O “remédio mais caro do mundo” e os dilemas para o SUS e o STF
Daniel Wei Liang Wang
Luís Correia
Adriano Massuda
Ana Carolina Morozowski
A ANVISA recentemente aprovou o registro do medicamento Zolgensma para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), doença rara que causa paralisia muscular progressiva. Embora mais estudos sejam necessários, inclusive para atestar seus efeitos a longo prazo, o registro foi concedido em caráter excepcional pela gravidade da doença, pela ausência de alternativa terapêutica e porque as pesquisas existentes apontam para maior sobrevida, redução da necessidade de auxílio de aparelhos para respirar e melhora no desenvolvimento motor dos pacientes com o medicamento.
O fato de um tratamento tão promissor estar disponível é uma excelente notícia que traz uma preocupação. Ainda não se sabe o preço do tratamento no Brasil, mas nos EUA ele custa US$2,1 milhões (R$12 milhões) por paciente. Isso torna impossível a sua aquisição por famílias e cria um dilema para o SUS.
Registro na ANVISA não significa a incorporação pelo SUS para distribuição gratuita. A concessão do registro é apenas a autorização para que o produto entre no mercado nacional. A incorporação passa por outro processo, que considera diversos fatores, incluindo custo. Nem sempre se quer falar em dinheiro quando se discute saúde, mas como o orçamento é limitado e há mais necessidades que recursos, eventual incorporação de um tratamento tão caro inevitavelmente retirará recursos de outras políticas de saúde.
Se, por ano, há 3 milhões de nascimento no Brasil, e 1 a cada 10.000 crianças nascem com AME, então 300 crianças por ano nascem com AME no Brasil. Considerando que metade delas terão AME do tipo 1, para o qual Zolgensma foi aprovado, e que esse é um tratamento ministrado em dose única, então o custo do seu fornecimento universal pelo SUS ao preço praticado nos EUA seria de R$1,8 bilhões por ano. Isso é 10% do gasto anual de União, Estados e Municípios com todos os quase mil tratamentos da relação de medicamentos do SUS, o dobro do gasto anual com drogas para DST/AIDS e três vezes o valor acordado pelo governo brasileiro para produzir 30,5 milhões de doses de vacina para Covid-19 atualmente em teste.
Zolgensma está longe de ser um caso isolado. O SUS já tem fornecido, via judicialização ou incorporação, tratamentos de altíssimo custo como o Soliris e o Spinraza. Muitos outros tratamentos com preços elevados logo entrarão no mercado. O FDA, órgão regulador americano correspondente à ANVISA, prevê que até 2025 aprovará de 10 a 20 terapias gênicas, como o Zolgensma, por ano.
Portanto, é preciso que como sociedade tenhamos uma discussão muito séria sobre o financiamento do SUS, quanto estamos dispostos a gastar com inovações em saúde e quais as consequências distributivas de nossas escolhas. Por isso, mais do que nunca, é necessário que se atente à economia da saúde para decidir quais tecnologias serão custeadas.
Existem alguns métodos para guiar essa discussão. Um deles é a análise de custo-efetividade, que avalia a relação entre o benefício trazido por um novo tratamento e o seu custo. Tratamentos cujos ganhos em saúde não justificam o seu preço muito elevado não são incorporados porque consomem recursos que poderiam ser empregados em intervenções que trazem grandes ganhos a baixo custo. Outro é a análise de impacto orçamentário, em que se estabelece um limite para o custo total que o sistema de saúde aceita gastar com um tratamento para evitar que a sua incorporação inviabilize outras políticas de saúde.
Análises de custo-efetividade e de impacto orçamentário já são previstas em lei e aplicadas pelo Ministério da Saúde, mas precisam ser melhor conhecidas e compreendidas pela sociedade. Assim, poderão ser aprimoradas, aplicadas com mais consistência e respaldadas pela opinião pública e tomadores de decisão, mesmo quando os resultados são frustrantes para pacientes.
A análise econômica pode levar à difícil decisão de não fornecer um tratamento. Contudo, a experiência internacional mostra que mais comumente ela é utilizada para dar a sistemas de saúde poder de barganha na negociação de preços e condições com a indústria farmacêutica, o que certamente será necessário no caso de tratamentos como o Zolgensma.
Porém, esse tipo de análise pode ser seriamente dificultado a depender do resultado de um julgamento que será concluído pelo STF ainda esta semana. Trata-se da decisão que fixará a Tese de Repercussão Geral do Tema 6, que definirá quando pacientes terão o direito de receber tratamentos não incorporados pelo SUS. Duas teses estão em disputa no STF.
Uma, defendida pelo Ministro Marco Aurélio, entende que pacientes terão o direito de receber um tratamento não incorporado sempre que conseguirem comprovar a sua necessidade perante um juiz. Ou seja, a necessidade individual que chegou ao Judiciário deve ser atendida independentemente do impacto sobre o sistema de saúde e outros usuários.
A outra, defendida pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Barroso, dá ao SUS o poder de definir quais tratamentos devem ser custeados pelo Estado. Portanto, não há a obrigação de se fornecer um tratamento que os órgãos técnicos do SUS decidiram não incorporar após uma análise de evidência científica, custo-efetividade e impacto orçamentário. Ao Judiciário fica a tarefa de garantir o fornecimento dos tratamentos já incorporados e de decidir excepcionalmente na ausência de uma decisão do próprio SUS.
Se prevalecer a primeira tese, a judicialização tirará do SUS instrumentos importantes para evitar que a introdução de tecnologias de alto custo criem inequidades e ameacem a sua sustentabilidade. O resultado será um SUS que gasta cada vez mais para beneficiar um número cada vez menor de pessoas, provavelmente em prejuízo daqueles com menos voz e das políticas com pouca visibilidade mas não menos importantes (como atenção primária e preventiva). Isso manterá e agravará o cenário de um sistema de saúde no qual a oferta de tratamento de altíssimo custo convive com desabastecimentos, filas de espera, deterioramento de serviço e a dificuldade do sistema de se expandir e de reduzir desigualdades.
Daniel Wei Liang Wang é professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas – SP
Luís Correia é professor Adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
Adriano Massuda é professor da Fundação Getúlio Vargas – SP. Foi Secretário de Saúde de Curitiba e Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde
Ana Carolina Morozowski é juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba, com competência especializada em saúde