A vida em sociedade, governo e políticas públicas

Ricardo de Oliveira

 

Viver em coletividade depende cada vez mais da postura individual do cidadão e da capacidade e qualidade da ação coletiva da sociedade, através do Estado. Essa constatação nos coloca um desafio duplo: melhorar continuamente a qualidade dos governos, e envolver a população na formulação e implantação das políticas públicas.

Passamos de 1 bilhão de pessoas, em 1900, para cerca de 7 bilhões atualmente, tendo como consequência a ampliação do papel do Estado, o aumento da complexidade na organização dos governos e também da vida em sociedade. Já não faz mais sentido pensar que o Estado, sozinho, resolverá todos os problemas da coletividade. Além disso, passou da hora de reformarmos o Estado para que ele seja mais eficiente, eficaz, efetivo, e cumpra o papel que os tempos atuais demandam dele.

Vários problemas da sociedade como, por exemplo, os relativos à preservação do meio ambiente e da saúde, têm evidenciado a importância do envolvimento da população para a sua solução. Como fazer coleta de lixo seletiva, se cada cidadão não separar o seu lixo a partir da sua residência? Como manter a cidade limpa, se os cidadãos jogam lixo nas ruas? Será que a única solução é aumentar, cada vez mais, a estrutura dos governos que prestam esse tipo de serviço? A sociedade está disposta a assumir esse custo? Ou será que os governos também deveriam envolver a população por meio de uma campanha de educação, para conscientizá-la da importância da sua participação na manutenção de uma cidade limpa? Por outro lado, como manter os rios e lagoas livres de poluição se os governos forem incompetentes na prestação de serviços de saneamento? Esses são alguns questionamentos que mostram que hoje, mais do que nunca, viver em sociedade depende da articulação entre a participação cidadã e governos competentes.

No governo FHC, tivemos um bom exemplo de articulação entre ação do Estado e a participação dos cidadãos: o controle do uso da energia elétrica para evitar um apagão generalizado, algo que seria mais danoso para a sociedade. O governo estabeleceu meta para o consumo de cada residência e as famílias priorizaram de que forma consumir a sua cota de energia. Este episódio mostrou a importância da liderança do Estado e da mobilização da população em torno das políticas públicas.

Isso ocorre também na área da saúde. Como fazer ações de promoção à saúde que envolvam a incorporação de hábitos como alimentação saudável e a prática de exercícios físicos, sem estimular o protagonismo do cidadão nos cuidados com a própria saúde? A prevenção para um conjunto de doenças pressupõe um estilo de vida com práticas saudáveis. O papel do governo, nesse caso, é fornecer informações e atendimento adequado, de forma que o cidadão possa tomar a decisão mais condizente com sua saúde.

O combate à dengue é um caso clássico. Como eliminar o mosquito da dengue sem a participação da população, uma vez que 80% dos focos estão dentro das casas? Outro exemplo é a vacinação: como vacinar a população, se ela não estiver consciente da sua importância para prevenir doenças? Hoje em dia, a pandemia da COVID-19 escancarou a necessidade da participação de todos os cidadãos e da capacidade de liderança dos governos para superar esse grave problema de saúde pública.

Esse novo imperativo de comportamento solidário não é só uma questão de compaixão pelo outro. A atitude individual promove uma melhor qualidade de vida para mim e para todos. Como explicou Alexis de Tocqueville em seu clássico “Democracia na América”, analisando a cultura americana que combinava um forte individualismo com participação comunitária, é o “interesse bem compreendido”; ou seja, os americanos compreendiam que, além de cuidar do interesse próprio, era preciso cuidar do interesse coletivo.

No entanto, o envolvimento da sociedade pressupõe um governo confiável, reconhecido pela população como um aliado na melhoria de suas condições de vida. Esse é um desafio que ainda não superamos, conforme podemos constatar pela baixa credibilidade das nossas instituições governamentais, repetidamente mostrada nas pesquisas de opinião. Segundo pesquisa do Latinobarômetro, entre 2008 e 2018, o percentual de latino-americanos que declararam ter pouca ou nenhuma confiança nos respectivos governos subiu de cerca de 55% para mais de 70%. A prestação de serviços públicos desempenha um papel importante na construção dessa credibilidade; diariamente milhões de pessoas procuram os órgãos governamentais, e a experiência do usuário quanto à qualidade do atendimento pode contribuir para melhorar ou piorar a confiança da população na administração pública. Essa é uma das razões pelas quais precisamos incorporar, definitivamente, a reforma da gestão pública na agenda política permanente do país.

Os tempos atuais têm demonstrado que muitos problemas enfrentados pela sociedade devem ser enfrentados coletivamente, envolvendo governos e participação civil. Aqui comentei apenas sobre saúde e meio ambiente.

Parece não haver outra saída para o avanço civilizatório senão o estímulo da solidariedade, da consciência cívica e a melhoria da qualidade dos governos.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública – Democracia e Eficiência, FGV/2012 e, Gestão Pública e Saúde, FGV 2020. Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).