Diplomacia da Saúde: Rumo à Cobertura Universal

Marcelo Costa

Marise Nogueira

 

Nas últimas décadas, as implicações políticas, sociais e econômicas de temas sanitários têm exigido a participação cada vez maior de diplomatas em negociações sobre saúde internacional e de especialistas em saúde pública no universo diplomático, como tem ficado mais evidente no atual contexto de resposta global à pandemia de Covid-19.  A interação entre essas duas áreas de conhecimento propiciou a criação de um novo campo de atuação profissional e acadêmica -a diplomacia da saúde. Desde a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários à Saúde de Alma-Ata, em 1978, que consagrou o lema “Saúde para Todos”, uma das principais frentes da diplomacia da saúde é a Cobertura Universal de Saúde.

Atualmente metade da população mundial não dispõe de cobertura completa de serviços essenciais de saúde. Além disso, a cada ano, cerca de 100 milhões de pessoas no mundo são levadas à situação de extrema pobreza em função de gastos com saúde.  Tendo em conta essa desafiadora realidade, uma das metas estabelecidas na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU visa a “atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preços acessíveis para todos”.

Com a adoção, em 2015, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em particular do ODS 3 (assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades), a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), principal foro político multilateral, reafirmou o elevado interesse da comunidade internacional pelos  temas de saúde. Vale recordar, nesse sentido, o papel do Brasil como um dos sete membros fundadores do grupo “Política Externa e Saúde Global” -iniciativa propulsora da agenda de saúde no âmbito da ONU, o que confere ao país reconhecida legitimidade nos debates da área.

Desde então, a AGNU, em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) – face mais visível da complexa rede de instituições e organismos que integram o campo da diplomacia da saúde –, vem intensificando sua atuação na área da saúde. Nesse sentido, foram realizadas, nos últimos anos, cinco reuniões de alto nível político (com a participação de chefes de estado e governo), que resultaram em compromissos comuns,  objeto de longa negociação entre os países, sobre assuntos como HIV/Aids; doenças não transmissíveis; resistência antimicrobiana; tuberculose; e, mais recentemente, em setembro de 2019, cobertura universal de saúde.

Na ocasião, os 193 estados-membros da ONU aprovaram a Declaração Política intitulada “Caminhando Juntos Para Construir um Mundo Mais Saudável”, considerada pelo secretário-geral da organização, António Guterres, o acordo mais abrangente já alcançado sobre saúde global.  Trata-se, de fato, do mais significativo chamado à ação feito por líderes mundiais sobre a necessidade de fortalecer as capacidades dos sistemas nacionais de saúde, o que, por sua vez, viria a constituir fundamental contribuição ao objetivo de se cumprir o lema da Agenda 2030 “de não deixar ninguém para trás”.

A Declaração estimula a cooperação entre governos, sociedade civil, academia e setor privado, tanto no plano nacional quanto global, com o objetivo de acelerar a implementação da cobertura universal de saúde nos próximos anos com foco em temas fundamentais para o avanço dessa agenda, como, entre outros, a democratização do acesso a medicamentos e vacinas; a expansão da atenção primária; a capacitação dos trabalhadores da área; o incremento do financiamento de políticas de saúde pública; e o reforço de ações de prevenção e controle de pandemias.

A atual pandemia de Covid-19 veio recordar que as doenças não respeitam fronteiras, podendo, como temos observado, acarretar graves danos para a saúde pública, o bem-estar da população e a economia de países dos mais variados níveis de renda e desenvolvimento. Nesse contexto, tornam-se ainda mais importantes ações que, por um lado, fortaleçam os sistemas nacionais de saúde – o SUS no caso brasileiro, e, por outro, que valorizem mecanismos diplomáticos regionais e multilaterais, a fim de intensificar a cooperação internacional com vistas à busca de soluções comuns. Em ambos os casos, a diplomacia da saúde tem papel decisivo a desempenhar.

Marcelo Costa, formado em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba, é diplomata de carreira. Foi assessor para temas de saúde global da 73a Presidente da Assembleia Geral da ONU. 

Marise Nogueira, formada em Medicina pela Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mestre em Radiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é diplomata de carreira.

(Este artigo foi escrito a título pessoal, não refletindo posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores)