Informação e transparência como ferramenta de prevenção e controle da Covid-19 e outras doenças
Roberta Costa Marques
Desde o início da pandemia, a ausência de uma diretriz nacional de enfrentamento à Covid-19 é agravada pelo reduzido número de testes, gerando deficiência de registros que impossibilitam desde a organização planejada do Sistema Único de Saúde até a retomada gradual das atividades econômicas e sociais em segurança. Não bastassem os parcos avanços na testagem, fomos mais uma vez pegos de surpresa pelo Ministério da Saúde, que deixou de divulgar os casos e mortes acumulados, comunicando uma nova metodologia de cálculo e causando indignação da sociedade civil e de autoridades em meio ao caos sanitário. Sem informações transparentes, não é possível saber ao certo quantas pessoas morreram, quantas estão infectadas, em que direção e com que velocidade a doença se propaga – informações epidemiológicas imprescindíveis para governos realizarem ações de vigilância e controle de doenças e prevenir futuras ocorrências.
Diante desse cenário, rapidamente, algumas organizações se uniram para cobrir esta lacuna, como foi o caso do consórcio inédito criado por veículos de comunicação e também o portal do Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), que reúne informações estaduais atualizadas diariamente, além de outras importantes iniciativas. No entanto, ainda que essas iniciativas cumpram papel fundamental na garantia do direito à informação, o país continua sem uma fonte oficial única de dados consolidados para direcionar ações de enfrentamento ao novo vírus e gerar confiança e adesão da população a essas políticas.
Infelizmente, a dificuldade para acessar dados com a pandemia do coronavírus, embora por razões diferentes, não é algo novo no campo da saúde pública. A epidemiologia é uma ciência pouco valorizada e utilizada para o planejamento e a tomada de decisão dos gestores públicos, quando diversas outras doenças se beneficiariam da vigilância epidemiológica rigorosa e permanente, como é o caso das doenças pediátricas.
O Brasil tem vivenciado mudança do perfil epidemiológico das doenças que acometem crianças e adolescentes, com queda acentuada da mortalidade por doenças transmissíveis e aumento das doenças crônicas não transmissíveis. Isso ocorreu quando doenças infecciosas associadas à pobreza foram controladas com vacinas e acesso à saúde básica, fazendo com que, por exemplo, o câncer tenha se tornado a primeira causa de morte por doença na faixa etária de 1 a 19 anos. Uma mudança dessa natureza só foi perceptível graças à vigilância epidemiológica, que subsidia o planejamento e a organização da rede de atenção por parte dos gestores públicos, direcionando a assistência para o controle do câncer infantil como, por exemplo, na promoção do diagnóstico precoce e do acesso rápido ao tratamento especializado de qualidade.
Outro exemplo é a obesidade infantil, uma epidemia mundial e silenciosa que acomete 1 a cada 3 crianças atendidas pelo SUS no Brasil e que é fator de risco para diversas doenças crônicas, além de causar uma série de complicações ainda na infância. Qualificar, ampliar e dar transparência ao Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), por onde é possível monitorar o peso, altura e consumo alimentar de crianças e adolescentes, é fundamental para o controle da obesidade infantil.
O Instituto Desiderata monitora a situação do câncer e da obesidade em crianças e adolescentes do Rio de Janeiro e publica panoramas anuais que reúnem essas informações, com o objetivo de chamar atenção para essas questões e contribuir para o seu enfrentamento. A partir desse trabalho, podemos dizer que os sistemas de registro avançaram nos últimos cinco anos, mas estão ainda muito aquém do esperado para o controle dessas doenças.
Os últimos Registros Hospitalares de Câncer completos disponíveis oficialmente são do ano de 2013, quando o atraso máximo recomendado pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) é de até dois anos. Além disso, algumas variáveis são preenchidas inadequadamente, como é o caso da informação sobre o estadiamento dos tumores, ausente em 40% dos casos registrados. Sem essas informações, não é possível saber a extensão da doença, seu nível de gravidade e quais as chances de cura, e, portanto, fazer seu controle. Em relação ao SISVAN, a cobertura de aferição do estado nutricional ainda é baixa, cerca de 15,7%, e o monitoramento de peso, altura e consumo alimentar de crianças e adolescentes não é uma rotina na atenção básica, diante da invisibilidade do problema e do foco no tratamento de doenças, em detrimento da prevenção. Apesar dos desafios e limitações ainda encontrados nessas bases de dados, esses são sistemas nacionais e oficiais que norteiam as pesquisas e as políticas públicas para prevenção e controle de doenças e é preciso que sejam cada vez mais aprimorados e utilizados.
No caso da Covid-19, infelizmente, o que tem sido produzido até aqui é uma chuva de mensagens contraditórias, pouca transparência dos poucos dados existentes e muitas barreiras para a produção de registros, gerando muita incerteza e impedindo um enfrentamento estratégico à pandemia.
A implementação qualificada e disponibilização regular dos sistemas de informação em saúde demanda ações integradas, tais como capacitação de registradores, infraestrutura adequada, e, sobretudo a sensibilização dos diversos níveis de gestão para a importância da transparência e do registro como ferramentas de planejamento, prevenção e controle de doenças.
Informação transparente é base para o desenho e a implementação de políticas públicas. Que a experiência que estamos vivenciando com o novo coronavírus traga aprendizados concretos e mobilize a sociedade e gestores para a importância do uso de informações confiáveis para fortalecer o sistema público e melhorar a saúde das pessoas.
Roberta Costa Marques é Diretora Executiva do Instituto Desiderata e membro do Global Advocacy Consulting Group da União Internacional de Controle do Câncer.