Reabertura das escolas?

 

Roberto Cooper

 

Após 8 meses de pandemia, ainda não temos as informações, baseadas em evidências, que nos permitam responder à questão de reabrir ou não as escolas. Dito de outra forma, “a ciência”, tão evocada na mídia como uma entidade única e detentora da Verdade, não tem resposta para essa questão. Ou melhor, tem respostas para o gosto do freguês.

Se a pessoa está inclinada a defender a abertura das escolas, vai citar os exemplos da Suécia, Dinamarca, França e Alemanha como bem-sucedidos em termos de reabertura das escolas (a Suécia nunca chegou a fechá-las). Se a pessoa está inclinada a defender que as escolas permaneçam fechadas, vai citar os exemplos de Israel e, localizadamente, da França.

Também temos um cardápio ao gosto do freguês para a questão da transmissibilidade das crianças. O estudo da Coréia do Sul aponta, de modo resumido, que crianças transmitem e as de idades entre 10 e 19 anos, transmitem como adultos. Mas o estudo da Irlanda (muitíssimo menor) conclui o oposto. O mesmo concluem (o oposto da Coréia do Sul) os dois estudos produzidos em Genebra.

Quando me refiro ao gosto do freguês, quero dizer, sua visão de mundo, seu viés político (não há como negar a existência desse viés, para qualquer decisão), suas preferências pessoais ou afetivas. Portanto, neste momento, devemos ser francos e honestos, afirmando que não temos, evidências científicas ou epidemiológicas que possam sustentar uma posição clara de reabrir ou manter fechadas as escolas.

Se não temos essa resposta, temos alguns consensos:

  • A reabertura de escolas somente deveria se dar quando a circulação do vírus estivesse reduzida e sob controle. Isso implica em decisões locais, em função da epidemiologia. Impossível tomar uma decisão única para um estado e, muito menos, país. O consenso vai parar no enunciado porque, ato contínuo, vai se iniciar uma discussão sobre o que significa circulação reduzida e situação sob controle. Parece óbvio que a redução da circulação do vírus se dá com o isolamento social, uso de máscaras e lavagem das mãos. Quando uma sociedade privilegia a reabertura de bares e academias de ginástica, manda uma mensagem clara a respeito do valor da educação. Bares e academias deveriam permanecer fechados, favorecendo a reabertura das escolas.

Ainda para podermos abrir as escolas, uns defenderão a testagem em grande escala, enquanto outros, invocando o fato de que esta testagem é impraticável e não foi feita em lugar algum do mundo (focando na reabertura das escolas), sendo necessário utilizar o número de casos e óbitos como indicadores desse controle.

  • A reabertura das escolas somente poderá ocorrer quando, além das condições epidemiológica favoráveis, houver um protocolo bem estabelecido pelas escolas, com respeito ao funcionamento cotidiano das unidades escolares. Este protocolo deve contemplar desde a logística de entrada e saída de alunos, funcionários e fornecedores, até o tamanho das turmas e o seu funcionamento como coortes “fechadas”, passando pela desinfecção ambiental, medidas contingenciais em caso de suspeita ou confirmação de Covid-19 na comunidade escolar e treinamento de toda a equipe. Aqui, novamente, existem áreas de indefinição e subjetividade. Crianças não usarão máscaras, dirão alguns. O protocolo do Reino Unido, Dinamarca e EUA (citação não exaustiva), elimina o uso de máscaras para crianças menores de 9 a 10 anos, dirão outros. Como reduzir o tamanho das turmas é um problema real e concreto, tanto maior no setor público. Em Israel, o brote de casos ocorreu por conta de turmas grandes em dias de calor intenso, quando as janelas foram fechadas e o ar condicionado foi ligado. Em um país tropical como o nosso, esta situação não é difícil de ser imaginada.
  • Os funcionários das escolas devem ser previamente avaliados, antes de qualquer reabertura, para identificar os que podem apresentar fatores de risco como idade e comorbidades. Para estes, um planejamento à parte deverá ser feito, com o objetivo de minimizar uma exposição que coloque o funcionário em risco.
  • Reabrir escolas não significa assumir (ou fingir) que está tudo bem. Não está. O vírus ainda circula entre nós, mesmo nas cidades onde os indicadores sinalizam uma redução real de casos e óbitos. Reabrir escolas significa repensar cada detalhe da rotina diária da escola, introduzindo mudanças fundamentais nesse cotidiano. Estamos há 4 meses com o vírus entre nós e nesse tempo, seria de se supor que as escolas públicas e privadas estivessem se preparando para, quando as condições permitissem reabrir, fazê-lo com segurança. Usamos esse tempo para aprender e nos planejar ou, agora, vamos no improviso, no jeitinho brasileiro, na torcida e na fé?

