimento econômico e dos empregos, elevando a prioridade das políticas públicas de saúde junto aos governantes.

2- A necessidade, o interesse e a valorização do SUS pela população levaram a mídia, os governantes e os líderes políticos a se mobilizar com mais ênfase no debate sobre as políticas de saúde. Isso pode ser constatado pela criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado e pelo  volume de horas dedicadas à cobertura da pandemia pela imprensa.

3- A crise sanitária teve o efeito de conscientizar a população em relação à importância do autocuidado. Higienizar as mãos com álcool gel ou sabão, usar máscaras e manter distanciamento social se incorporaram como hábitos no dia a dia, mostrando a necessidade de cada um cuidar da sua saúde e da coletividade. O autocuidado é um comportamento fundamental para ajudar o SUS a superar o desafio do atendimento aos seus usuários, porque reduz a demanda ao sistema.

4- A existência de um conjunto de propostas com ampla aceitação acerca da reorganização do modelo de atenção, gestão e financiamento do SUS, a saber: a) superar a fragmentação entre os níveis de atendimento, integrando a atenção primária, especializada e hospitalar; b) implantar um modelo de atenção adequado para tratar as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs); c) organizar as Redes de Atenção (RAS) a partir das regiões de saúde; d) considerar a Atenção Primária à Saúde (APS) como coordenadora da RAS; e) aumentar a informatização da gestão e da prestação dos serviços; f) fortalecer a gestão tripartite; g) aprimorar o controle social; h) prover financiamento adequado; i) fomentar o autocuidado; j) implantar a gestão por resultados, tendo em vista o aumento da qualidade e da eficiência na prestação de serviços.

Essas propostas são bastante complexas e demandam tempo para efetiva consolidação. Por isso, concomitante  a elas, medidas emergenciais  devem ser pensadas para suprir a demanda por serviços de saúde no curto prazo, como consultas, exames, internações e cirurgias.

A pandemia mostrou a necessidade de aumentar o investimento científico, tecnológico e industrial no setor da saúde para desenvolver conhecimento e capacidade de produção de bens e serviços no Brasil. A dependência externa da produção de insumos básicos e fármacos se provou ineficaz para atender as necessidades do SUS.

Para aproveitar a conjuntura favorável ao SUS, é necessário que a comunidade da saúde pública se mobilize, tendo em vista a busca por um consenso político em relação às propostas que melhorem a prestação de serviços, garantam sua implantação ao longo do tempo e contribuam com o debate junto ao Congresso Nacional.

Essa mobilização deve ser compreendida como uma obra coletiva, uma vez que depende da liderança e do comprometimento do Ministério da Saúde (MS), assim como de governadores e prefeitos, gestores e servidores do setor, órgãos públicos que fiscalizam e controlam a gestão e o exercício das profissões da área e, por fim, da fundamental participação da sociedade. 

Apenas o setor público não vai conseguir atender as demandas dos serviços agora e no futuro. Portanto, faz-se necessário reunir todos os parceiros que possam colaborar na superação desse desafio.

O MS, em função do seu papel de coordenador nacional das políticas de saúde, deveria tomar a iniciativa de convidar os representantes do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONSAD), do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e do Conselho Nacional de Saúde (CNS) para o debate sobre como superar o enorme desafio na prestação de serviços do SUS. Não há tempo a perder!

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo entre 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012 e Gestão Pública e Saúde, FGV 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

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Cuidados adequados e personalizados para o câncer de mama https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/27/cuidados-adequados-e-personalizados-para-o-cancer-de-mama/#respond Wed, 27 Oct 2021 10:00:05 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/cancer_mama-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=558 Vilmar Marques de Oliveira

 

O preconceito e a desinformação ainda são obstáculos para as mulheres – e para toda a sociedade – em relação ao câncer de mama. O estigma em torno de uma doença que pode ser grave e afeta diretamente um dos maiores símbolos da feminilidade atrapalha de várias maneiras: desde o deixar para depois a realização de exames que deveriam ser periódicos até barreiras emocionais que, uma vez feito o diagnóstico, impedem que essa mulher seja protagonista no seu tratamento.

O agravante é que o câncer de mama é uma doença complexa. Existem diferentes perfis de tumor e momentos específicos, que envolvem diferentes decisões. Outra questão é o acesso às opções de tratamento e a própria adesão à conduta escolhida, considerando tratar-se de uma doença tempo-dependente e que não espera nada, nem ninguém, para progredir. Ela é mais rápida ou mais lenta a depender das características que se apresentam em cada caso.

Por isso é que se fala em jornada da paciente com câncer de mama. Uma mulher que é única e tem uma história só sua, mas que deve e pode buscar os cuidados mais adequados e personalizados para o seu perfil. É certo que, nesse caminho, desinformação e prejulgamento fragilizam. Mas diálogo, conhecimento, autocuidado e rede de apoio efetiva, seja de familiares, amigos, colegas de trabalho e mesmo da equipe de saúde, contribuem para a vida antes, durante e depois do câncer. Uma vida que pode ser plena.

Esse olhar coletivo sobre o câncer de mama como um tema de interesse de toda a sociedade é fundamental para a efetivação e o aprimoramento das políticas públicas relacionadas à linha de cuidado da patologia (rastreamento, diagnóstico e tratamento), bem como à navegação das pacientes no sistema de saúde. Embora tenhamos importantes leis aprovadas e um sistema público e universal, ainda há muito a avançar para salvar um número maior de mulheres.

O câncer de mama é o mais frequente entre as brasileiras, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), e ainda causa a morte de 20 mil mulheres todos os anos. A estimativa de novos casos para 2021 é de aproximadamente 66 mil. Embora seja rastreável desde o início a partir da mamografia de rastreamento, o diagnóstico precoce permanece ocorrendo bem menos vezes do que nos estágios avançados da doença.

A ciência vem fazendo a sua parte. O planejamento adequado logo após o diagnóstico, associado ao melhor tratamento para o perfil da paciente, permite gerenciar o câncer de mama com maior probabilidade de cura ou controle. Sendo ou não invasivo, as chances de cura são elevadas (aproximadamente 95%) quando a detecção ocorre em fase precoce. Cada vez mais a medicina entende as alterações genéticas nas células que originam e caracterizam os tipos de tumores, conhecimento este que possibilita tratamentos mais adequados e eficientes, que muitas vezes associam terapias antes e/ou após a cirurgia, a depender de cada caso.

Para ilustrar a relevância deste conhecimento, podemos citar as pacientes com um biomarcador específico, chamado HER2+. Mulheres cujos tumores apresentam esta mutação podem se beneficiar de terapias direcionadas a essa alteração em diferentes etapas da doença. Quando diagnosticado em estágio inicial, o tratamento correto, no momento mais adequado, pode, inclusive, resguardar pacientes com alto risco de recorrência da doença de evoluir para um estágio metastático, aproximando-as da cura.

Por exemplo, mulheres que precisam iniciar o tratamento antes da cirurgia, pelo fato de terem tumores maiores e/ou linfonodos comprometidos, com o intuito de aumentar suas chances de cura e possibilitar uma cirurgia conservadora, podem ainda apresentar células tumorais no momento da cirurgia, o que indica um risco maior de recorrência. Por isso, essas pacientes precisam de um tratamento de resgate após a cirurgia, para então reduzir as chances de progredir para cenários metastáticos. Todo esse planejamento terapêutico personalizado, feito pela equipe que acompanha a paciente, é essencial para garantir que cada pessoa receba o tratamento mais adequado de acordo com as características do seu tumor.

Não poderia finalizar este texto sem esclarecer, também, que qualquer mulher pode ter câncer de mama. A maioria dos tumores – 90% – não têm origem hereditária. São fatores de risco a alimentação de má qualidade, a ausência de atividade física regular, o excesso de peso, a exposição a hormônios (estrogênios), o tabagismo e o uso excessivo de bebidas alcoólicas, entre outros.

Contudo, não é possível precisar a causa da doença e, por isso, precisamos de uma nova mentalidade. Ao mesmo tempo em que é necessário adotar medidas preventivas que combatam esses fatores de risco – e quanto antes, melhor –, devemos evitar que essa mulher que apresenta o câncer de mama se sinta culpada.

Diante disso, são essenciais movimentos como o “Vem Falar de Vida”, que disseminam informações de qualidade sobre o tema, reverberam ações de múltiplos signatários unidos por esse propósito e fortalecem a mensagem de que o câncer de mama não precisa ser sinônimo de fracasso, de morte ou de mutilação. Existem meios para que cada vez mais histórias de mulheres sejam transformadas. Discutir o acesso a eles é responsabilidade de todos nós.

 

Dr. Vilmar Marques de Oliveira é Chefe de Clínica Adjunto do Hospital da Santa Casa, Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e atual presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.

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Implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no município do Rio de Janeiro https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/13/implantacao-da-politica-nacional-de-saude-integral-da-populacao-negra-no-municipio-do-rio-de-janeiro/#respond Wed, 13 Oct 2021 10:00:28 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/750_racismo-estrutural-populacao-negra-covid19-pandemia-coronavirus_20201117154514-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=547 Monique Miranda, Louise Mara S. Silva e Michele Gonçalves da Costa

 

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), publicada pela Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009, pelo Ministério da Saúde (MS), apresenta como marca o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com o objetivo de promover a equidade em saúde. Os Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população, segundo a Comissão Nacional de Determinantes Sociais em Saúde (CNDSS).

Políticas de equidade no Brasil, convenções e tratados internacionais demonstram que as desigualdades de raça e gênero determinam oportunidades de trabalho e renda, acesso a recursos institucionais, condições de moradia, vulnerabilidades e exposição à violência. Entretanto, o gênero e, em especial, a variável raça/cor, ainda são insuficientemente incorporados no desenho de políticas, programas e serviços das instituições públicas e privadas.

A PNSIPN endossa e correlaciona-se com outros marcos legais: a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Decreto nº 4.886 de 20 de novembro de 2003), a Regulação do Sistema Único de Saúde-SUS (Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010), a Política Nacional de Promoção da Saúde (Portaria MS/GM nº 687, de 30 de março de 2006), a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas (Durban 2001), a Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela Assembleia Geral da ONU (Resolução 68/237, para o período entre 2015 e 2024). Por fim, destaca-se o artigo 196 da Constituição Federal de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e 207 econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

De acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,7% da população brasileira é composta por pessoas negras (somatório de autodeclarados pretos e pardos), correspondendo a 96,7 milhões de indivíduos. Na cidade do Rio de Janeiro os dados epidemiológicos apontam maior vulnerabilidade de cidadãos pretos e pardos aos agravos à saúde, embasando a necessidade de se priorizar a implantação de uma política específica de equidade racial da população negra em nossa cidade. Análises dos sistemas de informação em saúde demonstram maior mortalidade infantil da população negra em comparação com a branca; maior risco de morte entre os jovens da população negra em comparação com os jovens brancos; maior mortalidade materna das mulheres negras quando comparadas com as mulheres brancas.  Da mesma forma, a ocorrência de doenças tais como hipertensão, diabetes, tuberculose dentre outras também são prevalentes entre pretos e pardos, inclui-se ainda nesse  padrão os óbitos por Covid-19.

O marco fundamental para o combate às desigualdades étnico-raciais em saúde na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro foi a realização do “II Seminário de Promoção da Saúde: Equidade em Saúde da População Negra”, em dezembro de 2006. Este evento foi organizado pela então Assessoria de Promoção da Saúde em parceria com a ONG de mulheres negras, a Criola.  O seminário teve como intuito sensibilizar profissionais, gestores da saúde e definir estratégias para a implantação da PNSIPN na cidade. Estavam presentes aproximadamente 300 participantes: gestores e profissionais de saúde, ativistas do movimento negro e de mulheres negras, sociedade civil, lideranças comunitárias e representantes das religiões afro-brasileiras. Para o fomentar e articular o processo de implantação da política foram deliberadas as seguintes propostas no evento:

  • criação de um Comitê Técnico de Saúde da População Negra;
  • implantação do registro da variável raça/cor nos impressos oficiais da SMS;
  • diagnóstico epidemiológico da saúde da população negra;
  • formulação e estabelecimento de indicadores;
  • enfrentamento ao racismo institucional;
  • valorização das religiões de matriz africana;
  • institucionalização de recursos financeiros para a implantação da política;
  • fomento da participação do controle social e o fortalecimento de articulações intersetoriais.

No ano de 2007 foi criado o Comitê Técnico de Saúde da População Negra, por meio da  Resolução SMS Nº 1298/2007, antes mesmo da promulgação da PNSIPN. O referido Comitê Técnico tem como atribuições:

I – sistematizar propostas que visem à promoção da equidade racial na atenção à saúde da população negra;

II – apresentar subsídios técnicos e políticos voltados à melhoria da atenção à saúde da população negra;

III – elaborar e implementar um plano de ação e monitoramento para intervenção pelas diversas instâncias e órgãos do Sistema Único de Saúde;

IV – fomentar e participar de iniciativas intersetoriais relacionadas com a saúde da população negra;

V – atuar na implantação, acompanhamento e avaliação das ações programáticas e políticas referentes à promoção da equidade em saúde da população negra na SMS/Rio, em consonância com as normativas do SUS.

O Comitê é composto por profissionais da gestão da SMS-Rio e de suas áreas técnicas, assim como  pelas representações da  sociedade civil, como universidades, ONGs , coletivos e outas instâncias,  em especial dos movimento negros e do movimento de mulheres.  Desta forma o CTSPN tem tido ao longo desses anos papel fundamental no impulso e acompanhamento da implantação da PNSIPN,  além de ser a instância de permeabilização do diálogo da SMS-Rio com a sociedade civil e na construção conjunta de ações para a redução das desigualdade étnico-raciais.

A mudança do panorama das graves iniquidades que atingem a população negra  requer o reconhecimento da sua situação de saúde. Para isso, é necessário que a variável raça/cor seja incluída em todos os sistemas de informação , formulários, cadastros, prontuários , impressos. Destacamos que um  dos objetivos específicos da PNSIPN é a inclusão do quesito cor em todos os instrumentos de coleta de dados adotados pelos serviços públicos, conveniados ou contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Cabe destacar que o Rio de Janeiro instituiu desde 2008, pela Lei n.º 4.930/08 a inclusão obrigatória do quesito raça em todos formulários de informações em saúde do Município.

