Saúde e economia: os dois lados da mesma moeda

Paula Johns

 

A polarização extrema que transforma tanto assuntos sérios quanto os mais banais em disputas políticas não é exatamente uma novidade no Brasil. A chegada da Covid-19 ao país poderia resultar em um sentimento coletivo de união que nos faria, ao menos momentaneamente, deixar de lado opiniões e preferências em prol da luta contra o novo coronavírus.

 

Em vez disso, o que vemos em destaque é uma suposta disputa entre saúde e economia. Essas duas áreas são os pilares centrais da vida em sociedade, já que o estado de saúde, tanto física quanto mental, e o grupo socioeconômico são os parâmetros que definem a qualidade de vida e o bem-estar. A pandemia de Covid-19 vem afetando severamente ambos os sistemas e compromete de forma ainda maior os mais vulneráveis, que dependem do sistema público de saúde.

 

A resposta para tentar mitigar os impactos da epidemia passa, inevitavelmente, por políticas públicas de proteção social e promoção da saúde. As primeiras, que incluem a implementação da renda básica emergencial, já em andamento, podem ajudar as pessoas a terem mais condições de cumprir as medidas de isolamento. As políticas de promoção da saúde, por sua vez, precisam ser colocadas em prática para desafogar o sistema como um todo e garantir mais recursos. Esse tipo de política precisava estar em vigor há tempos e devem ser permanentes, para evitar riscos de futuras epidemias.

 

Em um mundo ideal, bastaria as pessoas se conscientizarem que precisam fazer escolhas saudáveis. Na prática, não é bem assim. Na alimentação, por exemplo, a sociedade é bombardeada o tempo todo com propaganda de produtos sem valor nutricional, como bebidas adoçadas e comidas ultraprocessadas. O custo final desses produtos é baixo, o que garante o acesso fácil a eles e aumenta o consumo. Com o consumo alto, há um aumento da obesidade e sobrepeso, o que leva a outras doenças como diabetes, cardiovasculares, alguns tipos de câncer, entre outras. São essas que sobrecarregam o sistema de saúde e integram a categoria de doenças crônicas não transmissíveis, junto com doenças respiratórias, e são responsáveis por mais de 72% das mortes no país, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Com uma epidemia de proporções ainda desconhecidas, vem o colapso como o que está sendo previsto.

 

Aqui, focamos  em duas dessas políticas: a tributação de produtos não saudáveis e o fim da Emenda Constitucional que estabeleceu o teto de gastos, ambas com o objetivo de diminuir a carga de doenças e assegurar mais recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Tributar produtos nocivos à saúde é uma das maneiras mais eficazes de desencorajar o consumo e incentivar escolhas de alternativas mais saudáveis, modelo que vem sendo seguido por diversos países.  O caso do tabaco é exemplar. Estudo feito pelo Instituto Nacional de Câncer e Fundação Oswaldo Cruz, em 2015, mostrou que a soma do custo de cuidados médicos e a perda de produtividade devido a doenças causadas pelo cigarro é de cerca de R$ 57 bilhões anuais, enquanto a indústria do tabaco paga apenas cerca de R$ 13 bilhões em impostos. O déficit resultante, de R$ 44 bilhões, cai na conta do SUS.  Medidas como políticas de preços e impostos, restrição da publicidade, ambientes livres de fumo, entre outras, foram fundamentais para reduzir em 40% a taxa de fumantes no país em 13 anos. Atualmente, a prevalência de fumo no país é de 9,3%, segundo pesquisa do Ministério da Saúde.

 

No sentido contrário, as bebidas açucaradas, que incluem os refrigerantes e sucos artificiais, representam um pouco do que precisa ser enfrentado. Elas não têm nenhum valor nutricional, têm as chamadas calorias vazias, e estão relacionadas com o sobrepeso e a obesidade. Ainda assim, existem políticas fiscais que incentivam sua produção, em vez de tributá-las. Há uma pressão do setor produtivo para que a alíquota de IPI sobre bebidas açucaradas seja aumentada, o que contribui para uma zona cinzenta do sistema tributário, já que neste caso, quanto maior a alíquota, maior o crédito fiscal das indústrias que compram xaropes concentrados da Zona Franca de Manaus.

 

Em 2018, a Receita Federal apurou que houve perda de R$ 2 bilhões de reais anuais somente por meio do sistema de créditos do IPI. Ainda segundo a Receita Federal, os incentivos anuais totais são de R$ 3,8 bilhões.

 

O resultado final  desta distorção é que o preço de produtos como refrigerantes fica baixo, fazendo com que seu consumo aumente, o que impacta a saúde pública como um todo. No Brasil, quase 57% da população está acima do peso, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, do IBGE, o que equivale a cerca de 82 milhões de pessoas com 18 anos ou mais, e a obesidade já atinge mais de 20% da população. Estimativas de estudo da Universidade de São Paulo indicam que os custos relacionados à obesidade no Brasil eram de US$ 5,8 bilhões em 2010, sendo que esse número pode chegar a US$ 10 bilhões em 2050, se algumas medidas não sejam tomadas de imediato. No caso da diabetes, os custos, em 2016, chegaram a US$2 bilhões, com potencial de atingir US$5 bilhões em 2030.

A Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um congelamento em novos investimentos por 20 anos em diversas áreas, incluindo a saúde, é outro fator que aumenta as dificuldades do SUS. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), “de acordo com estudo apresentado na Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS, o prejuízo ao SUS, de 2018 a 2020, já chega a R$ 22,48 bilhões se não tivesse ocorrido a redução do piso federal. Ao longo de duas décadas, os danos são estimados em R$ 400 bilhões a menos para os cofres públicos.”

 

Em tempos de normalidade, esses números já seriam aterradores. Dada a situação de catástrofe que estamos atravessando, não há adjetivos que os classifiquem. Portanto, mais importante que nunca é que os Poderes Executivo,  Legislativo e Judiciário tenham claro a importância das políticas públicas a serem adotadas para mitigar os danos que a população vêm sofrendo.

 

 

Paula Johns, diretora geral da ACT Promoção da Saúde, é socióloga e mestre em estudos de desenvolvimento internacional pela Universidade de Roskilde, Dinamarca. Atua no terceiro setor desde 1998, coordenando projetos voltados à promoção dos direitos humanos, equidade de gênero, preservação do meio ambiente e saúde pública. Ex-presidente do conselho diretor da Framework Convention Alliance (FCA) e empreendedora social Ashoka. Membro do Conselho do GAPA – Global Alcohol Policy Alliance e da NCD Alliance. Compõe ainda o Comitê gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.

A ACT Promoção da Saúde foi fundada em 2006 com o nome de Aliança de Controle do Tabagismo com a proposta de trabalhar por políticas públicas de controle do tabagismo, comprovadamente eficazes, seguindo as recomendações da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, primeiro tratado internacional de saúde pública, da Organização Mundial de Saúde.

O foco da ACT é promover ações de advocacy e políticas públicas voltadas para a criação de ambientes saudáveis que, por sua vez, promovem escolhas saudáveis.