O retorno às aulas em meio à pandemia
Claudia Costin , Helyn Thami e Miguel Lago
Essa semana, grandes cidades brasileiras como Manaus e Duque de Caxias autorizaram a volta às aulas de escolas particulares. Outras capitais estão negociando com instituições privadas uma data de volta já nas próximas semanas. O prefeito Marcelo Crivella confirmará hoje se a volta às aulas se dará na semana que vem. As decisões de prefeituras chamaram a atenção da mídia internacional, como mais um episódio inusitado da maneira pouco séria em como o país conduz a resposta à pandemia.
O principal argumento usado para a defesa da volta às aulas é a menor taxa de transmissão do novo coronavírus entre crianças, que de fato está embasado em evidências. No entanto, as mesmas pesquisas científicas não apontam inequivocamente para uma taxa significativamente menor de transmissão entre crianças e adultos. Mais do que isso, grandes estudos divulgados na última semana mostram que a faixa etária de 10 a 19 anos transmite o vírus tanto quanto os adultos. Ora, dentro das escolas, adultos e crianças convivem com difícil grau de separação. No caso das creches – aquelas que trabalham com crianças de zero a dois anos, sobretudo -, a proximidade física inerente ao cuidado (dentre outros fatores) contraindica o retorno, mesmo em um cenário de decréscimo da curva. Recomenda-se que estas não retornem no ano de 2020.
É preciso lembrar que a comunidade escolar movimenta um ecossistema de famílias, professores, pessoal auxiliar, gestores escolares e, ainda, uma vasta gama de profissionais formais e informais que dependem das escolas, que também sairão às ruas. Isso impõe, como consequência óbvia, a redução do isolamento social.O ciclo escolar gera aglomerações em diversos momentos: no transporte casa-escola, nas entradas e saídas de escolas, dentro das escolas e daí em diante. Crianças, pais e funcionários se tornam potenciais vetores de contágio. Vale enfatizar que o isolamento social é fator preponderante na determinação do ritmo de contágio pelo novo coronavírus – muito mais do que a idade ou qualquer outro aspecto.
Outro argumento vocalizado em defesa da reabertura das escolas é o de que, sob aplicação de protocolos de prevenção, seria absolutamente seguro retornar. Essa afirmação parte da falsa premissa de que as escolas têm condições de assegurar infraestrutura mínima para a execução impecável desses protocolos. Nesse sentido, é imperioso memorar que não são raras as denúncias de falta de material básico como sabonete e papel higiênico em algumas escolas, além do número grande de alunos por turma no contexto brasileiro. Pairam, então, as dúvidas sobre a capacidade de implementação efetiva desses protocolos, em tão curto espaço de tempo. Na prática, a teoria é outra.
Se de um lado o resultado da decisão poderá transformar as escolas em usinas de transmissão, por outro, o processo foi excludente. Professores e profissionais de educação não foram devidamente consultados, e vieram a público manifestar suas inseguranças e seu repúdio. Na crise, a criação de consensos e a discussão ampla entre todos os atores envolvidos é crucial para garantir uma ação pública robusta e que engaje a todos na formulação e implementação de protocolos.
Soa muitíssimo grave, também, a dissonância entre orientações aos setores público e privado, em que o último está sendo autorizado a reabrir, via de regra, antes do primeiro. As abissais desigualdades educacionais no país foram amplificadas desde o início da pandemia. Enquanto as escolas particulares conseguiram rapidamente se adaptar a um formato de educação à distância, as públicas não tiveram o mesmo êxito. A reabertura prévia de escolas particulares seria mais um passo nessa direção. Convém que haja maior coordenação entre esses setores, para traçar um plano integrado e normatizar critérios de modo universal, tornando ambos responsáveis e garantindo, ao mesmo tempo, a segurança de todos. A retomada, neste momento, não é segura pra ninguém, independente da estrutura física e disponibilidade de recursos.
Ainda no tema desigualdade, é preciso reforçar – com ênfase – a necessidade de garantir a aprendizagem efetiva por parte dos alunos, após o retorno. Se as recomendações sanitárias forem seguidas a contento, poderá haver rodízio entre grupos de estudantes, alternando aulas remotas e presenciais, para reduzir a densidade de pessoas no espaço físico das escolas. Isso requererá um acompanhamento criterioso do processo de aprendizado em ambos os modelos, evitando-se, assim, prejuízos no aprendizado, mormente no modelo de aulas à distância.
Além disso, é preciso, ainda, combater energicamente o senso de tranquilidade que tem se tornado evidente entre a população. A Organização Mundial da Saúde e setores da academia concordam em pontuar uma tendência de estabilização de casos em nível nacional, mas não há, ainda, tendência de declínio da curva nem tampouco uma verdade única que se aplique homogeneamente ao país inteiro – em algumas regiões do interior, ainda há franca ascensão da curva. Não se pode normalizar os mais de mil óbitos sendo registrados a cada vinte e quatro horas.
Um bom uso do tempo disponível – até que se atinja um limiar realmente seguro para retomar atividades educacionais presenciais – é, justamente, planejar quanto à infraestrutura e garantir que os envolvidos se sintam (e de fato estejam) protegidos e seguros. Isso não é pouca coisa. Dada a incerteza do cenário, é possível que erremos e tenhamos que voltar atrás em algumas decisões. Isso, contudo, não exime os gestores da Educação de um boa preparação inicial para dar o primeiro passo. Os dados, assim como o senso de preocupação entre os membros da comunidade escolar, são eloquentes: é cedo para retomar, mas já estamos atrasados quanto ao dever de casa.
Claudia Costin é Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora global de Educação do Banco Mundial
Helyn Thami é especialista em Gestão de Saúde do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
Miguel Lago é Diretor Executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde