Em busca de lanternas no apagão dos dados da pandemia
Pedro de Paula e Renato Teixeira
Imagine que você está dirigindo um carro em uma noite chuvosa. Após uma curva fechada, depois de cruzar com um caminhão no sentido contrário que por pouco não acertou seu carro, seus faróis subitamente se apagam. Qual é a sensação de estar nessa situação?
É mais ou menos assim que os gestores públicos podem se sentir ao liderar a resposta à maior pandemia de nossas gerações quando há um apagão nos dados da saúde. Devemos manter as escolas abertas ou fechá-las? Reduzir ou aumentar as restrições às interações sociais? Ampliar a capacidade das UTIs ou desativar hospitais de campanha? Essas decisões podem ser tomadas rápida e eficientemente, mas somente com os dados corretos. Os gestores precisam saber o número de casos, hospitalizações, mortes e, talvez o mais importante, se esses números estão aumentando ou diminuindo. Para que a resposta do setor público à COVID-19 seja ágil, as informações disponíveis também devem ser atuais.
A COVID-19 deixou muitos no escuro, mas também proporcionou uma oportunidade para explorar novas fontes de dados e os resultados têm sido surpreendentes. Muitos termos e informações importantes que antes não eram familiares ao público em geral tornaram-se amplamente conhecidos: número e porcentagens de testes positivos, total de internações, porcentagem de leitos de UTI ocupados, e total de mortes por COVID-19. Um número crítico é o excesso de mortalidade – o número total de mortes de todas as causas que excede o número esperado de mortes com base em médias históricas. Além destas informações essenciais, também é crucial saber como as pessoas estão se comportando, ou seja, se estão usando ou não máscaras e adotando medidas voluntárias de distanciamento físico, entre outras. Estes são indicadores estratégicos de como os níveis de transmissão podem evoluir.
É por isso que é crucial para os governos fazer uso estratégico de todas as fontes de dados disponíveis. Não apenas os conjuntos de dados oficiais, mas também as informações geradas pela mídia social e pela vigilância comunitária, pois eles poderiam desempenhar um papel importante na melhoria da resposta da política de saúde pública.
Saber que, em maio de 2020, o estado de São Paulo enfrentou seu maior número de mortes em excesso ao esperado para o mês é muito importante para análises mais profundas e de longo prazo; mas para decidir se bares e restaurantes podem continuar recebendo pessoas hoje, o gestor necessita saber diariamente, com o menor atraso possível, qual a variação de casos e de internações no último dia e nas últimas semanas. Além de saber se a trajetória desses casos tem sido consistentemente crescente ou decrescente, é também fundamental saber como a população tem se comportado em termos de distanciamento, uso de máscaras e outros indicadores sociais.
Como fazer tudo isso no meio de um apagão de dados, como relatado no início de novembro? Mesmo com os sistemas de informação estabilizados, como uma resposta à pandemia que parou o mundo pode ser moldada apenas por dados de mortalidade, o que pinta um quadro estreito e retardado da tragédia da saúde pública? Ou, no máximo, dados de testes ou hospitalizações que estão disponíveis com até 10 dias de atraso?
Uma maneira é investir em testes e monitoramento extensivos, juntamente com o fortalecimento dos sistemas de informação nos municípios, estados ou do país. Assim, é possível diagnosticar rapidamente os problemas e agir antes que eles se tornem irreversíveis. Entretanto, fortalecer tais sistemas e capacidades no meio de uma pandemia pode ser difícil e caro, e podem ocorrer falhas. Portanto, deve ser dada atenção a caminhos complementares. Existem fontes de informação oficiais extras que podem e devem complementar as análises de saúde pública.
A vigilância comunitária pode indicar a existência de zonas não adequadamente cobertas pelo sistema institucionalizado de saúde pública, como é o caso do painel “COVID-19 nas favelas do Rio de Janeiro”. Dados produzidos nas redes sociais podem servir de indícios do comportamento da pandemia. No início do ano, por exemplo, indicadores de mobilidade da população obtidos por meio de dados de GPS de celulares foram uma interessante aproximação da real efetividade das políticas de distanciamento. Com a redução da adesão a essas medidas, precisamos saber rapidamente onde e como estão se comportando os novos surtos para agir de forma eficaz, como mostra ser necessário a recente experiência em países da Europa, sob pena de um altíssimo custo humano.
O recente caso no Estado de São Paulo é ilustrativo da utilidade dos dados produzidos nas redes sociais para complementar as fontes oficiais. Entre os dias 6 e 9 de novembro, o Estado de São Paulo – em virtude de problemas nos sistemas de informação – não divulgou nenhum caso ou óbito em todo seu território. Nas semanas que antecederam esse apagão, a tendência era de queda e a população começava a acreditar que o pior já havia passado. No entanto, quando os dados voltaram a ser divulgados, percebeu-se que naquele período houve uma inversão de trajetória, indicando uma retomada do aumento dos casos e das hospitalizações, o que foi reforçado por declarações de hospitais privados na capital.
Só em 11 de novembro a preocupação com o aumento de casos começou a tomar conta dos noticiários e do debate público. Isso ocorreu cinco dias após o início do apagão e possivelmente com mais de uma semana de atraso da real inversão de tendências. Mas não era necessário esperar tanto para se ter um retrato mais atual da pandemia no Estado de São Paulo.
Uma parceria entre o Facebook Data for Good, Carnegie Mellon University e a University of Maryland, tornou público bases de dados com informações para relatar sobre sintomas relacionados à COVID-19. Todos os dias, os usuários do Facebook com 18 anos ou mais são solicitados a responder voluntariamente a um questionário com informações que vão desde os sintomas autorrelatados da COVID-19 até o uso de máscara e transporte público. Estas bases de dados, que são anônimas e não revelam informações pessoais nem permitem rastrear indivíduos, mostraram que desde o final de outubro já era possível observar uma mudança na tendência da porcentagem de pessoas que responderam que tinham sintomas de uma doença semelhante à COVID-19, que é definida como febre acompanhada de tosse ou falta de ar ou dificuldade para respirar. Ao analisar os dados atualizados do Ministério da Saúde, observa-se que após alguns dias de baixo número de notificações, foi apresentado um padrão semelhante de crescimento (FIGURA 1 para o BRASIL). E, como dito, com um atraso de 8 dias, a plataforma do Estado de São Paulo mostrou crescimento nos casos relatados diariamente.
Esse padrão de antecipação de tendências se repete em outros estados, como no Ceará, Goiás, Minas Gerais e outros. Sempre que houve uma inversão de tendências de redução ou aumento de casos na base dos casos notificados do MS, essa redução também estava refletida através desse levantamento realizado no Facebook.
Esses dias de alerta precoce são preciosos na leitura de cenário e na tomada de decisões ágeis sobre a pandemia. Mais do que suprir apagões, ter sinais de alerta para novos surtos pode antecipar as respostas públicas, salvando vidas e reduzindo os danos do aumento da transmissão.
Embora informações e indicadores auxiliares ainda estejam longe de suprirem os dados oficiais de saúde e serem os faróis que necessitamos nessa longa noite chuvosa, eles se prestam a complementar o repertório de inteligência a ser utilizada na contínua luta contra a COVID-19. A disponibilidade de dados atualizados e confiáveis é essencial para o direcionamento das ações contra a COVID-19. Embora cada vez mais se confirmem as expectativas positivas nas vacinas, viveremos por muito tempo sem o controle e a supressão total do vírus. Teremos que buscar todas as luzes ao nosso alcance para orientar nossa viagem nessa estrada escura e tortuosa.
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Pedro de Paula é Diretor-Executivo da Vital Strategies Brasil. Pedro é advogado formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Mestre em Direito Econômico e Economia Política pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde atualmente é Doutorando. Também leciona na Faculdade de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Renato Teixeira é consultor técnico da Vital Strategies Brasil. Graduado no curso de Estatística pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Epidemiologia e Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Medicina da UFMG, Renato vem analisando dados que podem auxiliar no melhor compreendimento e monitoramento da COVID-19.