Entrevista com David M. Cutler
Pablo Peña Corrales e Miguel Lago
A pandemia de Covid-19 trouxe a sustentabilidade e a qualidade dos sistemas de saúde para o centro do debate público. David Cutler, professor de economia na Universidade Harvard, dedicou mais de três décadas de pesquisa a essa questão.
Trata-se de um dos acadêmicos com maior incidência política no tema, tendo assessorado o presidente Barack Obama no passado. O Saúde em Público conversou com Cutler sobre as grandes ideias e tendências globais afetando custos e qualidade dos sistemas de saúde e sua relevância para o Brasil.
Em vários países (o Brasil inclusive), os custos da saúde estão crescendo mais rapidamente que o PIB, o que gera grande pressão sobre a sustentabilidade econômica do sistema. Como explicar esse fenômeno? Não há uma só razão, mas várias. Uma das mais importantes, em escala global, é que o setor médico consegue fazer mais do que fazia antes, e as pessoas têm acesso a isso. Os avanços tecnológicos na medicina são importantes e contribuem para o aumento dos custos. É possível ver em muitos países que um medicamento lançado neste ano custou mais do que o lançado no ano passado, e que os cirurgiões ganham mais neste ano do que no ano passado, mesmo em termos reais.
Até certo ponto é também um reflexo do processo de distribuição de renda, cada vez mais concentrado. Pessoas com maior renda remuneram melhor médicos e farmacêuticas, que por conseguinte ganham mais.
Existem também algumas características que variam de acordo com o desenho dos sistemas. Sistemas com grande prevalência do setor privado, como é o caso dos EUA, têm custos administrativos muito elevados.
A fragmentação dos sistemas de saúde, como acontece no Brasil entre o SUS e a saúde privada, também pode estar impulsionando esse aumento dos custos? Sem dúvida está. Isso é válido tanto para o custo crescente como também para o alto nível de custos. Gastamos muito dinheiro em gastos administrativos na área da saúde por causa da fragmentação. Via de regra, os custos administrativos aumentam com o número de atores. Se você tem um pagador, você não terá um custo administrativo muito alto. Quando você começa a adicionar várias camadas e remove as restrições sobre o que eles podem fazer, então eles podem exigir qualquer coisa, e os pagadores exigem provas de que os pacientes fizeram X antes de fazer Y etc.
A fragmentação aumenta os gastos médicos; isso não quer dizer que não tenha nenhuma vantagem, as pessoas têm mais escolha, e assim por diante. No entanto, empiricamente, sistemas mais fragmentados gastam mais em custos administrativos do que os menos fragmentados.
Quais são as grandes ideias para controlar o aumento dos custos sem comprometer a qualidade? O foco para os formuladores de políticas tem que ser o de ganhos de eficiência. Não se trata necessariamente de mais gastos ou menos gastos, porque se você está gastando em coisas boas deveria gastar mais, e se você está gastando em coisas ruins deveria gastar menos, mas você quer maior eficiência para os gastos que efetua. Essa é a grande questão.
A realidade é que nenhum país sabe muito bem como ter um sistema de assistência médica totalmente eficiente. Temos ideias diferentes sobre a melhor forma de atingir a eficiência. Temos quase certeza de que a versão com custos administrativos elevados não é a maneira mais eficiente.
Há uma questão básica que se resume a quanto você quer se apoiar no mercado e restringir o que ele faz, que é uma espécie de modelo americano. Nesse modelo, vamos ter mercados, mas vamos fazer com que o governo faça coisas para tentar direcioná-los de uma forma ou outra. A alternativa é ter um sistema governamental com um pouco de mercado nas bordas, que é mais ou menos o sistema britânico ou o canadense. Eles são majoritariamente pilotados pelo governo, com algumas opções de mercado.
Essas são as duas escolhas básicas. Pessoas diferentes podem pesá-las de forma diferente. Algumas pessoas não querem que o governo controle os sistemas de saúde, algumas querem. Algumas pessoas querem muita escolha, outras não se importam com isso. Você pode ter visões diferentes. Empiricamente, você gasta menos, como estávamos falando, em um sistema mais administrado pelo governo.
Qual o papel da atenção primária para assegurar a sustentabilidade? A atenção primária é extremamente importante. O ex-senador americano Tom Daschle descrevia a saúde como uma pirâmide, onde a grande base deveria ser a atenção primária e a atenção fica a cada vez mais especializada à medida que vai subindo. No topo estão os superespecialistas, mas há uma base muito firme de cuidados primários.
