Procura-se epidemiologista
Arthur Aguillar
Helyn Thami
Gabriela Lotta
Imagine a situação: o gestor de um município de médio porte de alguma região do Brasil recebe alguns milhares de testes sorológicos para ajudar no enfrentamento à COVID-19 na sua cidade, mercadoria rara no país que, entre as dez nações com o maior número de casos, é aquela que menos testa sua população (17 vezes menos que os Estados Unidos e 32 vezes menos que a Espanha). A quantidade de testes no país é limitada e é cada vez mais difícil comprar testes no exterior. Ao mesmo tempo, existe pressão política e da população para que o município amplie a testagem. O que o gestor deve fazer? Testar aleatoriamente a população para identificar a taxa média de contágio? Ou gastar a maioria dos testes medindo a incidência em pacientes que já se encontram em estado grave? Ou utilizar estes testes para entender a dispersão geográfica da doença pelos bairros do município? Para o gestor a pergunta é – ou deveria ser – uma só. Onde posso salvar mais vidas?
A crise da COVID-19 tem dado visibilidade para diversos desafios enfrentados pelas secretarias de saúde. Em particular, chamam atenção os gargalos de ventiladores, leitos de UTI e recursos humanos; a desorganização do fluxo de atendimento e a fragilidade da política de regionalização; a dificuldade de navegar as comunicações com sinais trocados emitidas por diferentes níveis de governo. Existe um gargalo, talvez tão importante quanto estes mencionados, que passa desapercebido, talvez por seu grau de especificidade e por se tratar de algo bastante técnico, mas não menos essencial: a disponibilidade de epidemiologistas e sua presença nos comitês de crise dos municípios brasileiros.
Como o nome sugere, o epidemiologista é o profissional que estuda as epidemias: sua distribuição, padrões e determinantes dentro de um território, um tempo ou uma subpopulação. É um trabalho que envolve teoria e modelagem matemática e estatística, mas também intenso trabalho de campo. O Brasil conta com uma grande tradição de epidemiologistas, nessa estranha matemática dos países que têm simultaneamente muitos problemas, com a alta prevalência de doenças infecciosas como a dengue e a leishmaniose, e muitos recursos, com a vasta produção da Fiocruz e de muitas das nossas universidades públicas. Para citar um exemplo, Cesar Victora (Universidade Federal de Pelotas), um dos grandes epidemiologistas brasileiros, e que no momento lidera equipes responsáveis pelos primeiros inquéritos amostrais de prevalência da COVID-19 no Brasil, possui mais de 95 mil citações em artigos científicos, de acordo com o Google Acadêmico.
Embora o Brasil tenha uma tradição internacional na área de epidemiologia, muitos municípios brasileiros não contam com epidemiologistas em seus gabinetes de crise. Embora não tenhamos dados consolidados sobre este desafio, nossa experiência dialogando com diversos municípios sugere que, sobretudo nas cidades médias, que concentram boa parte da população brasileira, faltam profissionais deste tipo. Considerando a trajetória da COVID-19 em nosso país, e a cada vez mais acelerada interiorização da doença, a ausência de epidemiologistas nesses municípios pode nos custar cada vez mais casos e mortes.
O epidemiologista pode salvar vidas pois ele é o profissional que irá propor boa parte das principais políticas de enfrentamento à COVID-19 nos estados e municípios. A verdade é que sabemos muito pouco sobre a pandemia; paradoxalmente, o conhecimento acumulado sobre a COVID-19 se amplifica e muda a cada dia. É papel do epidemiologista comunicar essa evidência em constante mutação para as lideranças do município, para que embasem suas decisões, mas principalmente, para comunicar o que não sabemos e o abissal grau de incerteza que estamos vivendo. Abrir ou fechar o comércio? Impor o lockdown ou flexibilizar? Neste ambiente de tantas dúvidas, é o epidemiologista quem será capaz de fazer as perguntas certas para embasar cada passo realizado pelo gestor.
E tão importante quanto, é a liderança do epidemiologista nas ações de vigilância epidemiológica. Uma epidemia se vence, entre outras coisa, com dados e inteligência. E a vigilância é o carro-chefe da inteligência da resposta a uma epidemia. A vigilância epidemiológica busca compreender a disseminação da pandemia. Para isso, desenvolve as estratégias de testagem e monitora infectados e seus contactantes. Em ambas as atividades, a ausência de apoio técnico pode custar vidas.
Como equipar os municípios brasileiros com epidemiologistas? A quantidade de profissionais parece ser uma restrição. Não existe dados oficiais sobre a quantidade de epidemiologistas atuando no país, mas na plataforma Lattes existem 3.924 CVs com doutorado e 8.576 não-doutores que declaram atuar na área. O segundo desafio está na alocação destes profissionais. A maioria dos epidemiologistas estão em alguns poucos centros urbanos, em particular aqueles que ostentam grandes universidades. O terceiro problema é de escala: nem todo município, sobretudo os pequenos, têm recursos para contratar estes profissionais.
Para responder a esses desafios precisamos de estratégias de rede. Os municípios médios e grandes precisam ter epidemiologistas em seus quadros. Os pequenos, utilizarem do desenho regional para conjuntamente contratarem este tipo de serviço. A telemedicina pode também ser uma boa saída para criar acesso em escala a esses profissionais. Não há tempo a perder.
Arthur Aguillar e Helyn Thami são pesquisadores do IEPS
Gabriela Lotta é Professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas; coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB – FGV/EAESP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)