A expansão da Atenção Primária deve ser prioridade nas eleições do próximo dia 15

Saúde em Público

Arthur Aguillar

Flavio Alcoforado

As eleições do próximo dia 15 definirão quem serão os novos prefeitos das cidades brasileiras. Caberá a eles definir prioridades de investimento, gerir uma grande e diversa força de trabalho e apontar uma direção para o sistema de saúde. No Brasil, onde o município é o ente federativo responsável pela atenção básica, as eleições municipais serão determinantes para a saúde da população. Para garantir a saúde na cidade, os novos prefeitos devem priorizar a expansão da atenção primária, através da ampliação da cobertura da Estratégia Saúde da Família.

A Atenção Básica é a principal porta de entrada do SUS, junto com as unidades de urgência e emergência. É a partir do atendimento do cidadão em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que se inicia a prestação do serviço assistencial de saúde pública, por uma equipe de saúde da família ou equipe de atenção básica. A atenção básica consegue lidar com as questões de saúde relacionadas a cerca de 80% das demandas recebidas, acompanhando o tratamento dos pacientes crônicos e encaminhando aqueles com necessidades de especialidades médicas e atendimento de média e alta complexidade. Daí, o aumento da cobertura dos serviços de Atenção Básica no território é a principal ação que propicia o acesso do cidadão aos serviços de saúde de forma capilarizada, chegando muitas vezes a locais onde outros serviços sociais não alcançam.

A expansão da cobertura da atenção básica deve ser prioridade para os gestores recém eleitos, por duas razões. Primeiro, porque este é o principal mecanismo para a concretização do Direito à Saúde, estabelecido na Constituição de 1988. É a atenção primária que retira este direito do plano abstrato e o consolida como algo que pode ser acessado por todos os brasileiros: quanto maior a cobertura da atenção primária, maior a proporção da população que realmente exerce o direito à saúde. Hoje, a Estratégia Saúde da Família chega a 62,7% dos brasileiros. Segundo, porque a Estratégia Saúde da Família funciona. Diversas pesquisas têm mostrado o impacto da estratégia nas condições de saúde da população: um estudo dos pesquisadores Sonia Bhalotra, Rudi Rocha e Rodrigo Soares  mostra que a expansão da atenção primária no Brasil reduz a mortalidade infantil e materna (uma estimativa conservadora sugere que quase 11 mil mães deixam de morrer todos os anos devido à estratégia). Em especial, o aumento do acesso ao sistema de saúde e a redução da mortalidade materna está concentrada nas mulheres mais pobres da população.

A despeito da efetividade da estratégia, muitos municípios brasileiros ainda têm uma cobertura bastante baixa. Entre as capitais Salvador, São Paulo e Manaus, por exemplo, menos da metade da população está coberta. Em Belém, menos de uma em cada quatro pessoas tem acesso à Estratégia Saúde da Família. Uma Nota Técnica publicada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde mostra que para custear a universalização da Estratégia Saúde da Família no Brasil a toda população que hoje não está coberta (79 milhões de pessoas), seriam necessários R$ 19 bilhões por ano. Se em um cenário de queda da arrecadação municipal em face da pandemia da COVID-19 os recursos são ainda mais escassos, a expansão da atenção primária é uma prioridade absoluta.

Deveríamos encarar a expansão da atenção primária como uma prioridade nacional, como foi a chegada à Lua para os americanos nos anos 1960: um desafio capaz de unir o país e elevar nossa ação à altura de nossas mais altas aspirações sociais.  Algo que fazemos, parafraseando o ex-presidente americano John F. Kennedy, não porque é fácil, mas precisamente porque é difícil. E porque tem o potencial de mudar a realidade de forma definitiva.

Se a expansão da cobertura da atenção primária não é um processo simples, ela é certamente possível: de fato, diversos municípios brasileiros foram capazes de ampliar a sua cobertura drasticamente em alguns anos. A cidade do Rio de Janeiro se caracterizou durante as duas primeiras décadas do SUS por uma incipiente oferta de serviços de atenção primária. Em 2008, a cobertura de Saúde da Família correspondia a cerca de 3,5% da população municipal. 

A partir de 2009, iniciou-se a implantação da reforma da Atenção Primária na cidade, que compreendeu uma expansão dos serviços, de forma planejada, iniciando pelas áreas de vazio sanitário mais carentes, construindo Unidades Básicas de Saúde, denominadas “Clínicas da Família”, e reformando as UBS antigas para comportar a nova dinâmica de atendimento desenhada; recrutando e selecionando gestores para os territórios, denominados APs –Áreas Programáticas (10 em toda a cidade); implantando sistemas de informação nas unidades, compreendendo prontuários eletrônicos com interligação com a sede da Secretaria Municipal de Saúde; definindo a carteira de serviços de atenção básica, uniformizando os procedimentos de ações de saúde para todas as unidades, compreendendo a elaboração de protocolos clínicos próprios baseados em evidência com observação da realidade local; criando uma lista de medicamentos (REMUME); ampliando o programa de residência em saúde da família, chegando a 200 vagas anuais, de modo a formar mão de obra especializada para a rede.

Um dos cernes da estratégia de expansão no Rio de Janeiro foi a contratualização de serviços de saúde com Organizações Sociais, no período compreendido entre 2009/2016, pela agilidade e flexibilidade inerentes ao modelo, que permite a contratação e substituição de pessoal com agilidade, definição de plano de carreira, cargos e salários com padrões de mercado e variável relacionada a incentivos financeiros e não financeiros. Ao final do ano de 2016, chegou-se a cerca de 70% de cobertura da atenção primária na cidade.

A experiência do município do Rio de Janeiro mostra que mesmo um município grande, com um imenso desafio de cobertura, pode rapidamente ampliar sua cobertura. Os novos prefeitos podem conhecer melhor o caso do Rio de Janeiro através da Agenda Saúde na Cidade, que traz um conjunto de ações que os novos prefeitos podem implementar para expandir a cobertura da Estratégia Saúde da Família nos seus municípios, um passo a passo que se inicia na identificação dos chamados “vazios sanitários” –áreas onde a população não tem acesso à Atenção Primária.

Arthur Aguillar é pesquisador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde

Flavio Alcoforado é Professor da EBAPE/FGV e foi Subsecretário de Gestão da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro