Vacinação, voz e a impossibilidade de saída na pandemia
Agatha Eleone e Arthur Aguillar
A lentidão do processo de vacinação e a recente segunda onda da Covid-19 no Brasil tem criado uma série de questões sociais. Empresários buscam adquirir vacinas para si, suas famílias e seus empregados. Para esses últimos, o objetivo é possibilitar a retomada econômica o quanto antes. Uma parte considerável da elite já está voando para Miami, agora que o governo norte-americano anunciou a vacinação de turistas. Não é para menos: em um mundo com uma prevalência desigual da doença, a vacina funciona como um novo seguro de saúde que nos permitirá dormir em paz, sabendo que nem nós, nem os nossos perecerão. Para além disso, será também um passaporte para a realização de muitos desejos reprimidos: viagens, festas, idas a restaurantes e a casas noturnas voltam a ser uma possibilidade, já muito ansiada após quase um ano e meio dentro de casa – para aqueles que tiveram o privilégio de poder se proteger da doença através do isolamento.
A possibilidade de buscar uma via privada para adquirir vacinas e proteger-se da Covid-19 é o que o falecido economista Albert Hirschman, um tipo de patrono dos economistas que se arriscam na interdisciplinaridade, chamaria de “saída”. Ao analisar a dinâmica entre a qualidade entre trens e rodovias na Nigéria, Hirschman criou uma tipologia para entender a dinâmica de qualidade e eficácia de serviços públicos.
Diante de um serviço público considerado ruim, como o caso dos trens na Nigéria dos anos 1970, um beneficiário deste serviço (por exemplo, um grande produtor de biscoitos, como o pai da protagonista do livro Hibisco Roxo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie) tem, usualmente, duas opções. Ele pode simplesmente deixar de usar o serviço de trens (saída) e começar a usar caminhões para escoar sua produção. Alternativamente, ele pode também reclamar do serviço (voz), exercendo a ação coletiva através de reclamações formais e informais, protestos e ativação da mídia, criticando a qualidade dos serviços. Hirschman nos mostra em seu livro Saída, Voz e Lealdade que ainda que um produtor de biscoitos possa deixar de usar o trem (sair) para usar as rodovias, ele não pode optar por sair de ambos os serviços, pois afinal, ainda precisa de um meio para escoar a sua produção. Nesse exemplo, os empresários locais possuem, portanto, a opção de saída do serviço. A teoria levantada por Hirschman propõe que, quanto maior a possibilidade de saída do sistema público, menos provável que as elites locais utilizem sua voz e conexões políticas para exigir a melhora de um serviço.
Hirschman, um cidadão do mundo que sempre esteve em contato com os maiores desafios do seu tempo, seja ajudando judeus a fugirem da Europa ocupada pelos nazistas, contribuindo como economista no Plano Marshall ou mesmo enquanto participante da primeira missão do Banco Mundial em um país em desenvolvimento, certamente se interessaria pela dinâmica entre voz e saída dos sistemas públicos de saúde em face da pandemia de Covid-19.
A primeira conclusão a que chegamos a partir do arcabouço de Saída, Voz e Lealdade é que o processo de contornar o SUS para se vacinar contra a Covid-19 encarna um desejo humano natural que só pode ser exercido pelas camadas mais ricas da população diante de um serviço público de qualidade insatisfatória: se possível, sair. O exercício deste desejo, no entanto, tem consequências sociais óbvias, já que os mais ricos são justamente o grupo social com a maior capacidade de ação coletiva e mobilização (voz). Quando aqueles capazes de cobrar a gestão pública (seja por doarem grandes somas às campanhas eleitorais, possuírem espaço na mídia ou qualquer outra forma de influência) deixam de fazê-lo em função da opção de saída, todos os beneficiários do serviço perdem.
A segunda conclusão é que no caso da pandemia da Covid-19 — e de maneira geral, na maioria dos desafios de saúde coletiva –, a saída, na verdade, é uma impossibilidade lógica. Isso acontece porque em um evento desse tipo, a saúde do indivíduo não depende apenas de suas ações individuais, mas possui uma relação de interdependência com as ações de todos os outros indivíduos que compõem uma sociedade: mesmo que um empresário consiga tomar a vacina, isso não altera de maneira significativa a transmissibilidade e a vulnerabilidade associada à Covid-19: grande parte da força de trabalho ainda estará impedida de realizar suas atividades; medidas restritivas de ordem coletiva ainda serão necessárias para frear a doença; e a vulnerabilidade social e insegurança alimentar que decorrem da paralisação econômica continuarão a demandar um papel ativo do estado no fortalecimento das redes de proteção social.
Se estamos convencidos que a saída é uma impossibilidade lógica, resta exercer a voz. Aqui, temos muito o que fazer: é possível propor parcerias eficazes entre entidades privadas e serviço público. No nível da opinião pública existe um longo caminho a ser percorrido na comunicação de risco com a população, na disseminação de informações confiáveis sobre a pandemia e no combate às fake news. No nível da gestão pública, nossos municípios precisam de ajuda com a aquisição de insumos, transporte e armazenamento de vacinas, assim como na vigilância epidemiológica, tarefa complexa que muitas cidades pequenas não têm escala para executar. E no nível macro, é necessário responsabilizar o governo federal por sua omissão e negligência tanto na tomada de medidas restritivas quanto no processo de compra e aquisição de vacinas.
Hirschman, um economista que gostava de palíndromos e outros jogos de palavras (chegando a partir deles a importantes hipóteses sobre a inter-relação de forças políticas e forças econômicas), possivelmente notaria a ironia intrínseca ao momento presente. A pandemia trouxe à tona o que há muito não víamos no contexto da saúde brasileira: “obrigou os produtores de biscoitos a usar o trem”. É possível voar para os EUA para vacinar a si e os mais chegados gastando 450 mil reais (o suficiente para comprar 45 mil doses de Coronavac), como fez recentemente um empresário. Mas não dá pra levar a empresa no bagageiro do avião. Para aqueles que não têm acesso à saída (hoje, o conjunto total de pessoas que vivem no Brasil), resta apenas a voz.
Agatha Eleone, Pesquisadora de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).
Arthur Aguillar, Coordenador de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Para Políticas de Saúde (IEPS).