A gestão de contratos de saúde e o impacto para o usuário do SUS

Maria Luiza Gutierrez de Andrade Seixas, Mario Peterlevitz Frigerio, Uara Buschermohle e Juliana Viana Fiusa Moro

 

Grandes filas de espera para realização de cirurgias eletivas são a realidade de milhares de brasileiros dependentes do SUS, o Sistema Único de Saúde. Todos nós temos um conhecido nessa situação. Muito se fala em resolver essa dor, mas diante de um universo tão complexo e gigantesco como o SUS, uma única solução genérica dificilmente sanaria o problema. Você já se perguntou o por quê disso ? O que está em jogo quando falamos sobre esse assunto? O que falta para que alguma mudança realmente seja efetiva ou atenue parte do problema?

Inicialmente, para compreender a amplitude dessa questão, é necessário entender o que a causa. Nesse sentido, precisamos identificar as raízes do sistema SUS, em que contexto ele surgiu e em que cenário se encontra. 

O SUS foi criado em 1988, no âmbito da nova Constituição Federal Brasileira. Sua criação se deu num momento em que boa parte da sociedade brasileira ansiava por um grande protagonista e prestador de serviços de saúde para a população como um todo: o Estado. Ao mesmo tempo, uma outra parcela dos cidadãos brasileiros buscava a concorrência da iniciativa privada, associada a um bônus a ser emitido pelo Estado para aqueles que não pudessem pagar. Nem tanto ao mar nem tanto à terra, os interesses acabaram por se mesclar, gerando a criação de duas vertentes de atendimento: privada e pública. 

Dentro da esfera pública, o sistema SUS tornou-se um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde do mundo, abrangendo desde os simples atendimentos para avaliação de sinais vitais, por meio da Atenção Primária, até as neurocirurgias, inseridas na Atenção Terciária, de alta complexidade. O SUS é, hoje, responsável pela assistência de quase 80% da população brasileira, aproximadamente 160 milhões de pessoas. Sete em cada 10 brasileiros dependem exclusivamente do SUS para tratamento, atendimento hospitalar e outros serviços de saúde. Além disso, o SUS também atua em favor da vigilância sanitária no Brasil, ao fiscalizar todos os estabelecimentos alimentícios, de saúde, de medicamentos e de cosméticos. É ainda atribuída ao SUS a criação do Programa Nacional de Imunizações(PNI), referência internacional de política pública de saúde, que fornece à população acesso gratuito a todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Dentre essas e inúmeras outras atuações do SUS, fica clara a essencialidade do sistema para o Brasil. 

Entretanto, essa vertente pública de saúde, o SUS, encontra-se hoje sobrecarregada, e com um agravante: os procedimentos eletivos, represados durante a pandemia do COVID-19, estão na iminência de pressionar ainda mais o sistema, com o avanço da vacinação. 

Dentro desse cenário de sobrecarga, é nítido que, no SUS, a demanda supera consideravelmente a oferta –princípio básico de formação de qualquer fila, por menor que seja a diferença entre demanda e oferta. Frente a essa situação, é necessário levar em conta a disponibilidade de recursos para o SUS, a fim de preservar sua sobrevivência. Sabe-se que os recursos direcionados não são infinitos. Portanto, utilizar-se apenas do que se tem disponível e, ao mesmo tempo, promover uma melhora do sistema acaba passando necessariamente por tornar tudo mais eficiente. Aspectos básicos como medir, gerir e otimizar apresentam-se como excelentes alternativas viáveis para aumentar a entrega de procedimentos, por exemplo. 

Nossa população já passa dos 200 milhões, dentre os quais aproximadamente 160 milhões dependem unicamente do SUS. São muitos pacientes, muitas internações e muitos procedimentos para poucos médicos e hospitais. As filas de espera começam a ser formadas. As agendas de procedimentos, principalmente as ambulatoriais e de centros cirúrgicos,  encontram-se lotadas. Hoje, o tempo médio de espera para atendimento pelo SUS já ultrapassa um ano. Em casos extremos, principalmente na área da ortopedia, chega-se a sete  anos de espera. Muitos pacientes, diante da demora para serem atendidos, acabam tendo seu quadro clínico agravado, o que não raramente leva a doença à irreversibilidade, quadro que acarreta, comumente, em óbito. E a situação vem se agravando com o passar do tempo. 

