As UPAs fazem bem à saúde?

By: Cesar Brustolin/SMCS
Saúde em Público

Letícia Nunes e Fernanda Leal

 

Pensando em promover discussões acerca de pontos sensíveis à saúde, o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) cria o Diálogos IEPS. O evento nasce com o DNA de conectar pesquisa, prática, sociedade civil e formadores de opinião na divulgação de pesquisas com bases metodológicas robustas, e na construção de soluções conjuntas e inovadoras que unam evidências científicas e a vivência em saúde. O primeira edição discutiu os resultados encontrados no estudo intitulado “O Impacto das UPAs 24h sobre Indicadores Hospitalares e Saúde Populacional”, de autoria de Letícia Nunes, Rudi Rocha e Sonia Bhalotra. A mesa do evento contou com dois dos autores do estudo, Letícia Nunes e Rudi Rocha, e do ex-secretário de saúde do Espírito Santo e conselheiro do IEPS Ricardo de Oliveira, com mediação do jornalista Ricardo Gandour. Este texto mostra os principais pontos levantados no evento, além de temas marcantes abordados pelos debatedores.

 

Após uma intensa e importante expansão da atenção básica no Brasil nos ano 1990, o governo federal lançou em 2003 a Política Nacional de Atenção às Urgências com o objetivo de melhorar a fragmentação e a oferta escassa de serviços de urgência e emergência no SUS, além de buscar diminuir a pressão sobre as emergências hospitalares. A PNAU reforçou regulações que regem os atendimentos de urgência e emergência e introduziu dois novos componentes pré-hospitalares ao sistema: o SAMU e as UPAs.

O SAMU envolveu a criação de uma rede de ambulâncias conectadas a centrais de atendimento e disponíveis através do telefone 192. A UPA é um componente pré-hospitalar fixo, de complexidade intermediária e situado entre a rede de atenção primária e o sistema hospitalar. A regulamentação das UPAs pelo governo federal ocorreu em 2008, um ano após o modelo começar a ser experimentado pelo Rio de Janeiro. As UPAs no estado tiveram o objetivo de reduzir a lotação das emergências, diminuir o tempo de espera por atendimento e compensar a deficiência na atenção primária. As unidades foram projetadas para fornecer um atendimento resolutivo para condições clínicas agudas ou crônicas, primeiros socorros em casos cirúrgicos ou traumas e consultas médicas para casos de menor gravidade.

A primeira UPA no Rio de Janeiro foi inaugurada em 2007 na Maré. A expansão desses estabelecimentos ocorreu rapidamente até 2016, quando o estado passou a contar com quase 70 unidades e 32% dos seus municípios cobertos. Colocando esses números em perspectiva, o Brasil na época contava com cerca de 460 unidades e 6% dos seus municípios cobertos com ao menos uma unidade. Além disso, se considerarmos todos os procedimentos ambulatoriais realizados nas UPAs e em hospitais gerais do SUS com emergência em 2016 no Rio de Janeiro, as UPAs foram responsáveis por quase 43% da produção. Isso evidência como as UPAs se tornaram um ator chave no provimento de serviços de saúde no estado.

Mas qual tem sido o efeito das UPAs sobre a demanda e o desempenho dos hospitais e sobre a saúde da população? O estudo em questão teve o objetivo de avaliar os impactos da abertura de UPAs no estado do Rio de Janeiro, um pioneiro na política, em um conjunto de indicadores excepcionalmente amplo. A amostra principal é composta por 115 hospitais gerais com atendimento de urgência e emergência 24h disponíveis no SUS e em funcionamento no RJ no período de 2005 a 2016, assim como os 92 municípios do estado. O método de analise utilizado foi o de diferenças em diferenças. A análise mostra que as UPAs cumpriram o seu objetivo de reduzir a demanda pelos hospitais, diminuindo em 18% os procedimentos ambulatoriais realizados nos hospitais com uma UPA próxima, e em 31% as internações por causas sensíveis a atenção primária. Houve também uma redução substancial de 21% no número de óbitos em hospitais. Em particular, o estudo observou uma queda na proporção de óbitos em internações por condições não sensíveis à atenção primária, o que sugere melhoria na performance hospitalar. Esses resultados são consistentes com o fato de que, na medida em que a demanda por serviços ambulatoriais e de urgência e emergência foi reduzida com a abertura de UPAs, os hospitais puderam realocar recursos em direção a serviços de internação e de mais alta complexidade.

No entanto, ao redirecionar o olhar para fora dos hospitais, esse quadro positivo é colocado em perspectiva. Usando dados administrativos ao nível do município, o estudo encontrou uma forte e persistente realocação de mortes dos hospitais para as UPAs. Como exceção, em uma análise mais detalhada por causas específicas de mortalidade, as estimativas revelam um declínio de 15% nas mortes municipais por hipertensão e insuficiência cardíaca devido a UPAs.