É fundamental  que as desigualdades étnico-raciais sejam monitoradas por dados, indicadores e informação em saúde  desagregados  por raça/cor. Embora na SMS-Rio o início da implantação da PNSIPN tenha completado pouco mais de uma década e exista atualmente um bom preenchimento da variável raça/cor , ainda é  incipiente  e descontínua sua utilização  na análise,  planejamento e  tomada de decisões nas  políticas e ações de saúde, assim como no investimento de recursos. Além disso, é necessário que os dados  por raça/cor sejam divulgados e disponibilizados de forma ampla, sistemática e transparente através dos canais de informação da prefeitura e junto  a sociedade civil e a população em geral.

As informações com os dados desagregados por cor ou raça são relevantes para atender ao princípio da equidade do SUS, ao reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde, oferecendo atendimento de acordo com as necessidades das populações, o que pode contribuir na redução do impacto dos determinantes sociais de saúde aos quais estão submetidas. São os dados desagregados por raça/cor que nos permitem confirmar o racismo como determinante social em saúde em um município como o Rio de Janeiro, onde segundo os dados do Instituto Pereira Passos (órgão responsável pela sistematização dos dados demográficos da cidade) a população em 2010 era composta por 51,3% brancos e 11,2% pretos; 36,7% pardos, configurando em 47,9% o quantitativo populacional negro.

Uma multiplicidade de pesquisas e estudos no campo da saúde coletiva expõe através de indicadores de morbimortalidade a grave situação de iniquidade sofrida pela população negra e indígena. Pesquisas qualitativas demonstram que o racismo institucional dificulta o acesso de pessoas pretas, pardas e indígenas aos serviços de saúde, influencia na qualidade da atenção à saúde prestada pelos profissionais e também  agrava a violência institucional  como no atendimento ao parto das mulheres negras.

Reconhecer que as práticas racistas também estão dentro do modelo de atenção à saúde e buscar a transformação desse cenário deve ser um objetivo de todos que estejam envolvidos com o cuidado em saúde e com as instâncias de gestão.  Os indicadores em saúde espelham a realidade da discriminação e desigualdade racial, embasando  a necessidade de se intensificar e ampliar a implantação da PNSIPN. Infelizmente o  racismo institucional na estrutura e entre os agentes públicos  da Prefeitura-Rio pouco mudou, decorrendo então que graves iniquidades raciais em saúde persistem na cidade do Rio de Janeiro.

A PNSIPN (2009) e a  Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas (2002)  são marcos no reconhecimento de diferenças e especificidade étnico-raciais na população brasileira. Essas políticas , em especial a primeira, trazem para a área de atuação dos gestores e profissionais de saúde as questões  da identidade racial e das desigualdades étnico-raciais, demandando para a sua implantação  um intenso e contínuo trabalho de combate ao racismo institucional  e estrutural.

A ampliação do acesso ao SUS e a integralidade das ações de saúde, assim como a transformação das graves desigualdades étnico-raciais demandam que profissionais, gestores e sociedade civil reconheçam o racismo institucional, comprometendo-se para o desafio cotidiano da desconstrução da ideologia racista existente em  nossa sociedade.

 

Monique Miranda é enfermeira, mestre em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Louise Mara S. Silva é enfermeira e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

Michele Gonçalves da Costa é sanitarista, especialista em saúde coletiva, mestranda em Saúde Pública/ENSP-Fiocruz e membra da comissão executiva do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do município do Rio de Janeiro.

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Possíveis caminhos para solucionar os gargalos de implementação das Linhas de Cuidado de DCNTs na APS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/22/possiveis-caminhos-para-os-gargalos-na-implementacao-das-linhas-de-cuidado-de-dcnts-na-aps/#respond Wed, 22 Sep 2021 10:00:04 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/eccbfb94-6a3c-4a17-a605-ca23957ed714-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=529 Fernanda Leal e Helyn Thami

 

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) respondem por 3 de cada 4 mortes de brasileiros e brasileiras, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O envelhecimento da população e o aumento da prevalência de fatores de risco comportamentais — como inatividade física e alimentação inadequada —, tende a elevar, nos próximos anos, a incidência de DCNTs na população brasileira, pressionando a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma pesquisa desenvolvida pelo IEPS em parceria com a Umane (Panorama IEPS n. 2) mostrou que as Linhas de Cuidado (LC) para DCNTs — conjunto de fluxos assistenciais que manejam as múltiplas necessidades dos portadores dessas doenças — não estão plenamente implementadas nos municípios brasileiros. As Linhas de Cuidado devem atender às diversas demandas dos usuários, em diferentes níveis de complexidade, garantindo a promoção e a restauração da saúde.

Para os principais desafios encontrados são apontados os possíveis caminhos para…

1. Reduzir barreiras de acesso

A baixa cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) em alguns locais faz com que uma parte importante da população brasileira não tenha acesso a serviços essenciais. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, 40% dos domicílios não estão cadastrados na APS. É preciso eliminar barreiras de acesso aos serviços já existentes. Para ampliar a cobertura da Atenção Primária, alguns passos são cruciais: 

  • Mapear a mancha de cobertura de equipes da APS e identificar vazios sanitários; 
  • Identificar e hierarquizar vulnerabilidades, dando ênfase às áreas mais críticas; 
  • Planejar a expansão da APS, estimando necessidade de pessoal e equipamentos; 
  • Implantar uma estrutura física; 
  • Recrutar e selecionar os profissionais para integrar as novas equipes.

Para operacionalizar isso, pode-se, por exemplo:

  • Buscar financiamento para extensão de horários de atendimento (por exemplo, pelo programa Saúde na Hora, do governo Federal) e diversificar modelos de assistência (atendimento em horários estendidos e intervenções em vias públicas e demais pontos de circulação e socialização); 
  • Apostar no treinamento de profissionais, envolvendo também usuários, para redução de barreiras de acesso ligados a comportamentos dos membros das equipes.

2. Garantir profissionais com treinamento apropriado e em número adequado

O cuidado de qualidade às pessoas portadoras de DCNTs passa pela atuação de profissionais de diferentes áreas, mas na realidade dos municípios há ausência de treinamento apropriado e efetivo para atender às demandas dos usuários crônicos. Para resolver isso, é possível:

  • Atuar, junto a instituições de ensino e pesquisa, na criação de programas específicos para provisão de novos profissionais para esse nível de atenção;
  • Elaborar um plano de valorização e carreira para os profissionais atuantes na APS, visando a fixação de equipes.

Quanto aos modelos de treinamento e difusão do conhecimento, poderíamos:

  • Garantir que se apliquem protocolos baseados na melhor evidência disponível; 
  • Ter materiais simples e de consulta rápida para que os profissionais usem; 
  • Apostar em metodologias mais ativas para apoio de construção e implementação de protocolos.

3. Integrar melhor os níveis de cuidado

Integrar serviços de saúde está entre um dos maiores desafios do SUS.  No cuidado às pessoas com doenças crônicas, essa integração é absolutamente crucial para que haja bom uso de recursos e se consigam melhores resultados de saúde. Para promover essa interlocução, indicamos:

  • Garantir o compartilhamento de informações clínicas entre serviços em toda a rede; 
  • Realização de planejamento conjunto entre serviços envolvidos nas Linhas de Cuidado; 
  • Compartilhar recursos e metas entre serviços; 
  • Investir em posições de liderança para a integração.

4. Ampliar e melhorar o acompanhamento dos usuários

Uma vez que não se tem Linhas de Cuidado plenamente estruturadas, o acompanhamento de quem tem doenças crônicas fica comprometido. Acompanhar adequadamente esses usuários significa ter um calendário de ações de cuidado que contemple desde a promoção da saúde e a prevenção até a recuperação da saúde e limitação de danos. Para que isso seja efetivado, vale a pena:

  • Levantar lista de usuários diagnosticados com DCNTs nos territórios; 
  • Verificar a rotina de consultas e exames destes, além de apontar aqueles que ainda não estão dentro do padrão de cuidado preconizado; 
  • Entrar em contato com usuários para agendar consultas e atividades de acompanhamento; 
  • Realizar busca ativa daqueles que forem difíceis de contactar ou que tenham faltas às atividades.

5. Ampliar os cadastros de usuários

O cadastramento é uma função primordial da APS. A não realização dos cadastros dos usuários do território implica que estes não são rotineiramente acompanhados pelas equipes e, quando o são, são atendidos em condições de demandas mais urgentes, quando, em geral, houve um quadro de agudização que poderia ter sido evitado. Para cadastrar adequadamente os usuários orienta-se seguir dois caminhos, que devem ser implementados de modo simultâneo: cadastrar por meio de visitas dos Agentes Comunitários de Saúde às residências; e ações de mobilização que ajudem as populações mais facilmente ignoradas a obter o acesso aos serviços. 

No primeiro caso, é necessário:

  • Elaborar, junto aos ACS, um cronograma para realização de cadastros e recadastros no território, através de visitas; 
  • Monitorar a execução desse calendário; 
  • Identificar barreiras para realização de cadastros e formulação de planos de ação para mitigá-los. 

No segundo caso, é recomendado: 

  • Planejar ações para mobilizar/buscar ativamente grupos populacionais invisibilizados nos serviços; 
  • Criar estratégias de busca ativa com apoio de lideranças comunitárias; 
  • Acompanhar o aumento de cadastros e cuidado ofertado aos novos usuários.

6. Acelerar a informatização da Atenção Primária à Saúde

Informatizar é uma forma de qualificar a gestão da saúde. A informatização permite compilar e analisar informações, o que pode não só agilizar, mas melhorar a tomada de decisão. No Brasil, persistem alguns gargalos de implementação relacionados aos equipamentos e infraestrutura de conectividade. Contudo, municípios podem tentar financiamento federal por meio do Programa Informatiza APS. Ajudariam muito os seguintes  passos: 

  • Estudar o mapa de infraestrutura e hierarquizar as unidades que podem ou não imediatamente receber recursos de informatização; 
  • Inscrever-se nos programas de financiamento disponíveis; 
  • Planejar as compras de equipamentos; 
  • Estabelecer programas de treinamento para as equipes, de modo a garantir o preenchimento correto das ferramentas de gestão informatizadas e o uso das informações para tomada de decisão no nível local.

7. Aumentar a adesão ao tratamento

As doenças crônicas pressupõem tratamentos e acompanhamento de longo prazo. Por vezes, o tratamento exige mudança profunda de comportamento e impõe graus variados de efeitos colaterais. A falha de adesão ao tratamento configura, portanto, um grave problema a endereçar. Apontamos como caminhos: 

  • Diversificar estratégias de desenvolvimento de vínculo e garantia de acesso. Por exemplo, por meio de atividades coletivas e atuação em espaços de socialização dos usuários; 
  • Organização do trabalho da equipe com ênfase no protagonismo da enfermagem, que é capaz de melhorar adesão; 
  • Desenvolver habilidades de ciência comportamental nas equipes, qualificando a abordagem às mudanças de comportamento necessárias para o melhor controle das doenças. 

Esses pontos estão sumarizados no Olhar IEPS, policy brief que condensa estudos científicos e endereça recomendações para gestores de saúde. O conteúdo desse material também foi discutido no Diálogos IEPS, série de webinários temáticos do IEPS, em uma mesa composta por Michael Duncan (Médico de Família e Comunidade e assessor técnico da Superintendência de APS do município do Rio de Janeiro), Patrícia Jaime (Pesquisadora do Departamento de Nutrição da USP e vice coordenadora do NUPENS), Evelyn Santos (Coordenadora de Projetos da Umane), Arthur Aguillar (Coordenador de Políticas Públicas do IEPS) e Ricardo Gandour (jornalista e mediador).

 

Fernanda Leal, Analista de Políticas Públicas do IEPS.

Helyn Thami, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.

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Saúde mental não é pauta “pop”: precisamos institucionalizar o debate para além da pandemia https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/01/saude-mental-nao-e-pauta-pop-precisamos-institucionalizar-o-debate-para-alem-da-pandemia/#respond Wed, 01 Sep 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-mental-pandemia-covid-19-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=515 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

Todos já sabemos que as medidas de isolamento social impostas pela pandemia de Covid-19 agravaram o processo de adoecimento da população, mas também sabemos que o exponencial aumento de adoecimentos mentais em todo mundo não é um fenômeno recente. Estamos diante de um problema antigo e precisamos assumir as consequências de anos de descuido no campo: o debate público sobre saúde mental era um problema de saúde pública. 

Mas não estamos falando de um desafio exclusivo da área da saúde, para reduzir os danos provocados pela pandemia e atuar de forma preventiva em saúde mental temos que considerar os aspectos transversais do tema e outras agendas sociais, afinal, saúde mental permeia toda a nossa vida. Saúde, educação, sistema de justiça e segurança pública, assistência social, cultura e lazer  são setores igualmente responsáveis por criar soluções para esse desafio, assim como famílias e comunidades são indispensáveis em qualquer ação, de cuidado ou prevenção. 

O desafio no pós-pandemia é maior, mas agora também temos a oportunidade de aproveitar a atenção que a saúde mental recebeu nos últimos tempos e prolongar esse olhar a longo prazo. Não podemos deixar que a luz posta neste tema se apague, precisamos institucionalizar o debate sobre saúde mental no Brasil em todos os setores sociais, de forma sustentável e estrutural, e colocá-lo em pauta em todos os lugares. 

Em relação a saúde mental no “pós-pandemia”, ainda é cedo para diferenciar o que são reações “esperadas” frente ao estresse causado pela pandemia e o que pode ser considerado um transtorno, por isso devemos ter cautela ao já querer pular para diagnósticos precipitados. Mas já sabemos que devemos a chamada “quarta onda de COVID”, durante 3 e 4 anos, que resulta dos efeitos colaterais deste período de isolamento social, que incluem aumento de ansiedade e depressão, de transtornos obsessivos compulsivos e obesidade, e outras consequências à saúde em decorrência da pandemia. 

Fonte: Tseng, 2000.

Nosso levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, aponta que é possível estimar o agravamento no cenário da saúde mental no Brasil, após a pandemia. Até 80% da população poderá desenvolver sofrimento psíquico, automutilação, conflito interpessoal e tentativa de suicídio. Cerca de um quarto da população (entre 15% e 25%) poderá se encontrar em maior risco, com sua estrutura psíquica mais fragilizada, e precisar de suporte imediato para evitar colapsos maiores e entre 1% e 4% da população diz respeito a pessoas que poderão precisar de atenção especializada. 

