Uma proposta de agenda para o SUS

 

Ricardo de Oliveira

A pandemia da Covid-19 jogou uma luz forte sobre a importância do SUS na proteção à saúde da população e da necessidade do seu aperfeiçoamento. O desafio é complexo, mas o setor saúde tem profissionais e organizações qualificadas capazes de ajudar o país a superá-lo, conforme observamos no enfrentamento da atual pandemia.

Para superar esse desafio é necessário estabelecer uma agenda que oriente os debates sobre como melhorar a prestação de serviços do SUS.

Essa agenda deve contemplar as várias dimensões que impactam a prestação dos serviços de saúde, conforme abaixo relacionado:

  1. REORGANIZAÇÃO DO MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE

Essa agenda se impõe, especialmente pela atual transição demográfica que indica um envelhecimento da população e consequente predomínio das doenças crônicas. O novo modelo deve superar a atual fragmentação do sistema de saúde, de modo a promover maior articulação e coordenação entre os vários níveis de atenção (primária, ambulatorial especializada e hospitalar) e, assim, organizar melhor o fluxo dos usuários dentro do sistema. É necessário, também, promover os conceitos de vida saudável (alimentação e exercício físico), do auto cuidado e implantar as Redes de Atenção à Saúde. É fundamental o fortalecimento da atenção primária como porta de entrada nas redes de assistência e coordenadora do processo de atendimento. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) desenvolve dois importantes projetos para reorganizar o modelo de atenção à saúde: a planificação da atenção primária e da ambulatorial especializada.

  1. FINANCIAMENTO

Os aportes financeiros ao SUS são baixos, se comparados aos exemplos internacionais. O Brasil se encontra muito aquém do nível de gasto público necessário para financiar um sistema público e universal de saúde. O país tem um gasto público que corresponde a 47% do gasto total em saúde (público e privado), enquanto nos outros países, com sistema universal, está em torno de 70%. O nosso gasto público em saúde corresponde a 3,8% do PIB enquanto no Reino Unido é de 7,9%. No entanto, quando consideramos o gasto total, em relação ao PIB, constatamos que os nossos gastos são semelhantes aos desses países. O Brasil gasta 8,9% do PIB e o Reino Unido, considerado o melhor sistema público do mundo 9,9%.

  1. REGIONALIZAÇÃO

Um dos problemas que impactam a gestão do SUS é a excessiva municipalização dos serviços de saúde, sem que exista escala que viabilize a prestação desses serviços. A consequência é a pulverização de recursos, contribuindo para a ineficiência do sistema e prejudicando a qualidade do atendimento aos usuários do SUS. É preciso, portanto, desenvolver uma lógica política baseada em uma visão regional de assistência à saúde que promova cooperação entre os vários níveis de governo por região.

  1. REVISÃO DO MODELO DE GESTÃO

A revisão do modelo de gestão do SUS é importante para que possamos transformar os recursos disponíveis em serviços eficientes e de qualidade à população. Para tanto, o setor público de saúde deveria ter regras de gestão específicas por tratar de questões relacionadas com a qualidade e a manutenção da vida.

Relaciono a seguir, as questões que considero relevantes que interferem no ambiente de gestão do SUS:

– O atual marco regulatório administrativo e de controle do setor público que prioriza os processos ao invés dos resultados no atendimento.

– A atuação dos Tribunais de Contas e Ministérios Públicos que dificultam a formação de equipes técnicas e gerenciais em função de um temor generalizado em assinar documentos ou decidir sobre processos em andamento.

– Os sistemas de informação devem ser aprimorados, inclusive para viabilizar a implantação do cartão SUS e o prontuário eletrônico.

– As dificuldades na coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. Além do sistema tripartite, temos o Judiciário, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, os Conselhos Profissionais, dentre outros.

– A cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas na relação do Estado com a sociedade que provoca ineficiências e favorece a corrupção. Essas práticas induzem à descontinuidade administrativa sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e a frequente troca de gestores.

  1. JUDICIALIZAÇÃO

O crescimento exponencial da judicialização da saúde é um fenômeno recente e tem sérias consequências na execução da política pública de saúde. Ela está criando outra porta de entrada no SUS, comprometendo a equidade no acesso aos serviços e mobilizando vultuosos recursos. Convém ressaltar que o acesso à justiça faz parte do Estado democrático de direito, porém, precisamos debater com urgência as razões do seu crescimento excessivo.

A justiça tem responsabilizado o gestor criando um clima que impacta fortemente o desempenho gerencial. Cada dia torna-se mais difícil selecionar profissionais para assumir cargos de chefia, uma vez que o risco de serem culpabilizados pessoalmente cresce com o aumento da judicialização. É necessário estabelecer, com urgência, um ambiente de segurança jurídica que afaste o risco dos profissionais serem responsabilizados pelas deficiências de atendimento na prestação de serviços de saúde por obrigações do Estado.

  1. COMPLEXO INDUSTRIAL, CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO DA SAÚDE

A pandemia do Covid-19 mostrou que o país possui uma boa infraestrutura de ciência e tecnologia e profissionais capacitados e, a necessidade de aumentar o investimento na área. Contudo, foi possível identificar deficiências que devem ser corrigidas. Precisamos, por exemplo, aumentar e qualificar nossa capacidade laboratorial e reduzir a dependência externa em relação a insumos de proteção individual dos profissionais (EPIs) e na produção de medicamentos. Essas demandas específicas e outras, podem alavancar o nosso parque industrial na internalização de tecnologias estratégicas para atender às necessidades da saúde. Uma das preocupações da política de saúde tem sido a relação com o setor produtivo para suprir as necessidades do país e deve ser fortalecida.

  1. PARCERIA COM O SETOR PRIVADO FILANTRÓPICO, ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE E EMPRESAS PRIVADAS

O SUS compra serviços e produtos de vários parceiros do setor privado, como as organizações filantrópicas, as organizações sociais de saúde e as empresas privadas, uma vez que não tem estrutura suficiente para prestação de todos os serviços, tampouco produz tudo que precisa. O funcionamento adequado dessas parcerias depende fundamentalmente da capacidade do poder público de selecionar bons fornecedores, fiscalizar a aplicação dos recursos e a qualidade do atendimento aos usuários.

Uma questão importante na política de saúde é estabelecer um diálogo com as operadoras de seguro saúde com objetivo de buscar acordo sobre sua área de atuação, financiamento e sua relação complementar com o SUS na prestação de serviços. A falta de uma visão consensuada tem gerado um conflito dentro do setor saúde que provoca ineficiências.

É preciso utilizar com eficiência todos os recursos disponíveis na área de saúde, público e privado, para atendimento à população, obedecendo os mandamentos constitucionais.

Por fim, é preciso construir uma unidade política com todos os atores envolvidos, tendo como objetivo defender os interesses dos usuários do SUS. É preciso reconhecer que o SUS é fruto de uma obra coletiva, que envolve toda a população e várias instituições, perpassa vários governos e, precisa de continuidade nas suas políticas, como forma de garantir o direito à saúde. Há uma frase muito utilizada pelo CONASS que sintetiza esse diagnóstico: “O SUS não é um problema sem solução, é uma solução com problemas”.

 

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, consultor em gestão pública e palestrante. Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: Democracia e Eficiência, FGV/2012.