O cenário caótico x saúde mental = potência na resistência
Magna Barboza Damasceno
O primeiro seminário “Saúde da População Negra” (pessoas autodeclaradas pretas e pardas), realizado no Estado de São Paulo em 2004, apontou que as mulheres negras tiveram uma inadequação do atendimento durante seu pré-natal. Além disso, aproximadamente 60% dessas mulheres entraram numa espécie de peregrinação em busca do atendimento — o que evidencia a dificuldade de acesso.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2020 o alarmante crescimento de 11,5%, em 10 anos, dos assassinatos das pessoas negras. O Rio de Janeiro é o quarto estado com maior número de negros no Brasil –mais de 9 milhões, segundo dados da secretaria de saúde do estado contabilizados em 2020.
Esses dados apontam que, de toda a população atendida, as pessoas negras estão entre as 61% acometidas por doenças respiratórias e 64% por causas externas e lesões.
Como estampou Fernanda Lopes no título do seu texto apresentado no seminário de 2004, “Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer….”. Para a população negra a desigualdade ao existir é um fato no Brasil, fato este que desde o primeiro seminário sobre a saúde da população negra vem sendo confirmado pelos dados apresentados ao longo dos anos pelo Instituto de Pesquisas e Estatística Aplicada (IPEA). Com o advento desses momentos pandêmicos peculiares, é de se perguntar como manter a saúde mental de uma população que parece historicamente destinada a experiências de nascer, viver, adoecer e morrer de maneira desigual e assustadoramente desumanizada?
Como manter a saúde mental da população negra num cenário como o atual, no qual nos deparamos com um processo de extermínio que nasce nos marcadores sociais que ocupamos, nas interseccionalidade que carregamos, na nossa essência e no nosso existir? Além do grande desafio para cessar o desaparecimento dos nossos corpos pretos e potentes, bem como de manter nossa subjetividade a prova de qualquer tentativa de aniquilamento.
Esse esforço ainda parece ter importância apenas para uma parte da sociedade, daqueles que vão ao longo do caminho tentando estabelecer a resistência (leia-se aqui estratégias para a sobrevivência) que, numa toada paradoxal, ao mesmo tempo que resistem para o Existir, vão deixando pelo caminho o cuidado com os seus corpos concretos, feitos de carne e osso, veias e artérias, além de não perceber a instalação de algo bem mais perigoso, que é doença e o transtorno mental.
É comum mulheres negras serem naturalizadas como raivosas ou emocionalmente instáveis, sem direito a manifestação sentida e trazida pelo medo constante de não mais existir –e dos seus não mais existirem–, de não ter suas necessidades acolhidas por quem deveria cuidar como cuida de qualquer outro cidadão não-negro, de não ter seu reconhecimento enquanto pessoa legitimado.
Na nossa sociedade, uma mãe branca tem mais direitos e acolhimento ao denunciar a perda de um filho do que uma mãe negra que vê seu filho assassinado injustamente. Basta fazer uma breve pesquisa nos meios de comunicação e nos deparamos como a sociedade reage frente à dor de ambas as perdas.
Às mulheres e homens negros, de forma velada, não lhes é permitido o direito ao sentimento, muito menos a suas manifestações legítimas, mesmo diante de tantas opressões ao resistir para viver.
Faça uma pequena reflexão e revisite momentos em que você, pessoa negra, não pôde ter o direito à palavra, ao sentir, ao agir e até mesmo ao pensar, tendo que calcular meticulosamente quais os próximos passos para não ser taxado de brutal, raivoso, marginal e refém da manifestação da emoção devido ao afeto.
Permanentemente, o descaso perpetuado pelo Estado aos cuidados da saúde da população negra, com a dificuldade do acesso ou o acesso precário a políticas públicas, a descaracterização criada de suas emoções vivenciadas numa sociedade que deslegitima suas experiências e as taxa e nomeia de acordo com o que nos permite sentir ou não. Isso nos toma – pessoas negras –nosso modo de relacionar, de ver o mundo. E nas pequenas coisas vão sendo reafirmadas nas nossas interseccionalidades. Porém, esses efeitos psicossociais do racismo estrutural e sua interface violenta nos obriga a um estado mental permanente de alerta, o que impacta na interpretação por parte de terceiros sobre o nosso viver, e nos coloca em certa medida em um ciclo sem fim entre o gatilho mental gerado pela sobrevivência e a falta de percepção de si e do outro deste processo que gera adoecimento das relações, criando muitas vezes o famoso “cão raivoso”.
Contudo, no absurdo das contradições do nosso estado democrático de direito e no exercício da nossa cidadania integral, as pessoas negras não podem “se dar ao luxo” das doenças mentais, das crises existenciais, das dificuldades nos relacionamentos interpessoais causadas muitas vezes pelas violências produzidas pelo racismo estrutural e que geram desequilíbrios emocionais –nos quais nossa humanidade é constantemente testada.
Sem ter lançado sobre si um julgamento prévio sobre seu modo de adoecimento, as pessoas negras vão adoecendo assim como qualquer outra pessoa –sim e como adoecem!!