 

Efeitos a longo prazo 

Além dos efeitos colaterais de curto prazo, teremos também que lidar com a sociabilidade e a solidão no pós-pandemia. Mal começamos a perceber os impactos deste longo período de isolamento social na nossa capacidade de nos relacionar e existem muitas questões em aberto: de que maneira as mudanças de comportamento adotadas vão impactar nosso contato físico e trocas de afeto? Nossas rotinas e redes de apoio? Ou ainda, que tipo de soluções serão criadas a partir da perspectiva de que é possível fazer tudo de forma remota? Não precisamos mais nos encontrar presencialmente, tudo pode ser mediado por tecnologia? Como lidaremos com o pertencimento, fator tão relevante para a proteção da nossa saúde mental?

Especialmente com relação aos adolescentes, que propostas estamos criando para lidar com os impactos da “síndrome da gaiola” (medo de ir à escola e sair de casa) já percebida antes da pandemia mais profundamente agrava com o isolamento social? Que tipo de lugar eles ocuparão no futuro da sociedade, em um contexto de precarização do acesso à sua educação e de redução das oportunidades de emprego? Dados do relatório Caminhos em Saúde Mental apontam o afastamento e a evasão de crianças e adolescentes, assim como o aumento do trabalho infantil e doméstico e as violências domésticas, como desafios agravados pela pandemia. 

Para além de “apagar incêndios”, pensando um pouco mais no futuro, precisamos, antes de tudo, afinar nossa compreensão coletiva sobre o que é saúde mental e como podemos incorporá-la ao nosso cotidiano de forma mais consistente. Independentemente da definição que se adote, é indispensável afirmar que a saúde mental não é apenas uma dimensão individual, dependente de fatores biológicos e psíquicos, é o resultado da complexa interação entre esses aspectos individuais e as condições de vida das pessoas, que incluem as relações sociais, o ambiente de crescimento e desenvolvimento, a inclusão produtiva e o acesso a bens materiais e culturais, abrangendo também as possibilidades de participação ativa na vida comunitária. 

Por isso não tem como melhorar os índices de educação, trabalho, alimentação, moradia, entre tantos outros,sem olhar de forma permanente para a saúde mental, o que nos leva de volta ao começo: precisamos urgentemente atuar na prevenção em saúde mental. Se não começarmos a prevenir os adoecimentos do futuro agora, chegaremos nele apagando incêndios tanto quanto hoje, sempre respondendo às demandas e não atuando de forma estrutural. 

E ainda teremos que continuar lidando com os velhos estigmas e preconceitos acerca do tema, que persistem em aparecer, mesmo com o crescimento do debate sobre saúde mental. Apenas citando alguns, a relutância em procurar ajuda ou tratamento, a falta de compreensão por parte da família, amigos e comunidade e, muitas vezes, a falta de preparo dos próprios cuidadores e profissionais “porta de entrada” da saúde para lidar com saúde mental são os questões que irão persistir no debate da saúde mental, mesmo no pós-pandemia. 

Devemos ressaltar que atuar em saúde mental não é um projeto individual com começo, meio e fim, é um projeto coletivo para vida toda. Precisamos de responsabilidades definidas e diretrizes claras nos marcos legais, além de incentivos e ferramentas para efetivação dessas políticas e desses direitos. É urgente integrar projetos e dados do poder público, das organizações e movimentos sociais e de iniciativas privadas para lidar com o desafio de pensar em outras formas de trabalhar as causas e consequências dos sofrimentos psíquicos de forma interseccional e com olhares individualizados. A saúde mental de cada um de nós depende da articulação permanente entre os indivíduos, a comunidade e todos os setores sociais, trabalhando juntos para criar condições para uma vida digna e uma realidade social mais justa para todas as pessoas.  Como podemos fazer este debate tão central perdurar nos nossos lares, trabalhos e relações sociais?

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

 

 

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Saúde mental e violências: aprofundando a compreensão sobre algumas das origens e atravessamentos dos sofrimentos psíquicos https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/27/saude-mental-e-violencias-aprofundando-a-compreensao-sobre-algumas-das-origens-e-atravessamentos-dos-sofrimentos-psiquicos/#respond Fri, 27 Aug 2021 10:00:00 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/psychological-abuse-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=508 Maria Fernanda Quartiero e Luciana Barrancos

 

O combate à violência contra as mulheres teve uma conquista importante com a sanção, no final de julho deste ano, da Lei de Criminalização da Violência Psicológica (14.188/2021). A nova legislação facilita o registro de boletim de ocorrência por violência psicológica e também a obtenção de medidas protetivas de urgência. A lei contempla mais aspectos da violência psicológica, já previstos na Lei Maria da Penha, mas que não categorizava um tipo penal para condutas como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância e isolamento. Assim, na imensa maioria dos casos, essas práticas só passaram a configurar crimes com a nova lei.

O números de adoecimentos mentais e de violência contra as mulheres aumentou durante a pandemia. Por isso, aprofundar o debate sobre violência psicológica torna-se importante para ampliar as práticas de cuidado da saúde mental das mulheres. Já no caso dos jovens, as múltiplas violências, como violência sexual e doméstica e bullying, são identificadas como as principais determinantes sociais para a sua saúde mental. 

Observar as interseccionalidades e as agendas compartilhadas é fundamental para compreender com mais profundidade como as dimensões do sofrimento psíquico se relacionam com questões estruturais. O adoecimento mental de mulheres em decorrência de violência obstétrica, por exemplo, não deveria ser visto como um problema de saúde pública? Não deveríamos falar do impacto na saúde mental e do sofrimento de mães de jovens negros que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, como uma consequência de problemas na segurança pública? A violência psicológica contra as mulheres, por exemplo, é uma das formas da violência de gênero e deve ser prevenida e tratada a partir do cruzamento com outras esferas desse problema. 

Existem outras formas de violência além da psicológica: institucional, sexual, física, patrimonial e moral. Há uma infinidade de manifestações de cada uma dessas categorias. Além disso, podemos pensar sobre as violências cotidianas, comum a todas as pessoas, como por exemplo a constante minimização de nossos sofrimentos para continuar a fazer o que é preciso (trabalhar, estudar, cuidar da família) ou ainda as violências institucionais. 

A falta de acesso a tratamentos adequados de saúde mental no sistema público, a exposição à violência urbana generalizada e as condições precárias de transporte, educação e cultura a que a maior parte da população é submetida, podem ser vistas como violências institucionais que impactam a nossa saúde mental. Nesse contexto, as minorias sociais são particularmente afetadas: mulheres, crianças e adolescentes negligenciados, pessoas negras e LGBTQIA+ são alguns exemplos de grupos que se tornam mais suscetíveis ao adoecimento mental quando pensamos nesse tipo de violência. 

 

Exercitando olhares segmentados: violências contra adolescentes e mulheres  

Consciente de que é preciso estabelecer prioridades para uma atuação estratégica, o Instituto Cactus fez a aposta institucional de olhar, especialmente, para adolescentes e mulheres, públicos prioritários para pavimentar o caminho de transformação do cenário da saúde mental no Brasil. 

De acordo com os dados reunidos no levantamento Caminhos em Saúde Mental, lançado recentemente em parceria com o Instituto Veredas, entre 2011 e 2018, enquanto para os adolescentes (de 15 a 19 anos) a violência física representou 59% dos atendimentos registrados, no caso dos pré-adolescentes (de 10 a 14 anos) o percentual foi de 36% do total. Quando se analisam os dados de violência autoprovocada no Brasil, conseguimos ver uma outra ponta desse desafio: são mais de trezentas mil notificações, das quais 45% dos episódios foram realizados por jovens entre 15 e 29 anos –entre os quais 67% são mulheres. Indo ao extremo do problema, dados mostram que o suicídio é  a segunda causa mais frequente de mortes de jovens de 15 a 29 anos no mundo todo –e 7 a cada 10 casos acontecem em países de baixa e média renda. 

No caso de meninas adolescentes, é necessário considerar que a violência de gênero começa, muitas vezes, ainda na infância, atravessa a transição para a juventude e se estende por toda a vida. Mulheres que foram expostas a violências na infância apresentam maior risco para revitimização na vida adulta, para episódios depressivos, de ansiedade, de estresse ou relações prejudiciais com a alimentação, a bebida alcoólica ou outras drogas. Dados de 2003 e 2010 mostram que 62% das vítimas de violência sexual e 82% das ocorrências de exploração sexual eram do sexo feminino. 

Nesse ponto do debate, nos deparamos com um desafio importante para os cuidados da saúde das mulheres: a falta de compreensão e a fragmentação nos serviços de saúde. Os profissionais admitem que nos atendimentos, no geral, as mulheres se calam sobre a violência de gênero, ao mesmo tempo em que intensificam a procura por serviços de saúde, sendo estereotipadas como “poliqueixosas”. Esse arquétipo, além de prejudicar as estratégias de tratamento, pode ser também uma forma de violência institucional e representa uma violência psicológica contra mulheres, que muitas vezes enfrentam o estigma no próprio processo de tratamento. 

A Lei de Criminalização da Violência Psicológica é um grande passo para coibir a violência contra as mulheres, mas é necessário ir além e atacar todas as formas de violência para avançar promoção e prevenção em saúde mental. Refinar a análise sobre a violência psicológica e institucional requer a produção de estudos sobre os efeitos e abordagens para trabalhar as  violência de instituições, como, por exemplo, asilos, abrigos, instituições de tratamento para usuários de drogas e também no sistema penitenciário. 

As diversas formas de violências são um fenômeno social que não pode ser reduzido aos estados psíquicos relacionados ao sofrimento mental, por isso a convergência com os debates sobre saúde mental tem muito a contribuir. Sejam impactos relacionados a situações de violência psicológica, física, sexual ou institucional, as soluções propostas devem abordar de forma assertiva o sofrimento psíquico decorrente dessas violências. É preciso, ainda, considerar as especificidades dos diversos adoecimentos e criar abordagens adequadas para diferentes públicos, pois as consequências de cada tipo de violência podem ser muito particulares e não se pode deixar de lado os olhares segmentados para esse debate.

 

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

Luciana Barrancos é Gerente Executiva do Instituto Cactus e é advogada e administradora de empresas pela FGV, com MBA por Stanford, com experiência em investimentos de impacto na International Finance Corporation e em startups de saúde mental no Vale do Silício. 

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O cenário das doenças crônicas no Brasil e as pressões orçamentárias sobre o SUS https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/25/o-cenario-das-doencas-cronicas-no-brasil-e-as-pressoes-orcamentarias-sobre-o-sus/#respond Wed, 25 Aug 2021 10:00:42 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/saude-dinheiro-800x533-1-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=496 Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Um dos aprendizados de 2020 é que o enfrentamento à pandemia poderia ter tido maior sucesso se a estrutura da atenção primária tivesse sido melhor utilizada. Em um contexto de emergência sanitária, testemunhamos a despriorização das ações de vigilância comunitária e epidemiológica, cruciais no rastreamento e contenção do contágio pelo vírus. Muito se noticiou sobre a ausência de testes de Covid-19 e a insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para minimizar a contaminação de profissionais de saúde. No entanto, um assunto que recebeu menos holofotes, mas que exerce grande impacto sobre o sistema de saúde foram os efeitos da pandemia sobre o represamento de serviços, como o cuidado longitudinal de doentes crônicos.

As Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), classificação em que se encontram doenças cardiovasculares, cânceres, doenças respiratórias crônicas e diabetes, são tipos de disfunções que possuem fatores de risco comuns e evitáveis, como colesterol alto e hipertensão, e que necessitam de acompanhamento constante. Uma vez que se desenvolve uma  DCNT, a qualidade de vida também se torna condicionada a um processo de cuidado contínuo. 

Dentro da estrutura do sistema de saúde brasileiro, a Atenção Primária atua de forma estratégica para proporcionar o acompanhamento dos usuários crônicos. Está dentro das atribuições da Estratégia Saúde da Família, por meio do trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a identificação de demandas de saúde, a circulação de informações e a orientação sobre cuidados. As visitas domiciliares dos ACS, em especial, permitem um cuidado à saúde mais humanizado, estabelecendo laços de confiança entre os profissionais de saúde e a população.

No entanto, com a chegada do coronavírus no Brasil, tornou-se mais difícil tanto detectar precocemente quanto acompanhar sistematicamente as condições crônicas de saúde na população e a função de “porta de entrada”dos usuários no Sistema Único de Saúde (SUS) exercida pela Atenção Básica foi prejudicada. No que se refere à rotina das unidades básicas de saúde, em algumas localidades, procedimentos foram descaracterizados, como o trabalho de rua dos ACS, e atendimentos precisaram ser paralisados para o redirecionamento da força de trabalho para ações de combate a Covid-19. Também a necessidade de adoção do isolamento social fez com que muitos usuários ficassem receosos de se deslocar até os estabelecimentos de saúde. 

Em números, o reflexo dessa quebra do vínculo entre os usuários e as unidades de saúde durante a pandemia se traduz na queda brusca da quantidade de consultas da atenção básica, reduzidas em quase 50% no ano de 2020. Dados de um estudo recente realizado pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e por pesquisadores do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV-Saúde) demonstram a interrupção de procedimentos preventivos e de detecção precoce. Em comparação com 2019, o estudo evidenciou uma queda generalizada em 2020 na produção ambulatorial, que inclui procedimentos diagnósticos (-21,7%), de rastreio (-32,9%) e consultas médicas (-32,1%). 

Somado à queda nos demais níveis de atenção, em serviços como os de cirurgias e transplantes, o número de procedimentos totais realizados caiu, no mesmo ano, 19,2%. Em termos econômicos, essa contração significou uma redução de transferências federais para o SUS de aproximadamente R$ 3,6 bilhões em 2020. Os resultados do estudo apontam para um cenário preocupante de aumento de demanda dos serviços de atenção à saúde no país e, na sua contramão, o agravamento da insustentabilidade financeira do sistema.
No segundo semestre de 2021, a pandemia continua demandando intensamente dos profissionais e serviços de saúde e a Covid-19 tem deixado sequelas nos casos mais graves dos acometidos pela doença, o que pode vir a exigir cuidados de médio a longo prazo. Não bastasse esse cenário desolador, tudo indica que a atual pressão orçamentária deve ainda ser acrescida da demanda reprimida de doentes crônicos.  

Em 2019, no Brasil pré-pandemia, as DCNTs foram responsáveis pela morte de 1.025.708 brasileiros em idade inferior a 70 anos, número equivalente a 77,86% do total de mortes no ano — percentual calculado a partir do total de mortos em 2019 em idade inferior a 70 anos informado pelo IBGE. No Brasil da Covid-19, presenciamos o agravamento da insegurança alimentar no país, com 9% da população brasileira enfrentando a fome e o aumento no consumo de tabaco e álcool, fenômenos que sabidamente contribuem para o desenvolvimento de doenças crônicas.

Para enfrentar esse horizonte nada animador seriam necessários investimentos e planejamento estatal robusto e baseado em evidências, que permitisse preparar o sistema de saúde para atender simultaneamente às vítimas da Covid-19 e aos novos e antigos doentes crônicos. Na contramão disso, o que vemos é uma espécie de apagão estatístico sobre a saúde da população durante a pandemia e a não publicação do relatório de 2020 da Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), principal instrumento de acompanhamento de fatores de risco para DCNT. Para agravar a situação, até o momento corremos o risco da não realização da pesquisa em 2021

O fato é que a Atenção Básica brasileira, uma das grandes referências para o resto do mundo, vem sofrendo fragilizações sistemáticas e o cenário das doenças crônicas no país é um gigante debaixo de um tapete que não pode mais ser ignorado. A “conta” que ficará para a população só cresce e, caso o orçamento público federal para a saúde não seja reavaliado, a consequência direta será o aumento do número de mortes evitáveis no país. 

 

Maria Letícia Machado é pesquisadora de políticas públicas no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Rebeca Freitas é especialista em relações governamentais no Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

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Agosto Laranja: Falta de informação dificulta diagnóstico e tratamento de Esclerose Múltipla https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/agosto-laranja-falta-de-informacao-dificulta-diagnostico-e-tratamento-de-esclerose-multipla/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/20/agosto-laranja-falta-de-informacao-dificulta-diagnostico-e-tratamento-de-esclerose-multipla/#respond Fri, 20 Aug 2021 10:00:57 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Agosto-laranja-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=491 Herval Ribeiro Soares Neto

 

Agosto é um mês marcado pela cor laranja, simbolismo para conscientizar a sociedade sobre a Esclerose Múltipla (EM), doença que afeta cerca de 35 mil pessoas no Brasil, na maioria mulheres jovens entre 20 e 40 anos, embora homens também apresentem a doença. É comum os pacientes enfrentarem um cenário desafiador antes e depois do diagnóstico, não apenas pelas características da patologia, mas por terem que lidar adicionalmente com a falta de informação e o preconceito.

A esclerose múltipla é uma doença neurológica crônica, sem causa determinada e sem cura, em que as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, provocando a perda de mielina, uma substância cuja função é fazer com que o impulso nervoso percorra os neurônios de forma rápida. Por isso, quanto antes diagnosticada, mais chances de vida sem limitações importantes têm o paciente.

Apesar de não ter cura, a esclerose múltipla possui tratamento, por meio do controle dos sintomas e da diminuição da progressão da doença. No entanto, mesmo com os significativos avanços da ciência nesta área, o diagnóstico precoce é um dos grandes entraves para que portadores consigam iniciar o tratamento o quanto antes. A demora é causada principalmente pela falta de informação sobre a esclerose múltipla e seus sintomas, que podem ser confundidos com os de diversas outras doenças –mesmo pelos profissionais de saúde que fazem os primeiros atendimentos.

Dentre os sintomas mais comuns estão fadiga imprevisível ou desproporcional à atividade realizada; alterações fonoaudiológicas, como fala lenta, palavras arrastadas, voz trêmula e dificuldade para engolir; visão dupla ou embaçada; problemas de equilíbrio e coordenação; sensação de queimação ou formigamento em alguma parte do corpo e de aparecimento espontâneo; perda de memória e raciocínio; transtornos emocionais; e problemas vesicais e sexuais, como perda de libido e sensibilidade.

A EM pode se manifestar de duas principais formas, a recorrente e a primária progressiva. A forma recorrente é a predominante, ocorrendo em torno de 85% dos casos. Caracteriza-se por crises ou surtos, seguidos ou não por melhora total ou parcial dos sintomas, e que pode gerar incapacidade permanente. Em 50% dos pacientes com a forma recorrente, ocorre após 10 anos uma evolução do quadro para a forma de esclerose múltipla secundária progressiva.

Já a forma primária progressiva progride independentemente de surtos e é considerada a mais agressiva. Até poucos anos atrás não havia tratamentos medicamentosos comprovadamente efetivos e aprovados para essa forma da doença. Hoje, felizmente, já existem terapias para os dois tipos de EM.

A Esclerose Múltipla é uma doença progressiva desde o início, independentemente de como se manifesta e, com o tratamento adequado e antecipado, os pacientes podem apresentar uma diminuição na incapacidade e na progressão. O impacto na qualidade de vida é transformador. É com este objetivo que novas terapias vêm sendo estudadas como oportunidade para essas pessoas escreverem novas histórias na esclerose múltipla, com mais conquistas e menos sequelas.

O caminho para a aprovação de medicamentos para doenças raras, como a EM, é longo no Brasil. Portanto, a mobilização e a participação da sociedade são imprescindíveis para fomentar o tema junto aos atores envolvidos e fazer com que as novas tecnologias para o tratamento da doença cheguem, de fato, a quem precisa delas.

 

Herval Ribeiro Soares Neto é médico neurologista e especialista em Esclerose Múltipla.

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Quem está na porta de entrada dos serviços de saúde mental? https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/ https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/08/18/quem-esta-na-porta-de-entrada-dos-servicos-de-saude-mental/#respond Wed, 18 Aug 2021 10:00:22 +0000 https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/GettyImages-1266600929-web-conferência-SUS-800-300x215.jpg https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Helyn Thami e Maria Fernanda Quartiero

 

Precisamos focar no treinamento, provisão e capacitação de trabalhadores da atenção primária e de outros níveis de atenção para oferecer cuidados na perspectiva da saúde integral

 

Imagine a seguinte situação: uma pessoa vai a um serviço público de saúde se queixando de dor no peito e é encaminhada ao cardiologista sem que sequer tenha sido questionada sobre seu estado de saúde mental. Não é difícil de imaginar, certo? 

Um dos desafios no campo da saúde mental no Brasil é integrar os cuidados em saúde psíquica à perspectiva da saúde integral. Sabemos que muitas manifestações físicas, como na situação imaginada, podem estar relacionadas à ansiedade, depressão e outros sintomas de sofrimento mental. Pode ser, por exemplo, diante da atual crise, fruto de angústia relacionada a processos de luto ou ao desemprego. Acolher e encaminhar usuários sem levar em conta a sua saúde mental, apesar de ser prática rotineira, é prejudicial à perspectiva de cuidados integrais, como preconizado no sistema de saúde brasileiro. 

