A sociedade pós-pandemia
Ricardo de Oliveira
A atual crise, sanitária e econômica, provocada pelo coronavírus (causador da Covid-19) tem nos mostrado a importância do pensamento flexível e aberto para entender a conjuntura que estamos vivendo. Olhar a realidade com lentes ideológicas não ajuda a descobrir as soluções que precisamos, tanto na saúde como na economia, e nem vai auxiliar a compreender as lições dessa experiência única da nossa geração. Ao mesmo tempo que enfrentamos a crise em todas as suas dimensões, devemos refletir sobre o que ela nos ensina.
O ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, em recente artigo divulgado pelo site Sputnik Consulting, disse que “a pandemia de coronavírus alterará para sempre a ordem mundial”, e acrescenta que “os líderes estão lidando com a crise em nível nacional, mas os efeitos da dissolução social do vírus não reconhecem fronteiras […] Nenhum país, nem mesmo os Estados Unidos, podem superar o vírus em um esforço puramente nacional. Atender às necessidades do momento deve, em última análise, ser combinado com uma visão e um programa colaborativo global”.
A escritora Olga Tokarczuk, prêmio Nobel de literatura em 2019, em seu artigo na Folha de São Paulo afirmou: “diante dos nossos olhos se esvanece, feito fumaça, o paradigma civilizatório que nos moldou ao longo dos últimos 200 anos – que somos os senhores da criação, podemos fazer tudo e o mundo nos pertence. Novos tempos estão por vir”. Já o escritor Yuval Noah Harari, em entrevista ao Estadão, declarou que a fronteira que temos que policiar é entre o vírus e o corpo humano, e não a fronteira física entre países. Muitos analistas, em seus comentários na mídia, estão prevendo um fortalecimento do papel do Estado e dos sistemas públicos de saúde.
Essas avaliações indicam mudanças disruptivas no mundo pós-Covid-19, na forma como vivemos em sociedade, na relação de superioridade com a natureza, e nas relações entre os países.
É fato que estamos tendo a oportunidade de viver um momento que permite realizar profundas transformações, impensáveis há poucos meses. Em tempos normais é mais difícil promover mudanças devido à resistência dos grupos beneficiados com a manutenção do status quo.
Será que teremos a capacidade de compreender todas as lições advindas da crise, ou iremos insistir nos velhos paradigmas, desperdiçando a oportunidade histórica de realizarmos mudanças, no sentido de uma sociedade mais igualitária e mais cooperativa no plano internacional e nacional? Seremos capazes de repensar o processo de globalização, corrigindo seus exageros na concentração de renda (conforme demonstrado por Thomas Piketty em seu livro “O Capital”) e no incentivo à competição desenfreada? Conseguiremos mudar nossa relação de arrogância com a natureza, que caracteriza nosso pensamento desde o iluminismo?
Na crise econômica de 2008 fomos capazes de tomar medidas emergenciais para salvar a economia, mas não aproveitamos a oportunidade para construir uma sociedade menos desigual e aprofundar a cooperação entre os países.
Uma questão crucial, portanto, é como os líderes mundiais e as elites econômicas irão interpretar os ensinamentos da crise. Continuarão na guerra de mercados e poder, conforme estabelecida hoje em dia, ou fortalecerão a solidariedade e cooperação entre os países? Fortalecerão o sistema público de saúde e o combate à desigualdade social, dramaticamente evidenciada pela pandemia?
É possível que os movimentos de extrema direita, particularmente na Europa e nos Estados Unidos, procurem se apropriar politicamente dessa crise com objetivo de reforçar seus argumentos de controle das fronteiras e de restrição à circulação de pessoas entre os países, como se essa medida impedisse a circulação de vírus. Além disso, é de se supor que enfatizarão ainda mais as críticas à globalização em função do seu impacto nas economias nacionais, principalmente quanto ao desemprego, capitalizando o medo e a insegurança que esse processo tem levado às pessoas em todo o mundo. Essas críticas, inclusive, já foram apontadas por muitos analistas como fator importante na eleição de Donald Trump e do resultado do plebiscito na Inglaterra que aprovou a saída desse país da Comunidade Europeia.
O fato dessa pandemia ter surgido na China também pode ser usado para fortalecer a velha estratégia política, autoritária e populista, de apontar um inimigo externo para unir o país. Esse discurso, obviamente, é facilitado pela falta de credibilidade e transparência do regime político da China.
Esses argumentos políticos, infelizmente, têm tido até agora crescente aprovação popular, principalmente em diversos países europeus e nos Estados Unidos, visto o resultado de algumas eleições com o fortalecimento dos grupos que os defendem. O que não sabemos é se, após a atual pandemia, haverá uma redução do apoio da população a essas teses, ou seu reforço.
Portanto, a consolidação de um forte processo de mudanças vai depender, fundamentalmente, do processo político e do posicionamento dos eleitores nos países democráticos. Teremos que esperar as eleições, em especial nesses países, e avaliar o quanto mudaram os corações e mentes da população a partir da experiência provocada pelo enfrentamento da Covid-19. A orientação da política externa chinesa também será relevante na conformação de uma possível nova ordem mundial.
Hoje, no debate público sobre a pandemia, o pensamento xenófobo e autoritário é francamente minoritário. A devastadora letalidade desse vírus forjou uma percepção majoritária de que os sentimentos de medo e insegurança, antes manipulados para sustentar políticas isolacionistas, só se resolvem com mais cooperação e solidariedade internacional e entre os indivíduos, e, também, com o fortalecimento dos sistemas públicos de saúde.
Há uma exaltação diária, na mídia e nas redes sociais, aos exemplos de cooperação e solidariedade, e do papel dos sistemas públicos de saúde e dos seus profissionais, em todo o mundo. Será isso suficiente para sustentar a reformulação do nosso padrão civilizatório, conforme previu a escritora Olga Tokarczuk?
O desafio histórico atual é repensar a forma como organizamos a convivência em sociedade, a economia, o trabalho, a nossa relação com a natureza, e o novo papel do Estado. Ou seja, a vida como ela é hoje. A superação desse desafio vai depender da mobilização política de todos que estejam comprometidos com essas teses e enxergam essa possibilidade na crise atual.
Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção, consultor em gestão pública e palestrante. Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo, no período de 2005 a 2010, e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. Autor do livro Gestão Pública: Democracia e Eficiência (FGV, 2012).