Desigualdade social, pandemia e o Brasil que alimenta a fome e a insegurança alimentar

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Saúde em Público

Agatha Eleone, Maria Letícia Machado e Rebeca Freitas

 

Além da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 trouxe aos holofotes um outro fenômeno que impacta diretamente a saúde dos brasileiros: a fome. Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, naquele ano o número de brasileiros em situação de fome voltou a atingir os patamares de 2004. A chegada da pandemia no país marcou também o aumento de 27,6% do número de brasileiros enfrentando a fome, em comparação com o ano de 2018, totalizando 19,1 milhões de pessoas –quase 9 milhões de pessoas a mais do que dois anos antes, o que corresponde a 9% da população brasileira.

O levantamento Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bioeconomy mostrou que, entre os meses de agosto e outubro de 2020, 13,6% dos brasileiros maiores de 18 anos passaram ao menos um dia inteiro sem comer ou com apenas uma refeição, e 125 milhões de brasileiros enfrentaram alguma forma de insegurança alimentar, ou seja, reduziram o número de refeições consumidas por dia ou a quantidade de comida consumida por refeição, motivados pela incerteza de conseguir alimentos posteriormente.

Entre as famílias que enfrentam a insegurança alimentar, a pesquisa também destacou que a fome no Brasil tem gênero e cor –73,8% dos lares chefiados por mulheres e 66,8% por pessoas pretas. A insegurança alimentar também é maior nas residências habitadas por crianças (70,6%) e adolescentes (66,4%) e mais frequente nos domicílios do Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) do país. Ainda, na maioria desses lares a renda familiar não passava dos R$500 mensais, em contraste com o preço médio da cesta básica que, em outubro de 2020, variou de R$ 436,76 em Natal a R$ 595,87 em São Paulo.

Como consequência da insegurança alimentar, a maior parcela da população que hoje não possui renda para custear uma alimentação balanceada  recorre aos ultraprocessados. Apesar de serem normalmente mais baratos, esses alimentos são também mais pobres em nutrientes e ricos em farinhas, açúcares, gorduras, e aditivos químicos, prejudiciais à saúde quando consumidos em grande quantidade. Com isso, outras facetas da insegurança alimentar podem ser a subnutrição e a obesidade da população.  

A situação atual, certamente agravada pela pandemia, evidencia a necessidade de políticas estatais robustas e de longo prazo para combate da miséria e da fome. No entanto, vemos o Governo Federal rumando em direção contrária. Flertando com o segmento de supermercados durante participação no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento no último mês de junho, o Ministro da Economia Paulo Guedes chegou a defender a ideia de que sobras de restaurantes de classe média poderiam ser destinadas a populações vulneráveis. No mesmo evento, a Ministra da Pecuária, Agricultura e Abastecimento, Tereza Cristina, confirmou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a flexibilização de regras sobre a validade dos alimentos como uma alternativa para combater a alta dos preços e o alto índice de insegurança alimentar no país.

Diante dessas falas, é importante pontuar: ignorar a crescente desigualdade e distribuir restos de alimentos ou alimentos vencidos a pessoas pobres não resolve o problema da fome e da insegurança alimentar dos brasileiros, uma vez que esses fenômenos não decorrem simplesmente da falta de alimentos disponíveis para consumo, mas sim da falta de acesso regular a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para a sobrevivência. Em outras palavras, o problema existe por sucessivos erros na condução das políticas públicas voltadas para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Tanto a fome quanto a insegurança alimentar constituem violação de Direitos Humanos, sendo a alimentação um direito reconhecido pelo Pacto Internacional de Direitos e previsto na Constituição Brasileira.

Dentre as ações que evidenciam a negligência com a saúde e a segurança alimentar do país estão as inúmeras tentativas de reformulação do Guia Alimentar para a População Brasileira — só em 2020, foram dois pedidos enviados pelo Ministério da Agricultura ao Ministério da Saúde. O documento é referência internacional por apresentar recomendações para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando não apenas aspectos nutricionais, mas também o contexto cultural, social e ambiental em que os indivíduos se inserem. Além dos ataques ao Guia, a classificação NOVA, que agrupa e classifica os alimentos pelo grau de processamento, não foi mencionada pela Sociedade Brasileira de Pediatria no Manual de Atualidades em Nutrologia Pediátrica publicado em maio deste ano.

  Além disso, um dos principais alvos do lobby da indústria de ultraprocessados é a discussão sobre a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento da incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Baseados no argumento de que as DCNT são multifatoriais, surge a tentativa de desresponsabilizar o consumo de ultraprocessados como um potencial causador de agravos, distorcendo as crescentes evidências científicas que o associam significativamente a desfechos negativos tanto para a saúde das populações quanto para o meio ambiente. Não à toa a regra de ouro preconizada pelo Guia sugere que aqueles produtos  devam ser totalmente evitados pela população.

Há quem diga que a situação atual é uma consequência gerada exclusivamente pela pandemia de covid-19. Na contramão, evidências anteriores já apontavam para a piora da situação alimentar dos brasileiros. Na linha das ações necessárias para virar esse jogo, um dos primeiros passos seria a atualização da linha de pobreza do Programa Bolsa Família, uma vez que a política, apesar de precursora, hoje conta com uma extensa lista de espera e subestima o número de pessoas que deveriam ser enquadradas no critério de recebimento do benefício. Ainda, é importante garantir o aumento de gastos federais com políticas de desenvolvimento agrário e de estímulo à agricultura familiar; e, finalmente, admitir a fome e a insegurança alimentar como problemas de saúde pública e não apenas como emergência assistencial, fomentando a execução de ações intersetoriais, bem como pesquisa e a formulação de políticas públicas com base em evidência.

 

Agatha Eleone é nutricionista, especialista em saúde da família e em gestão da atenção básica, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). 

Maria Letícia Machado é cientista política, pós-graduanda em liderança e gestão pública, e pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos  para Políticas de Saúde (IEPS). 

Rebeca Freitas é cientista social, bacharel em Direito, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, e especialista em relações governamentais do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).