Orçamento público para a saúde da população negra: uma tarefa por fazer
Clara Marinho Pereira e Julia Rodrigues
A maioria da população brasileira se declara negra: são 89,7 milhões de pardos e 19,2 milhões de pretos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o 3º trimestre de 2020. No entanto, em face das vulnerabilidades provocadas pelo racismo, os impactos da pandemia do novo coronavírus no Brasil têm sido desproporcionalmente maiores na saúde da população negra por, pelo menos, quatro motivos.
Primeiro, porque a população negra teve menores oportunidades de se isolar. Sem políticas públicas para conter a contaminação em comunidades e favelas, o vírus espalhou-se rapidamente entre os mais pobres. Cabe lembrar que 67% dos moradores das comunidades e favelas brasileiras são negros.
Segundo, porque a população negra é maioria nos segmentos econômicos considerados essenciais para a manutenção da vida coletiva, de natureza intensiva em mão-de-obra. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 mostram que, na limpeza urbana, 55,4% do total de vínculos eram compostos por negros; na segurança, 52,9%; e na construção civil, 50,2%, dentre tantos outros serviços. No cotidiano, cada trabalhador(a) negro(a) se expõe ao contato com dezenas, até centenas de pessoas.
Terceiro, porque a população negra também é maioria na informalidade. Dados de 2019 do IBGE mostram que 47,4% dos trabalhadores negros do Brasil estão inseridos na informalidade, contra 34,5% da população branca. Com a atividade econômica restringida ou afetada pela circulação do vírus, fragilizaram-se os circuitos de trabalho e de ganho diário, lançando rapidamente trabalhadores à pobreza, à miséria e à fome; uma situação que dificulta o isolamento e a capacidade das pessoas negras em ter uma resposta imunológica adequada quando contaminadas.
Quarto, quando contaminados, os negros demoram mais a ter acesso aos serviços de saúde. Muitas vezes impossibilitados de faltar ao trabalho, ou então sem dinheiro para pagar o transporte até o posto de saúde, negros acabam por postergar a busca pela assistência médica. Quando o fazem, a situação já está agravada.
Não por acaso, negros morrem mais do que brancos. Conforme estudo realizado pelo Instituto Pólis, a taxa de mortalidade padronizada da doença para a população negra foi de 172 mortes para cada 100 mil habitantes entre março e julho de 2020 na cidade de São Paulo – município mais populoso do país. O número é 60% maior do que a taxa de mortalidade padronizada da população branca da cidade, que ficou em 115 mortes para cada 100 mil habitantes.
Em estudo mais recente, de setembro de 2021, e de caráter nacional, pesquisadores da Rede de Pesquisa Solidária mostram, a partir do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, que homens negros morrem mais por Covid-19 do que homens brancos, independentemente da ocupação e mesmo quando estão no topo do mercado de trabalho. Já as mulheres negras morrem mais do que todos os outros grupos (mulheres branca, homens brancos e homens negros) na base do mercado de trabalho, independentemente da ocupação.
No entanto, a vacinação começou com pouca atenção a esses aspectos, partindo do centro para as periferias; dos grupos afluentes para os mais vulneráveis, o que mostra, mais uma vez, o uso seletivo das evidências para informar as políticas públicas. As “evidências”, muitas vezes, são mobilizadas para reforçar estruturas prévias de poder, e não questionar o melhor uso do recurso delas.
Com a Covid-19 ainda no horizonte, quais as chances de racionalizar o debate sobre o gasto em saúde daqui em diante? Aqui, propõe-se o exercício de olhar para trás, com o intuito de entender as possibilidades futuras.
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, construída pela sociedade civil em parceria com o governo federal, estabelece um conjunto de diretrizes para que os serviços públicos de saúde acolham as especificidades da população negra na sua oferta, reconhecendo o racismo como uma determinante social das condições de saúde, ou seja, como o racismo impacta na ocorrência de problemas de saúde e amplifica seus fatores de risco.
A despeito dos imensos esforços colocados desde meados dos anos 1990 para a construção desse arcabouço de intervenção pública, o Estado brasileiro não tem sido diligente para dar visibilidade à sua atuação na garantia do bem-estar da população negra.
Um dos principais instrumentos para atuação do Estado é o orçamento público. É por meio dele que são comunicadas à sociedade as prioridades do governo e são alocados recursos para sua implementação.
O Plano Plurianual (PPA) para o ciclo 2016-2019 do governo federal possuía um programa específico para o enfrentamento das questões raciais: o Programa 2034 – Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, que tinha como uma das metas “Contribuir para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, incluindo a atualização do seu Plano Operativo” (Meta 4MC). Já no PPA para o ciclo 2020-2023, há um completo apagamento da questão racial, com nenhum programa, objetivo ou meta endereçados ao tema.
Do ponto de vista da Lei Orçamentária Anual (LOA), os recursos são, na maioria das vezes, alocados em ações genéricas, com o objetivo de facilitar o desembolso daqueles. No entanto, essa prática dificulta sobremaneira o controle social, pois impossibilita que sejam acompanhadas as despesas por recortes de gênero, raça, faixa etária e orientação sexual. No Ministério da Saúde, esse fenômeno (as ações genéricas) é recorrente, sendo difícil até mesmo obter a localização geográfica do gasto.
Até o ano de 2020, contudo, era possível enxergar uma (mínima) preocupação do Ministério com a promoção da equidade, devido à existência da ação orçamentária 20YM – Implementação de Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, cujo objetivo era a promoção do direito à saúde para segmentos populacionais expostos a iniquidades em saúde, como ciganos, LGBT, populações do campo, da floresta e das águas, população negra, população em situação de rua, população albina e gestores do SUS. No ano de 2016, essa ação chegou a contar com R$46,5 milhões de reais, em 2018 caiu para R$8,8 milhões e, em 2020, chegou a R$28 milhões.
No entanto, em sintonia com o apagamento das questões raciais no PPA 2020-23, a ação 20YM deixou de constar do Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2021, encaminhado pelo Poder Executivo. Foi transformada em uma classificação gerencial (chamada Plano Orçamentário e que pode ser modificada a qualquer instante) da ação 21CE – Implementação de Políticas de Atenção Primária à Saúde. Em 2021, foram previstos R$28 milhões e, para 2022, o valor foi repetido, indicando que, em termos reais, os montantes diminuem a cada ano.
Contraditoriamente, portanto, justo quando a questão racial na saúde está exacerbada pelos dados, pelos achados de pesquisas e pelas tragédias, é quando ela mais se ausenta de identificação e controle social no orçamento, bem como de vínculos com o planejamento público de médio prazo.
Qualquer tentativa de assegurar o direito à saúde da maior parte da população brasileira que não observe a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra conjugada à consignação de recursos no orçamento estará condenada ao questionamento de sempre: será mesmo que o Estado brasileiro está comprometido com o atendimento igualitário no Sistema Único de Saúde (SUS)?
Hoje, infelizmente parece que a resposta é “Não”. Fazer mais do mesmo apenas trará mais mortes e iniquidades.
Clara Marinho Pereira é Mestre em Desenvolvimento Econômico e Fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente.
Júlia Rodrigues é Economista, Doutoranda em Ciência Política e Consultora de Orçamento.