Infelizmente, os EUA são como uma pirâmide invertida. Temos relativamente poucos cuidados primários e depois temos uma tonelada de cuidados superespecializados. É uma questão de saúde porque se você não tem muitos cuidados primários você está perdendo muito, e é também uma questão de custos porque os especialistas cobram muito mais.
Isso demonstra novamente que, se permitirmos que o mercado faça o que quiser, provavelmente não vai dar certo; o mercado cria uma série de incentivos para cuidados superespecializados, porque você sempre paga mais por cuidados especializados do que por cuidados primários.
Em seu trabalho, você fala muito sobre digitalização e dados. Como passamos de mais e melhores dados para uma diminuição dos custos de saúde? Isso me lembra o início da revolução informática, quando foram feitos estudos sobre o que aconteceu quando jornalistas migraram das máquinas de escrever para os computadores. O primeiro conjunto de conclusões foi que quando os jornalistas usavam computadores, seus artigos eram mais longos, mas segundo um painel de editores, não eram melhores. Portanto, é possível migrar para um meio digital e não melhorar significativamente as coisas.
Robert Solow, no MIT, costumava brincar que você pode ver a revolução dos computadores em todos os lugares, menos nas estatísticas de produtividade, e é um pouco onde está o setor de saúde. Colocamos computadores em todos os lugares, mas até agora não os utilizávamos realmente para melhorar a produtividade.
O que vamos ter que fazer é pensar em como usar o computador não apenas para aumentar seu faturamento, mas para dizer “aqui está uma pessoa com condições severas de saúde, como podemos ajudá-la a permanecer o mais saudável possível? Usando todas as informações de nosso computador, como posso ajudar essa pessoa a permanecer saudável?”.
Há um movimento no setor chamado Value-Based Care, que remunera os prestadores com base na experiência e na melhora de saúde do paciente. Qual é sua opinião? Acho, ou espero, que isso terá um impacto significativo. No entanto, é muito difícil medir a produtividade real para a saúde. Se um paciente vai ao médico e então morre, você não sabe se o médico prestou um mau atendimento ou se o paciente teria morrido de qualquer maneira. Enquanto que se você compra um carro e assim que você sai do estacionamento, o carro quebra, então você sabe que estava com defeito.
O que torna a assistência médica muito difícil é diferenciar seu impacto de coisas que simplesmente acontecem, como forças da natureza e o comportamento do paciente independente da assistência médica.
Um debate clássico na saúde é a competição entre o setor privado e o setor público. Essa discussão é principalmente normativa e teórica, ou existem razões objetivas pelas quais um ou outro seja o caminho seguir? Eu acho que existem razões objetivas, sim. Não que seja a mesma resposta para todos os países. Se você me diz que tem um governo muito bom e competente, eu diria que dirija as coisas para o setor público, gerencie o seguro básico através do setor público. Se você me disser que tem um governo corrupto, eu diria para não gerir as coisas pelo setor público, use o setor privado.
Por outro lado, se você tem um setor privado financeirizado, cujo objetivo é o de tornar as empresas atrativas para investimentos e que portanto só prestarão serviços quando for vantajoso financeiramente, eu não administraria por meio deles. Mas se o setor privado for um conjunto de médicos e profissionais de saúde com a missão primordial de ajudar pessoas e agentes de seguros que só querem ajudar pessoas e assim por diante, então talvez você possa administrar pelo privado.
Quais são os principais desafios políticos para chegar a um consenso nas reformas da saúde? Primeiro, a saúde se torna uma espécie de arma para bater no adversário. Por exemplo, nos EUA, o Affordable Care Act (Obamacare) dialogava muito com as premissas dos republicanos, mas como foi apresentada por um democrata, os republicanos se opuseram. Torna-se mais um instrumento de divisão do que de união.
A outra coisa é que as pessoas hesitam muito antes de fazer grandes mudanças em algo tão fundamental como seus cuidados médicos. O conservadorismo natural das pessoas sobre a saúde torna a mudança difícil, mas, na verdade, isso nada mais é do que uma afirmação de que as pessoas querem ir com muito, muito cuidado.
Como podemos fazer para que haja menos polarização e interferência partidária na saúde? Basta olhar para o Covid-19, nos EUA, onde agora o Partido Republicano se tornou o partido que se opõe às máscaras. Não tenho nem mesmo certeza de que haja uma maneira. Você pega uma questão técnica, como usar máscaras quando vai a uma loja, e isso se torna uma questão política. Isso pode acontecer com tudo na área da saúde porque é muito pessoal. Toca nas questões de saúde, nas suas liberdades pessoais, em todo aspecto de suas vidas.