O impacto da velocidade do trânsito no SUS: é possível desacelerar o uso de UTIs e evitar mais este desastre
Pedro do Carmo Baumgratz de Paula e Dante Diego de Moraes Rosado e Souza*
Ao longo do último ano, e especialmente nas últimas semanas, nos acostumamos a acompanhar a porcentagem de ocupação das unidades de terapia intensiva (UTIs) em todo o Brasil. Ficamos assustados quando há 80% de ocupação, deixando pouco espaço para pacientes adicionais, já que os surtos de COVID-19 continuam em cidades e estados. Vemos as limitações e o colapso de nossas estruturas de saúde quando muitas partes do país atingem 100% de ocupação dos leitos das UTIs.
Mas e se você soubesse que rotineiramente, todos os anos, aproximadamente 60% dos leitos de UTI são ocupados por pessoas gravemente feridas no trânsito? Com o número de vítimas de trânsito de volta aos níveis pré-pandêmicos, mesmo ultrapassando as taxas anteriores em certos lugares, a necessidade de agir nunca foi tão clara e urgente: precisamos enfrentar nosso problema da violência no trânsito para reduzir as mortes e os ferimentos evitáveis e para aliviar a sobrecarga do nosso sistema de saúde.
O Conselho Federal de Medicina vem alertando sobre este problema e seus custos há anos, muito antes da pandemia. O número estimado de mortes no trânsito por ano no mundo é de 1,35 milhões, sendo 40.000 mortes somente no Brasil, de acordo com a média dos últimos anos. Milhares de outros ficam feridos, necessitando de cuidados tanto a curto como a longo prazo. Com 19,7 mortes por 100 mil pessoas no trânsito, o Brasil possui um risco relativo maior do que a média global.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a velocidade como um fator de risco em particular que está quase sempre presente em colisões. A alta velocidade aumenta tanto a probabilidade quanto a gravidade de uma colisão. Ao reduzir, ou melhor, “readequar” a velocidade em 5%, podemos reduzir as fatalidades em até 30%.
Os limites de velocidade das vias devem ser definidos em função dos tipos de usuários que utilizam o espaço. Por exemplo, são necessárias velocidades mais baixas em áreas próximas às escolas, onde as crianças e seus cuidadores provavelmente estarão andando. No momento em que um motorista excede o limite de velocidade, ele está colocando outros usuários das vias, e ele mesmo, em um alto risco de morte no caso de uma colisão.
As altas velocidades são perigosas porque causam um efeito de estreitamento no campo visual do motorista, ou visão periférica, que prejudica a percepção da presença de pedestres, de outros usuários da via e mesmo obstáculos que nela se encontram. Isto resulta em reações retardadas em situações de emergência. As altas velocidades também exigem maiores distâncias para frear, limitando as alternativas para evitar uma tragédia.
Para parar um veículo que circula a 60 km/h, por exemplo, são necessários mais de 35 metros, o que pode não ser suficiente para evitar que um pedestre seja atropelado. A 40 km/h, a distância necessária é de 20 metros, e a colisão poderia ser evitada, por exemplo. Por esses e outros motivos se diz que as mortes no trânsito são evitáveis. Elas decorrem de escolhas feitas pelos condutores de veículos, pelos demais usuários da via, pelo Poder Público e pela sociedade em geral.
No ano passado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) reconheceu a terminologia “sinistros” como mais apropriada para uso em referência ao que anteriormente chamávamos de “acidentes” – um termo que permitia interpretações errôneas. Dizer “acidente” sugere que mortes e ferimentos no trânsito são eventos fortuitos e imprevisíveis – uma concepção errônea quando quase todas as mortes no trânsito são evitáveis.
As consequências de um sinistro causado por excesso de velocidade podem ser trágicas. Um estudo realizado pela Comissão Nacional de Segurança Viária do Chile compara o impacto de um veículo sobre o corpo de uma pessoa em velocidades diferentes com a queda livre de um edifício. No caso de uma colisão a 70 km/h, o dano causado ao corpo humano seria equivalente à queda do sétimo andar de um edifício, deixando poucas chances de sobrevivência. Se o veículo estiver viajando a 50 km/h, os danos à vítima seriam menos graves, mas ainda assim semelhantes a uma queda do quarto andar.
É baseada nesta evidência que a OMS recomenda a velocidade máxima em vias urbanas para 50 km/h em avenidas e 40 ou 30 km/h em ruas locais e residenciais. E o que poderia ser mais importante do que preservar uma vida? Ao adotar métodos comprovados e baseados em dados para evitar sinistros de trânsito, podemos aliviar a carga que nossos sistemas de saúde enfrentam no tratamento de vítimas de sinistros, desenvolvendo estratégias que atuam em múltiplas frentes no gerenciamento da velocidade. Especialmente durante a pandemia da COVID-19, vemos o valor de cada leito hospitalar.
Ainda que tenhamos muito a melhorar, o Brasil tem ótimos exemplos de iniciativas voltadas a tornar suas vias mais seguras. Na cidade de São Paulo, a política de gestão de velocidades foi objeto de intenso debate público, no entanto teve seu sucesso consolidado. Iniciada em 2011 e aprofundada em 2015, a readequação das velocidades nas vias de São Paulo culminou com a padronização da velocidade máxima de 50km/h em todas as vias arteriais da cidade, um importante avanço no tema. Essas velocidades reduzidas ajudaram a diminuir em 36% as mortes entre 2014 e 2019, passando de 1.249 mortes para 791.
Em outro caso notável, Fortaleza vem implementando uma política progressiva para ajustar a velocidade em avenidas com altas taxas de morte e ferimentos. A primeira avenida a receber este novo tratamento de velocidade tinha o maior índice de atropelamentos de pedestres da cidade e em apenas um ano registrou uma redução de 63% neste tipo de ocorrência. Além da nova limitação de velocidade, baseada em dados, um trabalho articulado de fiscalização e comunicação facilitou a compreensão das comunidades vizinhas sobre a urgência da medida. A capital do Ceará reduziu a taxa de mortes em 51,7% nos últimos 10 anos e alcançou a meta da ONU para a “Década de Ação para a Segurança Viária (2011-2020)”. Entre 2015 e 2020, a cidade salvou cerca de 750 vidas.
É verdade que abordar a velocidade sozinha não resolverá completamente nossa crise de sinistros de trânsito. Outros fatores de risco também levam a colisões e mortes, como beber e dirigir. Mas em tempos de pandemia, quando cada leito em uma UTI é crítico, é importante reconhecer esta questão como uma prioridade de saúde pública. Não há dúvida entre os especialistas e pesquisadores de que a gestão das velocidades é crucial e de que nossos profissionais de saúde seriam mais capazes de se concentrar no tratamento de pacientes da COVID-19 ou na identificação e tratamento de outras doenças se os sinistros de trânsito de fossem evitados.
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*Pedro de Paula é Diretor-Executivo da Vital Strategies no Brasil. Pedro é advogado formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestre em Direito Econômico e Economia Política pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente é Doutorando. Também leciona na faculdade de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
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Contato: pcbpaula@vitalstrategies.org
*Dante Rosado é Coordenador Executivo da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global. Engenheiro Civil e Mestre em Engenharia de Transporte pela Universidade Federal do Ceará, atua na área de segurança viária há 17 anos.
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