Cuidados Paliativos em debate: como organizar os sistemas de saúde para a realidade global
Alessandra Pereira da Silva e Mario Dal Poz
Os cuidados paliativos ganharam repercussão na mídia devido a informações equivocadas sobre forma e conteúdo dessa área de conhecimento. Tomamos isso como uma oportunidade para esclarecer a relevância do papel de profissionais paliativistas no contexto nacional e internacional e afastar eventuais tentativas de nomear os cuidados paliativos como práticas reprováveis do ponto de vista ético e científico.
Para enfrentamento do desafio global de ofertar serviços de saúde a uma população longeva, com doenças crônicas e comorbidades, se faz primordial a discussão sobre os Cuidados Paliativos. Segundo estimativa da Aliança Mundial de Cuidados Paliativos, há 20 milhões de pessoas que precisam desse tipo de assistência no mundo anualmente. Os adultos acima dos 60 anos representam 69% e as crianças 6% das pessoas que precisam do tratamento para diversas doenças. A maior proporção de adultos que demandam esse tipo de tratamento está em países de baixa e média renda, como o Brasil. Em 2014 a Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que somente 10% dos que precisam dos cuidados paliativos no mundo recebem o tratamento. A dimensão das doenças crônicas na saúde global e sua relação com o aumento da demanda para cuidados paliativos levam à necessidade de divulgar conceitos corretos para profissionais de saúde e para a sociedade, bem como organizar os sistemas de saúde para essa realidade.
Em 1990 a OMS definiu um conceito para cuidados paliativos, atualizado em 2002: “Cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos”. Pela abrangência da oferta assistencial prestada, os cuidados paliativos são importantes desde o diagnóstico, tanto para a equipe manejar as indicações de forma assertiva como para pacientes e familiares se sentirem acolhidos e partícipes do tratamento. Porém, devido a fatores técnicos e subjetivos, tais como a formação de profissionais da saúde voltada majoritariamente para a cura e os tabus familiares, sociais e religiosos que envolvem a finitude, há vários obstáculos para reconhecer e aceitar o tratamento em questão. Isso pode ser percebido em expressões consagradas como “fora de possibilidade terapêutica” (FPT), que ainda hoje é largamente utilizada, negligenciando o fato de a paliação constituir uma terapêutica, embora sem um horizonte de cura.
Observa-se que nos dias atuais ainda há um descompasso entre conceitos e expressões, que atrelam os cuidados paliativos necessariamente à morte e não a uma possibilidade de cuidar do ser humano com respeito a sua dignidade até a finitude e para além dela, com atenção ao luto das famílias. Um exemplo é a expressão “prolongamento da vida” que vai de encontro ao consenso atual sobre cuidados paliativos e pode ser confundida com a utilização excessiva e desnecessária de recursos tecnológicos disponíveis sem benefício direto ou indireto, denominada “futilidade terapêutica”.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) na Resolução 1805/2006 permite ao médico limitar ou suspender tratamentos que prolonguem a vida na fase terminal de doenças graves e incuráveis, com garantia de uma assistência integral no alívio do sofrimento. Os cuidados paliativos oncológicos foram inseridos como componente do cuidado integral na Portaria nº 874 de 2013. A partir desse marco no Brasil, os cuidados paliativos foram finalmente consagrados como uma modalidade de tratamento. O diferencial é que a utilização de recursos terapêuticos com foco exclusivo para a cura foi ampliada para a oferta de tratamento digno quando não há possibilidade de recuperação da doença, visando o alívio do sofrimento, com protagonismo do paciente nas decisões e inclusão da família na oferta de assistência pela equipe.
Dentre os princípios dos cuidados paliativos, a Resolução do MS nº 41 de 2018 repudia as futilidades diagnósticas e terapêuticas, com ênfase à afirmação da vida, à aceitação da morte como um processo natural e ao respeito à evolução natural da doença, sem acelerar nem retardar a morte. Dessa forma, os cuidados paliativos constituem um suporte para que o paciente viva com autonomia, e o mais ativamente possível de acordo com as limitações impostas. O papel dos cuidados paliativos na atenção integral foi evidenciado na 67ª Assembleia da OMS, realizada em 2014, com a recomendação para o desenvolvimento, fortalecimento e implementação de políticas públicas para apoiar os sistemas de saúde, em todos os níveis.
