Enfermagem brasileira e pertencimento étnico-racial: o que sabemos, e o que precisamos saber?
Helena Maria Scherlowski Leal David, Gerson Luiz Marinho e Kênia Lara da Silva
Estudos sobre a distribuição dos profissionais de enfermagem brasileiros segundo variáveis sociais e demográficas mostram um retrato que necessita ser atualizado com urgência. Um cenário já reconhecido no mundo todo: é o que remonta à feminilização histórica da profissão. No caso brasileiro, isso se reflete em todos os níveis de divisão técnica: auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros de nível superior são majoritariamente mulheres. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), cerca de 90% do total de profissionais de enfermagem de todo o mundo são do sexo feminino. Para além das desigualdades impostas pelas diferenças de gênero, inclusive quanto à baixa remuneração e às escassas oportunidades de ascensão nas carreiras, um aspecto que necessita ser melhor compreendido é como se apresentam as diferenças étnico-raciais para essa profissão eminentemente feminina.
Não há dados globais e tampouco informações comparáveis entre países que demonstrem as características da diversidade étnico-racial dos profissionais de enfermagem. No Brasil, os dados sobre essas variáveis podem ser obtidos a partir de bases censitárias. Mas é preciso lembrar que o último censo nacional ocorreu em 2010. Apesar dessa limitação, é relevante apontar resultados dos recenseamentos nacionais realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): no ano 2000, 70% dos profissionais de enfermagem declararam ser de cor ou raça branca. Dez anos depois, o Censo 2010 contabilizou 54,4% nesse contingente –uma redução de 15,6% de enfermeiros classificados como de cor ou de raça branca. Além disso, o Censo de 2010 também registrou diferenças na autodeclaração entre enfermeiros de nível superior (62,7 % eram brancos) e profissionais de nível médio (49,1% eram brancos).
Sabe-se que o critério de preenchimento da variável raça/cor é a autodeclaração, que sofre alterações em função da autopercepção. De modo especial, nos últimos anos há uma tendência de maior reconhecimento das pessoas acerca de seu pertencimento racial –o que pode justificar, em parte, o aumento do contingente de enfermeiros negros (compreendidos como o conjunto daqueles declarados de cor/raça preta e parda), bem como a redução dos percentuais de enfermeiros de cor/raça branca. No caso do acesso ao ensino superior, um importante marcador foi a política de cotas sociais e raciais para estudantes que se declaram pobres e negros, o que pode ter influenciado o aumento de enfermeiros graduados nas últimas décadas.
Esse cenário nos permite pensar que, na enfermagem, assim como na população brasileira em geral, há interseccionalidade entre gênero-raça-classe, com pessoas autodeclaradas brancas tendendo a ocupar os postos de trabalho de nível superior. Por outro lado, as ocupações que exigem nível médio e elementar de escolaridade absorvem contingentes proporcionalmente maiores de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. De acordo com dados de 2010, a renda de enfermeiros (nível superior) autodeclarados brancos superou em mais de um quarto àquela registrada para enfermeiros pardos e pretos; e entre os técnicos de enfermagem, brancos tiveram renda aproximadamente 11% maior àquela remetida para técnicos pardos e pretos.
Dentro da equipe profissional de enfermagem, nota-se com maior frequência que enfermeiras (nível superior) ocupam cargos de chefia e gestão, sendo responsáveis pela coordenação dos demais profissionais da equipe de enfermagem. Considerando desigualdades observadas através da pesquisa censitária quanto à distribuição da autodeclaração de raça-cor, é possível inferir que, na enfermagem, “uma minoria de mulheres brancas ocupam postos nos quais chefiam uma maioria de mulheres negras”. Estes dados refletem as condições históricas e a divisão do trabalho no interior da profissão de enfermagem com hierarquização social reproduzindo a hierarquização racial.
Historicamente, mulheres negras tendem a ocupar espaços de menor status social, com base na hierarquia do mercado de trabalho (o que pode ser observado para técnicas e auxiliares de enfermagem). Por outro lado, imagem da “enfermeira padrão”, no topo da pirâmide, foi cristalizada pela elitização e branqueamento da profissão. A ruptura com os ciclos de desigualdades advindos dos pertencimentos de gênero, raça, e classe é necessária e urgente na sociedade brasileira, e terá de superar os séculos de uma história de reprodução de relações sociais de subordinação, violência, racismo e opressão. Na enfermagem, com seus mais de dois milhões de profissionais, será parte importante no processo de enfrentamento dessas questões.
De que forma, exatamente, essas diferenças e desigualdades incidem sobre as oportunidades de emprego, condições de trabalho e renda e de desenvolvimento da enfermagem são perguntas a serem respondidas por meio de novos estudos que atualizem o debate e contribuam para o reconhecimento profissional e o trabalho digno do imenso contingente de mulheres que cuidam.
Helena Maria Scherlowski Leal David é professora Titular do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DESP/ENF/UERJ).
Gerson Luiz Marinho é professor Adjunto do Departamento de Enfermagem de Saúde Pública da Escola de Enfermagem Anna Nery (DESP EEAN UFRJ).
Kênia Lara da Silva é professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG).