Possíveis caminhos para solucionar os gargalos de implementação das Linhas de Cuidado de DCNTs na APS
Fernanda Leal e Helyn Thami
As doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) respondem por 3 de cada 4 mortes de brasileiros e brasileiras, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). O envelhecimento da população e o aumento da prevalência de fatores de risco comportamentais — como inatividade física e alimentação inadequada —, tende a elevar, nos próximos anos, a incidência de DCNTs na população brasileira, pressionando a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS).
Uma pesquisa desenvolvida pelo IEPS em parceria com a Umane (Panorama IEPS n. 2) mostrou que as Linhas de Cuidado (LC) para DCNTs — conjunto de fluxos assistenciais que manejam as múltiplas necessidades dos portadores dessas doenças — não estão plenamente implementadas nos municípios brasileiros. As Linhas de Cuidado devem atender às diversas demandas dos usuários, em diferentes níveis de complexidade, garantindo a promoção e a restauração da saúde.
Para os principais desafios encontrados são apontados os possíveis caminhos para…
1. Reduzir barreiras de acesso
A baixa cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) em alguns locais faz com que uma parte importante da população brasileira não tenha acesso a serviços essenciais. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, 40% dos domicílios não estão cadastrados na APS. É preciso eliminar barreiras de acesso aos serviços já existentes. Para ampliar a cobertura da Atenção Primária, alguns passos são cruciais:
- Mapear a mancha de cobertura de equipes da APS e identificar vazios sanitários;
- Identificar e hierarquizar vulnerabilidades, dando ênfase às áreas mais críticas;
- Planejar a expansão da APS, estimando necessidade de pessoal e equipamentos;
- Implantar uma estrutura física;
- Recrutar e selecionar os profissionais para integrar as novas equipes.
Para operacionalizar isso, pode-se, por exemplo:
- Buscar financiamento para extensão de horários de atendimento (por exemplo, pelo programa Saúde na Hora, do governo Federal) e diversificar modelos de assistência (atendimento em horários estendidos e intervenções em vias públicas e demais pontos de circulação e socialização);
- Apostar no treinamento de profissionais, envolvendo também usuários, para redução de barreiras de acesso ligados a comportamentos dos membros das equipes.
2. Garantir profissionais com treinamento apropriado e em número adequado
O cuidado de qualidade às pessoas portadoras de DCNTs passa pela atuação de profissionais de diferentes áreas, mas na realidade dos municípios há ausência de treinamento apropriado e efetivo para atender às demandas dos usuários crônicos. Para resolver isso, é possível:
- Atuar, junto a instituições de ensino e pesquisa, na criação de programas específicos para provisão de novos profissionais para esse nível de atenção;
- Elaborar um plano de valorização e carreira para os profissionais atuantes na APS, visando a fixação de equipes.
Quanto aos modelos de treinamento e difusão do conhecimento, poderíamos:
- Garantir que se apliquem protocolos baseados na melhor evidência disponível;
- Ter materiais simples e de consulta rápida para que os profissionais usem;
- Apostar em metodologias mais ativas para apoio de construção e implementação de protocolos.
3. Integrar melhor os níveis de cuidado
Integrar serviços de saúde está entre um dos maiores desafios do SUS. No cuidado às pessoas com doenças crônicas, essa integração é absolutamente crucial para que haja bom uso de recursos e se consigam melhores resultados de saúde. Para promover essa interlocução, indicamos:
- Garantir o compartilhamento de informações clínicas entre serviços em toda a rede;
- Realização de planejamento conjunto entre serviços envolvidos nas Linhas de Cuidado;
- Compartilhar recursos e metas entre serviços;
- Investir em posições de liderança para a integração.
4. Ampliar e melhorar o acompanhamento dos usuários
Uma vez que não se tem Linhas de Cuidado plenamente estruturadas, o acompanhamento de quem tem doenças crônicas fica comprometido. Acompanhar adequadamente esses usuários significa ter um calendário de ações de cuidado que contemple desde a promoção da saúde e a prevenção até a recuperação da saúde e limitação de danos. Para que isso seja efetivado, vale a pena:
- Levantar lista de usuários diagnosticados com DCNTs nos territórios;
- Verificar a rotina de consultas e exames destes, além de apontar aqueles que ainda não estão dentro do padrão de cuidado preconizado;
- Entrar em contato com usuários para agendar consultas e atividades de acompanhamento;
- Realizar busca ativa daqueles que forem difíceis de contactar ou que tenham faltas às atividades.
5. Ampliar os cadastros de usuários
O cadastramento é uma função primordial da APS. A não realização dos cadastros dos usuários do território implica que estes não são rotineiramente acompanhados pelas equipes e, quando o são, são atendidos em condições de demandas mais urgentes, quando, em geral, houve um quadro de agudização que poderia ter sido evitado. Para cadastrar adequadamente os usuários orienta-se seguir dois caminhos, que devem ser implementados de modo simultâneo: cadastrar por meio de visitas dos Agentes Comunitários de Saúde às residências; e ações de mobilização que ajudem as populações mais facilmente ignoradas a obter o acesso aos serviços.
No primeiro caso, é necessário:
- Elaborar, junto aos ACS, um cronograma para realização de cadastros e recadastros no território, através de visitas;
- Monitorar a execução desse calendário;
- Identificar barreiras para realização de cadastros e formulação de planos de ação para mitigá-los.
No segundo caso, é recomendado:
- Planejar ações para mobilizar/buscar ativamente grupos populacionais invisibilizados nos serviços;
- Criar estratégias de busca ativa com apoio de lideranças comunitárias;
- Acompanhar o aumento de cadastros e cuidado ofertado aos novos usuários.
6. Acelerar a informatização da Atenção Primária à Saúde
Informatizar é uma forma de qualificar a gestão da saúde. A informatização permite compilar e analisar informações, o que pode não só agilizar, mas melhorar a tomada de decisão. No Brasil, persistem alguns gargalos de implementação relacionados aos equipamentos e infraestrutura de conectividade. Contudo, municípios podem tentar financiamento federal por meio do Programa Informatiza APS. Ajudariam muito os seguintes passos:
- Estudar o mapa de infraestrutura e hierarquizar as unidades que podem ou não imediatamente receber recursos de informatização;
- Inscrever-se nos programas de financiamento disponíveis;
- Planejar as compras de equipamentos;
- Estabelecer programas de treinamento para as equipes, de modo a garantir o preenchimento correto das ferramentas de gestão informatizadas e o uso das informações para tomada de decisão no nível local.
7. Aumentar a adesão ao tratamento
As doenças crônicas pressupõem tratamentos e acompanhamento de longo prazo. Por vezes, o tratamento exige mudança profunda de comportamento e impõe graus variados de efeitos colaterais. A falha de adesão ao tratamento configura, portanto, um grave problema a endereçar. Apontamos como caminhos:
- Diversificar estratégias de desenvolvimento de vínculo e garantia de acesso. Por exemplo, por meio de atividades coletivas e atuação em espaços de socialização dos usuários;
- Organização do trabalho da equipe com ênfase no protagonismo da enfermagem, que é capaz de melhorar adesão;
- Desenvolver habilidades de ciência comportamental nas equipes, qualificando a abordagem às mudanças de comportamento necessárias para o melhor controle das doenças.
Esses pontos estão sumarizados no Olhar IEPS, policy brief que condensa estudos científicos e endereça recomendações para gestores de saúde. O conteúdo desse material também foi discutido no Diálogos IEPS, série de webinários temáticos do IEPS, em uma mesa composta por Michael Duncan (Médico de Família e Comunidade e assessor técnico da Superintendência de APS do município do Rio de Janeiro), Patrícia Jaime (Pesquisadora do Departamento de Nutrição da USP e vice coordenadora do NUPENS), Evelyn Santos (Coordenadora de Projetos da Umane), Arthur Aguillar (Coordenador de Políticas Públicas do IEPS) e Ricardo Gandour (jornalista e mediador).
Fernanda Leal, Analista de Políticas Públicas do IEPS.
Helyn Thami, Pesquisadora de Políticas Públicas do IEPS.