Em comparação com o cenário internacional, os cuidados paliativos no Brasil são realizados com estrutura frágil, serviços numericamente insuficientes e sem a prática difusa de referência e contrarreferência desde a atenção primária, passando pelas emergências, hospitais especializados e assistência domiciliar. No âmbito da Rede de Atenção à Saúde (RAS), a proposta para organizar as diretrizes dos cuidados paliativos no SUS, no contexto de continuidade e integralidade da assistência, foi apresentada na Resolução nº 41 de 31 de outubro de 2018. Essa norma define pontos importantes do que essa modalidade de tratamento preconiza como: multidisciplinaridade, prevenção e alívio do sofrimento, início da oferta dos cuidados paliativos a partir do diagnóstico e abordagem e sintomas de origem física, psicossocial e espiritual.
O objetivo é que os cuidados paliativos estejam integrados na RAS para melhorar a qualidade de vida dos pacientes e familiares, com assistência humanizada, abrangência de todas as linhas de cuidado e todos os níveis de atenção, baseada em evidências e com acesso equitativo. Dessa forma, há previsão de oferta de cuidados paliativos na atenção básica, na atenção domiciliar, em serviços ambulatoriais, urgências, emergências e atenção hospitalar com acompanhamento longitudinal, coordenação de cuidados e plano terapêutico ajustado à complexidade das necessidades e possibilidades do paciente e dos familiares.
Uma vez que a melhoria da qualidade de vida associada à longevidade deverá acarretar o aumento da incidência de doenças crônicas e constituirá um desafio para os sistemas de saúde, o dimensionamento do quadro de pessoal para o controle da doença ganha relevância. Por isso, a preocupação sobre suficiência ou insuficiência de profissionais para acolher e tratar pessoas com câncer deve estar na pauta do dia.
Os cuidados paliativos necessitam de uma equipe capacitada e dimensionada adequadamente para ofertar serviços de qualidade aos pacientes e familiares. Ao mesmo tempo, a concepção da paliação deve estar disseminada entre todos os profissionais, inclusive os que atuam nas linhas de tratamento com objetivo de cura. Uma diretriz política e de organização de serviços deve ser a atenção ao cuidado dos trabalhadores, com reconhecimento do impacto da rotina e da carga de trabalho em graus variados nas questões físicas, psicológicas e sociais dos profissionais de saúde. Equipes mal dimensionadas, distribuídas inadequadamente e com carga de trabalho elevada tendem a apresentar maior grau de sofrimento, adoecimento e absenteísmo, sobrecarregando as equipes e afetando a prestação de cuidado e os resultados de saúde.
Nas discussões sobre o acesso global aos cuidados paliativos há uma agenda de pesquisa que está avançando, com estudiosos que se dedicam a projetar a necessidade de cuidados paliativos até 2060, baseados no conceito e metodologia da Comissão de Acesso Global ao Cuidado Paliativo e Alívio da Dor. O foco do estudo é minimizar o sofrimento da população relacionado às doenças que acometem de forma mais expressiva idosos e pessoas com demência nos países de baixa renda.
Perspectivas
Acompanhando a tendência global, o sistema de saúde brasileiro precisará incluir, num futuro próximo, os cuidados paliativos como um tratamento que inicia com o diagnóstico de uma doença crônica e acompanha o paciente até a prestação de cuidados de fim de vida e suporte aos familiares no processo de luto. Para isso, é urgente consolidar e normatizar uma Política Nacional de Cuidados Paliativos, disseminar o tratamento como possível de ser iniciado em todos os níveis de atenção à saúde, promover ações educativas e conscientizar profissionais que lidam com quaisquer doenças crônico-degenerativas sobre a importância do tema. Além disso, a valorização dos profissionais que atuam na área pode ser traduzida pelo dimensionamento e pela distribuição adequada de equipes e pela melhoria das condições de trabalho tendo em vista a peculiaridade das atividades realizadas. Com o aprofundamento dos debates em instâncias científicas, a sociedade se beneficiará com profissionais preparados, cuidado tempestivo e um sistema de saúde capaz de ofertar atenção integral às doenças crônicas, considerando toda a complexidade envolvida.
Alessandra Pereira da Silva, enfermeira, Doutora em Saúde Coletiva (UERJ) e Analista de Ciência e Tecnologia do INCA.
Mario Dal Poz, Professor Titular no Instituto de Medicina Social.