A experiência do estado do Espírito Santo na gestão da saúde – 2015/ 2018
Ricardo de Oliveira
O objetivo desse artigo é registrar a experiência de quatro anos na implantação da política pública de saúde no Estado do Espírito Santo e, assim, contribuir para o debate sobre formas de melhorar o atendimento de saúde no nosso país. A principal conclusão é que o SUS funciona, embora precise de melhorias. O atual enfrentamento da pandemia do coronavírus pelo SUS provou a todos a enorme vantagem de um país possuir um sistema público e universal de saúde como o nosso.
O SUS enfrenta hoje desafios de financiamento, de reformulação de seu modelo de atenção à saúde e de reorganização da sua gestão. Apresento a seguir um resumo do nosso planejamento, das estratégias e dos projetos que desenvolvemos nesse período para enfrentar esses problemas.
A primeira providência foi realizar o planejamento da secretaria iniciando com um diagnóstico da situação assistencial, financeira e organizacional. Identificados os problemas principais, formulamos as estratégias e os projetos necessários para implantá-las. É importante ressaltar que, apesar da enorme crise financeira, foi definida prioridade para a saúde de forma que essa área teve o maior orçamento, entre todas as secretarias, nesse período de governo.
Considerando o diagnóstico da prestação de serviços de saúde, o planejamento definiu três objetivos estratégicos para melhorar a prestação desses serviços: acesso aos serviços, qualidade dos serviços e qualificação da gestão.
O objetivo era ampliar o acesso, qualificar o atendimento e a gestão, sendo a qualificação da gestão a garantia para que se mantenha uma permanente melhoria na prestação de serviços de saúde para a população e o fortalecimento do papel de liderança da Secretaria Estadual de Saúde (SESA) no SUS estadual.
Para alcançar esses objetivos, foram definidas sete estratégias finalísticas e de gestão:
1 – Ampliar a oferta por meio de novos serviços e do aumento da eficiência dos atuais: “mais leitos, mais consultas e exames”;
2 – Aprimorar a qualidade do atendimento assistencial com maior transparência na regulação do acesso;
3 – Melhorar o conforto dos cidadãos no acesso aos serviços de saúde: perto de casa, humanizado, redução do prazo para atendimento, e ambiente adequado;
4 – Melhorar a resolutividade da Atenção Primária à Saúde (APS) e da Atenção Ambulatorial Especializada (AAE);
5 – Integrar os 3 níveis de atenção à saúde: APS, AAE e Atenção Hospitalar;
6 – Aumentar o protagonismo do cidadão nos cuidados com a própria saúde;
7 – Fortalecer a capacidade de planejamento, gestão e controle da Secretaria estadual de saúde.
Para alcançar os objetivos e implementar as estratégias, foram definidos dois projetos estruturantes: a Rede Cuidar, para reorganizar a política assistencial do SUS, e a qualificação da gestão, para reorganizar a gestão da SESA.
A Rede Cuidar
O desafio da SESA no período de governo (2015/2018) foi o de superar um modelo de atenção centrado na assistência hospitalar e reverter a lógica fragmentada do sistema de saúde capixaba, reestruturando-o a partir do conceito de redes de atenção regionalizadas.
Essa perspectiva de funcionamento pressupõe uma definição clara sobre as funções essenciais de cada unidade assistencial, seja no âmbito da atenção primária, secundária ou terciária, dentro de um sistema de saúde que tenha como premissas básicas: a eficiência alocativa de recursos humanos, tecnológicos e financeiros; e o atendimento humanizado, resolutivo, de qualidade e em tempo oportuno.
A reorganização da política assistencial (atenção primária, ambulatorial especializada e hospitalar), foi feita considerando as redes de atenção à saúde, as regiões de saúde e a descentralização da gestão para essas regiões. O objetivo foi fazer com que o usuário fosse atendido na sua própria região de saúde, evitando longos deslocamentos pelas estradas para ter acesso aos serviços de saúde. E, também, que a região de saúde se organizasse para administrar, em conjunto com a SESA, a prestação de serviços de saúde na região, gerando economia de escala e escopo e ganhos de governabilidade política e de regulação.
Neste contexto, a SESA coordenou a implementação de uma mudança estrutural nos processos de trabalho que se iniciam desde o primeiro atendimento do paciente na unidade de saúde mais próxima da casa do cidadão até o serviço especializado, garantindo um fluxo mais adequado e a integralidade do cuidado. Isso possibilitou a redução dos encaminhamentos desnecessários à média complexidade com redução nas filas de espera, a priorização dos pacientes que realmente necessitam do atendimento especializado e maior eficiência alocativa de recursos.
Uma ação importante foi a regionalização dos serviços de saúde, pois permite ganhos de eficiência na prestação de serviços, ao propiciar um esforço conjunto dos municípios participantes da região e da SESA na organização da prestação dos serviços públicos de saúde.
Essa ação conjunta, entre Secretaria de Saúde Estadual e municípios, é a única maneira de melhorar a prestação dos serviços de saúde, a qual é dependente, também, da articulação e coordenação dos três níveis de governo, aí incluído o Ministério da Saúde.
A Rede Cuidar é a expressão concreta deste projeto de reorganização da atenção à saúde, consolidada pela Lei estadual n° 10.733 de 19 de setembro de 2017. Para a sua implantação foi realizado um conjunto de intervenções voltadas para a integração entre a APS (Atenção Primária à Saúde), a AAE (Atenção Ambulatorial Especializada) e a atenção hospitalar.
Destaca-se aqui a Planificação da Atenção à Saúde, para capacitar inicialmente a APS e a AAE, e a abertura das Unidades Cuidar. Estas unidades são ambulatórios especializados, com foco no atendimento a portadores de condições crônicas de saúde por equipes multiprofissionais, cujo acesso é definido por meio da estratificação de risco pela APS. Elas não atendem apenas aos portadores de condições crônicas, mas a outras necessidades regionais de atenção especializada.
A intervenção assistencial é conduzida a partir da elaboração de um Plano de Cuidados na Unidade Cuidar, a ser utilizado para gestão clínica dos usuários tanto na própria Unidade, quanto na APS. Cinco unidades foram construídas para atender o estado, e quatro delas iniciaram o atendimento até 2018. A ordenação do fluxo, na Rede de Atenção à Saúde, é realizada a partir da atenção primária, com estratificação de risco das gestantes, crianças, hipertensos e diabéticos.
A implantação da educação permanente dos profissionais, de forma integrada, entre a APS e AAE é uma inovação que tem como objetivo superar a fragmentação existente entre esses dois níveis de atenção à saúde. Implantamos o bloco de horas para dar o conforto de hora marcada para atendimento nas Unidades Básicas de Saúde e na Unidade Cuidar; incentivamos o autocuidado, prática fundamental para controlar as doenças crônicas; orientamos sobre alimentação e exercícios físicos; e humanizamos o atendimento. Foi desenvolvido um sistema de informação para suportar esse novo modelo de atendimento e a relação entre as unidades de saúde e o atendimento especializado nas unidades da Rede Cuidar.
Qualificação da gestão
A reorganização da gestão da SESA teve por objetivos: garantir a boa aplicação dos recursos do SUS, no interesse dos usuários; dar sustentabilidade ao processo de melhoria contínua da prestação de serviços de saúde, ao longo do tempo; garantir a legalidade dos atos de gestão; combater a ineficiência, o desperdício, o clientelismo, o corporativismo e o desvio de recursos públicos das suas finalidades.
Para alcançar esses objetivos, capacitamos lideranças, iniciamos a implantação da gestão por resultados (estabelecimento de indicadores e metas para áreas estratégicas, e monitoramento periódico através da central de resultados), aumentamos a transparência e aperfeiçoamos os controles, com a implantação de vários sistemas de informação (custos, controle dos indicadores hospitalares, prestação de contas dos prestadores contratualizados, regulação de consultas e exames, portal do SUS, sistema integrado de gestão administrativa-SIGA), e fortalecemos o controle social com a nova lei do conselho estadual de saúde, que democratizou o acesso das organizações da sociedade civil ao conselho e ampliou sua autonomia política.
Promovemos a modernização da gestão hospitalar através das organizações sociais – entidades sem fins lucrativos –, que assumem a gestão dos hospitais públicos após processo seletivo público e a assinatura de contrato de gestão com a secretaria, onde são estabelecidas metas de melhoria da eficiência e do atendimento aos usuários.
O Estado do Espírito Santo conta hoje com quatro hospitais geridos por organizações sociais. Organizamos, na secretaria, uma estrutura destinada ao controle dessas organizações, medida fundamental para o funcionamento adequado desse modelo de gestão hospitalar. Hoje, a relação contratual da secretaria com as organizações sociais é pautada por um adequado nível de transparência e controle.
O nosso objetivo com esse projeto foi construir uma burocracia de estado eficiente, profissionalizada, transparente, que respeite a legalidade, comprometida com os usuários do SUS, e subordinada ao poder político.
Os resultados alcançados mostraram que a política pública de saúde estava no rumo certo. O IBGE divulgou, em 2018, que o ES alcançou a menor taxa de mortalidade infantil do país e a segunda expectativa de vida ao nascer, sendo que para quem atingiu 60 anos ou mais, o ES alcançou o primeiro lugar. Todavia, ainda persistem desafios que precisam de tempo, continuidade das políticas públicas, e persistência nos objetivos para superá-los.
Ricardo de Oliveira, engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES em 2015 a 2018. Autor dos livros: Gestão Pública – Democracia e Eficiência (FGV/2012), e Gestão Pública e Saúde (FGV/2020)