Como garantir o exercício do direito à saúde?
Ricardo de Oliveira
Fruto de uma grande mobilização política na sociedade, foi escrito na Constituição de 1988 que a Saúde é direito de todos e um dever do Estado.
Uma vez conquistado esse direito, a sociedade se depara com o desafio de garantir o acesso aos serviços públicos de saúde a toda população brasileira. Esse é um desafio sem paralelo no mundo, vez que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes e com dimensões continentais que tem um sistema público e universal (SUS).
E temos que vencê-lo nos limites do marco regulatório administrativo e de controle da administração pública, que impõem inúmeras dificuldades para uma gestão pública eficiente, capaz de transformar os recursos disponíveis em serviços de qualidade para a população.
O SUS enfrenta esse desafio desde sua criação em 1988 e, apesar das dificuldades, foi capaz de organizar uma enorme prestação de serviços em todo o país. A pandemia da COVID-19 está demonstrando a importância do sistema público de saúde na proteção da saúde da população.
Garantir o direito à saúde significa prover serviços públicos de saúde a toda população, ou seja, a qualquer hora, em qualquer dia ou lugar desse país, alguém precisa de atendimento público de saúde e o SUS tem que estar preparado para atender.
Manter em todo o país serviços de saúde significa, do ponto de vista técnico, ter pessoas qualificadas e no quantitativo adequado, equipamentos, prédios, insumos e capacidade gerencial distribuídas por todo o país, de forma que a população possa acessar os serviços segundo suas necessidades, inclusive a tempo de ser atendida sem prejudicar sua saúde.
O SUS se depara, também, com alguns desafios de gestão do ponto de vista político. A nossa cultura política marcada por práticas clientelistas, patrimonialistas e corporativas, na relação do Estado com a sociedade, provoca ineficiências; desperdício de recursos; favorece a corrupção; prejudica a qualidade da prestação de serviços de saúde à população; e induz à descontinuidade administrativa, sobretudo pela falta de profissionalização nos órgãos públicos e com a frequente troca de gestores, em todos os níveis de governo.
Outra prática prejudicial à prestação de serviços de saúde ocorre quando há mudança de governo. Os novos gestores, frequentemente, renegam o trabalho do gestor anterior, ao invés de aperfeiçoar e dar continuidade aos projetos que tiveram um bom resultado por interesse de construir uma ‘marca própria’ e/ou desqualificar o antecessor.
Um desafio relevante é a coordenação dos vários atores políticos e institucionais que fazem parte do sistema de governança do SUS. O funcionamento do SUS depende da coordenação de diferentes níveis de governo, onde temos diferentes partidos representados, cada um com sua ideologia e interesses que orientam suas políticas públicas finalísticas e de organização. Acrescente-se ainda a atuação dos vários órgãos públicos como o Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Defensoria Pública e Conselhos Profissionais que, em cumprimento aos seus papéis institucionais, dispõem de poder para direcionar gastos e influenciar as políticas públicas de saúde e a sua execução.
Nesse quadro político complexo, como fazer com que o conjunto de interesses políticos e institucionais trabalhem no mesmo sentido, com foco nos interesses dos usuários do SUS?
E, ainda, como fazer para organizar a prestação de serviços públicos de saúde, de forma a garantir com qualidade, eficiência e transparência, o exercício do direito à saúde com os conceitos atuais de gestão e controle que orientam o nosso marco regulatório administrativo e de controle?
As soluções para esses questionamentos dependem, sobretudo, do grau de comprometimento dos tomadores de decisão com a defesa do sistema público e universal de saúde; da nossa capacidade de coordenar essa ação coletiva; da modernização do nosso marco regulatório administrativo e de controle; da concepção do papel do Estado na provisão dos serviços públicos; e da prevalência, ou não, de interesses clientelistas, patrimonialistas e corporativos sobre os interesses dos usuários do SUS.
Infelizmente, a grande mobilização política que sustentou a criação do direito à saúde não se manteve para apoiar a superação dos desafios políticos e técnicos da gestão. Hoje, os grupos que mais se mobilizam em defesa do SUS se dividem quanto aos desafios da gestão em função de visões diferentes de como organizar a prestação de serviços do Estado e do papel da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde, como, por exemplo, na polêmica sobre a utilização das organizações sociais (OSs) na gestão dos serviços de saúde.
Essas divergências e a desmobilização política teve como consequência a transferência, na prática, de responsabilidades do Congresso Nacional, em relação às condições de gestão e financiamento, para os poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais, os quais, como sabemos, não têm poderes e recursos para enfrentar sozinhos tamanho desafio, e, assim, comprometemos o pleno exercício desse direito.
Essa ‘transferência de responsabilidades’ pode ser politicamente conveniente. Contudo, não é viável e se insere em uma cultura política de ‘empurrar o problema’, e está na raiz das atuais dificuldades enfrentadas pela população no acesso aos serviços de saúde, além de explicar grande parte do desgaste da imagem do SUS.
A população não identifica o Congresso Nacional e o governo federal como tendo responsabilidades pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde no dia a dia. Sendo assim, tende a responsabilizar apenas os estados e municípios que são, na prática, os provedores majoritários desses serviços; tende, também, a achar que elas não se resolvem apenas por falta de interesse político dos gestores diretos dos serviços, mas infelizmente não é bem assim. Alguns dos principais problemas enfrentados pelos gestores, estaduais e municipais, para garantir o acesso aos serviços depende de decisões a nível nacional.
Isso fica evidente quando se debatem questões de financiamento à saúde no Congresso Nacional e no Executivo Federal, pois não se consegue mais um apoio suficiente no sentido de garantir financiamento adequado, ou regras de gestão e controle específicas que favoreçam a eficiência na utilização de recursos destinados ao SUS.
Outras questões de suma importância para a gestão do SUS, como a excessiva judicialização da saúde ou o fato do gasto privado ser maior que o gasto público, em um sistema público e universal, também não tem merecido a atenção devida por parte do Congresso Nacional e do Governo Federal. Aliás, o debate sobre essas questões não tem ganhado espaço nem em campanhas eleitorais presidenciais ou para o Congresso Nacional, o que é uma enorme contradição, visto ser a saúde um dos temas que mais preocupam a população brasileira, conforme as várias pesquisas de opinião.
A sociedade cobra, com razão, mais resultados do sistema público de saúde. Contudo, ainda não conseguiu perceber que algumas questões cruciais para melhorar o atendimento, como condições de financiamento e regras de gestão e controle adequadas para entregar tais resultados, dependem do Congresso Nacional. Por isso, é fundamental que elejamos candidatos comprometidos com o desenvolvimento do SUS e com práticas políticas republicanas.
O SUS é uma construção social, pressupõem a participação de todos, população, gestores, técnicos, parlamentares, juízes, procuradores, controladores, defensores públicos e conselhos profissionais. Infelizmente não há um culpado de plantão como gostaria o populismo político.
Ricardo de Oliveira, engenheiro de produção, foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010, e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: democracia e eficiência – FGV/2012.