Se por um lado esse modo perverso e descompromissado com os afetos da população negra, gerado pela sociedade, reafirma o “grau de superioridade” das pessoas não-negras, dando a elas o “ticket” de quem será permitido sentir, pensar, agir, por outro lado produz na pessoa negra uma forma cruel de aniquilamento de sua subjetividade, pois a deslegitimação das suas emoções, das suas experiências e vivências vai se dando de forma sutil e naturalizada, que muitas vezes desemboca numa emoção pouco elaborada –como a raiva, por exemplo.
Essas questões já muito conhecidas e debatidas nos revelam um impacto devastador em nossa subjetividade. Alguns desses efeitos psicossociais vêm sendo discutidos a partir de categorias do viver –como gosto de referir–, a exemplo das discussões sobre a solidão de mulheres negras, a falta de perspectiva para o futuro, o direito à herança e ao envelhecimento da pessoa negra.
Aos poucos, vamos nos deparando com reflexões necessárias para a manutenção da qualidade do nosso viver. E é justamente aí que encontramos o conceito ilógico das potencialidades que nascem justamente das injustiças geradas a partir dos marcadores sociais e suas interseccionalidades que nos interpõem.
Porque, ao mesmo tempo que as pessoas negras vão morrendo aos poucos, toda vez que as percepções em torno da sua origem, da sua classe social, da sua cor de pele, da sua orientação sexual chegam à frente de qualquer possibilidade de relacionar-se, elas também constroem e vão tecendo estratégias de resistência, denotando suas potencialidades e organizando o melhor viver.
Se por um lado pessoas negras todos os dias enfrentam uma batalha por serem quem são, por outro exercitam a tarefa de continuar a ser, burlando toda a lógica posta e contrariando a velha máxima de que apenas recai sobre as pessoas negras a negatividade do existir.
Durante toda a história do povo negro há aqueles que não conseguiram resistir, mas há também aqueles que conseguiram utilizar-se de estratégias de resistência e sobrevivência desde os primórdios da escravidão. Trazendo isso para os tempos atuais, recentemente e durante a pandemia, acompanhamos essas potências de forma bem objetiva.
Verificamos que os estudos sobre a ancestralidade negra vão apontando essas formas de potências, considerando o que os antepassados construíram para que o presente fosse possível e, dessa forma, fortalecendo um futuro.
A pandemia é a prova disso! Apesar de terem sido as pessoas negras as mais atingidas pela Covid-19 em relação aos mortos, segundo o Relatório “Pesquisa Sem Parar”, da organização feminista Sempreviva, sobre o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, constatou-se que de modo geral aumentou o número de mulheres que passaram a se responsabilizar pelo cuidado de alguém. Em relação às mulheres negras houve um aumento em 52%. Essa dimensão do cuidado nos remete a uma forma de atenção à saúde mental, já que estão atentas ao monitoramento das necessidades e da companhia umas das outras.
Outro dado curioso é que, apesar do aumento da precariedade da vida, trazida pelo isolamento social e a perda do trabalho formal, houve um aumento de 52% de mulheres negras desempregadas. Essas mulheres que tiveram dificuldade sobre como pagar em dia suas contas e como fazer a manutenção da vida, buscaram outras formas de sobrevivência –e os números evidenciaram que 61% das mulheres que estão na economia solidária, por exemplo, são negras.
Pesquisas indicam que durante a pandemia as pessoas negras reuniram suas forças para ajudarem sua comunidade, o que demonstra uma alta capacidade criativa, organizando novas soluções para o bem viver, mesmo em um cenário caótico, assustador e desumanizante.
Como podemos constatar, falar da saúde mental da população negra não é uma tarefa fácil, diante de uma realidade que traz dados massacrantes de qualquer subjetividade. Porém, falar de saúde mental também é falar de vida, seja ela nascida da dor de não poder ser e existir, seja ela nascida da potência que é viver as contradições das minorias oprimidas.
Outras formas de potência que já estão aí há muito tempo e devem ser reconhecidas, veneradas e divulgadas, são os trabalhos como os que realizam os coletivos como o Criola –uma organização composta por mulheres negras que há quase 30 anos vem pensando estratégias de defesa e promoção dos direitos das mulheres negras. O instituto AMMA Psique e Negritude, uma organização cuja atuação está pautada no enfrentamento do racismo, da discriminação, do preconceito –que produzem efeitos psicossociais negativos na saúde mental da população negra. Outro bom exemplo é o Fundo Baobá para Equidade Racial, que vem disponibilizando acesso a diversos ciclos de vida da população negra, para o fortalecimento de lideranças com a perspectiva de aumentar a equidade racial.
São organizações formais e informais que nascem de pessoas negras, para pessoas negras e com pessoas negras, a partir da dor do aniquilamento da subjetividade de pessoas negras.
Falar de saúde mental da população negra é também falar deste trampolim para a potencialidade, que gera possibilidade do bem viver.
Pense nisso.
O que você tem feito para dar qualidade à saúde mental da população negra?
Magna Barboza Damasceno é Mestre em Psicologia Social pela PUC SP, especialista em Gestão pública pela FESPSSP, em Impactos da Violência na Saúde pela (ENSP/FIOCRUZ) e em Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde, pelo Instituto Sírio-Libanês, é coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP). Liderança acelerada pelo Fundo de Equidade Racial Baobá e Ganhadora do prêmio viva promovido na parceria entre o Instituto Avon e a Revista Marie Claire.