As UPAs, portanto, representam novas portas de acesso ao SUS para a população e cumprem um papel importante na produção de serviço ambulatorial e de absorção da demanda por serviços hospitalares, melhorando o desempenho dos hospitais. No entanto, chama a atenção o fato de que grande parte da redução da demanda por serviços hospitalares decorreu de uma queda associada a condições sensíveis à atenção primária. Mais especificamente, a queda em hospitalizações decorreu inteiramente de uma queda associada a essas condições. Neste sentido, é importante refletir em que medida o fortalecimento da atenção primária, garantindo-lhe uma maior resolutividade, não produziria resultados na mesma direção — por exemplo, não apenas ampliando cobertura como também ampliando horários de atendimento e alguns serviços de média complexidade em unidades de atenção básica já existentes.

Chama também atenção o fato de que o estudo não verificou reduções significativas em taxas de mortalidade, com exceção de algumas causas específicas de óbito. Mais do que isso, a realocação de óbitos entre hospitais e UPAs permanece constante anos após a abertura de UPAs. Ou seja, apesar do RJ contar com quase 70 UPAs, um número substancial de novas portas do SUS com serviços de urgência e emergência, os indicadores de mortalidade responderam relativamente pouco à política. Esse resultado sugere que pode haver gargalos e espaço para aprimoramento. A literatura acadêmica e gestores trazem diversos desafios na implementação das UPAs, dentre os quais podemos citar: a dificuldade no referenciamento para os hospitais, podendo levar a “internação” dos pacientes nas unidades; a preponderância de pacientes em condições menos graves que poderiam ser tratados em unidades básicas de saúde; a insuficiência de recursos de custeio somada a dificuldade de contratar e reter profissionais de saúde; a complexidade de regionalizar as UPAs; e, por fim, projetos equivocados e sem um planejamento adequado de construção dessas unidades.

Muitos desses desafios e problemas foram abordados por Ricardo de Oliveira no debate que se seguiu após a apresentação da pesquisa. O ex-secretário defendeu a tese de que o investimento em UPAs não foi adequado do ponto de vista da saúde da população, configurando uma solução temporária e paliativa. Segundo ele, a demanda reprimida é tão grande que, ao abrir uma nova unidade de saúde, naturalmente ela ajudará a escoar as demandas de saúde da população. Mas é preciso saber como essa porta deve ser aberta e se é uma prioridade. Muitas vezes as questões políticas se sobrepõem às evidências técnicas, e a instalação de UPAs acaba sendo mais uma ação de vitrine para gestores de saúde dos estados e municípios do que necessariamente uma intervenção para melhorar o atendimento ao usuário do SUS. Oliveira considera que a redução em 31% das internações hospitalares por causas sensíveis à atenção primária e a diminuição de 18% dos procedimentos ambulatoriais com a presença das UPAs é muito pouco para o investimento que foi realizado e, mostra que elas absorveram atendimentos que deveriam estar sendo feitos na atenção primária. 

Ricardo argumenta que o SUS é um sistema interligado, sendo preciso olhar para o sistema por completo para se resolver o problema de melhorar o atendimento à saúde. A falta de conhecimento da população sobre os fluxos do sistema e de serviços disponíveis, faz com que ela se procure erroneamente alguns serviços em detrimento de outros. O ex-secretário aponta que de 60% a 70% das pessoas que vão para os hospitais não deveriam estar ali, sendo os acessos ao sistema ainda um grande gargalo para o SUS. Portanto, a prioridade deveria ser reorganizar o fluxo de atendimento na atenção primária e especializada, que, juntas, representam 95% de todas as demandas de saúde no Brasil. É imprescindível que haja seja uma coordenação conectada, visto que são níveis de atendimento que precisam funcionar harmonicamente e muitos dos recursos usados na instalação das UPAs poderiam ajudar no ordenamento desse fluxo. Importa, também, considerar que não adianta aumentar a estrutura e manter a fragmentação no sistema, uma vez que este é um fluxo e essas estruturas precisam conversar. A coordenação de todo o cuidado precisa ser da atenção primária e o usuário não pode se perder nesse processo. O SUS, que foi pensado em três níveis de atenção de maneira hierarquizada, ainda peca em interligar esses serviços e em olhar para a atenção primária com a complexidade que ela exige.

 

A ocasião também inaugurou uma nova forma de comunicação do IEPS, o Olhar IEPS, um policy brief que tem como objetivo sumarizar achados científicos e endereçar recomendações a gestores públicos sobre relevantes temas do ecossistema da saúde. A primeira edição do documento destaca os principais pontos do estudo supracitado e traz reflexões aos gestores de saúde e tomadores de decisão.

 

Letícia Nunes, Pesquisadora em Economia da Saúde no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

Fernanda Leal, Assistente de Políticas Públicas no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).