Covid-19 põe as cartas na mesa e exige revisão do sistema e investimentos em saúde

Rodrigo Guerra

 

A pandemia da Covid-19 se tornou uma lupa sobre o modus operandi do sistema de Saúde brasileiro. A maneira como enfrentamos o vírus e suas consequências deixou evidentes gargalos e limitações antigas, mas também colocou luz sobre pontos fortes e oportunidades. E a principal delas diz respeito à transformação da Saúde. Se estamos, de fato, dispostos a realizá-la, devemos pensar desde já nos investimentos fundamentais para o pós-pandemia.

 

Aos que julgam essa reflexão precipitada, enfatizo que o momento de reação e adaptação já passou. Os últimos dois meses, ainda que bastante atribulados e preocupantes, foram mais que suficientes para reestruturar operações e colocar as unidades de Saúde em condições de atender os pacientes. E ainda que a calmaria não esteja em um horizonte próximo, não dá para deixar de lado a tarefa de pensar em como serão estruturadas as instituições de agora em diante.

 

A primeira abordagem é, ao mesmo tempo, filosófica e prática: o conceito de eficiência na Saúde vai mudar. Até pouco tempo atrás, eficiente era o hospital ou clínica que fazia mais com menos – o que pautava a administração era basicamente uma relação direta entre preços e custos. Agora entram outros elementos, muitos deles inéditos. O mais importante deles é a capacidade do setor em reagir prontamente a eventos inusitados. Epidemias e pandemias passam, definitivamente, a estar no radar de todas as empresas, de qualquer ramo, e na Saúde passam a ser prioridade.

 

Toda instituição de Saúde, seja ela privada ou pública, deverá traçar cenários de crise em seu planejamento, precisará entender o peso da capacidade de resposta imediata e oferecer segurança aos pacientes e às suas equipes de uma maneira muito mais profunda que antes. Constatamos, da forma mais dramática possível, quão alto é o custo do despreparo, seja em termos financeiros ou humanos, e não podemos deixar que isso se repita.

 

Uma segunda abordagem do planejamento pós-pandemia é a revisão da remuneração dos profissionais, que não se limita aos médicos, mas abrange todos os agentes da Saúde, em especial enfermeiros e técnicos de enfermagem. Que eles recebam aplausos e menções públicas é meritório e louvável, mas esses profissionais dependem de formas de reconhecimento mais palpáveis e de uma valorização à altura do risco e da fidelidade que vivenciam no cumprimento de suas funções.

 

Com essas abordagens em mente, podemos considerar três frentes de investimento fundamentais no pós-pandemia:

 

  • Estruturação e capacidade instalada;
  • Reorganização da cadeia de insumos, quebrando a superdependência das importações;
  • Conscientização do público, de forma aplicada, sobre a atenção integral à saúde.

 

Todos esses investimentos necessitam, claro, de recursos. Para garanti-los, o caminho mais imediato é combater o desperdício por meio de uma gestão mais racional. Já a longo prazo, devemos disseminar a atenção integral à saúde, o que constitui toda uma mudança cultural não só dos agentes do sistema, mas também da sociedade. Hoje ainda nos encontramos presos a uma “medicalização” excessiva, com usuários que entendem acesso à saúde de qualidade como disponibilidade de medicamentos -e organizações que se propõem a atender a esse anseio. Migrar para a mentalidade de que a qualidade existe quando não se adoece é um caminho sem volta não só para a sustentabilidade do setor no pós-pandemia, mas também para que a população brasileira tenha mais qualidade de vida.

 

Mas é preciso dizer que, enquanto insistirmos nesse modelo de remunerar por quantidade de atendimentos, e não por qualidade, favorecemos mais uma prática equivocada da medicina que um cuidado de referência.

 

Acredito que todos os players da Saúde estão agora mais sensíveis e propensos para enfrentamentos que eram há muito postergados. E é nosso papel, como gestores, estar à frente de todos os agentes, hospitais e operadoras de Saúde para promover uma mudança no modelo de remuneração baseado no resultado do atendimento em saúde.

 

Para isso, é crucial implementar indicativos de qualidade e eficiência que possibilitem tirar essa premissa do papel. A exemplo de parâmetros, o tempo em que o indivíduo passa em leito hospitalar e a taxa de reinternação são pontos para os quais podemos olhar como um indicativo de sucesso do trabalho desempenhado por aquele médico e serviço. É dever do gestor internalizar e aplicar esse raciocínio para que esse calor da mudança não “esfrie” no retorno a uma aparente normalidade -que de normal promete não ter nada.

 

Em relação às instituições governamentais, acredito que o mundo deve caminhar para uma nova perspectiva sobre o papel do Estado. Ele passará a desempenhar outras funções, estará mais presente, e os cidadãos irão exigir um outro nível de investimentos em Saúde, similar ao disponibilizado hoje na área de defesa, por exemplo. Os bilhões que o mundo gasta em armamentos carregam a lógica de que são usados para combater inimigos potenciais. Agora os inimigos são outros, invisíveis, e pedem outro tipo de combate, deixando claro que se queremos construir um mundo diferente no pós-pandemia, precisamos começar pela saúde -essa com caixa baixa mesmo, que vai muito além de um setor.

 

Rodrigo Guerra é Superintendente Executivo da Central Nacional Unimed.