Os riscos de ser negro no Brasil e o racismo que mata
Beatriz Almeida, Jéssica Remédios, Maria Leticia Machado e Victor Nobre
“A cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil”. Essa é uma frase que se popularizou a partir de uma campanha das Nações Unidas de 2017 e que chama a atenção para as mortes violentas por trás da desigualdade racial no país. É um problema histórico, mas ainda atual e que abre, ao mesmo tempo, uma janela de debate para as condições de vida e saúde da população negra no Brasil. Os brasileiros negros não só morrem violentamente mais do que os brancos, como têm, na maioria, acesso à educação, emprego e habitação precarizados. Esses fatores contribuem para piores desfechos de saúde e devem ser ponto de atenção para os formuladores de políticas públicas, sobretudo quando observados sob o ponto de vista demográfico, pelo fato de pretos e pardos corresponderem a mais da metade da população brasileira.
Vale fazer uma breve menção histórica que remonta ao Brasil Colonial. Além de ter sido um dos últimos países da América a abolir a escravidão, o Brasil foi um dos que mais sofreram os seus efeitos perversos. Em paralelo, as leis abolicionistas propostas, apesar de importantes para o processo de consolidação da abolição, configuraram-se de forma paliativa, denotando um processo inconclusivo.
Inconclusivo não sob uma ótica jurídica, mas sim processual, levando em consideração que há uma construção de cidadania inacabada, seja pela ausência de políticas inclusivas de integração dos escravizados à sociedade, ou por meio da incipiente manutenção de uma lógica de discriminação racial, ainda presente nas relações sociais e econômicas. O resultado é o que o teórico Silvio Almeida define como “racismo estrutural”, caracterizado “tanto como uma ideologia, quanto como uma prática de naturalização da desigualdade”.
Sob o ponto de vista das políticas de saúde, a relação com o racismo estrutural mostra-se ainda mais evidente, quando a população negra, principal usuária e dependente do SUS, respondendo por 67% do total de usuários, é o grupo social que possui os piores indicadores de saúde, com números assustadores de mortalidade. Pesquisas amostrais do IBGE revelaram que 65% dos óbitos maternos em 2018 foram de mulheres negras; entre 2011 e 2020 a população negra apresentou maior prevalência de casos de tuberculose; mulheres negras e jovens entre 20 a 29 anos representam a maior população afetada pela sífilis.
Os resultados provêm, em grande medida, das condições de insalubridade em que a vive população negra. De acordo com o último Censo (2010), 79% dos negros não possuíam banheiro em casa; 69% residiam em locais sem coleta de lixo e 62% sem água encanada. As estatísticas mais atuais, de forma simultânea, apresentam cenários ainda mais preocupantes: no contexto da pandemia de Covid-19, a insegurança alimentar, aumentou significativamente, recaindo, em maior parte, sobre lares chefiados por pessoas negras (66,8%). Outro ponto é o fato de a população negra não conseguir cumprir o isolamento social e os devidos protocolos de higienização, uma vez que precisam trabalhar, e a natureza de suas atividades obriga-os a ficarem expostos constantemente.
Complementarmente, a literatura evidencia o racismo estrutural não só em situações atípicas – como em uma pandemia – mas cotidianamente. Segundo estudo da pesquisadora Jurema Werneck, as (baixas) condições de saúde mais comuns na população negra podem ser divididas em: geneticamente determinadas, adquiridas (derivadas de condições socioeconômicas desfavoráveis), de evolução agravada ou condições fisiológicas alteradas por condições socioeconômicas. A diabetes mellitus, por exemplo, acomete 50% mais mulheres negras do que brancas, enquanto a tuberculose e a hipertensão arterial acometem 57,5% e 27%, respectivamente.
Apesar dos inúmeros problemas vividos por negros e que se somam à ausência de políticas públicas para essa população, é necessário destacar as iniciativas que buscam mitigar esses problemas da saúde pública voltadas a categoria, como é o caso da Política Integral de Saúde da População Negra (PNSIPN). Publicada em 2009 como fruto do Grupo de Trabalho Interministerial, a PNSIPN tem como base dois eixos fundamentais: I) definir objetivos, responsabilidade de gestão e estratégias voltadas para melhorias da saúde da população negra usuária do SUS e II) garantir maior grau de equidade em referência à efetivação do direito humano à saúde da população negra. A partir da publicação da PNSIPN, avanços foram alcançados, entre eles a produção de conhecimento acadêmico na área, criação de áreas e comitês técnicos voltados para o segmento e a aprovação da Resolução 344/2017 sobre a questão do preenchimento do quesito raça/cor, incentivando a mensuração de dados epidemiológicos sobre a saúde da população negra.
Apesar dos avanços, os desafios ainda se sobrepõem, associados, em grande medida, a aspectos estruturais e orçamentários. Desde sua criação, a PNSIPN só foi implementada em apenas 28% dos municípios brasileiros, indicando baixa adesão em território nacional, ao passo que, destes 28%, menos de 10% possuem comitês de monitoramento para avaliar o impacto da Política sobre a saúde da população. Do ponto de vista orçamentário, nota-se um total apagão no governo federal e no Ministério da Saúde dos programas voltados à melhoria da saúde da população negra e às pautas antirracistas. O último foi em 2016, o Programa 2034, contido no Plano Plurianual (2016-2019).
É, portanto, imprescindível fomentar debates que retomem o papel de relevância e protagonismo da PNSIPN no combate às desigualdades. Afinal, conforme apontado pelo Comitê Técnico de Saúde da População Negra, “reconhecer que as práticas racistas estão dentro dos modelos de atenção à saúde e buscar a transformação desse cenário devem ser objetivo de todos envolvidos com o cuidado em saúde e com as instâncias de gestão”. Os indicadores de saúde reforçam a necessidade de implementação da PSNIPN para estados e municípios e expansão do nível de monitoramento, tendo em vista que há instrumentos e metodologias estruturadas para esse processo.
O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), instituição voltada às políticas públicas em saúde, pautado por evidências e reconhecendo o seu papel como fomentador desse debate, reforça o compromisso em contribuir para um sistema público de saúde mais equânime, considerando a urgência da mitigação das mazelas e idiossincrasias que a população negra brasileira enfrenta, por meio da defesa de pautas fundamentais como a PNSIPN.
Beatriz Almeida é graduada em Políticas Públicas e assistente de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Jéssica Remédios é educadora física, mestre em Epidemiologia e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Victor Nobre é estudante de Economia e pesquisador de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).