 

Além dos aspectos relacionados diretamente ao vírus (transmissão, infecção, prevenção etc.), existem aspectos sociais importantíssimos que devem ser levados em consideração em qualquer decisão de reabertura ou não das escolas:

 

  • A reabertura das escolas é necessária para que os pais possam retornar aos seus trabalhos, caso estes estejam exigindo a presença física do funcionário. A classe média e os mais ricos ainda conseguem uma rede de suporte constituída por familiares e/ou empregados. Estes precisam do trabalho e saem de casa para cuidar dos filhos dos outros, sem ter com quem deixar os seus. Acrescente-se o dado que o percentual de pessoas em situação de trabalho informal é de 40%, segundo o IBGE, mas ultrapassa 50% e 11 estados. Esses trabalhadores informais precisam sair de casa, todos os dias, para conseguir colocar comida na mesa de casa.
  • As escolas, além de serem um lugar seguro (em princípio) para as crianças ficarem, oferece refeições que são fundamentais para as famílias mais pobres e vulneráveis. Nos EUA, país rico, 20 milhões de crianças dependem do café da manhã e almoço servido nas escolas. Qual seria esse número no Brasil?
  • A reabertura de algumas escolas (privadas) e não de outras (públicas), além de escancarar a forma com que a concentração de riqueza afeta, objetivamente, as pessoas, contribui para perpetuar e aprofundar as diferenças entre pobres e ricos, dificultando a tarefa de construirmos um país mais justo e equânime. Dito isso, a solução seria não permitir que as escolas privadas, dado o cumprimento das exigências e recomendações, abrissem? Ou, abrir as públicas junto com as privadas, colocando em risco este segmento da população (alunos e funcionários) porque não conseguem atender às exigências e recomendações?

 

Finalmente e não menos importante, existem os aspectos psicopedagógicos e psico-afetivos envolvidos no fechamento das escolas.

Parece ser consenso entre pedagogos que a interrupção prolongada do ensino presencial, acarreta uma perda, temporária, da capacidade cognitiva. Isto é, alunos quando retornam de férias mais longas, não apresentam a mesma capacidade de absorção de novos conhecimentos e competências que apresentavam ao final do período anterior. Assim, é de se supor que esta perda cognitiva temporária estará presente no retorno às aulas e será tanto maior, quanto maior o tempo de fechamento das escolas. Esta perda já é, habitualmente, mais intensa nos alunos de famílias pobres e vulneráveis. Com o retorno à escola, esse grupo deveria receber um suporte pedagógico específico e mais intenso, sob o risco de termos uma faixa de alunos que vão se “arrastar” ainda mais que o habitual, pelos anos escolares, com um agravamento das consequências de um ensino que já era sofrível.

Do ponto de vista pisco-afetivo, crianças, como todos os humanos, são seres sociais. O que nos caracteriza como humanos é a nossa interdependência e a necessidade de nos relacionarmos. Assim, ainda que não seja mensurado, o dano por conta do isolamento existe e está presente nas crianças. O retorno à socialização e expressão do afeto (incluindo as discussões e brigas) é um atributo fundamental no desenvolvimento emocional saudável das crianças. Manter as crianças em casa, protegidas do vírus, o que poderia ser dito de outra forma -vivas, é fundamental. Mas é preciso considerar que crianças, como adultos, são seres biopsicossociais e a escola é o espaço onde podem expressar isso de forma plena.

 

Como disse no início, não há uma pessoa que possa responder, com segurança, à pergunta: as escolas já podem reabrir? Isso, considerando uma visão binária do mundo -pode ou não pode. Ora, o mundo não funciona desta forma. O mundo é um gradiente, complexo, multifatorial e uma visão binária é típica de uma criança, onde o pensamento mágico infantil (ou pré-lógico), categoriza tudo em bom/mau, feio/bonito, gosto/não gosto. A complexidade é para adultos, assim como conviver com inseguranças e incertezas. Temos o dever moral de responder às questões complexas e não deixa-las, neste caso, exclusivamente para os pais. Quando profissionais de saúde optam por fazer um tratamento farmacológico é porque supõem que os benefícios superam os malefícios. Devemos avaliar esta questão sob a mesma ótica e ponderar benefícios e malefícios das diferentes soluções possíveis. Mais, não poderemos generalizar porque, para determinados locais ou grupos, uma solução pode ser benéfica, enquanto a mesma solução para outro local ou grupo e maléfica.

 

Não há como tratar de uma questão tão urgente e complexa, sem registrar que a ausência de uma coordenação federal, leia-se Ministério da Saúde, acolhendo diferentes saberes, promovendo o debate de ideias, buscando o bem de todos, apenas contribui para mais confusão, ignorância e obscurantismo. Quando uma ameaça a todos, poderia nos aproximar de forma humana e solidária, a abstinência do poder federal, revela o descaso pela vida.

 

 Roberto Cooper é pediatra, tem mestrado em saúde da família (Unesa), e é professor no curso de medicina (Unesa).