Entender os mais relevantes aspectos que dão cadência à capacidade de realização de procedimentos é um grande desafio em um sistema extremamente complexo como o SUS. Entre tantos desses aspectos, destacam-se a dificuldade de gestão, a falta de profissionais, o absenteísmo por parte dos pacientes, as dificuldades e características regionais de um país continental como o Brasil e a tabela SUS de remuneração por procedimento –que, por se encontrar defasada, acaba promovendo um estrangulamento financeiro dos hospitais. 


Mergulhando um pouco mais nesse sistema, deve-se entender que o SUS é um grande prestador de serviços, cuja execução se dá por meio de hospitais contratados. Quando se fala em contratação hospitalar, começa-se a compreender um novo espectro de abordagem do problema: a gestão de contratos no sistema SUS, um dos principais fatores contribuintes para a perpetuação das filas.

Para entender os pormenores que envolvem essa questão, precisamos compreender o processo de contratação das instituições prestadoras de serviço de saúde pelo setor público. Em sua maioria, as principais entidades contratadas são instituições filantrópicas, regidas por extensos contratos, que determinam uma série de obrigações entre o hospital e o sistema SUS. Nesses documentos, estabelecem-se uma série de metas, chamadas de “metas físicas”, que dizem respeito ao número total de procedimentos que a instituição realizará –como as cirurgias e as consultas médicas dos mais variados tipos e especialidades. Essas metas determinadas em contrato devem ser atingidas pela instituição para que o repasse financeiro do sistema SUS ao hospital seja realizado de maneira integral. Em caso de cumprimento apenas parcial dessas metas, são aplicados descontos sobre o montante total a ser repassado ao hospital. 

O desafio de gestão está em atender essas metas por completo, a fim de evitar cortes financeiros sobre o valor cheio de contrato. Mesmo diante de um cenário em que se ultrapassam algumas metas, mas não se atingem outras, a instituição não é recompensada e acaba sofrendo uma redução significativa no recebimento. Nesse sentido, a sustentabilidade do hospital é fortemente afetada, o que prejudica sua continuidade dentro do sistema de saúde. 

Considerando-se que os hospitais filantrópicos são responsáveis por 32% do total de leitos públicos do Brasil e por quase 60% de todas as internações de alta complexidade do SUS, fica claro que o comprometimento da continuidade dos filantrópicos no Brasil tem o potencial de promover um efeito catastrófico, capaz de sobrecarregar ainda mais o sistema público, contribuindo para a formação das filas no SUS, devido, principalmente, à redução da oferta no que diz respeito a procedimentos hospitalares.

Nesse contexto específico, entra em jogo uma peça fundamental: o gestor hospitalar, que aloca os recursos, redireciona as equipes e monta os planos de procedimentos hospitalares. É ele o responsável por garantir uma administração hospitalar justa e eficiente aos pacientes, independentemente do valor financeiro disponível à instituição.

Entretanto, a eficácia desse processo de administração hospitalar tem sido altamente comprometida, uma vez que, em sua maioria, os gestores hospitalares das instituições que trabalham com o SUS no Brasil não têm acesso a uma visão holística do processo de desempenho. Não há suficiente visibilidade de dados e de informações acerca dos atendimentos, procedimentos, internações e outros processos realizados no hospital ao longo do tempo. 

Sem essas informações, formular um plano de procedimentos com antecedência, a fim de coincidir a oferta dos serviços em saúde com os recursos financeiros disponíveis e a capacidade física da instituição, torna-se uma tarefa de difícil execução. O gestor encontra-se, portanto, parcialmente desprovido do conhecimento necessário para tomar decisões direcionadas à sustentabilidade da instituição. Dessa forma, assegurar a mesma quantidade e qualidade de atendimentos aos usuários SUS torna-se muito mais complicado.  

Entende-se, desse modo, que a dificuldade do gestor em gerir os contratos permeia o sistema como um todo, afetando, por último, aqueles que se encontram na ponta de toda essa cadeia: os usuários. 

Dentre os vários tipos de problema que se relacionam com a fila do SUS, um deles é a gestão de contratos. Se adequadamente equacionada, tem a capacidade de contribuir para a otimização do acesso à saúde no Brasil. 

 

Maria Luiza Gutierrez de Andrade Seixas é estudante de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Mario Peterlevitz Frigerio é bacharel em Ciência da Computação pela UNICAMP e desenvolvedor de software & hardware.

Uara Buschermohle é médica pela Faculdade Santa Marcelina(FASM) com atuação em UTI.
Juliana Viana Fiusa Moro é enfermeira pela PUC-SP, especialista em gestão de Redes Atenção à Saúde pela Fiocruz e em gestão de enfermagem pela UNIFESP.