A hipótese descrita acima é apenas um dos exemplos possíveis de práticas de cuidado que invisibilizam e negligenciam a saúde mental como parte indissociável da saúde como um todo. Somos um só: ou, como se diz popularmente, “corpo e mente estão sempre conectados”. Por isso, os serviços de atendimento devem incluir os aspectos físicos e mentais na avaliação e no tratamento, e desenvolver soluções adequadas para cada indivíduo. 

Para tal, há que se reformular os currículos de formação de todas as categorias profissionais da saúde para incluir abordagens humanizadas e que levem em conta questões estruturais que ajudam a produzir o adoecimento –emprego, renda, acesso a serviços básicos e outros. Essas abordagens precisam dialogar, fazer parte de uma estratégia geral de cuidado que o potencialize –nas ações preventivas e curativas. É importante que diagnósticos e soluções sejam elaborados a partir da análise interdisciplinar dos profissionais envolvidos, desde a assistência social até as especialidades biomédicas. Para isso, o processo de escuta qualificada também é imprescindível: os profissionais de saúde precisam ouvir para entender a trajetória dos usuários e absorver as especificidades de cada um. 

Outra reflexão importante é o quanto a rede de saúde e a formação profissional ainda privilegiam o atendimento a pessoas com condições psicossociais agravadas, negligenciando a promoção da saúde, a prevenção e o acolhimento das primeiras manifestações de sofrimento, que muitas vezes poderiam ser tratadas sem o uso de medicação e sem necessidade de cuidados especializados, por exemplo.

Segundo o Plano de Ação para a Saúde Mental adotado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) entre 2012 e 2013, a falta de treinamento dos profissionais é um dos principais desafios a serem enfrentados na área. Mas quando falamos de saúde mental não se trata apenas de capacitar psicólogos e psiquiatras, especialidades comumente associadas à ela: precisamos exercitar um olhar mais ampliado para entender quem é o “Recurso Humano” da saúde mental. 

Por exemplo, uma revisão de literatura mostra que um grande desafio que se descortina para a consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil é a integração entre a atenção primária e a rede de atenção psicossocial. Isso significa que os recursos humanos para uma adequada provisão de cuidado em saúde mental não estão confinados a poucas categorias profissionais, mas dizem, sim, respeito a toda uma gama de pessoas que compõem o sistema de saúde. 

A melhor prática para consolidar essa integração é por meio do matriciamento: os profissionais especializados devem estabelecer espaços de troca e trabalho compartilhado com as equipes da atenção primária, aumentando a resolutividade desta e garantindo o ganho de capacidades desse nível de atenção a médio e longo prazos. Essa prática, inovadora e desafiadora, pode ser considerada contra hegemônica e ainda incipiente nos programas de formação de profissionais de saúde.

Se é preciso entender as transversalidades do tema para criar soluções adequadas para os usuários, é necessário levar isso em conta também nos processos de formação de profissionais de outras áreas da saúde e, inclusive, de outros setores, como educação, cultura, segurança pública e sistema de justiça. Afinal, a saúde mental permeia toda a nossa vida. Família e comunidade também são peça chave para trabalhar essa perspectiva de escuta ampliada, engajar atores fundamentais no processo terapêutico e capilarizar ainda mais o cuidado com a saúde mental. Um bom exemplo de como oferecer atenção em saúde mental na comunidade é o Banco da Amizade no Zimbabwe.

Não podemos esquecer a supervisão e o acompanhamento desses profissionais. As práticas e cuidados em saúde mental não são estáticas, elas se renovam e se aperfeiçoam junto com  necessidades do público atendido. Por isso a capacitação em saúde mental não se esgota em nível de formação ou cursos pontuais. Ela precisa ser contínua e promover a perspectiva de empoderamento de cada pessoa – inclusive dentro do próprio mundo do trabalho. 

O cuidado não-multiprofissional na saúde mental –que não considera a interface entre as áreas de cuidado– impede o uso eficiente dos recursos públicos disponíveis no sistema de saúde. Por isso, o investimento em mais capacitação em saúde mental para uma gama mais vasta de profissionais pode ser uma solução custo-efetiva para avançar nesse campo, considerando a estrutura que o Brasil já tem. Por meio delas seria possível um olhar mais atento a sinais precoces e fatores de risco para o sofrimento mental.

Nesse ponto, um desafio adicional é a desigualdade de investimento e de provisão de profissionais entre as áreas da saúde, especialmente considerando as categorias mais especializadas. Dados do estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil mostram que o nível da assistência prestada regionalmente não tem como ser a mesma em um contexto em que o número de psicólogos por habitante do Pará (estado com menor oferta) é 4 vezes menor do que o mesmo parâmetro no Distrito Federal (estado com maior oferta) –isso considerando serviços do SUS e da saúde suplementar. Se a proporção de psicólogos fosse balanceada em todo o território nacional, o processo assistencial e matricial poderia ser mais efetivo. 

Além disso, há uma concentração muito grande nas capitais quando comparadas a outros municípios no país: 3 a cada 10 psicólogos estão nas capitais; já entre os psiquiatras essa proporção é de 4 a cada 10. A referência para psiquiatria no Brasil é de 5,8 psiquiatras a cada 100 mil habitantes e essa distribuição é bastante desigual no território, conforme se vê no quadro abaixo:

 Região

Psiquiatras

Psicólogos

Norte 1,09 18,44
Nordeste 2,59 25,02
Sudeste 5,81 41,61
Sul 6,13 48,88
Centro-Oeste 3,97 40,26

Assim, percebemos que existem desafios importantes a serem superados para efetivar uma atenção em saúde mental que seja concreta  e integrada. Primeiro, é preciso entender a saúde mental como parte da saúde geral, sem fragmentação. Segundo, é preciso entender que, para que coloquemos em prática as melhores ações de cuidado, a formação profissional precisa mudar. Terceiro, temos que potencializar os recursos já disponíveis e fortalecer o aprendizado contínuo, mesmo (e talvez principalmente) dentro dos próprios serviços. Não menos importante, é preciso combater as desigualdades de provisão de profissionais no território nacional.

Tudo isso se conecta para organizar o processo de cuidado de acordo com cada necessidade e aproveitar os recursos humanos do sistema para ampliar o acesso a um cuidado em saúde adequado, incluindo a saúde mental, sempre respeitando a lógica da integralidade, que é um princípio fundante do Sistema Único de Saúde (SUS). 

No caso da pessoa da nossa situação hipotética com dores no peito, tem-se uma demanda para psiquiatra, psicólogo, médico da família ou ambos? Como outras áreas, caso da assistência social ou da comunidade escolar, no caso de crianças e adolescentes, poderiam ajudar nesse processo? A distribuição e o compartilhamento dessa responsabilidade de forma estratégica  é fundamental para o sucesso dos cuidados em saúde mental. Considerando as desigualdades e a defasagem de recursos humanos e financeiros no SUS, a qualificação contínua, mudança de paradigma de formação e a consolidação do matriciamento podem ser um bom caminho para melhorar o sistema.

 

Helyn Thami é pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).

Maria Fernanda Quartiero é investidora social e Diretora Presidente do Instituto Cactus, uma organização que trabalha para a prevenção e a promoção da saúde mental no Brasil, através da geração de conhecimento e evidências, identificação e multiplicação de boas práticas, incidência em políticas públicas, articulação de ecossistemas e conscientização da sociedade sobre o tema.

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